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Iniciativa popular e democracia participativa: entraves à construção de uma cidadania ativa

Iniciativa popular e democracia participativa: entraves à construção de uma cidadania ativa

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O fortalecimento do sistema democrático participativo complementa o modelo vigente, na busca por uma sociedade politicamente ativa.

SUMÁRIO:Introdução. 1. Soberania popular e democracia: a necessária construção de uma sociedade ativa. 2. A crise do modelo representativo. 3. Democracia participativa; 3.1 Iniciativa popular como materialização da democracia participativa. 4. Entraves à efetivação da participação popular no Brasil. Considerações finais. Referências bibliográficas.

RESUMO:Busca-se examinar as características da democracia e da soberania popular, com o enfoque na demonstração teórica de que o fortalecimento do sistema democrático participativo tem a possibilidade de complementar o modelo representativo puro, na busca por uma sociedade politicamente ativa, de modo a contemplar o cidadão como protagonista das decisões governativas, e não um mero e passivo espectador. Nesse contexto, será apresentada a sólida e atual crise que aflige a democracia representativa, transformando-a num modelo distante do ideal democrático, bem como as dificuldades enfrentadas para a efetiva e plena materialização da participação popular no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Soberania. Democracia. Participação popular.

INICIATIVA POPULAR Y LA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA: obstáculos para la construcción de una ciudadanía activa

CONTENIDO:Introducción. 1. La soberanía popular y la democracia: la necesaria construcción de una sociedad activa. 2. La crisis del modelo representativo. 3. La democracia participativa; 3.1 iniciativa popular como la encarnación de la democracia participativa. 4. Obstáculos para la participación popular efectiva en Brasil. Consideraciones finales. Referencias.

RESUMEN:Este artículo tiene la intención de examinar las características de la democracia y la soberanía popular, con el foco en la demostración teórica de que el fortalecimiento de sistema democrático participativo tienen la capacidad de complementar el modelo representativo puro en la búsqueda de una sociedad políticamente activa, a fin de incluir al ciudadano como protagonista de las decisiones gubernamentales, y no un mero espectador y pasivos. En este contexto, el sólido y la actual crisis que aflige a la democracia representativa se presentará, por lo que es un modelo distante del ideal democrático, y las dificultades que enfrentó en la realización plena y efectiva de la participación popular en Brasil.

PALABRAS CLAVE: Soberanía. Democracia. Participación popular.

LEGISLATIVE INITIATIVE POPULAR AND PARTICIPATORY DEMOCRACY: obstacles to the construction of an active citizenship

CONTENTS:Introduction. 1. Popular sovereignty and democracy: the necessary building an active society. 2. The crisis of representative model. 3. Participatory democracy; 3.1 popular initiative as the embodiment of participatory democracy. 4. Obstacles to effective popular participation in Brazil. Final considerations. References.

ABSTRACT:This paper intends to examine the characteristics of democracy and popular sovereignty, with the focus on theoretical demonstration that the strengthening of participatory democratic system have the ability to complement the pure representative model, in the search for a politically active society of order to include the citizen as protagonist of governmental decisions, and not a simple spectator and liabilities. In this context, the solid and the current crisis afflicting representative democracy will be presented, making it a distant model of the democratic ideal, and the difficulties faced in the effective and full realization of popular in Brazil.

KEYWORDS: Sovereignty. Democracy. Popular participation.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (BRASIL, CRFB/ 1988).

A afirmativa trazida pelo parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição da República Federativa do Brasil, inserto em seu Título I (Dos princípios fundamentais), pode ser considerada como a essência, a gênese da soberania popular, bem como da democracia brasileira, em suas modalidades representativa e participativa.

O “todo poder emana do povo” evidencia que o poder estatal somente poderá ser concebido como de propriedade insofismável do povo.

Não pode existir poder que não seja exercido em nome e em favor da sociedade, sendo inviável conceber a mera menção a qualquer poder superior à coletividade. A soberania popular é o pressuposto basilar para a existência de uma democracia sólida.

No mesmo sentido, o recorte “que o exerce por meio de representantes eleitos” deixa claro que a opção política do texto constitucional foi a adoção de um sistema representativo, por meio do qual há o exercício do poder soberano pertencente à coletividade, através de seus representantes eleitos.

O modelo representativo é adotado não só no Brasil, como também, em centenas de nações democráticas e tem como pressuposto a construção de uma delegação de poder conferida pelo povo aos seus representantes, por meio de eleições livres.

Há, também, o exercício de poder de forma direta pelo povo, configurando-se o modelo participativo, o qual pode existir de forma complementar ao sistema representativo, conferindo-se maior legitimidade às decisões governativas.

Resta claro, pois, que o legislador constituinte adotou o modelo representativo, sem prejuízo da utilização de mecanismos de democracia direta (iniciativa popular, referendo e plebiscito).

Diversamente do que fora idealizado pelo constituinte, o modelo representativo apresenta-se em crise, eis que o povo, real detentor do poder, não consegue vislumbrar em seus líderes eleitos democraticamente, verdadeiros representantes da vontade geral.

Percebe-se uma inversão de valores, eis que os mandatos conferidos pelo povo estão sendo utilizados com a exclusiva finalidade de manutenção e perpetuação do poder.

Para ocupar esse crescente vácuo de legitimidade imposto pelo modelo representativo, está a democracia semidireta, participativa ou mista, como forma de verdadeiramente conferir ao povo soberano a detenção e gozo do poder.

Essa legitimidade, diversamente do modelo puramente representativo, pode ser percebida quando os governados colaboram na construção da vontade governativa, o fazendo, segundo o regramento pátrio, por meio dos mecanismos de democracia direta.

O objetivo do presente estudo é demonstrar que as formas de democracia direta que coexistem em nosso ordenamento constitucional com o modelo representativo, apesar de conferirem a almejada legitimidade democrática, padecem de algumas vicissitudes que podem fragilizá-las.

Há diversos entraves que obstaculizam a materialização da vontade do legislador constitucional, de modo que os instrumentos de democracia participativa trazidos originariamente na Carta de outubro de 1988 ainda não foram, de fato, albergados pela sociedade brasileira.

A mera previsão formal de mecanismos de democracia participativa, desprovidos, contudo, de efetividade prática, não confere alicerce à soberania popular. Torna-se necessário que os instrumentos de participação direta sejam absorvidos e passem a compor o imaginário da sociedade, deixando de existir apenas como meros ornamentos, sem qualquer finalidade realmente democrática.


1 – SOBERANIA POPULAR E DEMOCRACIA: A NECESSÁRIA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE ATIVA

O desenvolvimento da democracia vem indicando que outro destino está sendo dado ao princípio da soberania popular. De cláusula mito ou ícone constitucional destinado a iludir a massa, o princípio é hoje tido como pressuposto para a real existência de uma democracia (MÜLLER, 2003, p. 65).

Para o entendimento da existência de um povo soberano faz-se necessário conceber que não há qualquer poder superior ao da coletividade. Deve-se analisar que inexiste interesse particular que se sobreponha aos anseios da coletividade e, para tanto, à luz desse interesse comum, ao cidadão devem ser disponibilizados direitos de participar e influir nas decisões governamentais, sendo-lhe assegurado um extenso rol de liberdades, direitos e garantias individuais expressamente previstos no texto constitucional.

O princípio da soberania popular é, pois, de observância obrigatória, sob pena de se desmascarar a fachada dos Estados que se dizem erigir sobre regimes democráticos e bases institucionais sólidas. O princípio democrático exige a participação livre e igual daqueles sobre cujas vidas as decisões podem repercutir.

A democracia, desta maneira, não está vinculada apenas a uma limitação do poder do Estado como forma de garantir o exercício de liberdades individuais, mas principalmente com a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões governamentais, tendo em vista que serão legítimas essas normas apenas quando os próprios destinatários participarem da elaboração (FABRIZ; MOREIRA JUNIOR, 2014, p. 07).

Na medida em que a soberania popular estaria, com efeito, compreendida na democracia que seja ao mesmo tempo uma forma de estado (o que pode ser representado pela expressão “todo poder emana do povo”) e também uma forma de governo (representada pela expressão “que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”), pois assim a organização do poder, bem como seu próprio exercício efetivo são reenviados para a determinação da vontade popular (existe, portanto, a legitimidade de origem e também a legitimidade de exercício) (FABRIZ; MOREIRA JUNIOR, 2014, p. 07).

A cláusula constitucional “todo poder emana do povo”, embora nascida e historicamente utilizada com finalidade distorcida de seu conteúdo, há que ser implementada, mesmo que lentamente e ao longo da experiência democrática (SOUZA, 2003, p. 37).

A essência da democracia representativa assenta-se na titularidade do poder nas mãos do povo. O governo é exercido pelos representantes eleitos, porém, o poder pertence ao povo. A efetiva participação popular no seio social relaciona-se ao aumento dos níveis de eficiência decisional, eis que gera uma produtiva relação dialética entre interesse e eficácia no quadro dos processos de tomada de decisões (PEREIRA, 2008, p. 155).

A participação de todos no ato fundacional do princípio condutor da vida em sociedade e a consequente sujeição à vontade comum criam uma blindagem à força desagregadora dos interesses particulares voltados apenas para o benefício pessoal.

A formação de uma sociedade verdadeiramente ativa perpassa pela busca de novas formas de administração política, pautadas no fortalecimento da participação dos cidadãos e, para tanto, torna-se premente a necessidade de um contínuo alargamento na transparência dos procedimentos públicos em geral.

A institucionalização (e popularização) de vias de acesso direto à gestão governamental é vista como medida imprescindível não apenas por razões de coerência abstrata com o princípio democrático, mas também em virtude da complexidade da estrutura social moderna que torna precária a tomada de decisões solitárias, imunes à percepção dos vários interesses envolvidos.

A busca da construção de uma sociedade efetivamente ativa depende, também, do aprimoramento de práticas participativas, bem como do acesso amplo e irrestrito à educação. Educação e participação devem ser entendidos como conceitos indissociáveis no sonho de construção de uma sociedade realmente democrática.

A participação popular, além de inserir o cidadão nos processos de tomada de decisões, possui, também, o condão de possibilitar a construção de vínculos sólidos entre os membros da sociedade.

Inegável constatar que a busca pelo ideal de uma sociedade ativa e participante da tomada de decisões guarda sintonia com a necessidade de aumentar o senso de pertencimento à determinada comunidade, bem como do reconhecimento da política como algo em comum, voltada à satisfação, unicamente, dos anseios coletivos.

No mesmo sentido, percebe-se com clareza que a preocupação do cidadão com questões de interesse público contribui para a formatação de um espaço cultural fomentador do fortalecimento de um regime democrático no qual o processo de tomada de decisões não se afasta do núcleo detentor do poder.

A participação apresenta-se, pois, como um fator de descolonização do espaço político e tende a viabilizar uma aproximação viável entre a política e o cidadão comum, em benefício da diminuição de sua sensação de isolamento e de impotência em face dos rumos das decisões políticas (PEREIRA, 2008, p. 163).

Esse “desenvolvimento de um regime político bem-sucedido” corresponde ao ideal de Friedrich Müller (2003, p. 55) de povo como verdadeiro “povo ativo” e real titular da soberania política. Para o autor alemão faz-se necessário torna-se premente conceber ao povo a atribuição de certas prerrogativas e responsabilidades coletivas no universo jurídico-político.

O poder extremamente difuso na comunidade, eventualmente ganha personalização num patriarca, num cacique ou num pajé, mas somente na sociedade começa a transcender da concentração em pessoas para uma concentração em instituições. Nessa passagem, do poder personalizado para o poder institucionalizado, ele se aperfeiçoa enquanto instrumento social, vocacionado a servir não mais a uma vontade individual, mas a uma ideia (MOREIRA NETO, 1992, p. 03).

Inquestionável, nesse sentido, que a democracia não pode ser apenas o cumprimento de um ritualismo eleitoral, da simplicidade em se atribuir um voto em uma urna eletrônica. Democracia significa a existência de uma sociedade formada por homens capazes de apresentar interesse e discernimento pelas demandas que irão influenciar a vida de todos. Significa, pois, a existência de cidadãos ativos.


2 – A CRISE DO MODELO REPRESENTATIVO

O sistema representativo de governo, mecanismo de escolha popular de representantes pelo sufrágio universal, é quase que hegemônico nos regimes democráticos modernos e contemporâneos, predominando a atuação dos partidos políticos (SOUZA, 2003, p. 47).

Na democracia representativa tem sido verificada a insatisfação dos representados face ao comportamento dos seus representantes, que, em regra, se comportam como substitutos do povo e, nesse contexto, a democracia estritamente representativa não vem encontrando mais legitimidade no Estado contemporâneo, mormente no Brasil (PEDRA, 2014, p. 160).

Há um sentimento geral de que os representantes eleitos pelo povo romperam o nexo de confiança para com os representados, passando a agir, tão somente, na busca pela satisfação de interesses não confessáveis. O sistema representativo e, sobretudo, os partidos políticos, não mais representam o ideal democrático, eis que opera-se um vácuo, um hiato quase intransponível entre o representantes e os reais detentores do poder.

Essa fragilização do modelo representativo tem o condão de influir na construção de uma participação popular mais efetiva, uma vez que o povo percebe-se distante das decisões que acabarão por influenciar todo o seu modo de vida. Essa distância não é apenas física, no sentido de que as instâncias decisórias situam-se em locais determinados e de difícil acesso, mas sim, espiritual.

A sociedade percebe-se desprotegida, desprestigiada e alijada à construção dos processos de tomada de decisões, as quais, por vezes, surgem em proveito de grupos componentes de uma elite divorciada dos anseios coletivos. Dá-se, nesse sentido, a construção de uma sociedade órfã, que não enxerga em seus representantes verdadeiros líderes, incapazes, ante ao déficit de legitimidade, de conduzir e gerir os destinos do todo.

A legitimidade é o critério que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar ou negar a adequação do poder às situações da vida social que ele é chamado a disciplinar (BONAVIDES, 2001, p. 141).

E é justamente essa legitimidade que não está presente no sistema representativo vigente. O modelo atual está longe de servir como ideal, em razão de inúmeras incompatibilidades e fragmentações internas e externas.

O isolamento, a clausura e a crescente burocratização das instâncias de decisão, a perda da capacidade de mobilização e de conquistas de “capital social” por parte dos partidos políticos, a impressão generalizada de queda no desempenho dos poderes e das agências estatais, o enfraquecimento de legitimidade governamental e parlamentar em face dos altos níveis de abstencionismo e desinteresse popular pela política oficial são alguns dos fatores que colocaram em questão a capacidade global das estruturas e atores políticos tradicionais em cumprir de modo razoável as funções deles esperadas (PEREIRA, 2008, p. 147).

O noticiário diário revela que os altos escalões do poder, a elite hegemônica, reiteradamente, desfruta do poder, tão somente, em proveito próprio, num descarado desvirtuamento dos mandatos conferidos pelo povo, bem como, num processo de dilapidação das riquezas coletivas.  Resta a dúvida se grande parcela dos representantes dilapida essas riquezas com a finalidade de perpetuação no poder ou, pelo contrário (porém, como a mesma finalidade), se perpetua no poder com o objetivo de promover a dilapidação.


3 – DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

A democracia participativa constitui-se na necessária evolução do modelo representativo, a qual se operou por meio da adoção de institutos e instrumentos que restituíram ao povo alguma participação direta na gestão da coisa pública e na fiscalização de seus representantes (PEDRA, 2014, p. 160).

Tal modelo assenta-se na premissa de que há a coexistência de um regime constitucional híbrido, moldado por uma estrutura representativa, aliada à participação política do povo nos processos de tomada de decisões fundamentais aptas a influenciar a vida da coletividade.

Trata-se de modalidade em que se alteram as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais da democracia direta. Há, assim, uma presença harmônica de mecanismos diversos, porém, que se complementam, de modo a buscar um regime democrático detentor de autêntica e efetiva legitimidade (BONAVIDES, 2001, p. 355).

Democracia e participação se exigem, não havendo democracia sem participação, sem povo. O regime será tanto mais democrático quanto tenha desobstruído canais, obstáculos à livre e direta manifestação da vontade do cidadão (PEDRA, 2014, p. 162).

Busca-se, com a maximização dos institutos de democracia direta, o aprofundamento da participação política, por meio de instrumentos legislativos de intervenção direta, aptos a ensejar uma transformação do status quo e mudanças nas relações de poder e domínio (DUARTE NETO, 2014, p.46).

A democracia exercida por meio da participação possui um duplo condicionamento, sem o qual ela não se dá ou se desfigura perigosamente: um, subjetivo e outro, objetivo. Ambos atuam separadamente ou em conjunto, oferecendo uma diversificadíssima gama de combinações em cada sociedade; é isso que faz da participação um problema juspolítico extremamente complexo e justificador de um empenho sistemático para estudá-lo (MOREIRA NETO, 1992, p. 11).

A falta de interesse pela participação nos processos de tomada de decisões públicas cria uma sociedade democraticamente apática, passível de ser dominada por políticos profissionais engajados unicamente no viés de usurpação de frutos e rendas que deveriam ser destinadas à satisfação dos anseios de toda coletividade. Tal constatação se assenta no seguinte pensamento de Platão: “o castigo dos bons que não fazem política é ser governados pelos maus” (PENSADOR, 2015).

Sem as instituições que admitam a participação (e a popularização de seus mecanismos), o interesse pela política não alcançará o Estado, terá pouca ou nenhuma influência. Se isso ocorrer, fechar-se-á um círculo vicioso a partir da constatação da inutilidade de qualquer esforço participativo, somente rompido por grandes movimentos reivindicatórios altamente concentradores de poder difuso (MOREIRA NETO, 1992, p. 11).

Há que se consignar, assim, que não existe democracia real sem efetiva participação popular. A participação popular restrita, tão somente, ao ato de votar em datas pré-fixadas não corresponde ao ideal democrático, o qual, para manter-se em sintonia com o exercício do poder, demanda que o povo, real detentor dessa força soberana, tome partido e assuma o papel de protagonista.

3.1 – INICIATIVA POPULAR COMO MATERIALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Os instrumentos de participação semidireta (iniciativa popular, plebiscito e referendo) são igualmente relevantes para a formação de uma democracia ativa. Contudo, por razões didáticas, serão abordadas as características da participação legislativa da sociedade.

O veto e o referendum, apenas “asseguram ao povo que ele não será submetido a uma legislação que não queira”, mas não obrigam juridicamente o parlamento a legislar. Conferem tão somente ao povo o poder de embargar aquelas leis da assembleia parlamentar que se lhe afigurem nocivas, ao passo que a iniciativa popular proporciona ao corpo de cidadãos o exercício de “uma verdadeira orientação governamental”, consubstanciada na capacidade jurídica de propor formalmente a legislação que no seu parecer melhor consulte o interesse público (BONAVIDES, 2001, p. 374).

O anseio pela abertura e expansão da democracia passou a compor o centro dos debates, a ponto de pressionar a atualização da própria agenda de reforma institucional e, em muitos casos, de reivindicar o direito de participação em todos os setores sociais, nomeadamente nas universidades e nas fábricas. (PEREIRA, 2008, p. 147).

As discussões acerca do fortalecimento de mecanismos de democracia semidireta e participação popular são recorrentes e impostergáveis. A referenciada crise do modelo representativo exige que o cidadão assuma seu papel de protagonista, eis que a história nos evidencia que a delegação quase irrestrita de poderes aos representantes não mais encontra sustentáculo na legitimidade popular.

A participação aponta para as forças sociais que vitalizam a democracia e lhe possibilitam o grau de eficácia e legitimidade no quadro social das relações de poder, bem como a extensão e abrangência desse fenômeno político numa sociedade repartida em classes ou em distintas esferas e categorias de interesses (BONAVIDES, 2008, p. 51).

Essa democracia participativa não é sinônimo exclusivo da atividade legiferante atribuída ao povo. O júri popular, a ação popular, as audiências públicas e o direito de petição são igualmente instrumentos de implicação direta da vontade popular nas funções jurisdicionais e administrativas. A essência do Estado de Direito, por sua vez, encontra-se no primado da lei, que condiciona e limita o Estado e a produção de outras normas, vinculando os comportamentos.

Resta claro que por meio do direito fundamental à iniciativa popular os cidadãos, pessoalmente, não legislam, eis que não lhes cabe definir se determinada proposta será ou não aprovada após prévia deliberação, contudo, goza do poder de fazer com que se legisle (BONAVIDES, 2001, p. 375).

Dessa forma, inegável que a aproximação do povo com a discussão e construção das normas que ditam as regras sociais encontra sintonia com a essência da democracia participativa. Uma protagonista participação do cidadão no processo de construção das leis faz com que se reestabeleça o esquecido equilíbrio entre legitimidade e democracia.


4 – ENTRAVES À EFETIVAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL

A participação popular direta possui entraves que precisam ser estudados e enfrentados. Apesar da formal existência de mecanismos de democracia participativa na Constituição Federal de 1988, resta inegável constatar que os mesmos ainda não congregam a realidade contemporânea brasileira.

Os mecanismos de democracia direta representam uma verdadeira ameaça ao Estado Democrático de Direito, em um país onde impera a crise, como é o caso do Brasil, em que a propaganda política é dominada pelos meios de comunicação social, em poder de autênticos monopólios de fato (FERREIRA, 2001, p. 608).

De fato, tal preocupação é pertinente, uma vez que uma sociedade construída sob frágeis pilares educacionais é perfeitamente dominada e induzida pelos meios de comunicação de massa. Aumentar os canais de participação, bem como buscar uma política educacional moldada não apenas nas disciplinas dogmáticas, mas sim, na preocupação de formação de cidadãos, equivale a incentivar a gestão compartilhada de temas de interesse mútuo, contribuindo para a detecção mais apurada dos dissensos existentes, cuja principal consequência é a de enriquecer o debate, bem como os procedimentos e as técnicas de decisão (PEREIRA, 2008, p. 162).

Discussões que possam ser levadas ao crivo do povo, por meio de mecanismos de participação direta, como a pena de morte, redução da maioridade penal, descriminalização do aborto, entre outras, são exemplos objetivos de temas sensíveis que podem sofrer (e certamente sofreriam) influência dos meios de comunicação, de modo a influenciar/induzir a vontade soberana do povo.

O homem olha ao espelho e acredita ser o senhor de si, um sujeito imanipulável. Acredita possuir o esclarecimento de suas decisões, contudo, não imagina que faz parte de um sistema onde sua racionalidade é moldada de acordo com interesses maiores. O esclarecimento pode ser utilizado para aprisionar o homem, transformando-o em um indivíduo genérico, sem domínio das próprias escolhas e decisões (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 24).

O plebiscito, uma das modalidades do exercício de democracia direta em sistemas representativos é, desde os tempos da República Romana, passando por Napoleão, Hitler, Mussolini, chegando a Hugo Chávez e Evo Morales, métodos preferidos por manipuladores da vontade popular (BRASIL, 2014).[2]

Há, ainda, o risco do “horror ao vazio”, quando o povo é chamado a decidir, sendo-lhe atribuídas duas opções: a “ordem” ou o “caos”. Trata-se, sem dúvidas, de conferir à sociedade as escolhas já escolhidas, como forma de buscar uma pseudolegitimação a uma questão previamente definida (PEDRA, 2014, p. 193).

Há que se destacar, ainda, que o argumento da “baixa racionalidade do homem médio” povoa de modo recorrente o imaginário político e acadêmico, apresentando-se como a principal barreira à formação do consenso em torno da necessidade e da utilidade dos elementos da democracia direta. Em razão desse entendimento de ausência de racionalidade há um verdadeiro desprezo pela ideia de participação popular, ao argumento de faltar ao “homem médio” a competência minimamente necessária para lidar com a coisa pública (PEREIRA, 2008, p. 165).

Sob a argumentação de fragilidade ou incapacidade de discernimento do “homem médio, há quem defenda que a atividade política propriamente dita escapa às possibilidades do senso comum e demanda certas formações, certas habilidades e certas capacidades usufruídas apenas por poucos. Se a virtude não está em todos, mas apenas em alguns, não faria sentido atribuir o direito de gestão do poder ao maior número.

Tal visão se apresenta elitista e segregadora, apta, unicamente, à manutenção do status quo e incapaz de perceber que em razão da fragilidade e incapacidade do modelo representativo, resta à democracia contemporânea buscar formas eficazes que legitimem a tomada de decisões.

Se atualmente o “homem médio” brasileiro não possui condições regulares de participar da formação do sistema legislativo, não seria prudente excluí-lo do direito do exercício de apresentar propostas de lei, mas sim, fomentar seu interesse nos assuntos políticos e, principalmente, capacitá-lo para tal mister por meio de uma política educacional ampla e irrestrita. Uma boa educação estimula e possibilita um maior envolvimento político do cidadão.

Mesmo diante de teorias contrárias à participação da sociedade na gestão do poder, sobretudo, na construção legislativa, é inegável que os mecanismos de participação semidireta estão à disposição dos cidadãos para o aperfeiçoamento do sistema democrático vigente.

A educação de qualidade, imbuída no propósito de formar cidadãos ativos e não meros “decoradores de tabuada”, é a forma capaz de conferir ao povo a necessária competência para tratar de assuntos públicos por meio da institucionalização de elementos de democracia direta. Inegável que a efetiva participação da sociedade nos assuntos públicos está vinculada a fatores relacionados ao nível de instrução e índices de desenvolvimento socioeconômico.

Inegável, pois, que o déficit em termos de educação é, assim, um dos motivos centrais para a desestabilização da chamada “competência” para a cidadania. Como exigir do homem comum o fiel interesse e capacidade para compreender temas complexos, se sua formação fora frágil e não voltada à construção de um verdadeiro cidadão?

O fato de participar implicaria, assim, a necessidade de informação, do debate, da decisão e da justificação, pelo que o resultado dessa cadeia de eventos seria revertido em um incremento geral na formação dos implicados. Esse profícua relação dialética entre educação e participação tem como resultado o fortalecimento reverso da própria democracia, já que se apresenta como um dos requisitos para o desenvolvimento de vetores de auto-sustentabilidade. (PEREIRA, 2008, p. 160-161).

Assim, ao contrário de atribuir à carência educacional o real motivo para o enfraquecimento da cidadania ativa, deve a sociedade clamar por um modelo de educação que prime pela formação de homens e mulheres capazes de participarem efetivamente da condução dos destinos do povo, em especial, na formação do arcabouço legislativo que regula as relações sociais.

Outro fenômeno capaz de influir negativamente na construção de um processo legislativo pautado na vontade popular está relacionado a um mimetismo desenfreado, ou seja, uma reprodução automatizada de modelos estrangeiros. Há a busca pelo legislador ordinário de arquétipos estrangeiros, em substituição às concretas aspirações sociais locais. Como regra, os projetos de lei fundamentados em exemplos alienígenas têm maiores chances de aceitação, ainda que estejam em contradição com a realidade à qual está inserido (OLIVEIRA, 2010, p. 185).

A fragilidade na utilização dos instrumentos de participação direta dos cidadãos em nosso ordenamento é, de certa forma, resultado, também, desse mimetismo desenfreado.

A barreira cultural é outro hiato que separa o homem contemporâneo com os interesses de assuntos relacionados à coletividade. Raro encontrar pessoas ou grupos dispostos a participarem da tomada de decisões, sem que haja, ainda que indiretamente, algum interesse privado. O cidadão de hoje não vê na política (e nos assuntos a ela vinculados) uma pauta que lhe atraia a atenção, pelo contrário. Esse interesse/preocupação com os temas coletivos vem deixando, com o passar dos anos, de inspirar o homem comum, ante à ausência de uma real consciência política.

Diversamente do que se viu nos movimentos populares ocorridos nos Brasil em junho de 2013, em que milhares de pessoas foram às ruas para reivindicar melhorias gerais oriundas do Estado, a sociedade atual vive uma forma de ensimesmanto autocêntrico, voltada, apenas, para a satisfação dos anseios privados, não “sobrando tempo” para discutir questões de cunho democrático.

Acerca do entrave em estudo, prudente tecer uma análise comparativa entre o “homem grego da democracia direta”, com o “homem do Estado moderno”, demonstrando as dificuldades contemporâneas aos exercícios da mencionada cidadania ativa. Não seria possível ao Estado moderno adotar técnica de conhecimento e captação da vontade dos cidadãos semelhante àquela que se consagrava no Estado-cidade da Grécia. Até mesmo a imaginação se perturba em supor o tumulto que seria congregar em praça pública toda a massa do eleitorado, todo o corpo de cidadãos, para fazer as leis, para administrar (BONAVIDES, 2001, p. 352).

O homem da democracia direta, que foi a democracia grega, era integralmente político. O homem do Estado moderno é homem apenas acessoriamente político, ainda nas democracias mais aprimoradas, onde todo um sistema de garantias jurídicas e sociais fazem efetiva e válida a sua condição de “sujeito” e não apenas “objeto” da organização política (BONAVIDES, 2001, p. 353).

O homem contemporâneo, diante de um mercado movido pelo consumo, precisa preocupar-se em prover, de imediato, às necessidades materiais de sua existência e de seus dependentes. Não se pode exigir que esse sujeito comum, que não teve acesso a uma educação de qualidade, voltada à formatação de cidadãos ativos, construa voluntariamente interesse para os problemas de governo e para análise e interação com os relevantes e complexos temas relativos à organização política e jurídica da sociedade.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na democracia representativa tradicional, o povo, real detentor da soberania, delega seu poder aos representantes legitimamente eleitos, não havendo que se falar em participação direta dos cidadãos na tomada das decisões. No modelo democrático participativo, misto ou semidireto, por sua vez, o cidadão, diretamente, por meio de mecanismos específicos, sem a interferência de terceiros, exerce o poder em sua plenitude.

O incentivo e fortalecimento à democracia direta, em especial, à iniciativa popular, tem o condão de trazer o cidadão, o homem do povo, para o centro das discussões que envolvem os mais variados temas de interesse público.

Diversamente do que ocorre com o plebiscito e o referendo, que condicionam a participação popular à prévia provocação do Poder Legislativo, a iniciativa popular é uma modalidade de participação direta que permite ao povo agir “ex officio”, independentemente da vontade de terceiros. Nesse contexto, a democracia precisa ser enxergada como algo bem maior do que o mero ato de votar. Não se pode conceber uma democracia plena sem o efetivo exercício da cidadania.

Ser cidadão significa estar presente e fazer parte dos processos de tomada de decisões que englobem os anseios da coletividade. Significa fazer nascer dentro de cada homem e mulher a vontade de integrar o processo de tomada de decisões que passarão a interferir na vida de todos. Em suma, ser cidadão ativo representa participar da formação da vontade governativa.

Participação popular e democracia são conceitos indissolúveis e simbióticos, não sendo crível conceber um sem o outro. Torna-se necessário que haja o fortalecimento de uma cultura democrática mais participativa e, para tanto, a formatação de uma política educacional multilateral, focada não apenas no ensinamento das mesmas e repetitivas disciplinas meramente dogmáticas, tem o papel fundamental nesse processo de mudanças e conquistas rumo à construção de um cidadão ativo.

O vetor dessa transformação não pode ser unicamente hegemônico, estatal. É preciso que, gradativamente, floresça em cada um o desejo de tomar partido das decisões gerais, na busca pela consolidação de uma cidadania plena. Faz-se urgente que as discussões sobre democracia não estejam unicamente afetas à esfera política, mas, principalmente, na seara das relações sociais como um todo.

Democracia não é assunto para discussão apenas em ambientes restritos a plenários, assembleias ou academias, pelo contrário, tratando-se de tema que deva ser trazido para o cotidiano social, de modo a tornar-se acessível a todo cidadão.

Por fim, relevante registrar que a implementação dos institutos de democracia direta, em especial, da iniciativa popular, não representará, de per si, a solução para todos os males que afligem a sociedade contemporânea, contudo, é certo que uma maior participação do cidadão na formação da vontade governativa importará na redução da crescente crise de legitimidade que atualmente se observa no modelo representativo vigente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

[2] Trata-se de publicação eletrônica (site) realizada pela BETA VEJA.com, abordando o seguinte tema: “O plebiscito e a arte de iludir”, no ano de 2014.


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SILVA, Rodrigo Monteiro da. Iniciativa popular e democracia participativa: entraves à construção de uma cidadania ativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5272, 7 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58743. Acesso em: 26 abr. 2024.