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O devido processo legal e o contencioso administrativo nas relações contratuais públicas

análise do aparelho sancionatório administrativo à luz dos preceitos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência

O devido processo legal e o contencioso administrativo nas relações contratuais públicas: análise do aparelho sancionatório administrativo à luz dos preceitos da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência

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As relações bilaterais nos contratos administrativos podem ofertar ações resistidas, a depender do interesse de cada parte. Com isso, surgem manifestações formais, naturais da relação negocial, para as quais dá-se o nome de contencioso administrativo.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO I - HERMENÊUTICA NO DIREITO ADMINISTRATIVO. 1 – As origens da dualidade jurídica Estado & Particular. 2 - Integração e congruência do Direito Positivado. 2.1 - Método Ontológico. 2.2 - Método Sistemático. 2.3 - Método Teleológico. 2.4 – Método Axiológico. 2.5 - Método Textual ou Gramatical. 2.5.1 - Critério Conotativo. 2.5.2 - Critério Denotativo. CAPÍTULO 2 - ASPECTOS PRINCIPIOLÓGICOS CONSTITUCIONAIS. CAPÍTULO III - DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NA GESTÃO E FISCALIZAÇÃO DE CONTRATOS PÚBLICOS. 1 - ASPECTOS INICIAIS. 2 – DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NAS ALTERAÇÕES UNILATERAIS. 2.1 - De natureza qualitativa e/ou quantitativa. 2.2 – Da apuração dos percentuais de supressão e/ou acréscimos. 3 – DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO EM SEDE DE OBSERVÂNCIA DOS PRAZOS DE EXECUÇÃO DO OBJETO PACTUADO. 4 - DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO EM SENTIDO ESTRITO. 4.1 - Organização administrativa: descentralização e descontração administrativa. 4.2 - Questionamento envolvendo o objeto do contrato ou cláusula contratual. 4.3 - Processamento tetragonal. 4.3.1 - Da instrução e produção de provas. 4.3.2 - Do juízo de apreciação a quo. 4.3.3 - Da voluntariedade recursal. 4.3.4 - Fase devolutiva ou de juízo de confirmação ad quem. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.

RESUMO:A prática administrativa aponta que pouco tem se firmado a respeito de controvérsias contratuais administrativas. Destarte, há uma bilateralidade na promoção de ações contratuais públicas, das quais pode surgir dúvidas ou interpretações resistidas, a depender do interesse que cada qual quer resguardar. Nesse liame, podem surgir manifestações formais; naturais da relação negocial. A essa ação resistida nos contratos administrativos dá-se o nome de contencioso administrativo.

Palavras-chave: contencioso administrativo; contratos públicos; procedimento legal.


INTRODUÇÃO

Como consabido, no âmbito do Direito Administrativo Constitucionalizado, a literatura brasileira possui vasto repertório a respeito do processo administrativo sancionatório.

Por outro lado, a prática administrativa aponta que pouco tem se firmado a respeito de controvérsias contratuais administrativas resistidas. Trata-se, de certo modo, de uma modalidade de litígio contratual, porém, no âmbito da Administração Pública.

A Lei n. 8.666/1993, que rege os procedimentos licitatórios e os contratos públicos, em nenhum momento trata do direito de petição do interessado, principalmente envolvendo a interpretação dos limites obrigacionais convencionados contratualmente. A essa ação ou omissão resistida nos contratos administrativos dá-se o nome de contencioso administrativo.

De fato, a Lei despiu garantias processuais para apuração de situações gravíssimas, também não poderia ter escusado em situações em que há ainda mera ação resistida dos envolvidos na relação contratual.

Entretanto, o legislador ordinário não concatenou com precisão o desenvolvimento de tais instrumentos processuais, atribuindo-os a objetos diversificados, em matéria procedimental do contencioso administrativo. Todavia, defende-se a integração sistemática da Lei para a mensuração de um “corpo processual” mínimo.

Assim, a importância da matéria repousa na necessidade de se determinar os procedimentos ordinários do contencioso administrativo, no campo de atuação dos agentes públicos responsáveis por conduzir a impulsão ex officio do processo administrativo, observando-se, em todos os casos, o devido processo legal e as garantias constitucionais que lhes são correlatas.


CAPÍTULO I - HERMENÊUTICA NO DIREITO ADMINISTRATIVO

1 – As origens da dualidade jurídica Particular & Estado

Trata-se duma concepção com origens na passagem do estado natural ao estado civil do indivíduo. A relação significa a “antítese do estado natural do indivíduo”, cujas origens se remontam à própria concepção do Estado[2].

Isso porque, de acordo com a concepção primitiva sobre a origem do poder soberano, o pacto social surgiu após os indivíduos, “cansados de barbáries e fatigados de uma liberdade que a incerteza torná-la inútil”, sacrificarem uma parte desse direito natural em prol de um espírito mínimo de segurança[3]. Assim, adjudicaram aos cuidados de um ente maior a soma de parcelas de liberdade renunciadas, sacrificadas ao bem geral, formou-se, assim, a soberania da nação. Por força de norma, proclamou-se o soberano do povo (Estado), que, em seu nome, ficou encarregado pelo depósito das liberdades e dos cuidados da administração.

Então, aquela força soberana passou a deter o verdadeiro e legítimo poder sobre a coletividade, tanto para gerir os interesses coletivos quanto para proteger os interesses individuais, na busca do bem social. É nesse contexto que se vislumbra o alvorecer das sociedades igualitárias, ou seja, a primazia da igualdade dos seres, hoje denominada como isonomia.

Trata-se de uma concepção com substrato na teoria da origem das famílias, que explicita a raiz do direito público a partir do direito patriarcal[4]. Nesse aspecto, a lei pressupõe um poder antecedente à vontade do Estado, cuja atuação deste nos campos da existência, eficácia e validade requer estrita obediência ao rigor prescrito na própria lei, ao qual está intimamente adstrito.

Emerge daí a ciência jurídica do SER e do DEVER SER, segundo a “Teoria Pura do Direito” de Hans Kelsen[5], aonde:

O DEVER SER é o direito numa concepção pura, como conjunto de normas pertencentes ao mundo do dever ser (aspecto abstrato e subjetivo), compreendido ainda como aquele idealizado em pleno equilíbrio com o sistema jurídico. Logo, o DEVER SER está intimamente ligado à presunção de unicidade e completude dos sistemas legais.

O SER, por outro lado, é o estudo da ciência que nos leva à percepção do direito como ele opera em confronto ao mundo dos fatos (concreto ou real); como ele realmente é e não pela ótica de como deveria ser. Os fatos se impõem perante o sistema jurídico conforme suas especificidades e peculiaridades, que obstam o justaposto enquadramento no ordenamento. É a razão jurídica que se deve aceitar e não aquela que se pretende conter abstratamente.

Logo: os fatos estão para o SER (aquilo que é), ao passo que as normas estão para o DEVER SER (aquilo que deve ser).

Nesse contexto apresenta-se a valorização de JURIDICIDADE. A lei possui uma finalidade abstrata do direito que deve ser (o ideal). Noutra vertente, quando a abstração da norma esbarrar nas circunstâncias especiais do caso concreto, aflorará o direito do ser (a realidade). Para essas situações apresenta-se a JURIDICIDADE como ciência capaz de integrar a abstração da legalidade estrita com o direito (normas, doutrina, jurisprudência), com vistas à unicidade (o todo formado num só elemento) e a completude (completo, sem lacunas) do sistema jurídico administrativo.

A propósito do tema, a Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999[6], que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, consagra expressamente essa principiologia jurídica. Confira: “Art. 1° [...] Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: I - atuação conforme a lei e o Direito”.

2 - Integração e congruência do Direito Positivado

2.1 - Método Ontológico

Reporta-se à investigação teórica do ser. Assim, busca investigar o sentido e o alcance da norma (ratio legis), de modo a evidenciar o propósito ou a razão da norma positivada.

2.2 - Método Sistemático

É o sistema interpretativo que se ordena ou se processa segundo um método ou ordenação. Tem por objeto a integração sistemática do próprio direito disposto na norma, segundo sua estruturação e encadeamento lógico, como também a análise de normas jurídicas entre si. Alguns entendem se tratar da aplicação da teoria do diálogo das fontes. Porém o tema é um tanto controverso não sendo recepcionado pela predominância da doutrina.

Por outro lado, mostra-se melhor e adequado considerar a interpretação do sistema legal como um todo unitário, ordenado e congruente, ou seja, sem incompatibilidades ou antinomias insolúveis. Daí a importância, por exemplo, da relativização dos princípios gerais do direito, de modo que não se reconheça a supremacia imutável de um em detrimento de outros, mas preponderâncias em face das circunstâncias de fato.

O método interpretativo sistemático visa dar uma coerência a todo o conjunto de normas válidas que compõem um determinado ordenamento jurídico, com destaque, inclusive, para a própria ordenação hierárquica. Isso afasta a possibilidade de interpretações de normas em campos isolados, sempre em contraponto à dualidade mínima de referenciais.

2.3 - Método Teleológico

Qualquer doutrina que identifica a presença de metas, fins ou objetivos últimos guiando a natureza e a humanidade, considerando a finalidade como o princípio explicativo fundamental na organização e nas transformações de todos os seres da realidade.

Portanto, é o sistema que visa integrar o sentido e o alcance da norma perante um contexto social, em deferência aos bens e valores ora tutelados, à exemplo dos “fins sociais” e “às exigências do bem comum”, que reportam o art. 5º do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro), confira: Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum[7]

Outro exemplo está no art. 112 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, ao considerar que “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem”[8]. É o princípio denominado “função social do contrato”.

Em conclusão, seguindo uma interpretação sistemática e teleológica do art. 4º do Decreto-Lei n. 4.657/1942, infere-se que, “quando a lei for omissa”, tem-se presente a primazia contida na aplicação da “analogia”, seguida dos “costumes”, quando não, por último, dos “princípios gerais do direito”. Confira: “Art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.

2.4 – Método Axiológico

Qualquer uma das teorias formuladas a partir do início dos XX concernentes à questão dos valores. Investiga (logos) os valores (axios) de uma sociedade para a aplicação da norma.

2.5 - Método Textual ou Gramatical

2.5.1 - Critério Conotativo

Significado derivado da aplicação contida no CONTEXTO dos vocábulos.

2.5.2 - Critério Denotativo

Significado derivado da aplicação das regras da língua culta (gramatical) ou do significado reportado no DICIONÁRIO, em linhas gerais. Investiga a aspiração pela origem etimológica do vocábulo, conforme as regras da língua culta.


CAPÍTULO 2 - ASPECTOS PRINCIPIOLÓGICOS CONSTITUCIONAIS

a) Legalidade

Trata-se da primazia constitucional pelo qual a Administração está intimamente adstrita. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório é uma derivação da legalidade administrativa, por exemplo.

A discricionariedade compreendida como a avaliação de conveniência e oportunidade também se submete aos limites legais. A Administração Pública somente pode agir com previsão e nos limites que a lei determina. Quanto não houver disciplina legal expressa, em tese, a Administração não poderá agir. Haverá, então, indícios de irregularidade ou ilegalidade, a depender do caso concreto.

A doutrina contemporânea de Cláudio Américo Führer[9] distingue a Legalidade comum (legalidade estrita) da Legalidade Administrativa. Segundo o autor, o texto constitucional, ao lado da legalidade, exige também a soma de valores de interesse público e de moralidade.

b) Impessoalidade

É o princípio que determina a neutralidade da Administração na atuação da coisa pública, ou seja, seguir sem definições de preferências ou posicionamentos ideológicos e dogmáticos, regra geral.

No caso das contratações públicas essa neutralidade fica menos ou mais aparente na medida em que a Administração gradua os requisitos elegíveis nos editais de licitação. Ora, quanto maior o nível de requisitos para atendimento numa seleção pública, em tese, menor será o âmbito da concorrência e, consequentemente, mais afastada da impessoalidade estará a Administração.

O § 1º, I, do art. 3º da Lei n. 8.666/1993 dispõe que a Administração não poderá estabelecer distinções na licitação, sem as devidas justificativas, que possam comprometer o caráter competitivo da licitação[10]. Portanto, salvo disposição legal em contrário, as exigências em editais devem se limitar ao mínimo necessário para o atendimento do interesse público.

c) Moralidade & derivações à Probidade administrativa; à Segurança jurídica; à Prudência; à Indisponibilidade dos recursos públicos; à Igualdade; à Julgamento objetivo:

A CF de 1988 foi a primeira responsável a sagrar a moralidade como princípio expresso. Inclusive, o inciso LXXIII do art. 5º estabeleceu mecanismo para sua defesa, ao dispor que “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo [...] à moralidade administrativa”[11].

Com base na definição de legalidade administrativa que preleciona Cláudio Américo Führer, distingue-se a moralidade SOCIAL da moralidade PÚBLICA. A primeira representa os costumes e o bom senso da sociedade. A segunda, permeia o âmbito da ação do Estado e detém contornos jurídicos mediante os seguintes critérios de: i) Direito e Legalidade (valoração de antijuridicidade); ii) Interesse Público; e, ii) Moralidade stricto sensu, concebida no tripé: LEALDADE, BOA-FÉ E PROBIDADE.

Portanto, há que se considerar tal percepção como um elemento tripartido, qual seja: a legalidade (não conotar valor antijurídico), o interesse público (animus pro societate) e a moralidade stricto sensu (lealdade, boa-fé e probidade).    

Muito embora a legalidade seja a primazia que impulsione os atos da Administração Pública, seguida do interesse público, convém exaltar que nada sobrevém despercebida da moralidade, nem a própria legalidade. Isso, porque “a lei permite condutas injustas, incompatíveis com a moral”[12]. Razão essa para o texto constitucional consagrar a legalidade em “comum acordo” com a moralidade.

Isso quer dizer que, a depender do caso, a Administração poderá estar diante de ato legal e de manifesto interesse público, porém, imoral. Nesses casos, entende-se que o Poder Público estará impedido de agir, regra geral, em deferência ao dever de observância do princípio da moralidade administrativa.

Curiosidade:

Em 27 de julho de 1988, após 21 anos de ditadura militar no Brasil, o deputado Ulysses Guimarães encerrou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte com discurso eloquente, que resumira os anseios sociais daquele momento histórico[13].

“A moral é o cerne da Pátria.

A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.

 [...]

Essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: [...]

Viva a Constituição de 1988! Viva a vida que ela vai defender e semear!”

Como se vê, dado o trauma histórico, a nossa jovem Democracia foi fundada intimamente sob a égide principiológica da moralidade. Desde então, a moralidade passou a expandir suas dimensões, de tal modo que a distingui-la nas concepções pública e social, como acima citado.

d) Publicidade:

É o mecanismo constitucional de controle da atividade administrativa do Estado. Por esse princípio, os atos administrativos, para terem validade, precisão de publicidade, que é distinta de publicação. A primeira possui uma concepção mais abrangente, enquanto que a segunda se atém ao sentido estrito da palavra. Prover a publicidade é constituir a ação estatal de transparência, clareza e acessibilidade.

e) Eficiência & derivações à Formalismo moderado; à Racionalização dos procedimentos administrativos; à Celeridade; à Economicidade; à Seleção da proposta mais vantajosa para a Administração; à Desenvolvimento nacional sustentável:

O princípio da eficiência foi introduzindo na Carta de 88 pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998. Tratava-se do lema das aspirações da nova matriz administrativa, focada numa gestão da coisa pública por meio de métodos sistemáticos e planejamento.

Com base nesse anseio, sugiram diversos princípios a orientar os procedimentos administrativos em suas diversas especificidades. A Celeridade e a Economicidade foram os guardiões e preceitos chaves que conduziram outras derivações principiológica.

A “seleção da proposta mais vantajosa” (art. 3°, caput, da Lei de Licitações e Contratos) pode ser considerada como o primeiro vetor dessa enseada, ao passo que a “promoção do desenvolvimento nacional sustentável” como um dos últimos expressamente tipificados no nosso ordenamento, conforme redação do art. 3°, caput, da Lei de Licitações e Contratos, com a redação que lhe fora da pela Lei n. 12.349, de 2010.

Nesse ínterim surgiram os dois mais promissores preceitos norteadores da nova matriz administrativa. A gestão pública preconizada pela primazia legal, porém, segundo uma execução formal moderada (Formalismo Moderado). Não se trata de um desvio de legalidade, nem um exercício de discricionariedade em sentido estrito, mas uma inteligência de gestão na avaliação crítica sobre a consistência dos procedimentos para a execução da demanda pública. Significa sobretudo atender ao comando legal de forma direta e mais concisa possível, sem desvirtuar dos caminhos traçados pela lei.

O Formalismo moderado objetiva o caminhar retilíneo desse traçado, sem se afastar do eixo central, caracterizados, nesse contexto, como a prática de atos desnecessários e burocráticos que tardam o atendimento das demandas públicas.

O princípio da racionalização dos procedimentos administrativos segue a mesma vertente, surgindo a partir de uma “carona” do formalismo moderado. Àquele é uma acepção mais aprofundada desse. A racionalização também tem por base uma visão crítica dos procedimentos administrativos, porém, segue um estreita mais aprofundada, no sentido de tornar os mecanismos e recursos públicos o mais racional possível dentro do processamento administrativo.

Aproxima-se muito dos conceitos sustentáveis, na medida em que visa a inteligência em proveito da utilização dos recursos disponibilizados e sua interação com outros, de modo racional, para o aprimoramento das execuções administrativas.

Agir de modo racional em sede de procedimentos administrativo é tornar os meios racionalizados, evitando-se a repetição ou reprodução desmedida de atos, documentos, provas, perícia, etc., uma vez que já reportados em outro momento processual, por exemplo.


CAPÍTULO III - DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NA GESTÃO E FISCALIZAÇÃO DE CONTRATOS PÚBLICOS

1 - ASPECTOS INICIAIS

A legalidade, a qual a Administração está intimamente adstrita, é a premissa que obsta a liberalidade às alterações dos contratos administrativos.

O art. 66 da Lei n. 8.666/1993 preconiza o princípio geral da obrigatoriedade das convenções, na acepção de que o pactuado entre as partes deve ser cumprido. Por outro viés, a Lei também conferiu à Administração, em relação ao particular, prerrogativas especiais, relativizando a obediência ao “pacta sunt servanda” nos contratos públicos.

As hipóteses de alterações contratuais encontram limites objetivos na Lei n. 8.666/1993, conforme preconizam os §§ 1º dos artigos 58 e 65 da LLC.

Segue-se daí que as pretensões administrativas devem advir do atendimento dos requisitos prescritos em lei, ante o dever de observância à legalidade de seus atos. Assim, não basta apenas um sentimento de proveito, benfeitoria, vantagem, utilidade para que a Administração possa validar as alterações contratuais. Essas circunstâncias não são suficientes quando desassociadas de uma valoração positiva (+) da norma, ou seja, devem guardar relação protetiva sob fundamentos prescritos em lei.

Portanto, a regra é a fiel execução do contrato nos termos originalmente pactuados. A mutabilidade, com força necessária para exigir a modificação de cláusulas contratuais, uni ou consensualmente, é exceção que somente se justifica em face de fatos novos e imprevisíveis à época da deflagração do certame e que sejam suficientes para alterar a demanda de interesse público, em deferência ao princípio da identidade do objeto.

Preceito esse que reveste a demanda pública deflagrada sob os fundamentos da licitação de proteção, ao passo que, quando desvirtuado aos olhos do princípio da vinculação ao instrumento convocatório (p.ex.), em tese, pode caracterizar fuga à licitação, passível de responsabilização. Assim, as alterações nos contratos administrativos, sejam qualitativas e/ou quantitativas supervenientes, carecem de identidade com o objeto inicialmente contratado, sem modificá-lo em sua essencialidade ou inová-lo na finalidade.

2 – DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO NAS ALTERAÇÕES UNILATERAIS

2.1 - De natureza qualitativa e/ou quantitativa

O inciso I do art. 65 da Lei de Licitações e Contratos autoriza a Administração a efetuar, unilateralmente, alterações qualitativas (alínea “a”) e quantitativas (alínea “b”) do objeto contratado para adequá-lo à nova demanda de interesse pública, cuja finalidade foi alterada em face de fatos superveniente e imprevisíveis à época da instauração do certame e verificada durante a execução do contrato.

A norma é clarividente quando, no § 2º do citado art. 65, dispõe que nenhum acréscimo ou nenhuma supressão poderá exceder os limites estabelecidos, salvo as supressões que ultrapassarem o permissivo legal, que se sujeitam à concordância do particular contratado.

Quando especificado em edital ou no termo contratual, a determinação do âmbito de modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos, não possuem maiores implicações. Por outro lado, nas contratações excepcionais de dispensas e inexigibilidade de licitação, quando dispensado o instrumento contratual, far-se-á necessário uma avaliação minudente dos termos ofertados na negociação bilateral para a definição dos contornos da alteração contratual, principalmente no que diz respeito às alterações qualitativas.

Por se tratarem de procedimentos sui generis, as contratações decorrentes de dispensa e inexigibilidade de licitação se submetem aos termos ofertados entre Administração e o particular. Tais condições se traduzem nas especificações constantes no Projeto Básico e na proposta comercial da empresa, cujos contornos se aderem ao instrumento hábil utilizado para formalizar a contratação pública e dele fazem parte, independentemente de transcrição. É na conjugação dessas peças - principal em que está consignado o que se pretende contratar, o seu objeto, suas especificações e também tudo o que as partes estão obrigadas a fazer.

Assim, a decisão de alteração unilateral do contrato pela Administração representa uma competência discricionária, quanto presente a superveniência de um motivo justificador para a alteração, ocasião em que o contratado estará obrigado a suportar o encargo.     

O direito da Administração compreendido no art. 65, I, “a”, da Lei n. 8.666/1993, não margeia o assentimento do particular, quando devidamente justificado, eis que a “modificação do projeto ou das especificações, para melhor adequação técnica aos seus objetivos”, pertencente unicamente ao crivo da autoridade administrativa, restando-a apenas o cumprimento da manifestação estatal. 

Nessa estreita, não obstante a possibilidade de se exigir o cumprimento da demanda pública, cumpre salientar que, de acordo com o art. 81 da Lei n. 8.666/1993, a recusa injustificada em assinar, aceitar ou retirar o contratual – aqui compreendido como o teleologismo de “termo de aditamento” - dentro do prazo e condições estabelecidas pela Administração, em tese, “caracteriza o descumprimento total da obrigação assumida” pela contratada, sujeitando-a às penalidades legais convencionadas no instrumento contratual, se for o caso, sem prejuízo das demais previstas na Lei de Licitações e Contratos.

2.2 – Da apuração dos percentuais de supressão e/ou acréscimos

Independente da natureza da despesa (compras, serviços e obras de engenharia), a rigor, nenhum acréscimo ou nenhuma supressão, quer seja qualitativo (com impacto no valor do contrato) ou quantitativo, poderá exceder os limites permissivos na norma legal. Neste caso, cabe a assertiva de que “Onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir” (Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus)[14].

Para fins de aferição do limite a ser observado na alteração unilateral em comento, a Lei n. 8.666/1993 determina que o limite de 25% será calculado sobre o valor inicial atualizado do contrato. O limite de 25% não envolve acréscimos e supressões conjuntamente, sendo 25% para acrescer e outros 25% para suprimir, como se um “muro” dividisse os dois parâmetros, impondo um tipo de bloqueio entre os dois limites, para fins de compensação entre os percentuais, o que é vedado segundo a jurisprudência do Tribunal de Contas da União - TCU, sob pena de desvirtuar o anseio lega e responsabilização administrativa [Acórdão TCU n. 1498/2015 – Plenário, relatoria do Ministro Benjamin Zymler].

Conforme delineado pelo TCU, para fins de verificação de atendimento desses limites, considera-se o valor inicial da contratação, desprezando-se eventuais acréscimos ou supressões realizadas anteriormente. As supressões e os acréscimos anteriores não alteram a base de cálculo para aplicação de novas alterações e aferição do limite legal. Porém, não se admite a compensação entre acréscimos e supressões. 

Assim, ainda que ao realizar um acréscimo e uma supressão de idênticos percentuais o valor do contrato não sofra alteração (0%), houve alteração dos termos incialmente pactuados, o contrato foi alterado. Nessa hipótese, as modificações contratuais violaram os limites legais[15]. Isso significa que a soma de todos os acréscimos pode alcançar até 25% do valor inicial atualizado, conforme entendimento do TCU [Acórdão n. 2.819/2011, Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, DOU de 09.11.2011].

Demais disso, o Tribunal de Contas da União [Acórdão n. 1.330/2008-Plenário ] possui entendimento de que o cálculo limite de 25%, previsto no § 1º do art. 65 da Lei n. 8.666/1993, deve ter como base o custo unitário do serviço a ser adicionado ou suprimido, não o valor total do contrato. A apuração do valor da alteração não enfrenta dificuldade quando o contrato versar sobre unidades específicas e divisíveis, cujo valor individual possa ser discriminado.

Em oposição a esse entendimento, tem-se a doutrina de Joel de Menezes Niebuhr[16], para quem a base de cálculo deve incidir conforme a regra de adjudicação da licitação, ou seja: a) se for menor preço global, a base de cálculo será o valor da contratação; e, b) se for menor preço por item ou lote, será o valor total do item ou lote. Confira os apontamentos do autor, ipsis litteris:

Na mesma linha, se o julgamento é pelo preço global, então os limites das alterações contratuais devem ser calculados sobre o preço global e não em razão dos preços unitários. [...] À Administração Pública é permitido realizar acréscimo que dobre a quantidade [...], desde que este montante não importe majoração no valor global do contrato superior aos limites enfeixados nos parágrafos 1º e 2º do art. 65 da Lei n. 8.666/93, isto é, em regra, 25% do valor inicial global atualizado do contrato.

Embora razoável, o entendimento precitado não possui lastro na jurisprudência da Corte Federal de Contas, que aborda essa temática sob o ponto de vista do jogo de planilhas. [Acórdão n. 2530/2011 – Plenário].

De mais a mais, nas contratações mediante procedimento licitatório por itens, cada um constituí uma unidade autônomo, ainda que as licitantes possam oferecer propostas para vários deles. Nesse caso, o valor do contrato para fins de acréscimo tomaria em consideração apenas o valor do item a ser alterado, mesmo que eventualmente se tivesse formalizado junto à adjudicatária vários deles em único instrumento contratual.

Demais disso, cabe ressaltar que nos contratos por escopo o acréscimo só é possível enquanto o objeto do contrato ainda não for totalmente entregue e recebido definitivamente pela Comissão designada pela autoridade, se for o caso. Assim, a despeito da vigência estipulada, nos contratos por escopo o ajuste se extingue com o cumprimento integral da obrigação.

3 – DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO EM SEDE DE OBSERVÂNCIA DOS PRAZOS DE EXECUÇÃO DO OBJETO PACTUADO

Nos contratos por escopo, o desafio maior enfrentado pelos administradores públicos está atrelado ao prazo de execução em paralelo à vigência do contrato, quando àquele se mostra exíguo (insuficiente) ou necessárias novas intervenções no objeto pactuado (acréscimos ou supressões). Sob o aspecto estrito da legalidade administrativa, o inciso I do art. 65 da Lei n. 8.666/1993 concede à Administração as prerrogativas para poder alterar unilateralmente o contrato administrativo, desde que apresentadas as devidas justificativas.

Em relação à tempestividade, as alterações contratuais, independente da natureza, são possíveis enquanto o objeto contratado não for totalmente entregue e recebido definitivamente pela Comissão designada pela autoridade, se for o caso. Entretanto, há entendimentos de que essa temporalidade contratual não pode perdurar ad eternum, daí a pertinência para o prazo de vigência contratual acompanhar a execução contratual.

Por sua vez, em alguns casos, as alterações contratuais, sejam quantitativas ou qualitativas, podem influenciar no prazo de execução prescrito no ajuste, e, consequentemente no prazo de vigência do contrato. Nesses casos, o administrador deve avaliar a prudência de alteração desses dispositivos, dilatando o prazo de execução do objeto em paralelo à prorrogação (renovação) do prazo de vigência contratual.

Caso nenhuma das partes entenda sobre a existência de interferências no cronograma inicial do contrato, em razão das modificações supervenientes, é recomendável que conste expresso no aditamento essa deliberação bilateral, para fins de determinação de eventual mora contratual. Nessa hipótese, deve prevalecer a fundamentação com base no inciso II do art. 65 da Lei n. 8.666/1993.

Essa dinâmica jurídica se manifesta necessária por envolver excludente de culpabilidade, por Ato da Administração, caracterizado pela alteração unilateral superveniente, o que impediria, em tese, a correspondente penalização devida pelo inadimplemento perpetrado.

Demais disso, as alterações em contratos por escopo tendem a impactar nos demais dispositivos, quando atrelados a prazos de cumprimento. Assim, deve-se avaliar, por exemplo, se a modificação acarretará alteração nas regras de faturamento e pagamento, de acordo com o cronograma físico-financeiro inicial, aprovado pela fiscalização do contrato.

4 - DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO EM SENTIDO ESTRITO

4.1 - Organização administrativa: descentralização e descontração administrativa

Como consabido, a organização da Administração Pública em sentido lato é determinada em Direta e Indireta.

A Administração Direta é caracterizada pela desconcentração do poder estatal em unidades determinadas mediante subordinação hierárquica. Não possuem personalidade jurídica, atuando como braços do poder central administrativo, que, sim, detém caráter personalíssimo para responder juridicamente pelos atos das unidades desconcentradas administrativamente. Aqui, a ideia é entender a Administração como um órgão (em sentido estrito) que desfragmenta o poder em delegações de competências para as unidades subordinadas, sem que com isso haja a perda da personalidade jurídica ou transferência desta para outra, com perda de atribuições originárias. É o caso, por exemplo, dum Ministério de Estado quando cria repartições para a adequada execução de uma competência privada.

A Administração indireta segue o caminho inverso, respeitadas as devidas proporções, consistindo na descentralização do poder. Ou seja, é a retirada de uma competência originária do poder central para outra entidade dotada de personalidade jurídica própria, com a finalidade de gerir e executá-la de forma descentralizada. Isso significa que o poder de origem poderá desafogar do trâmite ordinário tais competências, de modo que possa se debruçar perante outras necessidades com melhor atenção e aproveitamento, em tese.

Cumpre destacar que, em regra, a descentralização mantém sob o foco do poder originário a competência fiscalizatória e de correção sobre as atividades da competência descentralizada. Um característico exemplo é o caso das Agências Reguladoras, criadas a partir da descentralização de poderes/competências de Ministérios de Estado especializados. Nessa concepção, os Ministérios continuam com a atribuição de supervisionar as atividades administrativas descentralizadas, enquanto que as novas entidades personalizadas passaram a se debruçar na execução dos trabalhos de regulação do meio para os quais foram constituídas.

No âmbito do contencioso administrativo, tanto o litigioso quanto o sancionatório, regra geral, são processados dentro de uma estrutura desconcentrada. Isso, muito em razão do poder hierárquico, de que decorrer os atos administrativos. Assim, sujeitam-se à revisão, convalidação, revogação ou anulação pelo poder hierarquicamente superior, segundo o processamento legal.

Quando houver expressa previsão legal, haverá hipóteses em que o poder hierárquico, numa espera de 3°, por exemplo, será exercido num âmbito descentralizado. Entretanto essa hipótese é exceção que somente encontra fundamento quando expresso em lei.

Assim, o ato administrativo, quando provocado por quem de direito, estará sujeito, regra geral, a um juízo de apreciação a quo (reconsideração ou de retratação), como também a um juízo de apreciação ad quem, ou recursal, a ser exercido pela autoridade competente do órgão e hierarquicamente superior a quem proferiu a decisão a quo.

Nessa hipótese a autoridade superior poderá confirmar a decisão anterior ou reforma-la total ou parcialmente. É o poder em sede recursal decorrente do efeito devolutivo, que “traz à mão” do poder central a competência, em segundo grau de apreciação, o dever de decidir novamente o direito pleiteado.

Em alguns casos, quando a lei permitir, a autoridade a quo poderá declarar o efeito suspensivo ao recurso, fazendo subi-lo ao conhecimento da autoridade competente, em seu efeito devolutivo, até que haja a decisão superior.

4.2 - Questionamento envolvendo o objeto do contrato ou cláusula contratual

Quanto ao tema, o parágrafo único do art. 78 da Lei de Contratos Administrativos disciplina que “os casos de rescisão contratual serão formalmente motivados nos autos do processo, assegurado o contraditório e a ampla defesa”.

A partir daí, tem-se ainda que, nos termos do art. 87 da citada Lei, “pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as [...] sanções” previstas taxativamente no normativo.

Por fim, num terceiro plano, o inciso II do art. 109 da Lei de Contratos Administrativos dispões que caberá recurso de representação, no prazo de 5 (cinco) dias úteis da intimação da decisão relacionada com o objeto da licitação ou do Contrato, de que não caiba recurso hierárquico.

A despeito da previsão recursal, cumpre advertir que em nenhum lugar a norma de regência trata do direito de petição do interessado em sede de contencioso administrativo, quando envolver interesse resistido no âmbito do objeto da licitação ou do contrato.

O que se percebe é que a Lei regrou situações gravíssimas de “inexecução total ou parcial do contrato” e “rescisão contratual” salvaguardado, em todos os casos, a faculdade do particular interessado (aqui entendido como o dever da Administração em oportunizar) de ter garantida oportunidade de manifestação antes da deliberação da autoridade competente, em sede de “defesa prévia”, como sustentáculo à proteção das garantias constitucionais do “contraditória e da ampla defesa”.

Do ponto de vista hermenêutico, se a lei despiu garantias processuais para situações gravíssimas, também não poderia ter escusado em situações em que há ainda mera ação resistida dos envolvidos na relação contratual. A essa ação ou interesse resistido, em sede de interpretação dos limites das obrigações convencionadas contratualmente dá-se o nome de contencioso administrativo.

Assim, sempre que o interessado ou a Administração estiverem diante de um interesse resistido ou de interpretação obrigacional controversa, haverá um contencioso a ser solucionado e, dada a necessidade da própria natureza, a preleção de atos processuais visando a decisão de uma autoridade devidamente competente, aqui entendida como aquela determinada pela lei, para deliberar sobre a causa objeto de controvérsia administrativa.

Ocorre que a Lei n. 8.666/1993 definiu alguns atos esparsos, e pior, com identidades e objetos diversificados em matéria procedimental do contencioso administrativo, porém, não incompatíveis, resultando, assim, apenas na ausência de um “corpo processual” comum a todos as situações disciplinadas (penalidades, rescisão, contencioso, etc.). Sendo assim, para a elucidação desse desafio hermenêutico, far-se-á necessário uma interpretação sistemática da Lei.

Isso, muito em razão de se tratar de procedimento regrado em sede de lei especial, não sendo passível a aplicação subsidiária da Lei Geral dos Procedimentos Administrativos, (n. 9.784, de 1999), ao passo que a Lei n. 8666/1993 previu a matéria, ainda que insipidamente. É a regra, inclusive, expressa no caput do at. 69 da Lei 9.784/1999: “Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei” (interpretação estrita).

Parte-se da premissa que as relações contratuais são constituídas da voluntariamente para a consecução de um objetivo específico, restando para cada qual a respectiva obrigação convencionada.  Nesse cenário, uma das partes requer a prestação de algo possível, determinado e lícito, enquanto que a outra, em contrapartida, espera a contraprestação pela regular execução do objeto convencionado.

Como se vê, há uma bilateralidade na promoção de ações contratuais, das quais podem surgir dúvidas ou interpretações resistidas, a depender do interesse que cada qual quer resguardar. Nesse liame, podem surgir manifestações formais, naturais da relação negocial. Não que dizer necessariamente um direito de petição, como aquele sagrado pela Constituição Federal de 1988, mas um tratamento ordinário da execução contratual

Ocorre que essa ação ou pedido resistido deve ser apreciado por quem detém o poder de decisão. É nesse momento que surge, no mundo jurídico, o aspecto formal do contencioso administrativo.

Para o preenchimento da lacuna legislativa, uma vez que a Lei dos Contratos Administrativos não expressa literalmente as regras para o processamento de contestação de termos contratuais, deve-se observar a primazia da analogia que preconiza o art. 4º da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-Lei n. 4.657/1942, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n. 12.376/2010).

Assim, parte-se do pressuposto que o contencioso está disciplinado na citada legislação especial nos mesmos moldes aplicáveis aos procedimentos sancionatórios, eis que, de certo modo, equivalentes, haja vista que ao particular poderá incidir decisão declaratória negativa de direito.

De acordo com essa teleologia, regra geral, pode-se definir o procedimento do contencioso administrativo como tripartido (ou tetragonal), compreendendo, ao menos, as fases de instrução e deliberação a quo, uma vez que a etapa de confirmação ou não ad quem se subsumisse ao princípio da voluntariedade recursal, cuja reserva encontra guarida no princípio da pluralidade de instâncias administrativas, inerente à desconcentração da organização administrativa.

Assim, independente da natureza da decisão, tanto para penalizar quanto declarar ou negar direito, o processamento dessas fases far-se-á conforme a remissão dos citados artigos 78, 87 e art. 109, inciso II c/c § 4°, todos da Lei n. 8.666/1993. Com base nessas disposições, é possível determinar, com segurança, o processamento do devido processo legal em sede de contencioso administrativo envolvendo relações contratuais públicas.

4.5 - Processamento tetragonal

4.5.1 - Da instrução e produção de provas

Tanto a disciplina da rescisão contratual, prevista no parágrafo único do art. 78 da Lei de Contratos Administrativos, quanto à disciplina sancionatória, nos temos do art. 87 da citada Lei, estabelecem as bases da instrução processual. Conjuntamente, os perspectivos dispõem que o contencioso administrativo deverá ser com arrimo nas garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, garantida, oportunamente (antes da apreciação da autoridade), a prévia defesa.

A partir desse diagrama, deve-se determinar a competência da Administração para identificar a conduta e tipificação, conforme as disposições previstas no edital e no contrato, a depender do caso. Muito embora a lei preveja as penalidades incidentes nas contratações públicas (art. 86 e 87 da Lei), a ausência de expressa previsão contratual ou no instrumento convocatório é empecilho à ação do administrador, que está adstrito a legalidade.

Assim, em prestígio ao princípio da legalidade, em especial, traduzido nas concepções da anterioridade legal e da vinculação ao instrumento convocatório, deve-se obedecer ao prévio assentimento do contratante por ocasião do conhecimento do edital (não impugnado) e da participação na licitação como pressuposto à regular submissão da penalidade tipificada.

Como pressuposto essencial, a Administração deve providenciar a notificação do interessado, para querendo, apresentar defesa prévia no prazo de cinco dias úteis, contados da data da ciência do comunicado. Nesse momento, o interessado poderá requerer acesso às informações que estejam vinculadas, direta ou indiretamente, ao objeto da controvérsia contratual. Não é aconselhável, nesses casos, que fogem à execução ordinária do contrato, que o gestor especialmente designado para acompanhar a exceção do objeto decida unilateralmente sobre tais pedidos da contratada, sendo recomendável a submissão da matéria à autoridade competente.

De mais a mais, faz-se oportuno lembra que os processos administrativos, em regra, são impulsionados de ofício, sem prejuízo da atuação dos interessados. Assim, nem sempre caberá ao interessado a quebra da inércia processual, devendo o administrador público se atentar para essa particularidade (princípio da oficialidade ou oficiosidade).

4.6.2 - Do juízo de apreciação a quo

Uma vez notificado, ainda que o particular não demonstre interesse de agir, transcorrendo o prazo para apresentação da defesa prévia in albis, os autos deverão ser encaminhados à autoridade para decisão, sempre que possível, acompanhado do parecer técnico competente. Ademais, esclareça-se que a inércia do interessado não representa renúncia ao direto de apresentar razões recursais. Deve-se, assim, assegurar o cumprimento dessa etapa processual.

4.6.3 - Da voluntariedade recursal

Trata-se do exercício da voluntariedade recursal, cuja reserva encontra guarida no princípio da pluralidade de instâncias administrativas, inerente à desconcentração da organização administrativa.

Segundo dispõe o inciso II do art. 109 da Lei de Contratos Administrativos, caberá recurso de representação, no prazo de 5 (cinco) dias úteis da intimação da decisão relacionada com o objeto da licitação ou do Contrato, de que não caiba recurso hierárquico.

Assim, da decisão que negar direito ou impor dever à contratada, de que não caiba recurso hierárquico (que requer expressa previsão legal, tais como: as penalidades de multa, suspensão, impedimento, declaração de inidoneidade), caberá recurso de representação à autoridade superior àquela que proferiu a decisão a quo, na forma do § 4o do art. 109 da Lei n. 8.666/1993.

O recurso será direcionado a quem praticou o ato recorrido e, caso este não reconsidere no prazo de 5 (cinco) dias úteis (primeiro grau de apreciação), deverá fazê-lo subir, devidamente informado, devendo, neste caso, a decisão ser proferida dentro do prazo de 5 (cinco) dias úteis, contado do recebimento do recurso, sob pena de responsabilidade.

Além disso, o recurso não terá efeito suspensivo imediato, podendo a autoridade competente, motivadamente e presentes razões de interesse público, atribuir ao recurso interposto tal qualidade. Ademais, nenhum prazo de recurso, representação ou pedido de reconsideração se inicia ou corre sem que os autos do processo estejam com vista franqueada ao interessado (art. 109, § 5°, da LCC).

Se for única e exclusiva instância, haverá a possibilidade de oferecer pedido de retratação. O juízo de reconsideração é ato exclusivo do primeiro grau de apreciação.

O juízo de admissibilidade a quo sucederá a partir dos seguintes requisitos: cabimento: previsão legal para essa hipótese recursal; tempestividade: exercer o direito dentro do prazo legal; unirrecorribilidade (só existe único recurso adequado); adequação: possibilidade de aproveitamento, quando interposto com fundamento diverso (princípio da fungibilidade); preparo (eventuais custas, quando houver); legitimidade recursal: estar devidamente representado (legalmente instituído como representante – outorga de poderes, se for o caso); e, sucumbência: é o pressuposto que concebe o direito de recorrer apenas a quem possa a decisão atingir.

4.6.4 - Fase devolutiva ou de juízo de apreciação ou confirmação ad quem

Ocorre somente nos casos em que o interessado agir no exercício da voluntariedade recursal. O agente público não detém legitimidade recursal para fazê-lo ex officio. Objeto primário: conhecer ou não do recurso. Conhecido o recurso, secundariamente a autoridade ad quem apreciará o provimento: negando ou provendo total ou parcialmente o pedido. 


CONCLUSÃO

Parte-se da premissa de que as relações contratuais são constituídas da voluntariedade para a consecução de um objetivo específico, restando cada qual com sua obrigação convencionada. Nesse cenário, uma das partes requer a prestação de algo possível, determinado e lícito, enquanto que a outra, em contrapartida, espera a contraprestação pela regular execução do objeto convencionado.

Como se vê, há uma bilateralidade na promoção de ações contratuais, das quais pode surgir dúvidas ou interpretações resistidas, a depender do interesse que cada qual quer resguardar. Nesse liame, podem surgir manifestações formais; naturais da relação negocial.

Ocorre que essa ação ou pedido resistido deve ser apreciado por quem detém o poder de decisão. É nesse momento que surge, no mundo jurídico, o aspecto formal do contencioso administrativo. Dado o paralelismo de forma, parte-se do pressuposto que o contencioso está disciplinado na citada legislação especial nos mesmos moldes aplicáveis aos procedimentos sancionatórios.

A rigor dos fatos, sempre que o interessado ou a Administração estiverem diante de um interesse resistido ou de interpretação obrigacional, haverá um contencioso a ser solucionado e, dada a necessidade da própria natureza, a preleção de atos processuais, visando a decisão de uma autoridade devidamente competente, aqui entendida como aquela determinada pela lei, para deliberar sobre a causa objeto de controvérsia administrativa.

De acordo com essa teleologia, regra geral, é possível definir o procedimento do contencioso administrativo como tripartido (ou tetragonal), compreendendo, ao menos, as fases de instrução e deliberação a quo, uma vez que a etapa de confirmação ou não ad quem se subsumisse ao princípio da voluntariedade recursal, cuja reserva encontra guarida no princípio da pluralidade de instâncias administrativas, inerente à desconcentração da organização administrativa.

De mais a mais, por se tratar de procedimento regrado em sede de lei especial, convém persuadir que não cabe a aplicação subsidiária da Lei dos Procedimentos Administrativos, (n. 9.784, de 1999), ao passo que a Lei n. 8666/1993 previu a matéria, ainda que insipidamente. É a regra, inclusive, expressa no caput do at. 69 da Lei 9.784/1999, segundo uma interpretação restrita do dispositivo: “Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.


REFERÊNCIAS

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ROUSSEAU, Jean-Jacques - Do Contrato Social. Editora Martin Claret, 2007.


Notas

[2] Rousseau, Jean-Jacques - Do Contrato Social. Editora Martin Claret, 2007.

[3] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Editora Martin Claret, 2000.

[4] ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Ruth M. Klaus: 3ª. Centauro Editora, São Paulo, 2006.

[5] KELSEN, Hans. Teoria Pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

[6] BRASIL, Planalto. Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm.

[7] BRASIL, Planalto. Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Redação dada pela Lei n. 12.376, de 2010). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm.

[8] BRASIL, Planalto. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm.

[9] In, Maximilianus. Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2016. Pag. 18.

[10] BRASIL, Planalto. Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm.

[11] BRASIL, Planalto. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[12] Cláudio Américo Führer. Maximilianus. Direito Administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2016. Pag. 18.

[13] BRASIL. Câmara dos Deputados. Íntegra do discurso presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Dr. Ulysses Guimarães. http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/CAMARA-E-HISTORIA/339277-INTEGRA-DO-DISCURSO-PRESIDENTE-DA-ASSEMBLEIA-NACIONAL-CONSTITUINTE,--DR.-ULYSSES-GUIMARAES-(10-23).html

[14] Ensina Carlos Maximiliano que “Quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tende distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhumas das expressas”. Carlos Maximiliano, in Hermenêutica e Aplicação do Direito, 19ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Pág. 201

[15] Alteração do contrato - Limites - Acréscimos e supressões - Cálculo independente - Impossibilidade de compensação - Entendimento do TCU. Revista Zênite - Informativo de Licitações e Contratos (ILC), Curitiba: Zênite, n. 239, p. 87, jan. 2014, seção Perguntas e Respostas.

[16] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 3ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013. Pág. 888.


Autor

  • Bruno Tsugami Dalla Costa

    Servidor público, com vínculo efetivo, do Superior Tribunal de Justiça - STJ. Assessor Jurídico da Assessoria Jurídica da Secretaria do Tribunal. Graduado em Direito e Pós-Graduado em Direito Administrativo lato sensu. Discente do Curso de Pós-Graduação lato sensu de Direito - Novas Tendências do Direito Público do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB/ICPD.

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