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Cancelamento do registro profissional à luz da Lei n. 5.194/66

sanção de âmbito administrativo que se diferencia do regime penal

Cancelamento do registro profissional à luz da Lei n. 5.194/66: sanção de âmbito administrativo que se diferencia do regime penal

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O cancelamento do registro profissional dos engenheiros é penalidade de cunho administrativo que pode ser aplicada pelos Conselhos Regionais de Engenharia. Todavia, questiona-se: como conciliar a sanção administrativa com a penal?

Resumo: Este trabalho objetiva abordar o cancelamento do registro profissional dos engenheiros, penalidade de cunho administrativo que pode ser aplicada pelos Conselhos Regionais de Engenharia nos casos de má conduta pública, escândalos ou prática de crime infamante nos termos da Lei 5194/66. Inicialmente, apresentaremos um breve contexto histórico sobre a aplicação destas penalidades pelo Conselhos Regionais, perpassando pelo apontamento de baixa efetividade na aplicação dessas penalidades pela Controladoria Geral da União com a recomendação de adoção de medidas para maior efetividade e proteção da sociedade. Abordaremos, a seguir, a previsão legal, a caracterização como tipo sancionador aberto e as diferenças e considerações em relação ao regime de direito penal. Nesta ocasião, diferenciaremos as penalidades cabíveis por violação ao Código de Ética Profissional e as penalidades cabíveis por violação à Lei 5194/66. Demonstrada a natureza de sanção administrativa do cancelamento de registro profissional, será analisada a interferência das decisões judiciais de natureza penal sobre a decisão de aplicação da sanção de cancelamento do registro. Finalmente, abordaremos a análise que normalmente é feita pelo Judiciário diante da aplicação de penalidades administrativas e apresentaremos as conclusões.

Palavra-chave: Cancelamento registro profissional. Processo Administrativo Sancionador. Tipo sancionador aberto. Interferência entre as esferas penal e administrativa.

Sumário: 1. Introdução.  2. Histórico e baixa efetividade na aplicação das penalidades. 3. Previsão legal e considerações iniciais.  4. Tipo sancionador aberto. 5. Interferência entre as esferas administrativa e penal. 6. Do posicionamento do Judiciário diante das aplicações de penalidades administrativas. 7. Conclusão. 8. Referências Bibliográficas. 9. Anexos


1. Introdução

O cancelamento do registro profissional pelos Conselhos de Engenharia e Agronomia é uma penalidade administrativa prevista na Lei 5194/66. A aplicação de tal penalidade decorre do poder de polícia atribuído aos conselhos de fiscalização profissional, que são autarquias incumbidas da fiscalização do exercício profissional.

A aplicação da penalidade de cancelamento do registro profissional encontra previsão no artigo 75 da lei 5194/66 e não é exclusiva para a profissão da engenharia. Outras leis também trazem a previsão de cancelamento do registro profissional, dentre elas, a Lei 8906, que dispõe sobre o estatuto da advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, e a Lei 3268/1957, que dispõe sobre os conselhos de medicina e dá outras providências, dentre outras leis que regulam os vários conselhos de fiscalização profissional.

Considerando a natureza de sanção administrativa, sua aplicação depende de regular abertura de procedimento administrativo em que seja assegurada a ampla defesa e contraditório.

A condução do procedimento administrativo para aplicação da penalidade é regulado pelas Resoluções do CONFEA nº 1004/2003 e nº 1090/2017 e pela lei 9784/99 que regula o processo administrativo em geral.

Nos termos do artigo 46 da Lei 51194/66, a competência para aplicação de tal penalidade é das Câmaras Especializadas, sendo certo que da decisão da Câmara Especializada cabe recurso ao Plenário do Conselho Regional e, posteriormente, ainda cabe recurso ao Conselho Federal. Os recursos cabíveis são dotados de efeitos suspensivo, de forma que só é possível a aplicação da penalidade após a coisa julgada administrativa.

No artigo que se desenvolve, serão tecidas considerações acerca das polêmicas que circundam o tratamento normativo das penalidades aplicadas pelos Conselhos de Engenharia, problematizando a interseção das esferas penal e administrativa no que toca à responsabilização do profissional.


2. Histórico e baixa efetividade na aplicação das penalidades

A aplicação da penalidade de cancelamento do registro profissional dos engenheiros está prevista desde 1966 com a publicação da Lei 5194/66. No entanto, ocorreram poucas aplicações de tal penalidade, talvez pela dificuldade de interpretação da norma que utiliza conceitos jurídicos indeterminados, ou talvez pelo corporativismo presente nos conselheiros que compõe as câmaras, ou o plenário, responsáveis pela aplicação da penalidade ou pelo julgamento dos recursos interpostos. O fato é que o baixo número de aplicação destas penalidades foi detectado pela Controladoria Geral da União.

A auditoria realizada pela CGU aponta baixa efetividade na aplicação de penalidades sobretudo a de cassação por parte dos conselhos de engenharia e agronomia. (Controladoria Geral da União 2017)

Merecem destaque os seguintes pontos do relatório:

“A CGU, por meio da Solicitação de Auditoria (SA) nº 9, de 29/06/2016, pediu ao Confea lista dos processos instaurados de 2011 a 2015 para apuração de responsabilidade de profissionais condenados em processos judiciais por crimes contra a Administração Pública. Entende-se que essas condutas são passíveis de cancelamento do registro nos termos do art. 75 da Lei Federal nº 5.194, de 1966.

(...)

O número de Creas que não instaurou processo em desfavor de profissionais condenados judicialmente contrasta com o de escândalos de desvio de recursos públicos rotineiramente noticiados pela imprensa brasileira.

 Vale destacar que, com base em consulta realizada no dia 14/11/2016 no sítio do Confea, profissionais condenados criminalmente em decorrência de desvios em obras públicas apurados em operações da Polícia Federal noticiadas na mídia como “Operação Navalha” e o ”caso da Construtora Delta” encontram-se com seus RNP ativos. Nem mesmo condenação judicial em um dos maiores escândalos envolvendo profissionais de engenharia na história brasileira, “Operação Lava Jato”, foi motivo suficiente para ação dessas autarquias. Dentre catorze engenheiros já condenados em decorrência da operação em comento, por meio da resposta à SA n° 9, de 29 de junho de 2016, somente foi possível identificar a instauração de processos contra três profissionais, um no Crea/BA e dois no Crea/RJ.” (Controladoria Geral da União 2017)

Levantados os dados e analisadas as justificativas apresentadas, a Controladoria Geral da União concluiu que a supervisão do Conselho Federal sobre os regionais no tocante à aplicação de sanções disciplinares, tem baixa efetividade e  é insuficiente para garantir a proteção da sociedade. Observou a Controladoria Geral da União:

“Desse modo, transcorridos 50 anos da publicação da Lei Federal nº 5.194, a omissão do Confea na implementação de ações para dirimir dúvidas sobre a aplicabilidade direta do art. 75 ou, caso necessário, na regulamentação desse dispositivo, apresenta-se como um dos elementos a justificar o baixo número de cancelamento de registros de profissionais envolvidos em grandes esquemas de desvios de recursos em obras públicas. Registre-se que, no entender desta equipe de auditoria, a penalidade de censura pública não é suficiente a coibir atos lesivos ao patrimônio público como os citados neste relatório.” (Controladoria Geral da União 2017)

Vejamos a conclusão apresentada:

“A defesa da sociedade frente o mau exercício da engenharia é o motivo mais relevante a justificar a existência do sistema Confea/Crea. Tal assertiva é resultado da leitura de diversos normativos dessas autarquias, inclusive da Visão Confea 2011/2022 – ‘Ser reconhecido pela sociedade como uma instituição de excelência no julgamento e na normatização da verificação, fiscalização e aperfeiçoamento do exercício e das atividades profissionais, visando à defesa da sociedade e ao desenvolvimento sustentável do país, observados os princípios éticos.’(grifou-se)

Por meio do trabalho, identificou-se, no que tange à abertura de processos disciplinares e à aplicação de penalidades, que a supervisão do Confea sobre os Creas tem baixa efetividade e é insuficiente para garantir a proteção da sociedade frente ao mau exercício das profissões jurisdicionadas ao Sistema Confea/Crea.” (Controladoria Geral da União 2017)

Identificado o problema pela Controladoria Geral da União, foi apresentada a recomendação para implementar mecanismos para monitorar a devida instauração de ofício de processos a partir de notícias ou indícios de infrações passíveis de cancelamento de registro e editar normativo para conceituar os casos previstos no art. 75 da Lei Federal nº 5.194/66. (Controladoria Geral da União 2017)

Após a recomendação da CGU, foi editada a Resolução 1090 pelo CONFEA que dispõe sobre o cancelamento de registro profissional por má conduta pública, escândalo ou crime infamante.

No entanto, a edição da referida Resolução não solucionou todas as dúvidas, ainda é um normativo com baixa objetividade e pode não ser suficiente para resolver problemas que ensejaram o baixo índice de aplicação da penalidade de cancelamento.

Em razão do relatório da CGU e do momento moralizador que o país e a Administração Pública estão passando, se mostra proveitosa uma análise mais detida sobre o cancelamento do registro dos profissionais da engenharia, com abordagem das nuances existentes com o direito penal, da perspectiva de análise judicial e outras considerações.


3. Previsão legal e considerações iniciais

O cancelamento do registro profissional decorre do poder de polícia atribuído às autarquias de fiscalização do exercício profissional criadas por lei com o intuito de regulamentar o exercício da profissão e proteger a sociedade em relação à profissão e profissionais por ela regulamentados.

Sobre este ponto, afirma Claude Pasteur:

“Uma das principais prerrogativas de um sistema de fiscalização e regulação do exercício profissional é a de exercitar sua competência legal no sentido de afastar do seu meio as pessoas que, por conduta imprópria, tenham transgredido regras éticas e morais indispensáveis ao exercício da profissão. Aqui se confrontam, de um lado, um direito fundamental estabelecido na Constituição, e de outro, a preservação da ética e dos valores que devem reger o exercício profissional.” (FARIA 2016, 198)

A Lei 5194/66 disciplina o exercício da engenharia e da agronomia e prevê as penalidades aplicáveis aos profissionais que não atuarem em conformidade com a lei e com a ética.

Dentre as penalidades aplicáveis aos profissionais, existe a advertência e a censura pública, que podem ser aplicadas àqueles que deixarem de cumprir as disposições do Código de Ética instituído pela Resolução 1002/2004 do CONFEA – Conselho Federal de Engenharia e Agronomia.

Além destas penalidades, existe a suspensão do registro profissional, que é de difícil aplicação, pois só ocorre no caso de nova reincidência em algumas penalidades puníveis com multa e descritas no Art.73 da referida lei.

A penalidade de cancelamento do registro profissional, que é o foco do presente trabalho, ocorre por violação ao artigo 75 da Lei 5194/66 que transcrevemos a seguir: “Art. 75. O cancelamento do registro será efetuado por má conduta pública e escândalos praticados pelo profissional ou sua condenação definitiva por crime considerado infamante.”

Inicialmente, é importante registrar que, apesar da instrução do processo administrativo ficar a cargo da Comissão de Ética Profissional, e do grande conteúdo moralizador contido no referido artigo, o cabimento do cancelamento é por violação à própria lei e não ao Código de Ética.

No caso de uma mesma conduta infringir disposições do Código de Ética Profissional e ainda configurar uma má conduta pública, escândalo ou crime infamante, não é possível uma dupla penalização com aplicação das penalidades de advertência ou censura pública e cancelamento do registro profissional, pois nosso ordenamento jurídico não admite o “bis in idem”, ou seja, a aplicação de duas ou mais sanções em razão da prática do mesmo fato. Em casos como este, o órgão sancionador deve aplicar apenas uma penalidade, que será definida levando em conta a razoabilidade e proporcionalidade e considerando a gravidade da conduta praticada.

Apesar de o dispositivo legal não trazer limitação para o cancelamento, dando a entender que seria permanente, tal entendimento não se mostra compatível com a Constituição Federal que proíbe a aplicação de penas de caráter perpétuo.

Vejamos as pertinentes observações feitas por Claude Pasteur de Andrade Faria em seu Livro Comentários à Lei 5194/66:

“O cancelamento do registro é uma sanção administrativa aplicada ao profissional que, tendo cometido ‘escândalos’ ou sido condenado definitivamente por ‘crimes infamantes’, venha a ser apenado em processo ético perante o CREA. Em princípio, pela literalidade do dispositivo legal, o cancelamento do registro tem natureza permanente ou definitiva.

(...)

O STF e STJ já enfrentaram esta matéria e reconheceram a inconstitucionalidade de sanções administrativas permanentes, como aquela prevista no inciso IV do art.44 da lei 4595/64 (inabilitação permanente para o exercício de cargos de direção ou gerência em instituições financeiras)[2].

Em face do exposto pode-se concluir que o cancelamento definitivo do registro profissional é medida que afronta a constituição. A lei deveria ter previsto o limite máximo temporal da pena proporcionalmente à gravidade do fato ou ilícito cometido, abrindo a possibilidade de uma reabilitação para o exercício profissional.” (FARIA 2016, 198 e 199)

Sobre este ponto, é importante considerar que a lei 5194/66 é de 1966, anterior à Constituição Federal, razão pela qual não considerou esta limitação, o que não impede sua aplicação desde que se atente para a nova ordem constitucional e não se aplique uma sanção perpétua. Tal problema restou superado com a edição da Resolução 1090/2017 pelo Conselho Federal de Engenharia e Agronomia, que traz a possibilidade de reabilitação profissional decorridos cinco anos da aplicação da penalidade de cancelamento. O cancelamento do registro profissional não é aplicado por período determinado, mas existe a possibilidade de reabilitação decorridos 5 anos da aplicação da penalidade. Ressalta-se, no entanto, que a reabilitação não é automática e deve ser requerida pelo profissional, que se não o fizer, ficará com seu registro cancelado.

Apresentado o dispositivo legal e feita a diferenciação entre infração ao código de ética e infração à lei (que efetivamente permite o cancelamento do registro profissional), abordaremos, a seguir, a tipicidade da previsão legal, a necessidade ou não de uma norma complementadora e a situação da Resolução 1090 editada para atender recomendação da CGU e dirimir dúvidas como forma de permitir a aplicação desta penalidade pelos Conselhos Regionais.


4.    Tipo sancionador aberto

É inegável que o dispositivo legal traz pouca objetividade, o que vai de encontro ao princípio da tipicidade. Os termos má conduta pública e escândalo, situações autorizadoras do cancelamento do registro profissional, são conceitos vagos e juridicamente indeterminados, sendo certo que sua definição perpassa pelo momento em que será analisado e aplicado, pois isso pode mudar de acordo com o momento em que a sociedade vive. O que foi escândalo ou má conduta pública há alguns anos pode não ser mais hoje ou vice-versa. O mesmo ocorre com o termo crime infamante que não tem definição na seara penal.

No entanto, não se pode perder de vista que se trata de normas de cunho administrativo e não penal, são dois sistemas diferentes que apesar de estarem sob a égide de uma mesma constituição, tem regimes e princípios diferentes.

Sobre esta dicotomia, vejamos as pertinentes observações de Fábio Osório Medina, em seu livro Direito Administrativo Sancionador:

“A diversidade de regimes jurídicos é formal e substancial, o direito administrativo veicula suas normas com finalidade e objetivos restritos ao campo de incidência que lhe é próprio. O direito penal tem um campo de incidência teoricamente mais amplo. O Direito Administrativo pode ser aplicado por autoridades administrativas ou judiciais, sendo estas pertencentes à esfera extrapenal. Já o direito penal depende dos Juízes com jurisdição penal. O elemento formal da sanção administrativa é o processo, judicial ou administrativo, extrapenal. O elemento formal das sanções penais é o processo penal. Esses veículos processuais são substancialmente distintos. A interpretação penal é distinta da interpretação administrativa. Distintos são os princípios que presidem uma e outra política repressiva, tendo em conta a radicalidade maior do direito penal, que possui potencialidade de privar o ser humano da liberdade. O princípio da intervenção mínima é mais acentuado no direito penal. O interesse público possui um alcance e uma importância radicalmente maior no Direito Administrativo do que no direito penal.

A regra, enfim, é a existência de diferenças, não de identidades entre os direitos penal e administrativo sancionador. Nesse ponto, cabe lembrar que a existência de diferenças ocorre em grau acentuado, de tal sorte que se justifica a invocação de regimes distintos para essas duas realidades.

(...)

Se é certo que o Direito Administrativo Sancionador possui garantias mais reduzidas que as do direito penal, isso se dá, fundamentalmente, por que seus objetivos estão intimamente vinculados à busca de interesses gerais e púbicos, o que impede uma contaminação penalista ‘inspirada exclusivamente por la obsesión de las garantias individuales.’” (OSÓRIO 2000, 117 ss)

Restando claro que não se está diante de uma sanção no âmbito do direito penal e sim uma sanção administrativa, é certo que as garantias e o tratamento são diferenciados.

De acordo com os ensinamentos de Maria Sylvia, a aplicação do cancelamento do registro pode ser considerada como ato discricionário, podendo se considerar que a discricionariedade está no motivo do ato. Vejamos o que a autora diz:

“O motivo será discricionário quando:

(...)

2. a lei define o motivo utilizando noções vagas, vocábulos plurissignificativos, os chamados conceitos jurídicos indeterminados, que deixam à administração a possibilidade de apreciação segundo critério de oportunidade e conveniência administrativa; é o que ocorre quando a lei manda punir o servidor que praticar ‘falta grave’ ou ‘procedimento irregular’, sem definir em que consistem; ou quando a lei prevê o tombamento de bem que tenha valor artístico ou cultural, também sem estabelecer critérios objetivos que permitam o enquadramento do bem nestes conceitos.” (DI PIETRO 2007, 200)

A discricionariedade é muito comum quando envolve conceitos de valor. Sobre este aspecto, Di Pietro, 2007 afirma que : “Já nos casos de conceito de valor, como os de moralidade, interesse público, utilidade pública etc. a discricionariedade pode existir, embora não signifique liberdade total, isenta de qualquer limite.”

O dispositivo legal, ao prever o cancelamento pela prática de má conduta pública, escândalo ou crime infamante utiliza-se de conceitos jurídicos indeterminados e isto é possível no âmbito do direito administrativo, conferindo discricionariedade ao órgão julgador. Esta é uma técnica legislativa que confere maior adequabilidade da norma ao contexto social vivido, já que nem sempre é possível exaurir todas as hipóteses possíveis e o processo de alteração das leis é complexo e demorado.

O autor Claude Pasteur, em seu livro, afirma que o que se define como comportamento escandaloso pode variar a depender de várias circunstâncias, devendo sempre o aplicador da sanção agir com cautela. (FARIA 2016)

Assim dispõe o referido autor:

“A análise do que possa ser considerado um comportamento escandaloso depende de circunstâncias, subjetivas, geográficas, temporais, culturais e morais. Deve ser um comportamento que atinja a sensibilidade e afete a dignidade do ‘homem médio’ pertencente à comunidade profissional.

Desse modo, deve o aplicador da sanção sopesar com cuidado e parcimônia os fatos trazidos a julgamento para verificar se a conduta do profissional se enquadra em algum dos muitos conceitos e definições possíveis para as expressões ‘escândalo’ e ‘má conduta pública’.” (FARIA 2016, 198 ss)

Em que pese a existência de conceitos indeterminados na lei, às vezes a matéria de fato permite tornar este conceito determinado. Exemplifica Di Pietro, 2007 o seguinte: “É o caso, por exemplo, da expressão notório saber jurídico; ela é indeterminada quando aparece na lei, porém pode tornar-se determinada pelo exame do currículo da pessoa a que se atribui essa qualidade”. Penso que, diante do caso de um profissional engenheiro, investigado pela operação lava-jato por envolvimento em corrupção e lavagem de dinheiro, que, usando de sua profissão e seus conhecimentos de engenharia, esteja envolvido em crimes que promoveram o desvio de milhões de reais, diante de gravações, delações e confissões amplamente divulgadas na mídia, pode restar configurado o escândalo preconizado pela lei, visto que certamente macula a imagem da profissão.

Osório, 2000, reconhece em seu livro que a legalidade é flexível no campo das atuações estatais sancionadoras amparadas no direito administrativo, o que reforça a tese de que são dois sistemas diferentes e que não se pode aplicar todas as garantias do direito penal ao direito administrativo sancionador. Vejamos algumas considerações do autor:

“Não se desconhece que a legalidade da atividade sancionadora que se fundamenta no Direito Administrativo possui uma certa flexibilidade. Isso decorre da ausência de algumas ‘amarras’ que normalmente escravizam as normas penais. É uma consequência, inclusive, da maior elasticidade competencial do Estado neste terreno.

(...)

As leis jurídicas mudam com grande rapidez, tendem a proteger bens jurídicos mais expostos à velocidade dos acontecimentos e transformações sociais, econômicas, culturais, de modo que o Direito Administrativo Sancionador acompanha esta realidade e é, por natureza, mais dinâmico do que o direito penal, cuja estabilidade normativa já resulta da própria competência estrita da União Federal.

Nesse passo, a legalidade das infrações administrativas e das sanções é composta no mais das vezes, por conceitos altamente indeterminados, cláusulas gerais que outorgam amplos espaços à autoridade julgadora, seja ela administrativa ou judicial. ” (OSÓRIO 2000, 205)

    O direito penal exige uma tipicidade rigorosa para configuração do ilícito penal, diferentemente do direito administrativo, sobre este assunto; Antônio Carlos Alencar Carvalho escreve:

“No direito penal, contudo, exige-se que cada elemento do tipo seja rigorosamente configurado para que a conduta seja considerada típica e consumativa do ilícito criminal. Se um só dos elementos do modelo de conduta criminosa não estiver presente, o fato é atípico.

Já no campo do direito administrativo, embora o princípio da segurança jurídica exija a definição dos fatos puníveis e das penas correspondentes para conhecimento dos servidores destinatários, tanto que doutrinadores de vanguarda têm encimado a tipicidade no campo do direito administrativo disciplinar como pressuposto da responsabilidade funcional no caso de condutas sujeitas a sanções mais graves, o tipo disciplinar não se compõe, em todos os casos, da exposição minuciosa dos elementos da conduta típica, variando o grau de rigor a esse respeito conforme a maior gravidade da sanção imputável _ em casos de demissão, demanda-se a mais estreita proximidade da ação em face do modelo hipotético de conduta punível.

(...)

Mas há tipos disciplinares, em parte abertos, cujos elementos deferem certa discricionariedade para que a autoridade administrativa proceda ao enquadramento da conduta, o que revela substancial distinção diante dos ilícitos penais, fechados. São as faltas passíveis de demissão classificadas como, respectivamente, as hipóteses dos incisos IX e XV do art. 117 e incisos V e VI do art. 132, todos da Lei Federal 8112/90: valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública; proceder de forma desidiosa; incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição; insubordinação grave em serviço.

Nessas hipóteses, pois, há possibilidade de a autoridade administrativa aquilatar, com alguma liberdade, os conceitos de proveito, inclusive extrapatrimonial, ou prejuízo à dignidade da função pública; o de procedimento desidioso; o de incontinência em público; o de escândalo na conduta no recinto da repartição; o de gravidade do ato de insubordinação. São tipos relativamente abertos, a despeito de corresponderem a penas gravíssimas (destituição do cargo em comissão, demissão, cassação de aposentadoria), no que se distinguem, portanto, dos crimes cujos elementos (fora os tipos penais em branco, aqueles em que segundo Rogério Greco, o preceito primário da norma criminal é incompleto, dependendo de complementação por outro diploma ou norma regulamentar ou administrativa para se compreender seu âmbito de aplicação) são minuciosamente previstos, de forma exaustiva, na lei penal.” (CARVALHO 2011, 77 ss)

O desejável é que as normas fossem completas, com conteúdo denso e isentas de conceitos indeterminados, como forma de dar ampla segurança jurídica aos administrados, mas a realidade do nosso sistema não é essa, como já explicitado anteriormente é muito comum a utilização de conceitos indeterminados notadamente no campo do direito administrativo sancionador, como por exemplo, o artigo 75 da lei 5194/66, escopo do presente trabalho, que trata do cancelamento do registro profissional.

Embora seja criticável a técnica legislativa utilizada, ela não torna as normas que se utilizam de conceitos indeterminados inconstitucionais e nem impossibilita completamente a sua aplicação. É certo que para a aplicação será necessário garantir a ampla defesa e contraditório e ainda utilizar-se da proporcionalidade e razoabilidade _ a decisão deve ser bem motivada e fundamentada, atentar para todas as circunstâncias fáticas e considerar o grau de reprovabilidade da ação. É preciso ter em mente que estamos diante de uma norma de direito administrativo e não de direito penal; e que o direito administrativo visa a proteger o interesse público, e não o privado. As garantias individuais serão respeitadas com o devido processo legal e com uma fundamentação suficiente da autoridade sancionadora.

Cláudio Luzatti, apud Osório, 2000 apresenta-nos a expressão “vagueza socialmente típica” expressão que dispõe sobre as normas jurídicas que apresentam cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Vejamos o entendimento do autor:

“Desse modo, a expressão ‘vagueza socialmente típica’, formulada por Cláudio Luzzati, indica os casos de emprego legislativo de expressões programaticamente vagas, verificáveis quando ‘algum termo, segundo uma certa interpretação, exprime um conceito valorativo cujos critérios aplicativos não são sequer determináveis senão através da referência aos variáveis parâmetros de juízo e às mutáveis tipologias da moral social e do costume’. O critério para a aplicação das normas vagas nesta acepção, será constituído por valores objetivamente assentados pela moral social, aos quais o juiz é reenviado. Trata-se de utilizar ‘valorações tipicizantes das regras sociais, porque o legislador renunciou a determinar diretamente os critérios (ainda que parciais) para a qualificação dos fatos, fazendo implícito ou explícito reenvio a parâmetros variáveis no tempo e no espaço (regras morais, sociais e de costume)’”. (OSÓRIO 2000, 213)

Considerando que inúmeras vezes, por opção do legislador, há a utilização de conceitos indeterminados, resta ao aplicador da norma sancionadora a escolha razoável e fundamentada, como bem leciona Fábio Medina Osório, 2000 ao dispor que os conceitos jurídicos indeterminados “comportam margens de apreciação dos intérpretes, dos aplicadores das normas sancionadoras, dentro de pautas de razoáveis escolhas, sempre vedada a arbitrariedade. ”

Com o intuito de dirimir dúvidas e nortear melhor a atuação dos aplicadores da sanção de cancelamento do registro profissional foi editada a Resolução 1090/2017 pelo CONFEA. Há que se registrar, no entanto, que a possibilidade de cancelamento decorre da lei e não da Resolução e assim sendo era possível o cancelamento do registro profissional mesmo antes da edição da referida Resolução, desde que se observasse claro a razoabilidade, proporcionalidade com respeito ao devido processo legal.

Não há que se falar em inovação e completude indispensável do Art. 75 pela Resolução 1090/17. Indiscutivelmente, a referida resolução vem trazer conceitos menos abstratos, mas ainda assim, esta traz em seu bojo diversos conceitos jurídicos indeterminados.

Diferentemente da doutrina penal, que estabelece a existência de normas penais em branco (as quais dependem da completude de outras normas para sua aplicação), no direito administrativo sancionador isso não ocorre necessariamente. O cancelamento do registro profissional pode ser aplicado com a interpretação dos conceitos jurídicos indeterminados de acordo com os costumes e morais vigentes à época, desde que se respeite o devido processo legal e que a decisão seja fundamentada e lastreada na razoabilidade e proporcionalidade.

Em que pese tenhamos deixado bem claro que na aplicação do cancelamento do registro estamos diante de uma sanção inerente ao regime administrativo e não penal, trazemos à baila, breve explanação de Damásio de Jesus que diferencia norma penal em branco de tipo penal aberto, tal raciocínio pode ser aplicado ao presente caso, pois  o artigo da lei que possibilita o cancelamento do registro profissional mais se assemelha ao tipo penal aberto do que à norma penal em branco, pois não há obrigatoriedade e nem previsão na lei da necessidade de outra norma que defina o que é má conduta, escândalo ou crime infamante.

Vejamos os conceitos apresentados e a diferenciação feita por Damásio de Jesus:

“As normas penais podem ser completas e incompletas. Completas são as que definem o delito de maneira precisa e determinada, não necessitando de nenhum complemento. Ex.: Pedro, dolosamente, mata José. O fato se enquadra imediatamente no art. 121, caput, do CP, que descreve o crime de homicídio doloso. Leis penais incompletas, também denominadas "cegas", "abertas" ou normas penais em branco, são disposições incriminadoras cuja sanção é certa e precisa, permanecendo indeterminado o seu conteúdo. Este é completado por um ato normativo, de origem legislativa ou administrativa, em geral de natureza extrapenal, que passa a integrá-lo. Ex.: nos termos do art. 168-A do CP,[3] que define a apropriação indébita previdenciária, constitui delito o fato de "deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e na forma legal" (ou convencional; itálico nosso). Qual é o prazo? A norma não o menciona, cumprindo buscá-lo na Lei de Custeio da Previdência Social (arts. 30, I, "b", V e 31). A sanção vem determinada, ao passo que a definição legal do crime é incompleta, condicionada a dispositivos extrapenais. De modo que, nesses casos, a adequação típica depende do complemento de outras normas jurídicas ou da futura expedição de certos atos administrativos (regulamentos, portarias, editais etc.). A pena é imposta à transgressão (desobediência, inobservância) de uma norma (legal ou administrativa) a ser emitida no futuro.

(...)

Norma penal em branco não se confunde com o tipo aberto, aquele que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do Juiz. Nele, o mandamento proibitivo inobservado pelo sujeito não surge de forma clara, necessitando ser pesquisado pelo julgador no caso concreto. São hipóteses de crimes de tipo aberto:

a) delitos culposos: neles, é preciso estabelecer qual o cuidado objetivo necessário descumprido pelo autor;

b) crimes omissivos impróprios: dependem do descumprimento do dever jurídico de agir (CP, art. 13, § 2.º);

c) delitos cuja descrição apresenta elementos normativos ("sem justa causa", "indevidamente", "astuciosamente", "decoro", "dignidade", "documento", "funcionário público" etc.): a tipicidade do fato depende da adequação legal ou social do comportamento, a ser investigada pelo julgador diante das normas de conduta que se encontram fora da definição da figura penal.

Assim, diferenciam-se normas penais em branco e elementos normativos do tipo (c). Nestes casos, não se cuida de uma complementação do tipo por meio da aplicação de outro mandamento derivado da mesma instância ou inferior, como nas normas penais em branco, e sim da compreensão da existência ou não de violação do dever de agir ou de não agir em face de regras legais e de cultura.

Neste tema, cumpre não esquecer o princípio fundamental de "conformidade à Constituição": é necessário, seja o tipo aberto ou remetido, haja elemento normativo ou se apresente caso de norma penal em branco, que a interpretação e a aplicação da lei se realizem obedecidos os princípios constitucionais, sob pena de atipicidade do fato.” (JESUS ano 6, n. 51, 1 out. 2001).

Usando por analogia o direito penal, resta claro que a disposição legal que trata do cancelamento do registro profissional não é uma norma em branco que depende necessariamente da edição de outra norma para produzir efeitos, não há menção na lei de expressões como: na forma da lei ou do regulamento ou resolução. No entanto, apesar de não ser um normativo indispensável para aplicação da lei a edição da Resolução 1090 é muito importante para trazer mais segurança jurídica e aumentar a efetividade da fiscalização do exercício profissional como bem apontou o relatório de auditoria realizado pela CGU.

É importante ainda observar que a referida Resolução ainda traz conceitos jurídicos indeterminados, mas já é um avanço no sentido de exemplificar e tentar trazer mais segurança para os profissionais inscritos e mais uniformidade para o sistema Confea-Crea.

Vejamos os conceitos e exemplificações dos termos contidos na lei que ensejam o cancelamento do registro profissional, como má conduta pública, escândalo e crime infamante.

“ CAPÍTULO I

DAS DEFINIÇÕES

Art. 2º Para os fins desta resolução, considera-se:

I - má conduta pública: a atuação incorreta, irregular, que atenta contra as normas legais ou que fere a moral quando do exercício profissional;

II - escândalo: aquilo que, quando do exercício profissional, perturba a sensibilidade do homem comum pelo desprezo às convenções ou à moral vigente, ou causa indignação provocada por um mau exemplo, por má conduta pública ou por ação vergonhosa, leviana, indecente, ou constitui acontecimento imoral ou revoltante que abala a opinião pública;

III - crime infamante: aquele que acarreta desonra, indignidade e infâmia ao seu autor, ou que repercute negativamente em toda a categoria profissional, atingindo a imagem coletiva dos profissionais do Sistema Confea/Crea;

IV - imperícia: a atuação do profissional que se incumbe de atividades para as quais não possua conhecimento técnico suficiente, mesmo tendo legalmente essas atribuições;

V - imprudência: a atuação do profissional que, mesmo podendo prever consequências negativas, pratica ato sem considerar o que acredita ser fonte de erro; e

VI - negligência: a atuação omissa do profissional ou a falta de observação do seu dever, principalmente aquela relativa à não participação efetiva na autoria do projeto ou na execução do empreendimento.

CAPÍTULO II

DO ENQUADRAMENTO

Art. 3º São enquadráveis como má conduta ou escândalos passíveis de cancelamento do registro profissional, entre outros, os seguintes atos e comportamentos:

I - incidir em erro técnico grave por negligência, imperícia ou imprudência, causando danos;

II - manter no exercício da profissão conduta incompatível com a honra, a dignidade e a boa imagem da profissão;

III - fazer falsa prova de qualquer dos requisitos para o registro no Crea;

IV - falsificar ou adulterar documento público emitido ou registrado pelo Crea para obter vantagem indevida para si ou para outrem;

V - usar das prerrogativas de cargo, emprego ou função pública ou privada para obter vantagens indevidas para si ou para outrem;

VI - ter sido condenado por Tribunal de Contas ou pelo Poder Judiciário por prática de ato de improbidade administrativa enquanto no exercício de emprego, cargo ou função pública ou privada, caso concorra para o ilícito praticado por agente público ou, tendo conhecimento de sua origem ilícita, dele se beneficie no exercício de atividades que exijam conhecimentos de engenharia, de agronomia, de geologia, de geografia ou de meteorologia; e

VII - ter sido penalizado com duas censuras públicas, em processos transitados em julgado, nos últimos cinco anos.

Art. 4º O enquadramento da infração por crime considerado infamante dependerá da apresentação da decisão criminal transitada em julgado.”[3] 

Pois bem, compulsando as definições e previsões da Resolução 1090/2017 percebe-se claramente que ainda há o emprego de vários conceitos indeterminados, quando por exemplo se refere à atuação incorreta, irregular, que fira normas legais ou a moral, mau exemplo, acontecimento imoral, conduta incompatível com a honra, dignidade, boa imagem da profissão. Enfim, a resolução não resolveu o problema de indefinição da lei e trouxe no artigo 4º exemplos de condutas que podem ser enquadradas como má conduta e escândalo, sem distinguir uma espécie da outra, como se má conduta pública e escândalo fossem a mesma coisa. Há no entanto, que se considerar que as hipóteses previstas no artigo 4º não são taxativas e sim exemplificativas, uma característica bem comum aos tipos abertos, pois pela própria mudança e evolução da sociedade e conceitos, não é possível prever com precisão conceitos relativos sobretudo à moral e ética. Aí mais uma vez se utiliza de uma possibilidade do direito administrativo que é a maior flexibilidade das normas com a utilização de conceitos indeterminados e cláusulas gerais que outorgam amplos espaços à autoridade julgadora.

A Resolução 1090/2017 acertou quando deixou claro que o cancelamento por crime infamante depende de sentença penal transitada em julgado e quando não misturou o tratamento do crime infamante com a má conduta pública ou escândalo, vez que são conceitos independentes, má conduta pública e escândalo não necessariamente são crimes, são antes condutas que ferem a moralidade, a honra, a boa imagem e a ética da profissão, aspectos que não são considerados ou apreciados pelo Direito Penal.

Merece aplausos ainda a referida resolução no tocante à previsão da reabilitação para o exercício profissional e à previsão da condução do processo, quando atentando-se para disposições já existentes na lei de processo administrativo e para a garantia da ampla defesa e contraditório prevê a necessidade de indicação expressa desde o início do processo de possível violação ao Art. 75 da Lei 5194/66 para que o profissional tenha conhecimento do objeto da apuração e das possíveis penas aplicáveis e exerça seu amplo direito de defesa.

Há questionamentos sobre a previsão do cancelamento do registro profissional após a aplicação de duas censuras públicas, se esta seria uma inovação da resolução e consequentemente a criação de hipótese não prevista na lei. A lei traz as hipóteses claras de possibilidade de cancelamento: má conduta pública, escândalo ou crime infamante, não há dentre elas a hipótese de aplicação de duas censuras públicas.

Os defensores do cancelamento do registro profissional após duas censuras públicas argumentam que não se trata de inovação, pois esta situação se enquadraria na má conduta pública, já que quando o profissional descumpre a ética profissional e recebe uma censura pública, a reprovabilidade de sua conduta passa a ser pública e a reiteração de infração ao código de ética com nova aplicação de uma censura pública seria sim uma má conduta pública.

É um entendimento razoável, mas com a devida vênia, é uma inovação e criação de penalidade por resolução o que seria ilegal. Isto porque já existe a previsão de penalidades por descumprimento do código de ética profissional que ensejam a aplicação de censura pública, o cancelamento é uma aplicação extrema para os casos previstos na lei, não é para qualquer profissional que descumpra o código de ética, sendo certo que o reiterado descumprimento do código de ética não é automaticamente uma má conduta pública.

É indispensável a existência de robusta fundamentação do enquadramento do ato praticado como má conduta pública, não se sustenta a dispensa desta fundamentação sob o argumento de que a condenação a duas censuras públicas seria automaticamente uma má conduta pública a ensejar o cancelamento do registro.

A aplicação do cancelamento após a condenação a duas censuras públicas pode ainda significar uma possível aplicação de duas penalidades em razão da mesma conduta, o conhecido bis in idem, pois após o profissional ter sido penalizado por infração ao código de ética com a aplicação de uma censura pública, seria aberto um novo procedimento administrativo para aplicar o cancelamento do registro sobre o fundamento da existência de duas censuras públicas decorrentes da prática de atos já apreciados e penalizados pela Administração.

Enfim, o objeto do presente trabalho não é a análise e crítica da Resolução 1090/17 e sim o entendimento da aplicação do cancelamento do registro profissional tendo em vista o momento atual e a análise deste instituto em face do direito administrativo, considerando ainda algumas características e diferenças em face do direito penal, razão pela qual fizemos breves apontamentos e considerações sobre a Resolução 1090.

Assim, ultrapassada a análise da previsão legal de cancelamento do registro por má conduta pública, escândalo ou crime infamante e ainda considerando as especificidades apresentadas em decorrência dos conceitos jurídicos indeterminados utilizados e do regime próprio de direito administrativo e não penal, trataremos a seguir da interferência da jurisdição penal sobre a administrativa e posteriormente do entendimento jurisprudencial acerca de processos de cancelamento do registro profissional.


5.    Interferência da jurisdição penal sobre a administrativa

O presente tópico visa analisar a interferência da jurisdição penal sobre a administrativa nos casos de cancelamento do registro profissional.

Em alguns casos, apesar da independência das esferas administrativa ou cível e penal algumas decisões penais podem ter reflexo na decisão de outras esferas.

A Resolução 1090/17, acertadamente, deixou claro que só é possível o cancelamento do registro profissional por crime infamante após o trânsito em julgado. Neste caso, considerando que a condenação administrativa decorre de reconhecimento da prática de crime, é inegável que a esfera administrativa é subsidiária da esfera penal e só pode atuar após a análise e decisão da jurisdição penal. No entanto, o mesmo não ocorre em relação ao cancelamento do registro por má conduta pública e escândalo, uma vez que não se trata de crime e sim de violação a preceitos de natureza moral e ética que devem ser valorados e analisados pela autoridade administrativa uma vez que a sentença penal não analisará a infringência à moral, honra, dignidade ou boa imagem da profissão.

O artigo 935 do Código Civil dispõe que a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo mais questionar sobre a existência do fato ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões já tiverem sido decididas no juízo criminal, vejamos o dispositivo: “Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”[4]

Vejamos as disposições do Código de Processo Penal sobre a interferência entre as esferas cível e penal:

  “Art. 65.  Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Art. 67.  Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:

I - o despacho de arquivamento do inquérito ou das peças de informação;

II - a decisão que julgar extinta a punibilidade;

III - a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.”[5]

Parizatto no livro Responsabilidade Profissional faz as seguintes considerações sobre a influência da ação penal sobre a ação civil indenizatória:

“Tratando-se de sentença penal absolutória tem-se que se se torna necessário se verificar se a sentença absolveu o réu por falta de prova, por não ter sido provado ser ele o autor do crime ou não ter existido o fato.

No primeiro caso a absolvição por falta de prova pode ensejar a responsabilidade civil em ação indenizatória, eis que tal hipótese não se amolda ao disposto no art.935 do Código Civil. Tem-se assim, que não negada a autoria e materialidade, mas absolvido o réu por insuficiência de prova, a ação indenizatória não sofre consequências (RSTJ 140/462-463), cabendo, contudo, ao autor da ação civil o ônus de provar o fato, a autoria e a culpa do réu, eis que a absolvição no juízo penal acaba gerando certa presunção de inocência que deverá ser elidida.

No segundo caso, não existindo prova de que o réu foi o autor do crime, vindo ele a ser absolvido na área penal, tal decisão uma vez transitada em julgado terá efeitos sobre a ação indenizatória cível, eis que isso não poderá mais ser questionado.

No terceiro caso, não havendo prova da existência do fato, tem-se que tal decisão também terá influência no juízo cível, não podendo mais se discutir isso, desde que a sentença penal transite em julgado neste sentido. O art.66 do Código de Processo Penal prevê: ‘ Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato’. Logo, ao contrário, reconhecendo-se a inexistência do fato, a ação civil não poderá prosperar.” (PARIZZATO 2012)

    Na seara administrativa, a interferência da sentença penal sobre a decisão administrativa encontra-se prevista na Lei 8112 nos artigos 125 e 126, que prevê a possibilidade de responsabilização na esfera cível, penal e administrativa com a ressalva de que a responsabilidade será afastada nos casos de sentença criminal que negue a existência do fato ou sua autoria. Vejamos a previsão dos artigos:

“Art. 125.  As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.  

Art. 126.  A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”[6]

Pois bem, no caso de cancelamento do registro profissional em decorrência de crime infamante, será necessário aguardar o trânsito em julgado para abertura do procedimento administrativo, mas quando o ato configurar má conduta pública ou escândalo na seara administrativa, e simultaneamente, também configurar crime, não há que se aguardar o trânsito em julgado na matéria penal, pois as esferas são independentes. A questão a ser analisada é: apesar de não existir previsão legal expressa no tocante ao cancelamento do registro profissional, a absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria repercute ou não na seara administrativa e no cancelamento do registro profissional.

Osório, 2000, em seu livro Direito Administrativo Sancionador, reconhece que é bastante limitada a interferência, mas existe em alguns casos, devido à necessidade de um mínimo de coerência no interior do sistema jurídico. Vejamos algumas de suas considerações:

“No sistema brasileiro, a subordinação da autoridade administrativa à autoridade judicial, no campo do Direito Administrativo Sancionar, é bastante limitada, mormente em matéria de ilícitos relacionados a especiais relações de sujeições.

(...)

Veja-se que na hipótese de estar provada a inexistência do fato ou existir especial circunstância que exclua o caráter do crime, v.g.,exercício regular de um direito ou estrito cumprimento de dever legal, há repercussão em qualquer esfera extrapenal, judicial ou administrativa, desembocando na improcedência da pretensão acusatória, dada a necessidade de um mínimo de coerência no interior do sistema jurídico.

Se o Juiz penal entende que está provada a inexistência do fato, ou que o réu agiu em estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito, haveria grave antinomia na eventual solução de autoridade administrativa ou judiciária extrapenal que condenasse o réu por improbidade ou infração administrativa. Eis a necessidade de compatibilização das decisões judiciárias e administrativas, reduzindo-se as incertezas jurídicas.

De igual modo, se o Judiciário, na esfera penal, reconhece a negativa de autoria, afirmando, com todas as letras, que o réu não praticou o fato criminal, ou seja, que não há possibilidade alguma de que ele seja o autor do fato, há importantes reflexos no campo extrapenal, dada a eficácia da sentença absolutória. É diferente, por óbvio, a hipótese em que o Juiz penal proclama dúvida em torno à autoria do fato ilícito. Nesse último caso, cabe persistir a ação civil por improbidade administrativa e o procedimento ou processo administrativo apuratório da respectiva infração. Não há reflexos da sentença penal absolutória no terreno extrapenal.” (OSÓRIO 2000, 287 ss)

Por uma razão de unidade e coerência entre os sistemas, há que se reconhecer que a decisão penal pode interferir na seara administrativa, mas isso ocorre em hipóteses específicas e, ainda sim, deve-se ter em mente que, como não há coincidência exata entre má conduta púbica e escândalo e a prática de crime, há sempre a possibilidade de absolvição na seara penal e cometimento de ilícito administrativo residual, pois não necessariamente toda má conduta pública ou escândalo é crime e dessa há que se analisar as circunstancias e a parte dispositiva da sentença para verificar se há possibilidade de aplicação de alguma penalidade administrativa de forma residual.

Está pacificado pela doutrina e jurisprudência que não há necessidade de se aguardar o desfecho do processo criminal para abertura de procedimento administrativo para aplicação de penalidades, vez que a regra é a independência entre as esferas e, inclusive, o prazo prescricional para aplicação das penalidades é diferente na esfera administrativa e na esfera penal.

Vejamos alguns acórdãos proferidos por tribunais superiores, que trazem este entendimento:

“EMENTA:CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO: POLICIAL: DEMISSÃO. ILÍCITO ADMINISTRATIVO e ILÍCITO PENAL. INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA: AUTONOMIA. I. - Servidor policial demitido por se valer do cargo para obter proveito pessoal: recebimento de propina. Improbidade administrativa. O ato de demissão, após procedimento administrativo regular, não depende da conclusão da ação penal instaurada contra o servidor por crime contra a administração pública, tendo em vista a autonomia das instâncias. II. - Precedentes do Supremo Tribunal Federal: MS 21.294- DF, Relator Ministro Sepúlveda Pertence; MS 21.293-DF, Relator Ministro Octavio Gallotti; MMSS 21.545-SP, 21.113-SP e 21.321-DF, Relator Ministro Moreira Alves; MMSS 21.294-DF e 22.477-AL, Relator Ministro Carlos Velloso. III. - Procedimento administrativo regular. Inocorrência de cerceamento de defesa. IV. - Impossibilidade de dilação probatória no mandado de segurança, que pressupõe fatos incontroversos, prova pré- constituída. V. - Mandado de Segurança indeferido.” (MS 23401, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 18/03/2002, DJ 12-04-2002 PP-00055 EMENT VOL-02064-02 PP-00313)

“MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. REGULARIDADE NO PROCEDIMENTO. PRETENSÃO DE SOBRESTAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. INDEPENDÊNCIA ENTRE AS ESFERAS ADMINISTRATIVA E PENAL.

1. A inicial não aponta objetivamente nenhuma irregularidade ou ilegalidade no procedimento disciplinar administrativo, pleiteando somente o seu sobrestamento e a permanência do servidor no cargo até o término de eventual processo criminal, na medida em que os fatos poderiam, em tese, constituir ilícito penal.

2. A independência entre as instâncias penal e administrativa, já de há muito consagrada na doutrina e na jurisprudência, permite à Administração Pública impor sanção disciplinar ao servidor que tenha praticado ilícito administrativo, independentemente de anterior julgamento na esfera criminal.

3. Segurança denegada.” (MS 9768/DF, Terceira Seção, Relator: Min. Paulo Galloti, julgado em 13-12-2004, DJ 21-05-2007, p.538)

José Cretella Júnior, apud Carvalho, 2011 defende a independência das esferas, senão vejamos: “no caso de o ilícito administrativo também constituir infração penal, o servidor será processado nas duas instâncias administrativa e criminal simultânea e/ou independentemente, podendo ser absolvido ou condenado em ambas ou julgado culpado em uma e inocentado em outra.” (CARVALHO 2011, 1063)

Neste sentido, merece destaque a seguinte decisão, proferida pelo Tribunal Regional da Segunda Região:

“Exercicio profissional da medicina. Aplicação da lei n.3268/57, art. 22, letra e e arts. 4 (a e b), 30 e 45 do Código de Ética Médica. Preliminar de intempestividade do recurso rejeitada. Decisão do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, confirmada pelo Conselho Federal de Medicina, declara medico culpado por exceder os limites do exercicio da medicina, infringindo o Código de Ética Médica. Aplicação de injeção de rejuvenescimento provoca morte em paciente e graves lesões em outros. Decisão da justiça criminal nega nexo de causalidade material entre a ação do autor e os fatos mas, entende que o medico excedeu os limites de sua profissão, com fim de lucro. A decisão no juízo criminal não impossibilita a sanção disciplinar. Prática de crime previsto no art. 282 do código penal. Apelação provida. Decisão unanime.” (TRF 2 ª Região, 3ª turma, AC 9102006294 RJ 91.02.00629-4. Relator Desembargador Federal Celso Passos. Data de Julgamento: 22 de Março de 1994. Publicação: DJU - Data::27/10/1994 - Página::61835) Grifos nossos.

No mesmo sentidom o Tribunal Federal de Recursos deixou de reconhecer a repercussão de sentença penal absolutória na seara administrativa:

Se o autor da rescisória foi absolvido no crime, da acusação de contrabando e foi punido, na esfera administrativa, por agressão em serviço, não há como repercutir na administração a decisão criminal. Para que se reflita na esfera disciplinar, é necessário que o fato seja único, fique provado, no crime, sua inexistência e que o acusado não foi o seu autor, na forma do art. 1525 do Código Civil.(RIP nº 03100901, decisão de 07/12/1983, AR nº 368/RJ, 1ªTurma, Ação Rescisória, DJ, 23.02.1984, EJ vol 4815-01)

Sebastião José Lessa, apud Carvalho, 2011, afirma que o servidor pode ser absolvido na esfera penal em razão de o fato não constituir crime e ser punido pelo mesmo conteúdo fático constitutivo de falta disciplinar, uma vez que a responsabilidade disciplinar nasce de ação ou omissão de agente público que fere o interesse público e perturba o funcionamento da Administração. Sebastião Lessa para chegar ao entendimento apresentado, utiliza-se dos ensinamentos de José Cretella Júnior, vejamos:

“Aquilo que não é crime pode ser falta funcional, falta disciplinar, o que tem, como efeito a condenação administrativa. Absolvido penalmente, é condenado administrativamente. Há incomunicabilidade de instâncias, porque a decisão de juiz togado não repercute na esfera administrativa.”[7](CARVALHO 2011, 1064)

    Diante do até aqui exposto é possível concluir que as instâncias são independentes, que não é necessário aguardar a decisão penal para instauração do procedimento administrativo e aplicação de penalidade, e que a interferência da esfera penal sobre a administrativa ocorre quando houver sentença absolutória que negue a existência do fato ou autoria, e, ainda assim, quando não subsistir falta administrativa residual. Entretanto, há algumas outras situações que podem implicar interferência da decisão penal sobre a administrativa.

    Sobre a interferência da esfera penal, abordaremos a seguir as hipóteses cabíveis de absolvição, ressaltando em quais casos pode ocorrer a prevalência da decisão criminal sobre a administrativa.

A decisão penal absolutória pode ocorrer em 7 (sete) hipóteses, arroladas no art. 386 do Código de Processo Penal e listadas a seguir, sendo certo que apenas em alguns casos pode haver a interferência sobre a esfera administrativa:

“Art. 386.  O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

I - estar provada a inexistência do fato;

II - não haver prova da existência do fato;

III - não constituir o fato infração penal;

IV –  estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;   (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;  (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;    (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)

VII – não existir prova suficiente para a condenação.” [8]

Vejamos as considerações de Madeira, esboçadas no artigo: Dos efeitos da sentença penal na esfera administrativa-disciplinar na visão dos tribunais:

“Consoante a doutrina e a jurisprudência majoritárias, repercutem na esfera administrativa as decisões absolutórias fundadas na comprovada inexistência do fato (negativa de materialidade), na comprovada não-participação do réu no delito (negativa de autoria) e na comprovada existência de circunstâncias que excluam o crime (licitude da conduta) (art. 386, I, IV e VI, 2ª parte, do Código de Processo Penal).

Por outro lado, não repercutem automaticamente, no âmbito administrativo, o reconhecimento (pelo Juízo Criminal) das hipóteses dos incisos II, III, V, VI (1ª parte e parte final) e VII do mencionado artigo, quais sejam: não haver prova da existência do fato, não constituir o fato infração penal, não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal, existirem circunstâncias que isentem o réu de pena, fundada dúvida sobre a ilicitude ou culpabilidade da conduta, e não existir prova suficiente para a condenação.” (MADEIRA 2014, 215-216)

Para facilitar a compreensão, utilizaremos a mesma didática adotada por Madeira em seu artigo, agruparemos as circunstâncias que podem levar à absolvição e na oportunidade apresentaremos a jurisprudência sobre cada uma das hipóteses. Assim, podemos dividir as causas da absolvição em: a) Comprovada inocência do agente (por negativa de autoria/materialidade); b) comprovada licitude da conduta (exclusão da antijuridicidade); c) atipicidade penal da conduta; d) dúvida - in dubio pro reo (insuficiência/falta de provas para a condenação penal ou fundada dúvida quanto à ilicitude ou culpabilidade); e) ausência de culpabilidade penal na conduta do agente. (MADEIRA 2014)

A-  Comprovada inocência do agente

Esta situação encontra previsão legal expressa nos Art. 126 da Lei 8112 e Art. 935 do Código Civil. Trata-se de decisão criminal que absolve o réu, negando a existência do fato, ou negando que o administrado seja autor ou partícipe no crime que lhe fora imputado.

Sobre esta hipótese Madeira,2014, faz as seguintes considerações:

“Em regra, as instâncias de punição não se comunicam. Porém, é pacífico o entendimento de que a sentença do juízo criminal produz efeitos favoráveis ao servidor quando restar provado que não ocorreu o fato a ele imputado (art. 386, inciso I, CPP), uma vez que, nessa hipótese, o juízo penal categoricamente afirma que não houve qualquer evento lesivo. O mesmo se dá, ainda, quando ficar demonstrado que o réu não concorreu para a infração penal (art. 386, inciso IV, CPP), valendo ressaltar que esse inciso foi introduzido pela Lei nº 11.690/2008 e, diferente do caso do inciso I, referente à prova da inexistência do fato, nesse caso o que resta cabalmente comprovado é que o crime, embora eventualmente tenha sido perpetrado, não contou com a coautoria ou participação do réu absolvido.

Sendo assim, na hipótese de o juízo negar categoricamente, na sentença, a existência da materialidade do fato imputado ao servidor ou que ele não tenha sido seu autor, essa sentença afasta as responsabilizações civil e administrativa, também em face do que dispõe o art. 935 do Código Civil já citado anteriormente, e tal como preceitua o art. 126 da Lei nº 8.112/90.” (MADEIRA 2014, 216-217)

Sobre estes pontos, a jurisprudência é clara ao prever que a negativa da existência do fato ou negativa de autoria repercutem no âmbito do processo administrativo. Senão vejamos:

“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. A JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E INDEPENDENTE DA CRIMINAL, PODENDO SUBSISTIR A DEMISSAO ORIUNDA DE FALTA GRAVE APURADA EM INQUERITO ADMINISTRATIVO DESDE QUE O JUÍZO CRIMINAL NÃO HAJA NEGADO A EXISTÊNCIA DO FATO, DETERMINANTE DA DEMISSAO. (RE 18510, Relator(a):  Min. ROCHA LAGOA, Segunda Turma, julgado em 22/07/1953, DJ 28-01-1954 PP-01115 EMENT VOL-00162-01 PP-00312 ADJ 09-08-1954 PP-02469)

“DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. 1. Não caracterizada a suspeição da presidente da comissão processante uma vez que não restou provada a ocorrência de nenhuma das hipóteses do art. 20 da Lei 9.784/1999, tampouco atuação parcial da servidora pública. 2. A nomeação de defensor dativo, diante da relutância do interessado e de seu advogado devidamente intimados em apresentar defesa, não caracteriza nenhum vício. 3. Não corre o prazo prescricional enquanto perdurar ordem judicial de sobrestamento do processo administrativo. 4. Ressalvadas as hipóteses de absolvição pelo reconhecimento categórico de inexistência de materialidade ou de negativa de autoria, a decisão penal não interfere automaticamente na esfera administrativa. 5. Ausência de demonstração, no caso concreto, de razões para superação do entendimento da autoridade administrativa, que reconheceu atuação dolosa causadora de prejuízo ao erário por parte do agravante. 6. Agravo a que se nega provimento. (RMS 32584 AgR, Relator(a):  Min. ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 16/10/2017, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-247 DIVULG 26-10-2017 PUBLIC 27-10-2017) grifos nossos

“AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SANÇÃO DISCIPLINAR. ABSOLVIÇÃO NA ESFERA CRIMINAL POR NEGATIVA DE AUTORIA. PREVALÊNCIA. SÚMULA 83 DO STJ. DECISÃO EM CONSONÂNCIA COM JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. Nega-se provimento ao agravo de instrumento quando a decisão recorrida encontra-se no mesmo sentido do entendimento desta Corte Superior. Incidência da Súmula 83 do STJ. É entendimento desta Corte Superior que a exceção à regra da incomunicabilidade das esferas administrativa e penal ocorreria no caso de absolvição, na instância penal, por negativa de fato ou negativa de autoria. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no Ag 670.899/PE, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 20/10/2005, DJ 06/02/2006 p. 381).

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PRESCRIÇÃO. INOVAÇÃO EM SEDE DE REGIMENTAL. IMPOSSIBILIDADE. POLICIAL MILITAR. EXPULSÃO. ABSOLVIÇÃO NA ESFERA PENAL. RECONHECIMENTO DA INEXISTÊNCIA DO DELITO. REPERCUSSÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA. REINTEGRAÇÃO. 1. A absolvição criminal, quando restar provada a inexistência do fato ou a não-autoria imputada ao servidor, repercute no processo administrativo, afastando a sua responsabilidade na esfera administrativa.2. Mostra-se inviável a apreciação, em sede de agravo regimental, de questão nova. Precedentes.3. Agravo regimental desprovido. (AgRg no AgRg no Ag 678.609/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 09/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 392) grifos nossos

Em que pese tais julgados/jurisprudência se referirem a processos administrativos disciplinares em face de servidores, penso que tal situação também se aplica aos processos éticos disciplinares abertos em face dos profissionais engenheiros inscritos nos Creas. Assim, nos casos em que houver identidade de fatos, depois de apreciados os fatos pelo juízo criminal, se sobrevier sentença que reconheça a não ocorrência do fato ou ainda, que o autor não tem qualquer relação com o ocorrido, deve a decisão administrativa de aplicação de penalidade se ater a tal reconhecimento, não sendo possível a aplicação de penalidades.

No entanto, como as instâncias são independentes e não há obrigatoriedade de se aguardar a decisão do juízo criminal, cumpre registrar que caso a decisão criminal ocorra depois de já aplicada a penalidade, deve a autoridade competente, tão logo tenha conhecimento da decisão criminal, rever o ato praticado e promover o cancelamento da penalidade aplicada.

B - Comprovada licitude da conduta (hipóteses de exclusão da antijuridicidade)

Trata-se das excludentes de ilicitude previstas no código penal como legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de um direito.

É uma hipótese de difícil configuração quando se considera o procedimento para cancelamento do registro profissional, sendo mais comum quando se trata de penalidades a servidores públicos em face do estatuto que lhes rege.

Madeira, 2014, faz as seguintes considerações sobre a repercussão da decisão na esfera administrativa quando reconhecida a existência de causa de justificação:

“Ainda que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tenha, em alguns momentos, espelhado a ideia contida na redação do art. 126 da L.8.112/90 no sentido de que somente nas hipóteses excepcionais de comprovada inocência (inexistência material do fato / negativa de sua autoria), é que a sentença penal poderia produzir efeitos automáticos na esfera administrativa, observamos que este posicionamento já foi alargado. Ocorre que, inúmeras vezes, também, a Corte Superior já teve a oportunidade de se pronunciar no sentido de que a decisão penal absolutória repercute no julgamento administrativo quando reconhece taxativamente estar comprovado que o agente agiu sob a guarida de alguma causa de justificação (causa excludente de ilicitude/antijuridicidade). Nas hipóteses apontadas, a sentença penal absolutória, no processo penal instaurado em torno dos mesmos fatos, deve repercutir (prevalecer) na esfera administrativa.” (MADEIRA 2014, 222)

Vejamos algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, neste sentido:

“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO ART. 535, CPC. INEXISTÊNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ABSOLVIÇÃO CRIMINAL. LEGITIMA DEFESA. EFEITOS NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. I - Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC se o e. Tribunal de origem, sem que haja recusa à apreciação da matéria, embora rejeitando os embargos de declaração, considera não existir defeito a ser sanado. II - Os efeitos da absolvição criminal por legítima defesa devem se estender ao âmbito administrativo e civil. Desse modo, tendo sido o autor posteriormente absolvido na esfera criminal em razão do reconhecimento de uma excludente de antijuricidade (legítima defesa real própria), impõe-se, in casu, a anulação do ato que o demitiu do serviço público pelos mesmos fatos. Recurso conhecido em parte e, nesta extensão, provido. (REsp 396.756/RS, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 16/09/2003, DJ 28/10/2003, p. 329)

“ADMINISTRATIVO. POLICIAL MILITAR. LICENCIAMENTO. ATO ADMINISTRATIVO. ABSOLVIÇÃO NA ESFERA PENAL. LEGÍTIMA DEFESA. EFEITOS. PRESCRIÇÃO. DECRETO Nº 20.910/32. TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA CRIMINAL. 1. Absolvido o autor na esfera criminal, o lapso prescricional qüinqüenal, previsto no Decreto nº 20.910/32, tem como termo a quo a data do trânsito em julgado da sentença penal e não o momento do ato administrativo de licenciamento. 2. A decisão penal repercute no julgamento administrativo quando está ocorre sentença penal absolutória relacionada aos incisos I e V do art. 386 do Código de Processo Penal. 3. Tento de vista que o autor foi absolvido na esfera penal por legítima defesa, e o ato de licenciamento foi fundado unicamente na prática de homicídio, não há motivos para manter a punição administrativa, pois a controvérsia está embasada unicamente em comportamento tido como lícito. 4. Recurso ao qual se nega provimento. (REsp 448.132/PE, Rel. Ministro PAULO MEDINA, SEXTA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 19/12/2005, p. 480)

Ante o exposto, caso o autor da má conduta pública ou conduta escandalosa, ensejadoras do cancelamento do registro profissional a tenha praticado sob uma causa excludente de antijuridicidade, assim reconhecida pelo juízo criminal, não deve ocorrer a aplicação da penalidade ou, caso a mesma já tenha ocorrido, deve a penalidade ser revista pela autoridade competente e cancelada.

C - Atipicidade penal da conduta imputada ao profissional

A atipicidade ocorre quando a conduta praticada pelo servidor ou profissional não se enquadrar perfeitamente no tipo penal abstratamente previsto na lei.

Segundo Madeira, 2014, páginas 228-229:

 “ Ainda que determinados fatos não se enquadrem em determinada figura típica penal, consoante determinada dogmática, não significa que dentro de outro sistema não encontrem a necessária adequação com o preceito legal. Assim, a não tipificação do fato como ilícito penal não impedirá a punição administrativa:

‘Administrativo. Servidor Público Federal. Infração administrativa. Demissão. Irregularidade do processo administrativo. Inocorrência. Contrariedade da demissão com as provas. Súmula 7 do STJ. Absolvição criminal. Independência das instâncias administrativa e penal. Infração residual. Ausência de vícios a inquinar de nulidade o respectivo apuratório administrativo. A análise da comprovação da infração administrativa é obstada pela aplicação da Súmula 7 deste Tribunal. Quando a absolvição penal se deve ao fato de não estar tipificada a conduta, não há comunicação com a esfera administrativa a impedir a sanção disciplinar, por se tratar de ilícito residual’ (STJ, Resp. 512.595, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5a T., j. ).(grifo nosso).”       

Neste sentido já se manifestou o STF:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO QUANTO À AUSÊNCIA DE JUNTADA DE DOCUMENTOS. ABSOLVIÇÃO NA ESFERA PENAL COM BASE NO ART. 386, III e VI, DO CPP. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS. NECESSIDADE DE PRÉVIA SINDICÂNCIA ADMINISTRATIVA. IMPOSSIBILIDADE DE INOVAÇÃO NESTA FASE PROCESSUAL. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. As instâncias das esferas civil, penal e administrativa são autônomas e não interferem nos seus respectivos julgados, ressalvadas as hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de autoria. (Precedente: RMS 26.510/ RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJe 26/3/2010) 2. In casu, a absolvição do recorrente ocorreu com base no art. 386, III (“não constituir o fato infração penal”) e VI (“existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e §1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;”) , do Código de Processo Penal, não se enquadrando, portanto, nas hipóteses ressalvadas. 3. O jus novarum é vedado no momento da análise do recurso ordinário, por isso que a prévia sindicância administrativa não foi objeto do mandado de segurança, não restando insindicável nesta via. 4. O agravante não demonstrou a existência de prejuízo efetivo em virtude da ausência de juntada de documentos fornecidos pela Inspetoria da Receita Federal em Porto alegre e pela Administradora Hidroviária Docas Catarinense – ADHOC. 5. Agravo regimental a que se nega provimento. (RMS 26951 AgR, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 03/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-231 DIVULG 17-11-2015 PUBLIC 18-11-2015) grifos nossos

“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PENAL. 1. TRÂNSITO EM JULGADO DO ACÓRDÃO PROFERIDO NO JULGAMENTO DO RECURSO DE APELAÇÃO DA DEFESA. IMPETRAÇÃO DE HABEAS CORPUS NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA APÓS O TRANSCURSO DO PRAZO RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE HABEAS CORPUS COMO SUCEDÂNEO DE REVISÃO CRIMINAL. 2. INDEPENDÊNCIA RELATIVA DAS ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA. 3. INEXISTÊNCIA DE AMEAÇA A DIREITO DE LOCOMOÇÃO. 1. Trânsito em julgado do acórdão objeto da impetração no Superior Tribunal de Justiça. Nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal, o habeas corpus não pode ser utilizado como sucedâneo de revisão criminal. 2. É pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da independência relativa das esferas penal e administrativa, havendo repercussão apenas em se tratando de absolvição no juízo penal por inexistência do fato ou negativa de autoria. Precedentes. 3. Seja o ora Recorrente absolvido por insuficiência de provas ou por atipicidade da conduta, essas duas situações não repercutiriam na punição imposta na via administrativa. 4. Recorrente absolvido por insuficiência de provas. Pretensão de rever a punição imposta administrativamente. Inexistência de ameaça ao direito de locomoção. 5. Recurso ao qual se nega provimento. (RHC 116204, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 16/04/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-081 DIVULG 30-04-2013 PUBLIC 02-05-2013) grifos nossos

A não interferência da sentença penal absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime sobre as demais esferas encontra-se expressamente prevista no art. 67, III do Código de Processo Penal [9] e tal entendimento se aplica ao procedimento administrativo para cancelamento do registro profissional.

D- Falta ou insuficiência de provas para a condenação penal (absolvição pelo princípio do “In Dubio Pro Reo”)

Trata-se das hipóteses previstas nos incisos II, V e VII do Artigo 386 do Código de Processo Penal, quais sejam: II - não haver prova da existência do fato; V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;   VII – não existir prova suficiente para a condenação.

Considerando a independência das instâncias é pacífico na doutrina e jurisprudência que a absolvição por falta de provas não vincula as esferas, razão pela qual a absolvição fundamentada em qualquer dos incisos apontados acima não impede a aplicação de penalidade no âmbito administrativo. Neste sentido afirma DI PIETRO : “as provas que não são suficientes para demonstrar a prática de um crime podem ser suficientes para comprovar um ilícito administrativo.” (DI PIETRO 2007, 571-572)

No mesmo sentido, Madeira assim se posiciona:

“Se a absolvição criminal se fundar em insuficiência do conjunto probatório para o fim de ensejar uma condenação pelo crime, tal circunstância não inibirá a aplicação da sanção administrativa, pois também predomina em nossos tribunais o entendimento de que a decisão administrativa disciplinar não resta afetada por sentença penal de absolvição por insuficiência de provas.

Quanto a isto, realmente não se opõe a jurisprudência dominante:

‘ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. ABSOLVIÇÃO. CRIMINAL POR FALTA DE PROVA. CONTINUAÇÃO DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. DEMISSÃO. LEGALIDADE.   1. A absolvição baseada no art. 386,VI do CPP (por insuficiência probatória) independe da existência do fato ou da sua autoria, não vinculando, destarte, a via administrativa.   2. Sugerida a penalidade pelo Conselho Superior de Polícia, após regular procedimento administrativo, válido é o ato de demissão. 3. Recurso não provido.’(STJ, Rel. Min. Edson Vidigal, ROMS nº 8229/RS, 5ª T., DJ de 19/10/98, p.116.).

‘ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. DEMISSÃO. AÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO POR FALTA DE PROVAS. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO À REINTEGRAÇÃO. 1. A absolvição fundada no art. 386,VI, do Código de Processo Penal (insuficiência de provas) não vincula a esfera administrativa, sendo inviável a sua utilização com Dos efeitos da sentença penal na esfera administrativa - disciplinar na visão dos tribunais vistas à reintegração do servidor. 2. Recurso improvido.’ (STJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, ROMS nº 5241/SP, 6ª T., DJ de 29/5/2000, p. 182.).

‘ILÍCITO PENAL E ILÍCITO ADMINISTRATIVO. ABSOLVIÇÃO POR INSUFICIÊNCIA DE PROVAS PARA CONDENAÇÃO NO JUÍZO CRIMINAL, NÃO AFASTA A APLICAÇÃO DA SANÇÃO ADMINISTRATIVA, DECORRENTE DE PROCESSO REGULAR. INTELIGÊNCIA DO ART.1525 DO CÓDIGO CIVIL E DO ART. 386, VI, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. INOCORRÊNCIA DE ABUSO DE PODER. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.’ (STF- RE 67837, Relator(a): Min. DJACI FALCAO, PRIMEIRA 236 TURMA,  PP-00457 EMENT VOL-00789-01 PP-00467).” (MADEIRA 2014, 235-236)

Assim, a existência de sentença penal absolutória por falta de provas não obsta o cancelamento do registro profissional por má conduta ou escândalo.

E- Ausência de culpabilidade penal na conduta do agente

Trata-se das causas excludentes de culpabilidade que importam isenção de pena. Tal situação encontra-se prevista no inciso VI do artigo 386 do CPP, que prevê a absolvição no seguinte caso: “VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1o do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;” [10]

Vejamos as considerações de Madeira, 2014, sobre este ponto:

“Culpabilidade é o liame subjetivo entre o autor e o resultado; é o pressuposto da imposição da pena. Estamos falando da culpabilidade como fundamento da pena, refere -se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal/disciplinar. Para isso, exige-se a presença de uma série de requisitos que constituem os elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade:

1- capacidade de culpabilidade (imputabilidade) - É a capacidade mental de compreender o ato que esta praticando;

2- consciência da ilicitude- É a compreensão de que o ato praticado é ilícito; e

 3- exigibilidade da conduta conforme o direito- É a possibilidade de se exigir que o agente não tivesse cometido o fato típico, tivesse de agir de outra forma.

 Se faltar qualquer um destes elementos não há culpabilidade. A ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a aplicação de uma sanção-pena. Logo, o autor deve ser absolvido da imputação.

(...)

Contudo, não está bem fixado ainda, na doutrina e na jurisprudência, o quanto é que o reconhecimento da circunstância “exculpante” na esfera penal repercute na instância administrativa, sendo certo, porém, que a responsabilidade administrativa-disciplinar do servidor pode ser elidida com base na existência de uma circunstância exculpante comprovada e reconhecida no decorrer do PAD.

Considerando-se que o princípio da culpabilidade tem natureza essencialmente constitucional (é um princípio constitucional genérico que limita o poder punitivo do Estado) e, por isso mesmo, não deve ficar adstrito, na produção de seus efeitos e reflexos, ao campo penal, é inegável que existirá sempre algum grau de repercussão da decisão do juízo criminal que absolver com base na exclusão da culpabilidade. Mas, no atual estágio de evolução da nossa jurisprudência, mister examinar caso a caso.

Por outro lado, com relação à responsabilidade civil, já está bem estabelecido que a absolvição em virtude do reconhecimento de uma excludente de culpabilidade (v. g . a coação moral irresistível ou a legítima defesa putativa) não tem o condão de afastar a responsabilidade civil do agente, pois se diversificam sensivelmente a culpa penal e a culpa civil, sendo o juízo criminal mais exigente que o cível em matéria de aferição da culpa para a condenação. Assim, também não se pode excluir a responsabilidade civil do servidor, ou mesmo do Estado, sob o fundamento de que a conduta danosa fora “exculpável.

(...)

Como dito, entende-se que no caso de absolvição criminal com base nas excludentes de culpabilidade não há repercussão automática na esfera administrativa, o que não significa dizer que isto nunca possa acontecer . Por exemplo: com relação à hipótese de absolvição com base no art. 26 do CP (inimputabilidade devido à doença mental), a sentença, por construção pretoriana, certamente repercutirá na esfera administrativa (Cf. TFR AC 24.464; Dasp, Formulação 117) quando houver nos autos provas cabais (por laudo médico pericial) e não contestadas de que o agente era inimputável (mentalmente insano) no momento da conduta.” (MADEIRA 2014, 248-250)

As causas exculpantes mais comuns que podem interferir no procedimento administrativo de acordo com Madeira, 2014, são: a) descriminantes putativas (art. 20,§ 1º, 1ª parte CP); b) erro  de  proibição  (art.  21,  caput  CP); c) coação  moral  irresistível  (art.  22,  1ª  parte  CP); d) obediência hierárquica  (art.  22,  2ª  parte  CP); e) inimputabilidade  por  doença  mental  (art.  26,  caput  CP); f ) inimputabilidade por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28, § 1º, CP).

No entanto, analisando as hipóteses ensejadoras do cancelamento do registro profissional, verifica-se que é pouco provável a interferência das causas excludentes da culpabilidade, mas pode ocorrer sobretudo quando se considerar a inimputabilidade por doença mental ou a obediência hierárquica, o que não impede que diante do caso concreto chegue-se à conclusão de que qualquer uma destas causas podem interferir na esfera administrativa.

Como a regra é a não interferência e as instâncias são independentes, é possível a aplicação da penalidade administrativa de cancelamento independente da decisão na esfera penal e sobrevindo sentença absolutória com base nas causas excludentes de culpabilidade, deve ser analisado diante do caso concreto se deve ou não haver repercussão da decisão penal sobre a esfera administrativa. Caso se conclua pela interferência e vinculação, deve a decisão administrativa ser revista e cancelada a aplicação da penalidade.


6. Do posicionamento do Judiciário diante das aplicações de penalidades administrativas

Neste item, abordaremos a interpretação do poder judiciário ante a aplicação de penalidades pela Administração Pública, destacando alguns casos em que a análise foi em relação à aplicação de penalidades por conselhos de fiscalização profissional.

A tendência jurisprudencial atual é não entrar no mérito da aplicação da sanção pela Administração, e apenas analisar a regularidade do procedimento, sob a ótica do devido processo legal, ampla defesa, contraditório e legalidade, adentrando, em alguns casos, na análise da razoabilidade e proporcionalidade.

Sobre este ponto afirma Fernanda Marinela :

“No que tange ao controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, este é possível em qualquer tipo de ato, porém no tocante à sua legalidade. Vale lembrar que tal análise deve ser feita em sentido amplo, abrangendo o exame das regras legais e normas constitucionais, incluindo todos os seus princípios. De outro lado, não se admite a análise da conveniência e oportunidade dos atos administrativos, ou seja, não se pode reapreciar o mérito dos atos discricionários. Nesse diapasão, encontram-se inúmeras orientações doutrinárias e jurisprudenciais.

No atual cenário do ordenamento jurídico, reconhece-se a possibilidade de análise da conveniência e oportunidade dos atos administrativos que não obedeçam à lei, bem como daqueles que ofendam princípios constitucionais, tais como: a moralidade, a eficiência, a razoabilidade, a proporcionalidade, além de outros. Dessa forma o judiciário, poderá por vias tortas atingir a conveniência e oportunidade do ato administrativo discricionário, mas tão somente quando essas forem incompatíveis com o ordenamento vigente, portanto, quando for ilegal.” (MARINELA 2016)

Sobre a análise do judiciário e a interferência entre as esferas, destaca-se a seguir recente decisão do Superior Tribunal de Justiça:

“ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORES PÚBLICOS MILITARES EXCLUÍDOS, A BEM DA DISCIPLINA, DOS QUADROS DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE PERNAMBUCO. CONTROLE DO MÉRITO ADMINISTRATIVO. PODER JUDICIÁRIO. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS CIVIL, PENAL E ADMINISTRATIVA. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. REPERCUSSÃO DA SENTENÇA CRIMINAL NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO. NEGATIVA DE EXISTÊNCIA DO FATO DELITUOSO OU DE SUA AUTORIA. INOCORRÊNCIA. PRECEDENTES. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.

I. Agravo interno aviado contra decisão publicada em 27/03/2017, que, por sua vez, julgara recurso interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. Na linha da jurisprudência desta Corte, "o controle do Poder Judiciário no tocante aos processos administrativos disciplinares restringe-se ao exame do efetivo respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sendo vedado adentrar no mérito administrativo. O controle de legalidade exercido pelo Poder Judiciário sobre os atos administrativos diz respeito ao seu amplo aspecto de obediência aos postulados formais e materiais presentes na Carta Magna, sem, contudo, adentrar o mérito administrativo. Para tanto, a parte dita prejudicada deve demonstrar, de forma concreta, a mencionada ofensa aos referidos princípios" (STJ, RMS 47.595/RJ, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, DJe de 05/10/2015). III.O STJ entende que as esferas civil, penal e administrativa são independentes e autônomas e que a sentença criminal apenas repercute, na esfera administrativa, se negar a existência do fato ou a própria autoria do delito. Nesse sentido: STJ, AgRg no RMS 43.647/RN, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 31/03/2015; AgRg no RMS 27.653/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe de 20/08/2015; MS 20.556/DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, DJe de 01/12/2016; AgRg no RMS 36.958/RO, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 27/02/2014; RMS 45.897/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 17/06/2016; AgRg no RMS 47.794/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 03/02/2016. IV. Ademais, "a jurisprudência da Suprema Corte é pacífica no sentido da independência entre as instâncias cível, penal e administrativa, não havendo que se falar em violação dos princípios da presunção de inocência e do devido processo legal pela aplicação de sanção administrativa por descumprimento de dever funcional fixada em processo disciplinar legitimamente instaurado antes de finalizado o processo cível ou penal em que apurados os mesmo fatos" (STF, RMS 28.919 AgR, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI, PRIMEIRA TURMA, DJe de 12/02/2015). V. No caso, a extinção da punibilidade dos recorrentes pela prescrição intercorrente, na primeira denúncia, não indica a negativa de existência do fato apontado como delituoso, nem tampouco de sua autoria, do mesmo modo que a absolvição, na segunda denúncia, por ausência de prova, para um dos réus, ou a desclassificação do crime, em relação ao outro, e, ato contínuo, a correspondente suspensão da execução da pena, não significam a ausência de materialidade e da autoria criminosas, de modo a que a sentença criminal deva, necessariamente, influir na esfera administrativa. VI. Agravo interno improvido. (AgInt no RMS 32.730/PE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe 30/06/2017) grifos nossos

Vejamos alguns julgados referentes à aplicação de penalidades por conselhos de fiscalização profissional no âmbito de processos ético-disciplinares:

“1. A apelação da parte autora versa exclusivamente sobre o mérito da sanção disciplinar, ou seja, não há a arguição de nenhum vício no processo ético-disciplinar.

2. Ocorre que, o mérito da sanção disciplinar não está sujeito à análise pelo Poder Judiciário. Com efeito, "é defeso ao Poder Judiciário incursão no mérito administrativo, sendo sua atuação circunscrita ao campo da regularidade do procedimento e sua legalidade, o que inviabiliza que se analise e valore provas constantes do processo administrativo disciplinar ao qual respondeu o apelante, consoante firme jurisprudência deste Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça. A valoração das condutas ético-profissionais imputadas ao advogado, através dos fatos e provas que chegaram ao conhecimento da autoridade competente e foram por ela ponderados, substanciando o juízo de censura proferido, é o juízo inerente ao mérito do próprio PAD, o qual cabe tão somente ao conselho de fiscalização profissional" (TRF2. AC nº 477107, rel. Desembargador Federal Alexandre Libonati de Abreu, E-DJF2R de 25/11/2014).

3. No que tange aos honorários de sucumbência, tenho firmado entendimento no sentido de que tal verba tem característica complementar aos honorários contratuais, haja vista sua natureza remuneratória.

4. Ademais, entendo que a responsabilidade do advogado não tem relação direta com o valor atribuído à causa, vez que o denodo na prestação dos serviços há de ser o mesmo para quaisquer casos.

5. No entanto, a fixação dos honorários advocatícios sucumbenciais levada a efeito pelo Juízo sentenciante não guarda observância aos princípios da razoabilidade e da equidade, razão pela qual devem ser majorados.

6. Apelação da parte autora não provida. Apelação do Conselho Federal da OAB provida.”

(TRF1. AC 0044222-53.2012.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HERCULES FAJOSES, SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.2281 de 29/10/2015). Grifos nossos

“ADMINISTRATIVO. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. PROCESSO ÉTICO-DISCIPLINAR. INFRINGÊNCIA AO ART. 44 DO CÓDIGO DE ÉTICA DOS ADVOGADOS. CONFIGURAÇÃO. MÉRITO DA PUNIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE INGERÊNCIA JUDICIAL. DESCRIÇÃO SUFICIENTE DOS FATOS. REFORMATIO IN PEJUS. INOCORRÊNCIA.

1. Os fatos que deram origem ao processo ético-disciplinar consistem no endereçamento de correspondência à Juíza Auditora da Justiça Militar. Ora, ainda que se entenda que os termos da missiva não sejam suficientes para a configuração do crime de ameaça, fato é que o apelante foi demasiadamente infeliz na forma como se expressou, faltando com o decoro e a urbanidade que devem existir entre os profissionais que atuam na área jurídica. Sem dúvida houve infringência ao art. 44 do Código de Ética e Disciplina da OAB.

2. De todo modo, "é defeso ao Poder Judiciário incursão no mérito administrativo, sendo sua atuação circunscrita ao campo da regularidade do procedimento e sua legalidade, o que inviabiliza que se analise e valore provas constantes do processo administrativo disciplinar ao qual respondeu o apelante, consoante firme jurisprudência deste Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça. A valoração das condutas ético-profissionais imputadas ao advogado, através dos fatos e provas que chegaram ao conhecimento da autoridade competente e foram por ela ponderados, substanciando o juízo de censura proferido, é o juízo inerente ao mérito do próprio PAD, o qual cabe tão somente ao conselho de fiscalização profissional" (TRF/2ª Região, AC nº 477107, rel. Desembargador Federal Alexandre Libonati de Abreu, E-DJF2R de 25/11/2014).

3. Saliente-se ainda que, conforme já decidiu esta egrégia Corte, "se faz indispensável no processo administrativo é a descrição dos fatos, possibilitando ampla defesa do agente, pois é dos fatos que se defende o indiciado, e não dos artigos da Lei" (AC 2003.34.00.041378-0 / DF, rel. JUIZ FEDERAL MARK YSHIDA BRANDÃO, 09/03/2012 e-DJF1 P. 677).

4. Por fim, não há que se falar em reformatio in pejus na hipótese, uma vez que consta nas informações que "o Presidente do Conselho Seccional da OAB/RJ, com base no art. 75, da Lei nº 8.906/94 e no artigo 201, do Regimento Interno da referida Seccional, interpôs Recurso para este Conselho Federal da OAB", razão pela qual houve a reforma da decisão proferida pela Seccional da OAB no Rio de Janeiro/RJ.

5. Apelação não provida. Sentença mantida.

(TRF1 AC 0055741-93.2010.4.01.3400 / DF, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL REYNALDO FONSECA, Rel.Conv. JUIZ FEDERAL RAFAEL PAULO SOARES PINTO (CONV.), SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.3917 de 12/06/2015)

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA DA OAB/MG. IMPOSIÇÃO DE PENALIDADE DE SUSPENSÃO A ADVOGADO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO, TENDO EM VISTA IRREGULARIDADE NA INTIMAÇÃO PARA PRÁTICA DE ATOS. VÍCIOS NÃO COMPROVADOS. APELAÇÃO DESPROVIDA.

1. Firme é a jurisprudência nacional no sentido de que o controle jurisdicional do processo administrativo disciplinar limita-se a verificar a existência de irregularidades no procedimento realizado, a teor dos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, sem adentrar-se no mérito administrativo.

2. Na hipótese vertente, o apelante alega vícios nos processos administrativos nº 2001/58.808 e nº 1.894/2000, instaurados pelo Conselho de Ética e Disciplina da OAB/MG, razão pela qual pretende "seja ordenado o prosseguimento dos feitos para garantir ao Requerente o direito de se defender naqueles autos, a partir do momento em que ausente está o direito ao contraditório e ampla defesa".

3. No que tange ao processo nº 2001/58.808, o autor não se desincumbiu de provar sua existência. A ré, em sua contestação, alega inexistir tal processo. Nesse contexto, a ausência, nos autos, do inteiro teor do citado processo administrativo, impossibilita ao Juízo a análise do vício de intimação suscitado. Ressalte-se, no ponto, que, instado pelo Magistrado a quo a prestar esclarecimentos acerca do referido procedimento, o autor não cuidou de trazer ao feito cópia integral do mesmo, reportando-se, tão-somente, aos documentos acostados, que não fazem referência a qualquer numeração de processo. Ou seja, não se sabe se, efetivamente, a citada documentação refere-se à hipótese relatada pela parte autora no curso da presente demanda.

4. Com efeito, segundo o Código Processual Civil pátrio, o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito (art. 333, I). Nesse sentido, "o não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte. Se não formulou o requerimento de produção de prova pericial, que redundaria ou daria veracidade às suas alegações, precluiu o seu direito." (Nelson Nery Júnior e Rosa Nery, Código de Processo Civil Comentado, 9ª Edição, 2006, Editora Revista dos Tribunais)

5. Assim, não tendo a parte autora se desincumbido de comprovar a existência do "processo n. 2001/58808", por meio da juntada aos autos de documentos idôneos, impossível o reconhecimento de qualquer irregularidade relativa à suposta falta de intimação do suplicante, capaz de conduzir à declaração de nulidade de eventuais decisões nele proferidas, ou do próprio processo administrativo.

6. Quanto ao processo nº 1.894/2000, não há ofensa aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, uma vez que, no curso do referido Processo Ético Disciplinar, o representado foi regularmente intimado para prática de atos processuais na via administrativa, não havendo que se falar em cerceamento de defesa.

7. De fato, conforme documentos acostados ao feito, o representado, ora apelante, foi intimado para oferecimento de defesa prévia e para interpor recurso. Evidente, portanto, que não houve violação ao devido processo legal, porquanto ao investigado foi assegurada, na via administrativa, ampla defesa, tendo sido devidamente observado o contraditório, culminando com a imposição, pelo Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/MG, da pena de suspensão por sessenta dias.

8. Precedentes deste Tribunal ( AC 2000.33.00.016756-3-BA, Rel. Des. Federal Selene Maria de Almeida, DJ de 31/05/2007) e do TRF/2ª. Região ( AC 397264, Rel. Des. Federal Rogério Carvalho, DJ de 11/02/2008).

9. Apelação desprovida. Sentença mantida.

(TRF1. AC 0041935-28.2005.4.01.3800 / MG, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL REYNALDO FONSECA, SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.256 de 13/08/2010) grifos nossos

ADMINISTRATIVO - OAB/GO - PROCESSO ÉTICO DISCIPLINAR - PENA DE SUSPENSÃO DE EXERCÍCIO PROFISSIONAL - ATO ADMINISRATIVO - PRESUNÇÃO DE LEGALIDADE NÃO ILIDIDA. 

1. O atraso injustificado na entrega de valores ao cliente, realizado somente após a instauração de Processo Ético-Disciplinar pela OAB/GO, constitui infringência ao art. 34, XXI, do Estatuto da Advocacia e da OAB, que capitula como infração "recusar-se, injustificadamente, a prestar contas ao cliente de quantias recebidas dele ou de terceiros por conta dele". 

2. A simples alegação de ausência de tipificação plena do fato, de não ter sua participação direta no fato imputado e, ainda, de ter ocorrido o ressarcimento dos valores "antes do final e ou do trânsito em julgado da decisão" não são suficientes a ilidir a presunção de legalidade da decisão exarada no processo disciplinar, só afastável por fatos ou alegações materialmente comprovadas e convincentemente deduzidas, o que não é o caso. 

3. Apelação do autor não provida. 

4. Peças liberadas pelo Relator, em Brasília, 25 de novembro de 2013., para publicação do acórdão.

(AC 0020806-28.2004.4.01.3500 / GO, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO AMARAL, SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.1528 de 06/12/2013) grifos nossos

 

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. MÉRITO. NÃO INCURSÃO PELO PODER JUDICIÁRIO. PROCEDIMENTO, REGULARIDADE, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIOS GARANTIDOS. ILEGALIDADES. INEXISTÊNCIA. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE DA DECISÃO. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DOS ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA CONFORME ART. 12 DA LEI 1060/50. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.

1. É defeso ao Poder Judiciário incursão no mérito administrativo, sendo sua atuação circunscrita ao campo da regularidade do procedimento e sua legalidade, o que inviabiliza que se analise e valore provas constantes do processo administrativo disciplinar ao qual respondeu o apelante, consoante firme jurisprudência deste Tribunal e do Superior Tribunal de Justiça.

2. A valoração das condutas ético-profissionais imputadas ao advogado, através dos fatos e provas que chegaram ao conhecimento da autoridade competente e foram por ela ponderados, substanciando o juízo de censura proferido, é o juízo inerente ao mérito do próprio PAD, o qual cabe tão somente ao conselho de fiscalização profissional.

3. Deve-se, sim, à espécie, apreciar a regularidade de todo processado, quanto à adoção das providências necessárias à garantia da ampla defesa e contraditório, consoante art. 5.º, LV, da CR/88. Assim, verifico ter sido cumprido o devido processo legal. Foi oportunizada e apresentada a defesa prévia, bem como as razões finais. Além disso, foi o patrono interessado cientificado da data de seu julgamento, como comprovam os documentos dos autos, tendo sido, inclusive, o aviso de recebimento assinado pelo próprio. A decisão da OAB foi publicada, dela não se insurgindo o apelante em sede administrativa.

4. Inocorreu a prescrição administrativa intercorrente prevista no Estatuto da OAB (art. 43, § 1.º). Há, no caso em tela, inúmeros despachos após a data de protocolo da representação, o que indica que o processo administrativo não ficou parado por tempo superior ao prazo prescricional.

5. O apelante é beneficiário da gratuidade de justiça, pelo que, na forma art. 12 da Lei 1060/50, a executoriedade dos ônus da sucumbência impostos em sentença fica suspensa até que se comprove a cessação do estado de miserabilidade e desde que tal ocorra dentro do prazo de cinco anos. 6. Apelação parcialmente provida".

(TRF2. AC nº 477107, rel. Desembargador Federal Alexandre Libonati de Abreu, E-DJF2R de 25/11/2014). Grifos nossos.

Pela jurisprudência colacionada é possível verificar que o Judiciário tende a não adentrar no mérito administrativo e na valoração das condutas ético-profissionais imputadas ao profissional através dos fatos e provas que chegaram ao conhecimento da autoridade competente e foram por ela ponderados, reconhecendo que o juízo de censura proferido, é o juízo inerente ao mérito do próprio processo administrativo, o qual cabe tão somente ao conselho de fiscalização profissional.

Assim, nos casos de cancelamento do registro profissional dos engenheiros, a análise do Judiciário tende a seguir a mesma tendência, demonstrando a importância da regularidade processual na condução do processo administrativo e da necessidade de fundamentação robusta na análise dos fatos para a aplicação da penalidade de cancelamento, considerando a utilização de conceitos indeterminados que deixam margem de interpretação à autoridade competente e deferem certa discricionariedade para que a autoridade administrativa proceda ao enquadramento da conduta, mas o enquadramento deve ser fundamentado e atentar para a razoabilidade e proporcionalidade, sob pena de anulação da penalidade aplicada pelo Poder Judiciário.


7.    Conclusão

A sociedade, em geral, espera maior eficiência dos Creas na apreciação da conduta dos profissionais engenheiros que possam ter infringido o Código de Ética Profissional e a Lei 5194/66, com a aplicação de penalidades aos profissionais faltosos como forma de proteger a sociedade e cumprir o papel institucional dos conselhos de fiscalização profissional, sem corporativismo.

O relatório da Controladoria Geral da União apontou a baixa efetividade na aplicação de penalidades aos profissionais inscritos e, como resposta, o Conselho Federal regulamentou o art. 75 da lei 5194/99, através da edição da Resolução 1090. Tal normativo visa a dar mais segurança jurídica e facilitar a aplicação da penalidade de cancelamento do registro profissional pelos conselhos regionais.

O art. 75 da Lei 5194/66 e a Resolução 1090/2017 utilizam-se de conceitos jurídicos indeterminados que implicam a interpretação e enquadramento da conduta pela autoridade administrativa competente que o devem fazer de forma fundamentada e atentando para proporcionalidade e razoabilidade.

A utilização de tipos abertos com conceitos indeterminados no direito administrativo sancionador é uma característica do regime de direito administrativo que se diferencia do regime de direito penal, (o qual exige uma tipicidade rigorosa para configuração do ilícito penal). É, portanto, uma técnica legislativa possível e empregada no Brasil que confere maior elasticidade e adequação social no âmbito do direito administrativo. Não há, a priori, inconstitucionalidade ou impossibilidade de aplicação do cancelamento do registro profissional em razão da existência de conceitos jurídicos indeterminados nas normas que preveem sua aplicação.

No tocante à interferência da decisão penal sobre a esfera administrativa, pode-se concluir que a mesma só ocorre nos seguintes casos:

  • Quando o juízo penal nega a existência do fato;
  • Quando a decisão penal nega a autoria e ou a participação do profissional, tratando-se de fato único e não subsistindo ilícito administrativo residual;
  • Nos casos em que a decisão penal reconhece excludente de antijuridicidade como legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou outras excludentes;
  • Em alguns casos, quando a decisão penal reconhece excludentes de culpabilidade e isenta de pena como por exemplo na inimputabilidade por doença mental ou embriaguez completa, casos em que a análise sobre a interferência ou não deve ser feita diante do caso concreto.

Nos casos de absolvição por insuficiência de provas; nos casos em que restar configurada atipicidade de conduta, ou ainda na maioria dos casos de isenção de pena em decorrência de excludentes de culpabilidade, não há vinculação entre a decisão proferida pelo juízo criminal e a decisão da autoridade administrativa que aplica sanção no âmbito do processo administrativo.

São, desta forma, poucas as hipóteses em que uma decisão criminal pode interferir na aplicação da penalidade de cancelamento do registro e em razão da independência das esferas, não há necessidade de se aguardar o trânsito em julgado para abertura do procedimento administrativo e aplicação da penalidade. A eventual decisão criminal posterior que vincule a administração deve ocasionar a revisão do ato administrativo e o cancelamento da penalidade aplicada.

Finalmente, cabe observar que, quando penalidades administrativas são questionadas e levadas à apreciação do Judiciário, este normalmente analisa a regularidade do procedimento administrativo e a legalidade, não adentrando no juízo de censura proferido, que seria inerente ao mérito do processo administrativo disciplinar e de competência dos conselhos de fiscalização profissional.


8.     Referências Bibliográficas

CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Processo Administrativo Disciplinar e de Sindicância à luz da jurisprudência dos Tribunais e da casuístiva da Administraçao Pública. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

Controladoria Geral da União. Relatório nº: 201700097. 2017. https://auditoria.cgu.gov.br/download/9445.pdf.

DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2007.

FARIA, Claude Pasteur de Andrade. Comentários à Lei 5194/66 - Regula o exercício das profissões de Engenheiro e Engenheiro Agrônomo. Florianópolis: Insular, 2016.

JESUS, Damásio E. “Normas penais em branco, tipos abertos e elementos normativos.” Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,, ano 6, n. 51, 1 out. 2001.

MADEIRA, José Maria Pinheiro. “Dos efeitos da sentença penal na esfera administrativa - disciplinar na visão dos tribunais.” Revista Interdisciplinar de Direito – Faculdade de Direito de Valença (Editar) 11, nº 1 (2014).

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2016.

OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

PARIZZATO, João Roberto. Responsabilidade Profissional. São Paulo: Edipa, 2012. 


Notas

[2] STF, RE 154.134-2/SP, Min. Sydnei Sanches, DJ 20/10/99; STJ, MS 1.119/DF, DJ 01/06/92.

[3] Trecho extraído da Resolução 1090/2017 do CONFEA. Publicada no D.O.U, de 5 de maio de 2017 – Seção 1, pág. 209 e Retificada no DOU, de 23 de maio de 2017 – Seção 1, pág 175

[4] Art. 935 da Lei 10406 de 10 de janeiro de 2002 – lei que instituiu o Código Civil publicada em 11/01/2002.

[5] Artigos extraídos do Decreto-Lei 3869 – que instituiu o Código de Processo Penal e foi publicado no DOU de 13.10.1941 e retificado em 24.10.1941

[6] Artigos extraídos da Lei 8112 publicada no DOU de 19/04/91

[7] LESSA, Sebastião José. Temas Práticos de direito Administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2005. p. 26-27

[8] Artigos extraídos do Decreto-Lei 3869 – que instituiu o Código de Processo Penal e foi publicado no DOU de 13.10.1941 e retificado em 24.10.1941

[9] Art. 67.CPP  Não impedirão igualmente a propositura da ação civil:

III - a sentença absolutória que decidir que o fato imputado não constitui crime.

[10]Artigos extraídos do Decreto-Lei 3869 – que instituiu o Código de Processo Penal e foi publicado no DOU de 13.10.1941 e retificado em 24.10.1941


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Tendo em vista o momento moralizador que o país está passando e o envolvimento de vários engenheiros em escândalos relacionados com a operação lava-jato, mostra-se atual e relevante a análise do cancelamento do registro profissional pelos CREAs abordando a interface com a seara penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUEDES, Fernanda. Cancelamento do registro profissional à luz da Lei n. 5.194/66: sanção de âmbito administrativo que se diferencia do regime penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5662, 1 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/63117. Acesso em: 27 abr. 2024.