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Assédio moral no serviço público

Assédio moral no serviço público

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Fruto de observação empírica realizada ao longo de trinta anos no serviço público, este sintético artigo aborda a ocorrência do assédio moral e a consequente improbidade administrativa decorrente dessa prática.

Sumário: 1 Introdução; 2 Dignidade da Pessoa Humana; 3 Dano moral; 3.1 Assédio moral - conceito; 3.2 Condutas que caracterizam assédio moral; 3.3 Assédio moral no serviço público; 3.4 Assédio moral e improbidade administrativa; 4 A posição dos tribunais. 5 Conclusão. Referências.

Resumo: Fruto de observação empírica realizada ao longo de trinta anos no serviço público, este sintético artigo aborda a ocorrência do assédio moral e a consequente improbidade administrativa decorrente dessa prática. O marco inicial é a dignidade da pessoa humana, passando pelo dano imaterial resultante da sua ofensa, que muitas vezes pode caracterizar a ocorrência do assédio moral.

Palavras-chave: Assédio moral. Tipos de assédio. Dignidade da pessoa humana. Improbidade administrativa.


1 INTRODUÇÃO

O assédio moral é uma prática extremamente comum no ambiente do trabalho, tanto na iniciativa privada quanto na pública. Há uma falsa impressão de que as garantias de que o servidor é dotado têm o poder de evitar ou amenizar esse tipo de acontecimento. Consulta junto aos tribunais demonstram que também no serviço público sua ocorrência se constata em número expressivo.

Corrobora essa afirmativa a louvável iniciativa de alguns Estados em aprovar leis com o propósito de preveni-lo. É o caso da Lei 12.250/06 do Estado de São Paulo, e da Lei 117/11 do Estado de Minas Gerais. Malgrado tais iniciativas, o medo da exposição, de retaliação, alinhado à dificuldade probatória subdmensionam as ocorrências. Por outro lado, a ausência de uma lei nacional que trate do tema é outra dificultade a ser superada.

Este artigo trata da definição do assédio moral, suas modalidades e consequências jurídicas por sua prática no serviço público. A abordagem tem início na visão do trabalho como um direito e potencializador da dignidade da pessoa humana, em face da Constituição Brasileira e do ordenamento jurídico internacional, para comprovar que a prática de assédio moral no serviço público pode constituir improbidade administrativa.


2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana, a despeito de sua inegável importância e presença em todos os momentos da vida, é um instituto cuja definição se torna complexa por parte dos doutrinadores. Sabe-se que se caracteriza por um conjunto de valores inerentes à própria pessoa, independente de condição social, cor, sexo, raça ou credo. Pode se afirmar, sem dúvida, que é a razão de existência dos demais direitos. Consoante o que dispõe as Declarações Universais da Pessoa Humana, em seu primeiro artigo, ”todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. O constituinte brasileiro conferiu tanta importância ao instituto que o elegeu como um dos fundamentos da República Brasileira, art. 1º, inciso III CF.

Para Kildare Gonçalves Carvalho (2008), a dignidade da pessoa humana significa ser ela, diferentemente das coisas, um ser que deve ser tratado e considerado como um fim em si mesmo, e não para a obtenção de algum resultado.

Do mesmo modo, o constituinte brasileiro elegeu também o trabalho como fundamento da República Brasileira, art. 1º, inciso IV da CF, reconhecendo-o como um direito social, assim como a saúde, o lazer, a educação e a moradia, dentre outros, art. 6º CF.

Numa sociedade organizada com base na livre propriedade, livre concorrência e livre iniciativa, é adequado afirmar que o trabalho permite o acesso aos direitos enumerados no art. 6º CF. Porém, não se trata de qualquer trabalho. Refere-se a um trabalho decente, digno, em um ambiente salutar e, principalmente, com igualdade entre os trabalhadores.

Nesse sentido, o Brasil assumiu com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) o compromisso de promoção do trabalho decente, cuja definição, segundo esse organismo internacional, é de um "trabalho adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança, capaz de garantir uma vida digna". Pretende-se, assim, eliminar a discriminação e promover a igualdade de oportunidades. Por meio do Decreto 62.150/68 promulgou-se a Convenção 111 da OIT, que trata da discriminação em matéria de emprego e profissão, cujo art. 1º proclama o seguinte:

Para os fins da presente convenção o termo “discriminação” compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão. (BRASIL, 1968).

Na esteira dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil foi também promulgada a Lei 9.029/95, que, no seu art. 1º, proíbe qualquer prática de discriminação, ou de limitação de acesso ao trabalho, ou a manutenção nesse, decorrente de sexo, cor, raça, dentre outras que enumera, culminando pena de um a dois anos nos casos enumerados no art. 2º. A mesma lei, no art. 3º, comina sanção administrativa de multa e proibição de obter empréstimos e financiamentos em instituições oficiais.

O legislador quis mais; alude também ao dano moral, ao prescrever no art. 4º da mencionada lei, o seguinte:

O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta Lei, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre:

I - a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente e acrescidas de juros legais; (Redação dada pela Lei n. 13.146, de 2015)   (Vigência).

II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais. (BRASIL, 1995).


3 DANO MORAL

Sob o aspecto jurídico, o dano pode ser definido como ofensa a um bem jurídico tutelado, de ordem patrimonial ou extrapatrimonial. Caracteriza-se dano material quando a ofensa acarreta uma diminuição no patrimônio econômico da vítima. Porém, quando a ofensa atinge um bem de caráter extrapatrimonial, cujo valor não seja possível aferir economicamente, apresenta-se o dano moral, agressão dirigida à honra, à dignidade, ao bom nome da pessoa. Nas palavras de Xavier Freitas Danielli (2017), o dano moral consiste numa lesão direta à dignidade da pessoa humana. 

Até o advento da Constituição de 88, havia controvérsia acerca da reparação do dano exclusivamente moral. Contudo, ao prescrever expressamente no art. 5º, inciso V, que “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”; e no inciso X que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”, se dissipa toda dúvida que possa existir. (BRASIL, 1988).

Nessa linha, o Código Civil de 2002 previu expressamente no art. 186 que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. (BRASIL, 2002). Como o ato ilícito gera o dever de indenizar, conforme o art. 927 CC, logo, todo aquele que causa um dano moral está obrigado a compensá-lo.

Em relação ao ambiente de trabalho, a Lei 13.467/17 - que introduziu o art. 223-C à CLT prescrevendo que a honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física - colocou um ponto final em qualquer controvérsia que ainda pudesse existir acerca do dano moral decorrente das relações de trabalho. Assim, qualquer violação a um direito de personalidade resulta em dano moral e o dever de indenizar.

3.1 Assédio moral – conceito

Assediar significa insistir, repetir. Assédio moral se traduz por uma série de condutas que visam humilhar, minar o trabalhador, seja ele público ou privado. Espécie de dano moral caracterizado pela prática de atos vexatórios, abusivos, ou constrangedores, capazes de afetar o prestígio profissional da vítima. É uma espécie de agressão psicológica, ou física impingida ao trabalhador, por seus companheiros de trabalho, sejam eles de hierarquia idêntica, inferior ou superior.

Nas lições de Marie-France Hirigoyen considera-se assédio moral:

Toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamento, palavras, atos gestos, escritos que possam trazer dano à personalidade, à dignidade ou à integridade física ou psíquica de uma pessoa, por em perigo seu emprego ou degradar o ambiente de trabalho. (HIRIGOYEN, 2014, p. 65).

Denomina-se assédio paritário a agressão praticada por um colega de trabalho do mesmo nível do que a vítima. A hostilidade pode partir também do subordinado para com o chefe, nesse caso denominado assédio ascendente. No entanto, a espécie predominante é o assédio descendente.

A despeito de não se tratar de tema recente, durante esta pesquisa não foi encontrado um número significativo de trabalhos na área, se comparado com a quantidade de casos noticiados no dia a dia.

3.2 Condutas que caracterizam o assédio moral

Sob o ponto de vista do assédio moral, a literatura registra que várias atitudes podem ser registradas, como, por exemplo, sugerir que o indivíduo peça demissão, por sua saúde; hostilizar, não promover ou premiar colega mais novo e recém-chegado à empresa e com menos experiência, como forma de desqualificar o trabalho realizado; exigir que faça horários fora da jornada, mandar executar tarefas acima ou abaixo do conhecimento do trabalhador; iniciar reunião amedrontando quanto ao desemprego ou ainda ameaça constante de demissão.

A cartilha do Ministério Público do Trabalho (2001) sobre o assédio no ambiente bancário enumera uma série de atitudes que caracterizam o assédio no setor, mas que podem servir de parâmetro para os demais setores profissionais, dentre elas: I Retirar o trabalho que normalmente competia àquele empregado ou não atribuir atividades a ele, deixando-o sem quaisquer tarefas a cumprir, provocando a sensação de inutilidade e de incompetência, ou colocando-o em uma situação humilhante frente aos demais colegas de trabalho; II Evitar a comunicação direta com o assediado: ocorre quando o assediador se comunica com a vítima apenas por e-mail, bilhetes ou terceiros e outras formas indiretas de comunicação; III Delegar tarefas impossíveis de serem cumpridas ou que normalmente são desprezadas pelos outros.

No plano nacional, em 2014, foi apresentado na Câmara o Projeto de Lei 8178/14 modificando a Lei número 8.429/92 de improbidade administrativa, ao acrescentar o inciso X ao art. 11, com a seguinte redação: “coagir moralmente subordinado, por meio de atos ou expressões reiteradas que tenham por objetivo atingir a sua dignidade ou criar condições de trabalho humilhantes ou degradantes, abusando da autoridade conferida pela posição hierárquica”. (BRASIL, 2014).

Já o Projeto 4591/01, arquivado nos termos do art. 105 do regimento interno da Câmara dos Deputados, que modificava a Lei 8.112/90 criando o art. 117-A, após proibir a prática do assédio culminava sanções que iam desde a advertência à demissão do serviço público. No § 1º enumerava as condutas consideradas assédio moral:

§ 1º. Para fins do disposto neste artigo considera-se assédio moral todo tipo de ação, gesto ou palavra que atinja, pela repetição, a autoestima e a segurança de um indivíduo, fazendo-o duvidar de si e de sua competência, implicando em dano ao ambiente de trabalho, à evolução profissional ou à estabilidade física, emocional e funcional do servidor incluindo, dentre outras: marcar tarefas com prazos impossíveis; passar alguém de uma área de responsabilidade para funções triviais; tomar crédito de ideias de outros; ignorar ou excluir um servidor só se dirigindo a ele através de terceiros; sonegar informações necessárias à elaboração de trabalhos de forma insistente; espalhar rumores maliciosos; criticar com persistência; segregar fisicamente o servidor, confinando-o em local inadequado, isolado ou insalubre; substimar esforços. (BRASIL, 2001).

A Lei Estadual 12250/06 de São Paulo depois de descrever no “Caput” do art. 2º, o que venha a ser assédio moral, enumera as condutas de:

a) determinar o cumprimento de atribuições estranhas ou de atividades incompatíveis com o cargo que ocupa, ou em condições e prazos inexequíveis;

b) designar para o exercício de funções triviais o exercente de funções técnicas, especializadas, ou aquelas para as quais, de qualquer forma, exijam treinamento e conhecimento específicos.

c) apropriar-se do crédito de ideias, propostas, projetos ou de qualquer trabalho de outrem. (SÃO PAULO, 2006).

Em Minas Gerais, foi editada a Lei Complementar 116/11 que prevê punição para o assédio no âmbito da administração. De acordo com o art. 3º, é considerado assédio moral a conduta do agente público que vise à degradação das condições de trabalho de outro agente público, ou cujo efeito produza o mesmo resultado.

Ainda conforme esse artigo caracteriza-se também assédio moral atentar contra seus direitos ou sua dignidade, comprometer sua saúde física ou mental ou seu desenvolvimento profissional.

Em seguida, a lei mencionada enumera as modalidades de assédio moral, para efeito de aplicação da lei. No entanto, essa enumeração é apenas exemplificativa, pois toda ação que atente contra direitos ou dignidade do trabalhador público, que comprometa sua saúde, física ou mental, ou o desenvolvimento profissional, conforme se depreende do art. 3º, constitui assédio moral. O legislador mineiro não agiu como o paulista que empregou o adjetivo especialmente, antes de enumerar apenas três condutas.

A lei usa os adjuntos “de modo frequente” e “reiteradamente”, o que pode causar a falsa impressão de que as condutas não sistemáticas são impuníveis. Ressalta-se que há hipótese que talvez não configure assédio, mas pode configurar dano moral ou até mesmo ilícito penal, conforme se depreende do art. 3º, letra “J” da Lei 4898/65: “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”. (BRASIL, 1965).

É importante esclarecer que a mesma conduta abusiva pode caracterizar assédio sexual, art. 216-A CPB, ou até mesmo racismo, pois, segundo a Lei 7.716/89, art. 3º, impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos sujeita o infrator a uma pena de reclusão de dois a cinco anos.

Muitas vezes, a conduta pode não ser repetitiva, mas o efeito que produz é tão danoso quanto se fosse. Um simples ato administrativo de transferência para uma repartição que se configurar ócio ou desprestígio, por exemplo, pode causar danos irreparáveis à carreira ou à vida de um servidor, em função dos transtornos decorrentes, embora praticado apenas uma vez. Assim, no caso concreto, a soma de condutas diferentes, ou o prolongamento de uma só conduta, podem caracterizar o assédio, como no caso de uma transferência para um local que configura ócio ou ainda a demora em atribuir tarefas.

Ainda no âmbito do Estado de Minas Gerais, a Lei Orgânica da Polícia Civil (2013), apesar de não abordar explicitamente o tema, em momentos distintos procurou preservar a dignidade do servidor policial no exercício de sua atividade. O art. 48, inciso VII, destaca que dentre os direitos do policial, encontra-se o de ter respeitado seus direitos e garantias fundamentais, tanto no cotidiano como em atividades de formação ou de treinamento. À primeira vista, parece óbvio e desnecessário o legislador estadual ter essa preocupação, todavia, situações fáticas levaram a tal redundância.

Ao tratar das prerrogativas do policial civil, a Lei Complementar Estadual 129/13 elenca no art. 45, inciso I, que o policial deve desempenhar funções correspondentes à sua condição hierárquica. No inciso XII prescreve como prerrogativa o exercício das funções em instalações que ofereçam condições adequadas de segurança, higiene e saúde. Em seguida, no art. 81, § 4º, está inserto que o regime hierárquico não autoriza imposições sobre o convencimento do policial civil, desde que devidamente fundamentado, ficando garantida sua autonomia nas respostas às requisições.

Essa preocupação do legislador mineiro se deve a uma prática antiga na polícia civil do Estado: o chamado, internamente, corredor administrativo. Trata-se de uma perseguição promovida por grupos políticos antagônicos que assim que assumem a direção da corporação - em decorrência de mudanças políticas na direção do estado ou de alguma intercorrência interna – passam a perseguir o grupo oposto, destituindo o policial civil do cargo, designando-o para funções menos expressivas. Ou seja, perseguição política disfarçada de interesse público.

Nesse sentido, ao tratar da estrutura da polícia civil, a Lei Complementar 129/13, parágrafo 6º do art. 17, determina que:

 As Delegacias de Polícia Civil, de âmbito territorial e de atuação especializada, são dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, e as Delegacias Regionais de Polícia Civil e as Divisões de Polícia Especializada, por Delegados de Polícia de, no mínimo, nível especial. (MINAS GERAIS, 2013).

A primeira parte da disposição parece óbvia, não precisaria de um texto de lei dizer isso. Porém, merece atenção a segunda parte, a que dispõe que as delegacias regionais e as divisões serão dirigidas por delegados de nível hierárquico no mínimo especial. O que o legislador quis dizer é que esses cargos devem ser dirigidos por delegados no final da carreira. Se isso não for possível, poderá ocupar o cargo alguém de nível especial. Mesmo assim sua aplicação no dia a dia tem causado distorção, ao ser a lei interpretada isoladamente e de forma errônea, no sentido de que os especiais podem ser nomeados para o cargo de chefia em virtude da autorização e que os de hierarquia superior, como não existe regra que proíba, podem ser rebaixados. Esse entendimento contraria os princípios da própria lei, inclusive texto expresso. Mesmo porque, nas lições do professor Hely Lopes Meireles (1994), enquanto o particular pode fazer tudo que a lei não proíbe a administração pública só pode fazer aquilo que ela autoriza.

3.3 Assédio moral no serviço público

Há doutrinadores que assentam ser mais difícil a prática do assédio no serviço público devido às garantias de que dispõe o servidor. Todavia, a ocorrência no serviço público é tão frequente quanto na iniciativa privada, divergindo às vezes apenas pelas modalidades. A cobrança de metas, por exemplo, é menos frequente no serviço público, porém o assédio vai se manifestar de forma diferente. A lista é grande dos atos que muitas vezes surgem disfarçados de um ato administrativo, legal, republicano, voltado para o interesse público.

Tratar de forma diferente servidores com mesma qualificação, designar para locais inóspitos especificamente determinado servidor, sem qualquer fundamentação de ser aquele e não outro; escalar para plantões em finais de semanas, vésperas de feriados; preterir em promoções e premiações; designar frequentemente para viagens para locais cujas diárias são menores, enquanto outro é frequentemente designado para local de diária melhor; não prover com recursos a unidade ou seção sob a responsabilidade de determinado servidor.

3.4 Assédio moral e improbidade administrativa

A Lei 8.429/92 define, em seus art. 9º, 10 e 11, os atos de improbidade administrativa praticados pelos agentes públicos e pelos terceiros que concorram para a sua prática. Consoante os dois primeiros artigos são atos de improbidade aqueles que importem em enriquecimento ilícito e prejuízo ao erário. Pode haver atos que, apesar de não acarretarem prejuízo ou enriquecimento ilícito, consistem em improbidade. Trata-se dos atos que atentem com os princípios da administração.

Segundo Deyvison Emanuel Lima de Menezes:

Quando um agente público pratica um ato de assédio moral, claramente viola a moralidade administrativa, pois deixou de agir de forma ética, honesta, leal perante um terceiro praticando assim uma conduta ilícita que pode ser tipificada como ato de improbidade administrativa consoante artigo 11º, "caput" da Lei 8.429/92. (MENEZES, 2017).

Todavia, Maria Sylva Zanella Di Pietro pede cautela ao se investigar a atenção do agente público, verificando-se a existência de dolo ou culpa. Mas, ainda segundo a mesma autora, qualquer violação “aos princípios da legalidade, razoabilidade, moralidade, interesse público, eficiência, motivação, dentre outros, pode constituir improbidade administrativa”. (DI PIETRO, 2001, p. 674).

Nesse entendimento, não resta dúvida de que o assédio moral, no serviço público, fere ao menos os princípios da impessoalidade, eficiência, além da legalidade e moralidade.


4 A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS

Na justiça trabalhista são fartas as decisões acerca do tema assédio moral no trabalho. No âmbito dos tribunais percebe-se enfrentamento acanhado do tema, provavelmente em decorrência da dificuldade probatória. A propósito, um número grande de decisões são sustentadas exatamente na ausência de prova. O que de qualquer forma é um indicativo de sua ocorrência no serviço público.

Mesmo assim, decidiu o TJ – RS:

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ASSÉDIO MORAL SOFRIDO POR SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. O assédio moral constitui-se no comportamento abusivo de alguém com relação a outrem, por perseguições, importunações ou ameaças repetitivas e persistentes. No ambiente de trabalho, para que reste configurado o assédio, deve haver comportamento sistemático do agente, de molde a prejudicar o desenvolvimento das atividades do trabalho. Hipótese em que restou claramente evidenciado o ato ilícito praticado pelos administradores do município que, motivados por divergências políticas, afastaram o autor das funções habitualmente exercidas, negando-lhe a realização de qualquer trabalho. Dano moral presumido, dispensando comprovação específica. Precedentes desta Corte. QUANTUM INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. Na fixação da reparação por dano extrapatrimonial, incumbe ao julgador, atentando, sobretudo, para as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado, e aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, arbitrar quantum que se preste à suficiente recomposição dos prejuízos, sem importar, contudo, enriquecimento sem causa da vítima. A análise de tais critérios, aliada às demais particularidades do caso concreto, conduz à manutenção do montante indenizatório em R$ 8.000,00 (oito mil reais). APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível n. 70052114055, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Julgado em 30/01/2014). (TJ-RS - AC: 70052114055 RS, Relator: Paulo Roberto Lessa Franz, Data de Julgamento: 30/01/2014, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/02/2014). (RIO GRANDE DO SUL – Tribunal de Justiça, 2014).

Entre janeiro de 2018 e 21 de maio de 2018, foram encontradas quinze decisões sobre o tema no site de jurisprudência do TJMG. Desses apenas cinco tiveram decisões favoráveis aos autores. No mesmo período, o TJ-RS apreciou vinte casos, sendo que proferiu decisão favorável na metade deles.


CONCLUSÃO

Depreende-se, a partir da análise do tema aqui debatido, que o trabalho é um direito, cujos alicerces jurídicos assentam-se na Constituição Federal que prescreve que a República Federativa do Brasil constitui-se como um Estado democrático de direito, que tem como um dos fundamentos os valores sociais do trabalho, inciso IV, art. 1º CF. Além disso, o constituinte reafirma a importância do trabalho no art. 6º da CF, enumerando-o como um direito social. No mesmo sentido, ao tratar da ordem econômica e financeira, art. 170 CF, pontua que essa será fundada na valorização do trabalho. Já no art. 193 CF, ressalta que a ordem social tem como base o primado do trabalho.

No âmbito internacional, o art. 23, item 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que toda pessoa tem direito ao trabalho. Na mesma esteira é o protocolo de São Salvador que, no seu art. 6º, repete os mesmos dizeres: “Toda pessoa tem direito ao trabalho, o que inclui a oportunidade de obter os meios para levar uma vida digna e decorosa por meio do desempenho de uma atividade lícita, livremente escolhida ou aceita”. (PROTOCOLO DE SAN SALVADOR, 1988).

O direito em tela mereceu proteção do direito penal brasileiro, cuja ofensa constitui abuso de autoridade, conforme demonstrado linhas atrás. Sob o aspecto civil, há dano moral passível de reparação. Porém, essa violação poderá dar ensejo ao assédio moral, toda vez que for repetitiva ou prolongada no tempo. Se o autor da violência for servidor público pode vir a responder por improbidade administrativa, por violação dos princípios consubstanciados no art. 11 da Lei 8.429/92.


REFERÊNCIAS

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULO, Milton. Assédio moral no serviço público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5518, 10 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67399. Acesso em: 20 abr. 2024.