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Homicídio sem cadáver

Homicídio sem cadáver

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Analisa-se a possibilidade de o acusado ser processado e condenado pela prática do crime de homicídio quando não há localização do cadáver.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo analisar a possibilidade de o acusado ser processado e condenado pela prática do crime de homicídio quando não há localização do cadáver e, assim, impossibilidade de comprovação direta da materialidade do crime. O objetivo é demonstrar, através de fundamentos fáticos e legais, a possibilidade de demonstração da existência da ação penal mesmo na ausência de localização do corpo da vítima, a fim de permitir o julgamento do suposto autor do delito pelo Corpo de Jurados do Tribunal do Júri. Isso porque, há casos, de conhecimento público e notório, em que o objeto material jamais é localizado, seja pela ação do agente ou, ainda, pela ação do tempo. Para a efetiva realização do trabalho, iniciou-se por meio da análise gramatical da legislação processual penal, bem como, especialmente, no levantamento de casos concretos, e, ainda, pesquisa doutrinária e jurisprudencial. A par disso, afirma-se, conclusivamente, a possibilidade da deflagração da persecução penal, a pronúncia pelo Magistrado e, sobretudo, a possibilidade de condenação do acusado pela prática do crime de homicídio, em que pese não haja a localização do cadáver da vítima, através de outras provas que, suprindo a ausência do laudo cadavérico, configurem o exame de corpo de delito indireto, nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal. 

PALAVRAS-CHAVE: Homicídio; Cadáver; Materialidade; Exame de corpo delito direto; Ausência; Exame de Corpo de delito Indireto. 

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Pretensão Punitiva do Estado 3. Da Persecução Criminal 4. A Materialidade como Requisito Indispensável 5. Da Exceção Prevista no art. 167 do CPP – Da prova Direta e Indireta 6. Desaparecimento do Cadáver por Ação do Agente 7. Conclusão 8. Referências Bibliográficas. 


INTRODUÇÃO: 

Trata-se de pesquisa sobre a prova da materialidade no crime de homicídio quando ausente o cadáver, fato que, consequentemente, inviabiliza a realização do auto de exame de corpo de delito ou laudo cadavérico, o qual é indispensável à comprovação do homicídio, vez que se trata de crime material, que deixa vestígios, conforme a regra do art. 158 do Código de Processo Penal. 

A escolha do objeto central do trabalho encontra justificativa na relevância e atualidade do tema. Realmente, trata-se de assunto que, além da importância jurídico-penal, possui grande interesse social e, sobretudo, midiático e, por tais motivos, incita a interessante discussão sobre a possibilidade de o agente vir a ser processado e condenado, ainda que não haja a localização do cadáver.  

O objetivo é demonstrar que a ausência do exame de corpo de delito não obsta o processamento e condenação do homicida, pois, conforme a dicção do art. 167 do Código de Processo Penal, permite-se a comprovação da materialidade por meio de exame de corpo de delito indireto, consistente em conjunto de provas materiais e/ou testemunhal que poderão atestar, categoricamente, a existência do crime. 

Desse modo, procura-se demonstrar que, em tal hipótese, apesar de não ser o Direito uma ciência exata, a legislação processual penal permite a persecução criminal ainda que ausente a prova pericial por excelência, ou seja, o exame de corpo de delito direto. Em suma, basta a existência de um conjunto probatório concreto e harmônico, que conduza ao juízo de certeza na busca da verdade real. 

Nesse sentido contrapõem-se dois direitos antagônicos.   

De um lado, não se pode transigir com o direito de liberdade do cidadão. Por isso, a comprovação indireta da materialidade em crimes materiais deve ser vista como verdadeira exceção. Para que alguém seja condenado pelo crime de homicídio quando o cadáver desapareceu, é necessário que outros meios de provas demonstrem, de modo inequívoco, a materialidade delitiva. 

De outra parte, no entanto, tampouco se admite que o autor do delito seja agasalhado com o manto da impunidade quando oculta o faz desaparecer o cadáver, deliberadamente. Isso porque implicaria estímulo à criminalidade e à impunidade, o que vem de encontro ao Estado Democrático de Direito, vez que o direito à vida e à segurança são garantias constitucionalmente asseguradas ao conjunto da Sociedade (art. 5º, caput, da CF/88).     

Nesse sentido, como é sabido, para que o Estado possa exercer a sua pretensão punitiva de modo válido e aceitável, deve respeitar os direitos e as garantias fundamentais do acusado.  

Em função disso, inicialmente, são analisados, ainda que brevemente, as garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório, bem como a presunção do estado de inocência. 

Estruturalmente, o presente trabalho foi dividido em capítulos; em primeiro lugar, a pretensão punitiva do Estado; em segundo, a materialidade como requisito indispensável nas infrações que deixam vestígios; em terceiro, a exceção prevista no art. 167 do Código de Processo Penal; em quarto, a abordagem de casos concretos,bem como análise legal, doutrinária e jurisprudencial. 


PRETENSÃO PUNITIVA DO ESTADO

Em matéria penal, na República Federativa do Brasil, a pretensão punitiva incumbe ao Estado, por meio do Poder Judiciário, conforme o art. 5º, XXXV, o qual dispõe que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito. 

Dessa forma, apesar desse dispositivo ter como destinatário principal o Legislador, que, ao elaborar a lei, não pode criar mecanismos que impeçam ou dificultem o acesso ao poder Judiciário, deve-se levar em conta que esse dispositivo se direciona a todos, de um modo geral (LENZA, 2008, p. 615). 

É direito do Estado-acusação promover a prestação jurisdicional, com o fito de realizar a pretensão de punir o infrator, aplicando normas de direito penal ao caso concreto. Como bem assevera Nelson Hungria, o Estado pode ser considerado como Supremo Valor, bem como a medida de todos os valores, mas não o Estado num sentido abstrato e formal-mecanicístico, mas, sim, como totalidade da organização da vida do povo (HUNGRIA, 1958, p. 19). 

Dessa forma, o indivíduo que agir em desconformidade com a norma penal, praticando ações delituosas, dará origem ao ius puniendi, ou seja, a partir da prática de um crime surgirá a pretensão punitiva estatal, conforme nos ensina Cesar Roberto Bitencourt (BITENCOURT, 2009, p. 265).   

Assim, inadmissível falar em sanção, na seara penal, sem sua imposição por meio do devido processo legal, garantia fundamental constitucionalmente assegurada, conforme a dicção do art. 5º, em seu inciso LIV, onde dispõe que ninguém será privado de sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. 

Conforme bem assevera Gilmar Mendes, as garantias fundamentais asseguram ao indivíduo a possibilidade de exigir do Poder Público o respeito ao direito que instrumentalizam (MENDES, 2008, p. 268). 

Ademais, o devido processo legal abrange não só aqueles que fazem parte da relação processual, possuindo, ainda, âmbito de proteção alargado, pois atinge, também, o aparato jurisdicional, todos os sujeitos, instituições, órgãos, diretos e indiretos, públicos e privados, que são essenciais à Justiça (MENDES, 2008, p. 640). 

Dessa forma, impossível mencionar o devido processo legal sem fazer menção ao contraditório e à ampla defesa, os quais se encontram inexoravelmente ligados.  

Isso porque o Estado não pode exercer o direito de ação, a pretensão punitiva, sem proporcionar ao acusado o direito ao contraditório e a ampla defesa, conforme art. 5º, LV da Carta Magna, ao dispor que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. 

O contraditório consiste, portanto, em um método de confrontação de prova e comprovação da verdade, fundado em um conflito entre as partes – acusação e defesa -, e, não obstante isso, no direito do acusado de ser informado e de participar do processo, devendo conhecer o inteiro teor da acusação, e, ainda, o direito de saber o que ocorre no processo, sendo informado de todos os atos processuais, consoante Aury Lopes Jr. (LOPES JR., 2013, pp. 230-233).  

Enquanto para Guilherme de Souza Nucci, todas as alegações, apresentações e postulações de prova feitas no processo, por qualquer das partes, ensejará ao adversário o direito de se manifestar, buscando-se o justo equilíbrio na relação processual existente entre a pretensão punitiva estatal e o direito de liberdade do cidadão e seu estado natural de inocência (NUCCI, 2010, p. 84). 

Na lição de Carnelutti, o contraditório é, realmente, um “duelo”, que serve para o juiz superar a dúvida, porquanto é neste que se personificará a dúvida existente. Exemplifica, ainda, que defensor e acusador são dois bravos combatentes, puxando o juiz para uma ou para outra encruzilhada de duas estradas, usando, como armas, as suas razões (CARNELUTTI, 1995, p. 20). 

Dessa forma, o juiz deve oportunizar a ambas as partes para que se manifestem, através de suas oitivas, ainda que não queiram dela usufrui-la, posto que se trata de direito que lhes é constitucionalmente assegurado, estabelecendo-se, portanto, um caráter dialético no processo. 

No que interessa ao presente trabalho, ao réu deve ser oportunizado o direito de exercer a autodefesa, a qual é renunciável, ao contrário da defesa técnica, esta sim irrenunciável. 

No que tange à ampla defesa, é o direito conferido ao acusado de desfrutar de toda defesa possível com relação à imputação que lhe é atribuída. Por conseguinte, no Processo Penal não pode haver condenação sem defesa técnica, razão pela qual, não havendo o réu constituído defensor, o juiz deverá nomear defensor dativo para patrocinar a causa, conforme previsão do art. 268 do Código de Processo Penal. 

Ocorre que, ainda que assistido por advogado ou defensor público, o acusado é considerado hipossuficiente na relação processual, tendo em vista que o Estado é provido de diversos meios e informações obtidas por órgãos preparados, através de diversas fontes às quais detém acesso, motivo pelo qual o réu possui tratamento diferenciado, fazendo-se valer da ampla defesa em contraponto a força do órgão estatal, que será sempre mais forte (NUCCI, 2010, p. 82). 

Insta discorrer, igualmente, sobre o princípio da presunção de inocência, que assume vital importância ao objeto deste trabalho. 

Sabe-se que o estado natural do indivíduo é o de inocência, que paira acima da dúvida, ou seja, havendo esta, o melhor é inocentar o acusado, em respeito ao princípio do in dubio pro reo, de modo que todo cidadão é considerado inocente até que sobrevenha sentença condenatória, transitada em julgado, conforme a previsão do art. 5º, LVII, da Constituição Federal. 

O princípio da presunção de inocência garante, portanto, que o ônus da prova é da acusação, não da defesa, salvo quando este atrai para si o encargo processual, quando, por exemplo, alega fato impeditivo ao direito acusatório, por exemplo, álibi.  Assim, caberá à parte provar o que afirma, seja um ato, fato, circunstância, tanto pela acusação quanto pela defesa. 

Conforme salienta Norberto Avena, não é apenas o titular da ação penal que possui essa incumbência, conquanto depende da natureza da obrigação. À acusação caberá provar a existência do fato imputado e a sua autoria, bem como a tipicidade da conduta, os elementos subjetivos de dolo ou culpa, a existência de circunstâncias agravadoras e qualificadoras. Já à defesa, de outro lado, deverá provar eventuais causas excludentes de ilicitude, culpabilidade e de tipicidade, e, ainda, as circunstancias atenuantes, minorantes e privilegiadoras que tenha alegado (AVENA, 2012, p. 450). 

Daí a necessidade de que o Estado evidencie, através de provas suficientes, a culpa do réu, pois as pessoas nascem inocentes, sendo este o seu estado natural, conforme referido alhures. 

Não obstante, como bem esclarece Gilmar Mendes, as imputações incabíveis, dando ensejo à persecução criminal injusta, violam, sobremaneira, o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, inc. III, da Constituição, a qual dispõe que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constituída pelo Estado Democrático Brasileiro, tem como fundamento a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político (MENDES, 2008, p.552). 

Necessário, ainda, mencionar o direito de liberdade previsto no art. 5º, inc. XLI, da Carta Republicana, que protege qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, devendo-se balancear tais direitos, os quais se contrapõem, tendo em vista que, de um lado, há o poder punitivo Estatal e, de outro, a liberdade do cidadão. 

Impossível não mencionar Nelson Hungria, ao contrabalancear a liberdade do cidadão no que tange à intervenção do Estado, o qual reza que o caminho justo é sempre o meio-termo, onde o avanço da Civilização só é possível quando a humanidade se apazigua nos pontos de equidistância entre os extremos, conforme a lei de proporção ensinada por Pitágoras. Diz-nos, ainda, que, havendo divergência entre os interesses do indivíduo e os da coletividade, a intervenção do Estado não se poderá fazer presente, para ser eficiente e duradoura, senão dentro de um superior sentido de equilíbrio e harmonia. 

Ainda, sobre liberdade, em seu ilustre pensamento, nos diz que se deve atribuir uma firme autoridade ao Estado para regular o jogo das energias que se entrecruzam no seio da vida social. Mas, de outra banda, reservar ao indivíduo aquele sagrado e insuperável quantum de liberdade que lhe é absolutamente necessário, imprescindível ao cidadão para alcançar seu êxito e força de sinergia na realização de seus fins sociais (HUNGRIA, 1958, p. 26). 

Em face disso, para que a pretensão estatal e a consequente aplicação da norma penal se torne legítima, devem ser respeitados os princípios constitucionais de garantia, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a dignidade da pessoa humana, a liberdade do cidadão, dentre outros. 

Ainda nesse sentido, importante trazer à baila a garantia da isonomia processual (at. 5º, inc. I, da Constituição Federal), ou seja, acusação e defesa devem estar em posição de equilíbrio na relação processual, não havendo que se falar em desigualdade, podendo, ambas as partes, demonstrar a verdade dos fatos que alegam em idênticas oportunidades (AVENA, 2012, p. 09). 


DA PERSECUÇÃO CRIMINAL 

Acerca do exercício da pretensão punitiva, o art. 24 do Código de Processo Penal, prevê que a ação penal será promovida por denúncia, peça inicial da ação penal pública, dispondo, ainda, o art. 129, I da Constituição Federal, que é função institucional do Ministério Público promover, privativamente, a ação penal, nos termos da Lei. 

Diante disso, a persecução penal é incumbência do Ministério Público, a ser deflagrada por meio de denúncia, objetivando a comprovação dos fatos narrados na peça acusatória. 

A titularidade é do Ministério Público nas ações penais públicas incondicionadas, o qual instaura o processo independentemente da vontade de qualquer pessoa. 

Através dos elementos informativos colhidos na fase inquisitorial, o parquet formará seu convencimento, podendo oferecer a denúncia a partir das provas trazidas até seu conhecimento, bem como, também, através de investigações no âmbito da própria Promotoria de Justiça, questão, todavia, sobre a qual paira acirrada controvérsia, que extrapola o objetivo da presente pesquisa.   

Para que ocorra o legítimo recebimento da denúncia, é imprescindível a presença das condições da ação, ou, ainda, os requisitos mínimos indispensáveis à formação da relação processual, como bem esclarece Guilherme Nucci (NUCCI, 2010, p. 187). 

Conforme a previsão do art. 395, inc. III, do Código de Processo Penal, a denúncia ou queixa será rejeitada quando for manifestamente inepta; faltar pressuposto processual e condição para o exercício da ação penal ou ante a ausência de justa causa para o exercício da ação penal.  

A justa causa é condição indispensável para exercício da ação penal. Ocorre que a doutrina ainda diverge acerca de sua real definição. 

Para Aury Lopes Jr., justa causa é uma condição de garantia contra uso abusivo do direito de acusar, considerando a instrumentalidade constitucional do processo, identificando-se com a existência de uma causa jurídica e fática que legitime e justifique a ação, bem como a intervenção estatal, relacionada, ainda, com dois fatores: a existência indícios razoáveis de autoria e materialidade de um lado e, de outro, o controle processual do caráter fragmentário da intervenção estatal (LOPES JR, 2013, 373). 

Nesse norte, a acusação deve possuir elementos probatórios suficientes e que justifique a acusação, elementos extraídos, geralmente, através da fase inquisitorial. De qualquer sorte, a justa causa está prevista como causa de rejeição da denúncia, sendo, portanto, condição da ação.  

Ada Pelegrini Grinover corrobora esse entendimento, referindo, em sua obra “As Nulidades no Processo Penal” que, a justa causa, é, sem dúvida, condição da ação. Diz-nos, ainda, que sua verificação é feita pelas mesmas questões apreciadas quando do julgamento do mérito, ou seja, as questões atinentes à autoria e materialidade do delito, que deverá ser analisada pelo momento e grau de profundidade dessas duas questões. Com relação à acusação, no que tange à ação, a justa causa será constatada pelos elementos que indiquem a existência do crime, bem com pela probabilidade de autoria por ocasião da denúncia ou queixa. Atinente a análise do mérito, a análise da acusação será produzida tendo por base os elementos colhidos no decorrer do processo, referentes a existência do crime e de autoria quando prolatada sentença (GRINOVER, 2011, p. 53).   

Ao contrário do entendimento de Aury Lopes Jr., supramencionado, o Código de Processo Penal, após a reforma de 2008, incluiu a justa causa como requisito da inicial acusatória, juntamente com as condições de ação, quais sejam: a legitimidade ativa e passiva para a causa, a possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir. 

Além disso, são necessários a prova da materialidade e indícios mínimos de autoria. 

Conforme Guilherme de Souza Nucci, materialidade é a prova da existência do fato delituoso, seja ele qual for. Assim, em qualquer investigação criminal, o primeiro passo é provar a existência do fato, ou seja, provar a materialidade do delito através elementos objetivos que podem ser verificados, e constatados sensorialmente através dos diversos critérios científicos existentes (NUCCI, 2011, p. 41). 

Para Nicola Framarino Dei Malatesta, a materialidade do delito consiste sempre em modificações das coisas ou pessoas, tornando a sua ilegitimidade na perturbação do legítimo modo de ser das coisas ou das pessoas (MALATESTA, 1927, p. 263). 


A MATERIALIDADE COMO REQUISITO INDISPENSÁVEL

Portanto, para a propositura da ação penal, no que interessa ao presente estudo, a acusação deve comprovar a existência do crime, conforme já referido, ou seja, a materialidade é requisito imprescindível para o início da persecução criminal.  

Em face disso, é pertinente discorrer brevemente, no que tange à classificação do delito quanto ao resultado. 

A doutrina distingue as espécies de crimes e lhes atribui classificações. Uma delas é a classificação do delito quanto ao resultado. Damásio de Jesus analisa esta classificação em dois sentidos: pelo resultado naturalístico material e pelo resultado jurídico. Interessa-nos o primeiro, uma vez que o segundo está presente invariavelmente em todos os crimes.  

Em outras palavras, todos os crimes possuem resultado jurídico, mas nem todos possuem resultado naturalístico. Segundo a concepção naturalística, o resultado consiste na modificação do mundo exterior, que é provocada pelo comportamento humano, através de uma ação. No homicídio, portanto, temos a conduta (ex.: ação de desferir facadas), bem como a modificação no mundo exterior, qual seja a constituição do resultado morte (JESUS, 2002, p. 04). 

Temos, então, a classificação dos crimes quanto ao resultado naturalístico. Assim, os crimes materiais são aqueles cuja consumação se dá pelo resultado naturalístico. São crimes em que o próprio tipo penal descreve a conduta do agente e a modificação causada por ela no mundo exterior. Nestes crimes, o resultado naturalístico é indispensável. Importante fazer uma ressalva, pois, a tentativa de homicídio, em que pese a ausência de resultado naturalístico, não afasta o resultado jurídico, que estará sempre presente (JESUS, 2008, p. 188). 

Esse é o tipo de crime que interessa ao presente trabalho. Conforme referido anteriormente, no crime de homicídio consumado há a ação do agente, bem como o resultado material causado: a morte da vítima. Estão presentes, portanto, a ação humana e a modificação causada no mundo exterior, no mundo dos fatos. 

Nesse tipo de delito, conforme expressa determinação legal, a regra é a indispensabilidade do exame de corpo de delito direito para a comprovação da materialidade, não podendo ser suprida sequer pela confissão, conforme determina o art. 158 do Código de Processo Penal. 

Nesse sentido, o entendimento da Corte Gaúcha: 

RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. DESPRONÚNCIA. ARTS. 158 E 167 DO CPP. 1. Recurso defensivo que postula a impronúncia ou absolvição do réu, sustentando ausência de materialidade e de indícios da autoria. Alternativamente, a desclassificação da imputação. 2. Situação em que supostamente a vitima teria sofrido lesões, com internações hospitalares. Caso típico de delito que deixa vestígios e que não foi comprovado através de exame de corpo de delito, mesmo indireto, o que é indispensável (CPP, art. 158), não podendo ser suprido por outras provas, por não se tratar de desaparecimento de vestígios. 3. Ausência de materialidade, que inviabiliza a submissão do acusado ao Tribunal Popular, nos termos do art. 414 do CPP. DERAM PROVIMENTO AO RECURSO. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70050080647, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Julio Cesar Finger, Julgado em 03/10/2012) 

 Conforme Guilherme Nucci, em sua obra “Provas no Processo Penal”, a materialidade do delito deve ser demonstrada através de uma existência objetiva, ou seja, através de elementos passíveis de verificação sensorial e constatação por qualquer pessoa, dentro dos inúmeros critérios científicos existentes, mas não baseada em uma existência subjetiva, no tocante à credulidade ou advinda de pura persuasão íntima (NUCCI, 2011, p. 41). 

Conforme já mencionado, o presente estudo trata unicamente dos crimes materiais, especificamente o homicídio, o qual deixa, como acima referido, vestígios. 

Vestígio é, portanto, o rastro, pista ou indício deixado por algo ou alguém (NUCCI, 2011, p. 382).  

Os vestígios, conforme NUCCI podem ser divididos em duas espécies de pistas: permanentes e passageiras. No tocante às pistas deixadas, há duas formas de dividir os vestígios: vestígios materiais (rastro permanente) e imateriais (rastro passageiro), entendendo o respeitável doutrinador que, com relação à primeira (material) devem ser demonstrados através de perícias; enquanto, a segunda (imaterial), deve ser evidenciada, em juízo, através de todos os meios de provas admitidos, sejam testemunhas, documentos, buscas (NUCCI, 2011, p. 43). 

Mostra-se viável tal separação, tendo em vista que, em se tratando de vestígio material, os rastros deverão ser imediatamente encaminhados ao especialista. Desta forma, estar-se-ia evitando qualquer margem de erro quanto à materialidade do delito. Não só isso, pois, na maioria dos casos, a rápida realização da perícia é imprescindível, sob pena de desaparecimento dos vestígios, como, por exemplo, laudo de necropsia, conjunção carnal, lesão corporal, etc. 

São vestígios de um crime, as marcas, pegadas, resíduos deixados no local, rastros, sangue, instrumentos utilizados, enfim, é tudo que representa a exteriorização material, a aparência física de um delito (BITENCOURT, 2007, p. 32). 

Consoante Nucci, há delitos, como o crime de homicídio, que deixam sinais aparentes de sua prática. É com esses delitos que se ocupa a lei, obrigando-se, no campo das provas, à realização do exame de corpo de delito. É prova tarifada, imposta por lei, que foge à regra da ampla liberdade na produção de provas no processo penal. (NUCCI, 2011, p. 382). 

Tem-se, pois, que a comprovação do crime de homicídio se dá pelo laudo de necropsia, pelo exame externo e interno do cadáver, constatando-se, portanto, a causa mortis. Essa é a regra. 

Entretanto, há casos em que essa verificação direta se torna impossível tendo em vista a ausência de localização do cadáver. Em assim sendo, estaria fulminada a pretensão punitiva e chancelada a impunidade do autor do delito? Por óbvio que não.   

De acordo com o art. 167 do Código de Processo Penal, não sendo possível a realização do exame de corpo de delito, tendo em vista haverem desaparecido os vestígios, poderá a prova testemunhal suprir-lhe a falta. Trata-se, pois, do exame de corpo de delito indireto. 

Se esse dispositivo não existisse, bastaria matar a vítima e desaparecer com o cadáver, premiando-se, portanto, o acusado e garantindo-lhe, consequentemente, a impunidade. 

No delito em tela, em que o cadáver é passível de desaparecimento, quer pela ação do tempo (por meio da decomposição), quer pela conduta do próprio criminoso, permite-se a incidência do supracitado art. 167 do CPP. 

Com relação à exceção (prova indireta) de que trata o dispositivo legal, permite a lei a substituição do exame de corpo de delito direto por outros meios de prova, como a prova testemunhal, através de depoimentos e narrativas de pessoas que tenham presenciado a ocorrência do crime, bem como quando não seja possível realizar, através de meios científicos, a sua ocorrência. Eis é discussão do presente trabalho.  


5DA EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 167 DO CPP – PROVA DIRETA E INDIRETA: 

Via de regra, o principal meio direto de averiguar a existência do delito que deixa vestígios materiais é o exame de corpo de delito, que, conforme Norberto Avena, compreende toda perícia destinada à comprovação da materialidade das infrações que deixam vestígios, tendo por objetivo corporificar o resultado da infração penal, de modo que reste documentado o vestígio, o qual perpetuará como parte no processo criminal (AVENA, 2012, p. 499).  

Tal conceito demonstra o objetivo de tal prova, bem como a sua inconteste importância. Com efeito, entende, ainda, que o exame de corpo de delito direto é aquele que será realizado por expert da área, ante o vestígio deixado pela infração penal, exemplo: necropsia do cadáver. 

A exigência do exame de corpo de delito, no crime de homicídio, nos remete diretamente ao exame do cadáver da vítima. Trata-se do verificação indispensável nas infrações que deixam vestígios. É através desse exame que se constata a realidade da morte e outros aspectos determinantes da causa mortis. 

O exame no cadáver da vítima é realizado por peritos, conforme prevê o art. 159 do Código Processual Penal, bastando apenas um perito oficial, que, após análise minuciosa do corpo, pode fazer afirmações ou extrair conclusões pertinentes ao processo legal, elucidando o evento morte. 

 Ao final, os profissionais elaborarão o laudo de necropsia ou laudo cadavérico, descrevendo toda e qualquer informação pertinente extraída da análise do cadáver, conforme dispõe o art. 160 do Código de Processo Penal, que aduz que os peritos elaborarão o laudo pericial, descrevendo minuciosamente o que examinarem, bem como responderão os quesitos formulados. 

Constata-se, portanto, a obrigatoriedade do laudo cadavérico após o exame do corpo, com base nas respostas dos quesitos, que são questões formuladas sobre assunto específico, as quais exigem como resposta opiniões ou pareceres, comprovando, assim, a materialidade delitiva. 

Fernando Capez conceitua o exame de corpo de delito indireto, que diz que tal exame advém de um raciocínio dedutivo sobre um fato narrado por testemunhas, sempre que impossível o exame direto (CAPEZ, 2011, p. 391).  

Ademais, Guilherme de Souza Nucci exemplifica as diferentes formas de prova indireta. Salienta que, excepcionalmente, admite-se que se comprove a materialidade através de outros meios de provas admitidos, tais como: exame da ficha clínica do hospital que atendeu a vítima; fotografias; filmes; atestados (NUCCI, 2010, p. 394). 

Feita esta diferenciação, em que pese a obrigatoriedade da perícia conforme prevê o art. 158 do CPP,  quando houver desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta, porquanto considerada como meio indireto apto à comprovar a materialidade.  

Não obstante, é entendimento da Jurisprudência pátria que a prova indireta consiste tanto no depoimento testemunhal quanto no conjunto de indícios materiais. 

Conforme salienta Walter Coelho, a prova indiciária é uma prova de raciocínio, capaz de iluminar os caminhos de verdade e certeza, cuja articulação exige grande perspicácia, atenção e prudência, porquanto realmente difícil o domínio de sua técnica. Assim, qualquer deslize pode ensejar conclusões viciadas, propiciando enganos e erros judiciários. Ainda, esclarece que os fatos não mentem, mas podem ser mal percebidos ou, também, mal interpretados (COELHO, 1996, p. 59). 

Como bem observa Guilherme Nucci, não se pode atestar a morte de alguém (indiretamente) apenas e tão somente através da frágil e extensa prova oferecida pelos indícios, sendo delicado demais, pois, como se viu, a probabilidade de se estar diante de um erro judiciário é grandíssima.  

Não podemos esquecer, ainda, que a prova indiciária, por mais necessária que seja para a apuração dos fatos, é frágil demais e, ainda, insegura, se observarmos a estrutura oferecida pelos órgãos policiais. 

Nesse ínterim, Nucci salienta que o grau de suficiência para atingir-se a segurança processual adequada, que venha a desestruturar a presunção de inocência, não é tarefa fácil (NUCCI, 2011, p. 48). 

Dito isto, não pode a ausência do cadáver servir de fundamento a negar a existência de um homicídio. O próprio ordenamento jurídico admite outros meios de prova que nos levam à segura convicção da existência da morte de alguém (BITENCOURT, 2007, p. 30). 

Leva-se em conta, de outro lado, a consideração do exame de corpo de delito indireto, quando a infração deixa somente vestígios imateriais ou quando deixa vestígios materiais, mas que são destruídos ou ocultos por força da natureza ou, até mesmo, pela ação do agente. 

Tenhamos como exemplo a ocorrência de um crime de homicídio, que foi presenciado por várias pessoas - embora tenha havido o desaparecimento do corpo, fato que inviabilizou a perícia -, será possível, bem como imprescindível, neste caso, a colheita dos depoimentos das testemunhas do fato, que serão consideradas aptas a narrar o ocorrido e demonstrar, através do que presenciaram, o cenário da morte. 

Entretanto, por mais evidente que seja a morte de alguém aos olhos de terceiros, jamais haverá a certeza e segurança absolutas quando se tem o exame de corpo de delito, mas, ainda assim, não se pode excluir a ocorrência de crimes acobertados, deliberadamente, tornando impossível, para o Estado, atuar na investigação e perscrutar a culpa do agente.    

Nesse diapasão, importante ressaltar que nem sempre o corpo de delito poderá se formar através de meios indiretos. Há determinados crimes cuja materialidade só poderá ser constatada através de conhecimentos técnicos, como, por exemplo, em relação a drogas ou, ainda, documentos falsos. Uma testemunha não poderá ir à Juízo e mencionar que viu a droga ou que notou um documento falso.  

Nesse sentido, o entendimento da Jurisprudência: 

APELAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE. ABSOLVIÇÃO. 1. É certo que a cannabis sativa, vulgarmente conhecida como maconha, integra a Portaria 344/98 da ANVISA, mais precisamente a Lista E, isto é, a lista de plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas. 2. Ocorre que na Lista F, onde se encontram as substâncias de uso proscrito no Brasil, especificamente na Lista F2 (Substâncias psicotrópicas, item 28) há referência expressa ao TCH - Tetraidrocanabinol. Em nenhum momento há alusão, no rol taxativo de substâncias de uso proibido, a canabinoides. 3. Assim, para haver comprovação da materialidade do fato é imprescindível a demonstração de que a substância apreendida em poder do acusado contém o TCH - Tetraidrocanabinol, ou seja, se trata de substância de uso proscrito. 4. Ausente essa prova e, portanto, certeza absoluta de que a erva esverdeada com característica de maconha é realmente substância entorpecente, a solução adequada a absolvição por insuficiência de provas da materialidade. APELO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70052274511, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 04/04/2013) 

Dessa forma, o delito que envolve substância entorpecente não pode admitir o exame de corpo de delito indireto. Não basta o depoimento de uma testemunha que alega que a substância, apreendida ou transportada, tinha forma e cheiro de maconha. Ora, é necessário prova técnica, um exame químico para sua verificação. Não se admite uma avaliação subjetiva, mas, sim, um exame preciso, científico, fundamental.  Dessa forma, cada caso em concreto deve ser analisado minuciosamente, pois, nos crimes em que há substâncias entorpecentes, nenhuma outra prova poderá suprir a pericial. 

Voltando-se, novamente, ao crime de homicídio, como bem assevera Guilherme Nucci, qualquer pessoa pode narrar a ocorrência de um homicídio, posto que captado facilmente pelo ser humano, independentemente de conhecimentos técnicos aprofundados. No entendimento do respeitável jurista, o legislador, com relação ao art. 167 do CPP, não quis dizer que a testemunha pode suprir toda e qualquer prova pericial, isso seria demasiado arriscado, posto que há exceções conforme já referido anteriormente (NUCCI, 2011, p. 45). 

De modo diverso entende Aury Lopes Jr., defendendo que a perícia possui valor probatório relativo, não podendo ser “endeusada” absolutamente, em que pese o seu valor de conhecimento científico que, ainda assim, é relativo e possui prazo de validade. Dessa forma, entende que não existe a “rainha das provas” no âmbito do processo penal, muito menos a prova pericial o é (LOPES JR., 2013, p. 612).  

Walter Coelho comunga deste entendimento, ao referir que nenhuma prova poderá ser considerada cabal ou absoluta, nem mesmo as provas periciais, tendo em vista a sua fundamentação técnica ou científica, ainda que não se vislumbre erro de natureza conclusiva, bem como em que pese serem consideradas seguras e insuperáveis. Acredita, portanto, que é possível ocorrer erros de observação, e, ainda, falhas na coleta do material a ser examinado, bem como alteração no local dos fatos. Da mesma forma os depoimentos das pessoas inquiridas, que estarão sujeitos às naturais deficiências e imprecisões advindas da prova testemunhal (COELHO, 1996, p. 157). 

Desta feita, somente em falta absoluta da impossibilidade da realização do exame de corpo de delito direto, permite a lei que a prova testemunhal supra à sua falta. Nestes casos, é necessário que as testemunhas compareçam perante a autoridade policial ou judicial e declarem o que viram e, a partir dessas declarações, dará a autoridade por suprido o exame direto. (BITENCOURT, 2007, p. 31). 

Nada é ad absolutum. O exame de corpo de delito, embora passível de erros com relação ao seu resultado, leva-nos o mais perto da certeza possível. Ou seja, em um milhão de possibilidades de acertos, haverá, sempre, aquele 01% de possibilidade de erro. 

Tanto é verdade, pois somente a realização do exame de corpo de delito constitui perícia obrigatória, nos termos do art. 184 do CPP, que prevê que o juiz ou a autoridade policial negará a perícia requerida pelas partes, quando não for necessária à elucidação da verdade, salvo o caso do exame de corpo de delito.  


DESAPARECIMENTO DO CADÁVER POR AÇÃO DO AGENTE: 

Situação de grande complexidade, que surge nos Tribunais brasileiros é a comprovação da materialidade na ausência de localização de cadáver e consequente realização do laudo de necropsia. Por vezes, a ocultação do cadáver, por acinte do próprio autor do delito, impossibilita a realização do exame pericial. 

 Todavia, a jurisprudência brasileira entende ser admissível a realização de exame de corpo de delito indireto, aliada a prova testemunhal suficiente, bem como quando concatenado a vestígios de sangue, cabelos encontrados no local do crime, etc.  

Nesse sentido já se manifestou o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 33.330/RJ, da 5ª Turma, tendo como relatora a Ministra Laurita Vaz, onde alegou que a simples ausência do laudo do exame de corpo de delito não tem o condão de concluir a inexistência de provas acerca da materialidade do delito, ainda mais se no conjunto probatório dos autos há outros meios capazes de convencer o julgador quanto à efetiva ocorrência do delito, verificado no presente julgado, em consonância com o disposto no art. 167 do CPP. 

É o que se depreende, também, da decisão proferida pelo STF, ao julgar o Habeas Corpus 103683/MG, da 1ª Turma, que teve como relatora a Ministra Carmen Lúcia, que salientou que ser entendimento majoritário e firme da jurisprudência da Suprema Corte, no sentido de que nos delitos materiais, de conduta e resultado, em sendo o caso de desaparecimento dos vestígios, a prova testemunhal poderá suprir a falta do exame de corpo de delito. 

Ocorrido recentemente e divulgado pela mídia, foi o caso de Eliza Samúdio. O Ministério Público ofereceu denúncia pelo crime de homicídio consumado, mesmo sem a comprovação científica da morte. 

No caso, o Promotor e Justiça Henry Castro, narrou, com base nos elementos de prova do Inquérito Policial, que Eliza foi levada à força desde a cidade do Rio de Janeiro até o sítio do goleiro, localizado em Esmeraldas (MG), local onde foi mantida em cárcere privado. Após, foi entregue para o indivíduo de alcunha “Bola”, que a teria asfixiado e depois destruído o corpo, que nunca fora encontrado. O filho de Eliza, Bruninho, foi encontrado com desconhecidos em Ribeirão das Neves (MG). 

Conforme de conhecimento público e notório, o ex-goleiro Bruno foi condenado pela morte da amante, por homicídio triplamente qualificado - por motivo torpe, asfixia e uso de recurso que dificultou a defesa da vítima -, bem como do sequestro e cárcere privado do filho em comum. Bruno foi condenado a 22 anos de prisão, Macarrão a 15 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, atenuado em razão de sua confissão. Por fim, “Bola” também foi condenado a 22 anos de prisão pela morte de Eliza e pela ocultação do cadáver da vítima. 

A juíza Marixa Fabiane Lopes Rodrigues proferiu sentença de pronúncia com a convicção de que o crime ocorreu com base na prova indireta e, ainda, chegou à conclusão de que Eliza havia sido brutalmente assassinada. Vestígios de sangue foram encontrados no carro de Bruno, ajudando a desvendar, e muito, o ocorrido no dia dos fatos. 

Destarte, nos crime de homicídio, o juiz, estando convencido da materialidade do fato, bem como dos indícios suficientes de autoria e participação, que indique a probabilidade de ter o autor do fato praticado o delito, conforme a linguagem do art. 413 do Código Processual Penal, pronunciará o acusado, que será julgado perante o Tribunal do Júri, tal qual o caso acima mencionado. 

Outro caso igualmente famoso é da vítima Denise Lafetá. O Ministério Público formou a opinio delicti baseado no conjunto de provas indiciárias, em que pese a ausência do auto de necropsia. Fortes e coerentes eram os indícios de que o acusado teria matado a vítima, dando fim à sua vida e ocultado seu cadáver (DÉLBIS, 1999, p. 23). 

Historiando brevemente. O réu matinha um relacionamento com a vítima Denise Lafetá. Viviam sob o mesmo teto. Após o desaparecimento. O réu disse à autoridade policial que havia levado Denise à rodoviária, mais precisamente a teria deixado no saguão, não sabendo qual seria seu destino. Denise sumiu em plena convivência com o réu e, ainda, deixou uma filha de seis meses de idade, por quem tinha profundo amor e carinho.  

O denunciado mentia aos parentes e amigos que procuravam por Denise. Suas versões eram sempre contraditórias. Ora dizia que Denise estava na residência de seus genitores, ora que a vítima teria lhe abandonado. O réu escondia-se e inventava diversas desculpas para fugir dos pais da vítima que, desconfiados do sumiço de sua filha, procuraram a autoridade policial.  

O Ministério Público ofereceu denúncia, a qual foi recebida. O feito tramitou regularmente, quando, na fase de pronúncia, o julgador a quo proferiu sentença impronunciado o réu, porquanto entendeu que inexistia a comprovação de materialidade direta ou indireta. O Ministério Público, inconformado, apresentou recurso em sentido estrito.  

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que, aliadas, as provas indiciárias e testemunhais eram coerentes entre si e que levavam a comprovar a morte da vítima e que os indícios de autoria eram fortes, bem como que a falta de materialidade não teria o condão de afastar a ocorrência do assassinato, e, também, não se deveria subtrair a decisão do corpo de jurados, os quais definiram o evento (DÉLBIS, 1999, p. 72).  

O réu foi julgado perante o Conselho de Sentença, que o condenaram pelo crime de homicídio qualificado por motivo fútil e pelo crime de ocultação de cadáver, nos exatos termos da denúncia (TELBIS, 1999, p. 89). O acusado, apelou, tendo sido negado provimento ao recurso. Resumo da história: Foi condenado a 13 anos de reclusão. 

Nesse caso, assim como em outros, ausente o laudo de necropsia e/ou exame que comprove a materialidade do crime de homicídio, a defesa sempre se aferra ao caso dos “Irmãos Naves”, o mais famoso erro judiciário da história do País.  

Entretanto, não há comparação entre este e os eventos acima citados.  

No caso “Eliza Samudio”, havia prova indireta da materialidade, vestígios, bem como indícios suficientes de autoria. No caso Denise Lafetá, provas indiciárias fortes e coerentes, aliada à prova testemunhal, que formaram, indiretamente, a materialidade do delito.  

No que tange ao caso “Irmãos Naves”, não havia sequer indícios da ocorrência do crime e, tampouco, indícios de autoria, apenas a confissão dos supostos autores, obtida, ao que se depreende, por meio de tortura.   

Com efeito, os depoimentos dos Irmãos Naves foram sob tortura, bem como houve coação de testemunhas. O indiciamento e a denúncia se alicerçaram, basicamente, na confissão, porquanto ausentes elementos concretos de prova do crime, quais sejam da morte da vítima e dos indícios de autoria, que poderiam resultar, inicialmente, da apreensão do dinheiro supostamente subtraído da vítima, o que não ocorreu.  

Portanto, no comparativo entre o caso “Irmãos Naves” e “Bruno”, o primeiro teve, como principal elemento, a confissão dos réus, o que, em observância à legislação penal atual vigente, não é considerado suficiente. De outro lado, Bruno negou o crime, mas a decisão de pronúncia, bem como condenação, foi lastreada em indícios materiais e concretos acerca da existência do crime e, igualmente, de autoria. 

Em suma, elementos de convicção suficientes à luz da legislação atual. 


CONCLUSÃO 

Portanto, conforme analisado ao longo do trabalho, tratando-se de crime de homicídio, é imperiosa a realização de exame de corpo de delito para a comprovação da materialidade, ou seja, a própria existência do crime, mediante laudo de necropsia ou cadavérico. Essa é a exigência legal, contida no art. 158 do Código de Processo Penal, para todos os crimes materiais.  

A não realização desse meio probante, denominado tarifado ou legal, implica ausência do laudo e, consequentemente, da materialidade, que não é suprida sequer pela confissão do acusado. 

No entanto, em caráter de exceção, quando impossível a realização do exame de corpo de delito direto, sobretudo por ação do autor do crime, como no caso paradigma envolvendo o ex-jogador de futebol Bruno, a lei permite a comprovação da materialidade mediante exame de corpo de delito indireto, conforme a dicção do art. 167 do Código de Processo Penal. Eis aí a exceção. 

Assim, é possível o suprimento do auto de exame de corpo de delito direto quando, através de provas indiretas, pode-se comprovar igualmente a materialidade do crime, quer através de prova testemunhal, quer documental, bem como, ainda, por indícios materiais, que, uníssonos, coerentes e convergentes e aliados à prova suficiente de autoria, formam a convicção necessária para a responsabilização criminal pela prática do crime doloso contra a vida.    

Nesse caso, é certo que sempre haverá polêmica diante da  possibilidade de que a suposta vítima, na verdade, está viva, como foi levantado em relação ao referido caso “Elisa Samudio”, podendo resultar na injusta condenação de um inocente.  

Tal controvérsia vem invariavelmente respaldada na lembrança do caso “Irmãos Naves”, que resultou, de fato, na condenação de inocentes, haja vista que a suposta vítima estava viva. 

Porém, os tempos mudam e o conhecimento científico avança, permitindo à ciência penal evoluir em seus julgamentos, em busca da verdade real, princípio norteador do direito processual penal. Igualmente doutrina e jurisprudência necessitam abandonar antigos paradigmas, objetivando o esclarecimento de crimes, notadamente o homicídio, a fim de combater à criminalidade e alcançar a efetiva e verdadeira Justiça. 

Conclui-se, pois, que, no aspecto fático, a questão é, de fato, complexa. Haverá, sempre, diversas indagações: Será que a vítima morreu, realmente? Será que foi assassinada e o cadáver destruído ou oculto? Será que a vítima sumiu sem deixar notícias?  

E o que é pior: E se algum dia a suposta vítima reaparecer com vida?   

No entanto, o Código de Processo Penal é expresso ao dispor que o exame de corpo de delito no crime de homicídio - laudo cadavérico - pode ser substituído pelo exame de corpo de delito indireto, sempre que não for possível a localização do cadáver. 

O criminoso não pode restar impune pela prática de um crime perfeito. Assim, não sendo possível realizar o exame de corpo de delito direto, seja pelo desaparecimento do cadáver, bem como pelo consequente desaparecimento dos vestígios, a prova testemunhal, e, também, a prova indiciária – conforme entendimento legal e jurisprudencial -, poderá suprir-lhe a falta, nos termos do art. 167 do Código de Processo Penal. 

Se o homicida planejou o “crime perfeito”, escondendo o cadáver, essa ação não deve e não pode em hipótese alguma restar impune. O entendimento de que somente o corpo da vítima é prova hábil a comprovar a materialidade do delito em comento é inadmissível, ultrapassado, retrógrado, conforme se concluiu no presente trabalho, ainda mais porque a própria lei processual penal possui mecanismo para suprir a ausência do exame de corpo de delito direto, qual seja, o exame de corpo de delito indireto.  


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VAZ, Nathiane Leivas; ROCHA, Enrique Omar et al. Homicídio sem cadáver. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5671, 10 jan. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/67859. Acesso em: 23 abr. 2024.