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Responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por ato lesivo à Administração Pública Federal

Responsabilidade objetiva da pessoa jurídica por ato lesivo à Administração Pública Federal

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O texto a seguir traz comentários à Lei nº 12.846/2013 sobre combate à corrupção nas empresas e Compliance.

A Lei nº 12.846/2013 dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Não trata a referida lei acerca da responsabilização da pessoa jurídica nos âmbitos penal, tributário, financeiro, consumerista ou outros.

Segundo disposto no art. 2º da lei, e consoante ensinamento do professor Ubirajara Costódio Filho, “a responsabilidade civil de que trata a Lei 12.846/2013 é aquela extracontratual e objetiva, vale dizer, os atos passíveis de responsabilização civil, com base nessa lei, correspondem a condutas ilícitas [...] e serão puníveis independentemente de culpa ou dolo das pessoas jurídicas envolvidas” (2014, p. 55).

Patrícia Toledo Campos menciona lição de Cavalieri Filho (2008, p. 137) sobre a responsabilidade objetiva, em que este afirma que “todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou independente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de nexo de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa”.

Logo, complementa a autora, “não é necessário comprovar a culpa ou o dolo de agentes específicos, mas simplesmente a atuação genérica da empresa inclinada à fraude, sem necessidade de individualização de conduta ou comprovação do elemento subjetivo de pessoas a ela vinculadas” (Conteúdo da Revista Digital de Direito Administrativo, disponível em http://dx.doi.org/10.11606/issn. 2319-0558.v2n1p160-185, acessado em 15/08/2017).

Marçal (2014, p. 576), citado por Ubirajara Filho (2014, p. 56), esclarece que a responsabilização civil não se constitui, de per si, em condenação de natureza punitiva, mas tão somente reparatória (obrigação de indenizar dos prejuízos), não podendo portanto ensejar o enriquecimento da parte lesada.

Ocorrendo fusão ou incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas na Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação (exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados).

A responsabilidade será solidária entre sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas, relativamente à prática dos atos ilícitos previstos na Lei, restringindo-se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado.

A responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores (ou de qualquer outra pessoa autora, coautora ou partícipe do ato ilícito). Estes responderão pelos atos ilícitos praticados, na medida da sua culpabilidade – nesse caso, a responsabilização é subjetiva, ou seja, vinculada à demonstração do dolo ou culpa do agente.

Constituem atos lesivos à Administração Pública, para os fins da Lei 12.846/2013, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Nessa esteira, consideram-se como atos ilícitos o seguinte rol de práticas e/ou atividades, previstas no art. 5º da referida lei:

I - prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pessoa a ele relacionada;

II - comprovadamente, financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei;

III - comprovadamente, utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;

IV - no tocante a licitações e contratos:

a) frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo de procedimento licitatório público;

b) impedir, perturbar ou fraudar a realização de qualquer ato de procedimento licitatório público;

c) afastar ou procurar afastar licitante, por meio de fraude ou oferecimento de vantagem de qualquer tipo;

d) fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente;

e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato administrativo;

f) obter vantagem ou benefício indevido, de modo fraudulento, de modificações ou prorrogações de contratos celebrados com a administração pública, sem autorização em lei, no ato convocatório da licitação pública ou nos respectivos instrumentos contratuais; ou

g) manipular ou fraudar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com a administração pública;

V - dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.

Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos as sanções de multa e/ou publicação extraordinária da decisão condenatória, as quais poderão ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações. A aplicação das penalidades administrativas não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da reparação integral do dano causado.

A responsabilização da pessoa jurídica na esfera administrativa não afasta a possibilidade de sua responsabilização também na esfera judicial cível, podendo vir a ensejar a aplicação (isolada ou cumulativamente) das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras (art. 19):

I - perdimento dos bens, direitos ou valores que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé;

II - suspensão ou interdição parcial de suas atividades;

III - dissolução compulsória da pessoa jurídica;

IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos.

Nos termos do § 1º do art. 19, a dissolução compulsória da pessoa jurídica será determinada quando comprovado ter sido constituída para ocultar ou dissimular interesses ilícitos ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados, ou ter sido a personalidade jurídica utilizada de forma habitual para facilitar ou promover a prática de atos ilícitos.

A condenação na esfera judicial torna certa a obrigação de reparar, integralmente, o dano causado pelo ilícito, cujo valor será apurado em posterior liquidação, se não constar expressamente da sentença.

Serão levados em consideração, na aplicação das sanções, entre outras circunstâncias, a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica.

Essa previsão legal de existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade trouxe para o âmbito da Administração Pública uma prática que se tornou conhecida e bastante difundida no meio empresarial como “Compliance” – expressão oriunda da língua inglesa que traduz o “dever de cumprir e fazer cumprir normas legais, códigos de ética concorrencial e normas internas que regem determinada atividade econômica” (SANTOS, 2014, p.187).

A professora Márcia Carla Pereira Ribeiro, Titular de Direito Societário na PUCPR e de Direito Empresarial na UFPR, e Procuradora do Estado do Paraná, em brilhante artigo acerca do Compliance e a Lei Anticorrupção nas Empresas, traz um conceito muito bem elaborado acerca dessa nova forma de visão da política de gestão empresarial:

Não se pode confundir o Compliance com o mero cumprimento de regras formais e in­formais, sendo o seu alcance bem mais amplo, ou seja, “é um conjunto de regras, padrões, procedimentos éticos e legais, que, uma vez definido e implantado, será a linha mestra que orientará o comportamento da instituição no mercado em que atua, bem como a atitude dos seus funcionários” (CANDELORO; RI­ZZO; PINHO, 2012, p. 30). O Compliance envolve questão estratégica e se aplica a todos os tipos de organização, visto que o mercado tende a exigir cada vez mais condutas legais e éticas, para a consolidação de um novo comportamento por parte das empresas, que devem buscar lucratividade de forma sustentável, focando no desenvolvimento econômico e socioambiental na condução dos seus negócios.

O Programa de Integridade, previsto no art. 7º, inciso VIII, da Lei nº 12.846/13, e também nos arts. 41 e 42 do Decreto nº 8.420/15, é regulamentado integralmente pela Portaria nº 909/2015 – CGU. Consiste no conjunto de mecanismos, procedimentos, políticas e diretrizes internos, cujo objetivo é detectar e sanar possíveis desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, e tem a função de minimizar eventuais penalizações da pessoa jurídica.

Pelos parâmetros contidos no art. 42 do Decreto nº 8.420/2015, o programa de integridade deverá ser formalmente redigido, estruturado e publicado internamente, deve prever treinamento periódico sobre o programa aos funcionários, e deverá contemplar:

  • Comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio visível e inequívoco ao programa;
  • Código de ética e conduta;
  • Mecanismos de auditoria interna;
  • Análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao programa de integridade;
  • Canais internos e externos de denúncia de irregularidades, com um programa de proteção aos denunciantes de boa-fé;
  • Mecanismos de prevenção, detecção e combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei no 12.846, de 2013, especialmente:
    • Procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações, ou obtenção de autorizações, licenças, permissões e certidões;
    • Mecanismos que permitam a detecção de desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a Administração Pública bem como orientações de como sanar essas irregularidades;
    • Procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a tempestiva remediação dos danos gerados;
  • Mecanismos que permitam avaliar, sob a perspectiva da integridade, terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados e, quando necessário, dar conhecimento e estender a aplicação do código de ética a esses terceiros;
  • Amplo registro, controle e transparência de toda a parte financeira da empresa, contemplando especialmente: registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica e controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios e demonstrações financeiros da pessoa jurídica;
  • Medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade;
  • Transparência da pessoa jurídica quanto a doações para candidatos e partidos políticos.

Cada empresa deve planejar seu programa conforme sua estrutura e sua capacidade de implementação e efetiva execução. Além disso, microempresas e empresas de pequeno porte estão dispensadas da observância de algumas formalidades (o art. 42, § 3º do Decreto nº 8420/15, bem como a Portaria Conjunta nº 2.279/2015 – CGU/SMPE, detalham as medidas de integridade a serem adotadas pelas empresas de pequeno porte e microempresas).

A razão dessa mudança de paradigmas, tanto na gestão dos negócios públicos como na esfera da própria iniciativa privada, reside na possibilidade de imputação objetiva à pessoa jurídica dos resultados danosos praticados pelos seus agentes, trazida pela Lei nº 12.846/2013.


REFERÊNCIAS:

SANTOS, José Anacleto Abduch, BERTONCINI, Mateus. COSTÓDIO FILHO, Ubirajara. Comentários à Lei 12.846/2013: Lei Anticorrupção. 1. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014

www.zenite.blog.br/a-lei-no-12-8462013-e-a-responsabilidade-das-pessoas-juridicas

Programa de Integridade Diretrizes para Empresas Privadas. Disponível em http://www.cgu.gov.br/Publicacoes/etica-e-integridade/arquivos/programa-de-integridade-diretrizes-para-empresas-privadas.pdf

Manual de Responsabilização Administração de Pessoa Jurídica. Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União. Disponível em www.cgu.gov.br.


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