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A decadência do texto e do discurso jurídico frente ao judiciário do sortilégio

A decadência do texto e do discurso jurídico frente ao judiciário do sortilégio

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O pior que pode acontecer para um país, tendo um modelo esgotado, é nele persistir. O texto e o discurso jurídico declinam em sua efetividade em face do comando judicial interpretativo. quando a norma jurídica é constituída no julgamento dos casos mais emblemáticos, em desacordo com a sistematização de que eles seriam os portadores.

Sumário: 1. Introdução; 2. O paradigma de uma boa análise; 3. O voluntarismo e a precariedade da justificação; 4. O colapso da autoridade judicial; 5. Não existe um sistema autocorretivo nos tribunais; 6. Porque o texto e o discurso jurídico não portam mais o conhecimento do Direito que é aplicado; 7. Conclusão: o esgotamento de um modelo.


1. Introdução

DEIXEMOS de lado, desde logo, os textos de exposição de matérias jurídicas que parecem transcrições de aulas temáticas destinadas à preparação para concursos, ou correspondem a uma abordagem dita “especializada”,  que pululam em vídeos da internet e habitam também, com surpreendente frequência, a TV Justiça.

Tais redações fazem o sucesso de sítios eletrônicos focados na vulgarização, mas se mostram incapazes de analisar os fenômenos de mudança dos parâmetros, de épocas, de procedimentos, bem como de sistematizar o direito positivo inflacionado com regras abruptas, que é desmentido ou infirmado por interpretações novas, não raro estabelecidas contra tudo o que se entendia até então.

Compreensão da dogmática jurídica é, em tais escritos, um processo doloroso de descida ao que está recôndito demais para ser exposto. É como devassar uma intimidade.

Então a vulgarização abandona o que é ignorado, não faz nenhuma tentativa de entender as razões do mundo ignoto em que não penetra, e aposta tudo na resposta esquemática, como se sempre estivesse procurando achar a ‘resposta certa’.


2. O paradigma de uma boa análise

FIQUEMOS, assim, com os melhores textos, os mais profundos, os que merecem a classificação de analíticos, como os de autoria do professor de Direito Constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, hoje colunista da revista Época.

No início de 2018 esse autor sacudiu a desorientada crítica jurídica publicando na coluna “Ilustríssima Conversa”, que então se inaugurava no jornal Folha de S. Paulo, o artigo sob o título “Na prática, ministros do STF agridem a democracia” (FSP, 28.01.2018).

A editoria do jornal publicou, como introdução, o seguinte:

“Resumo: Professor de direito constitucional da USP faz duras críticas ao STF. Afirma que a corte, numa espiral de autodegradação, passou de poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos. Explicações para isso se encontram na atuação de ministros e no desarranjo de ritos e procedimentos.”

Trata-se de uma abordagem radicalizada (que desce à raiz) acerca do mau funcionamento da nossa principal corte, quer pela sua atuação crescentemente errática, quer pelo alto grau de desempenho individual dos ministros em busca de protagonismo, situações que criam um desanimado coletivo em que se manifestam somente caminhos paralelos e alianças de ocasião.

O artigo de Hübner repercutiu intensamente.

Seus temas foram comentados na imprensa aberta e em publicações temáticas.

Falou-se mesmo do seu efeito “rumoroso”.

Tanto foi assim que o jornal FSP convidou o ministro Roberto Barroso para respondê-lo, o que este fez em 23.02.2018 com outro artigo intitulado “‘Operação Abafa’ tenta barrar avanços no STF”, despropositado até no título, uma vez que inspirado em alguma teoria da conspiração (que, como outras parecidas, não se sabe de onde vem).

Barroso foi também infeliz porque, depois de fabricar – no julgamento de embargos infringentes (Regimento Interno do STF, art. 333) pelo Pleno do Supremo, em 4.02.2014, que absolveu oito condenados no processo do ‘Mensalão’, incluindo aquele que havia sido tido como o chefe do esquema, José Dirceu, na decisão condenatória anterior – a ‘teoria’ do “quociente de penas” e do “ponto fora da curva”, sob as censuras severas de Joaquim Barbosa, sustentou no artigo aludido o “papel iluminista” do STF.

ORA, nada seria mais despropositado, primeiro porque não vivemos na época do Iluminismo, nem em outra assemelhada a ele, tanto pelo grau de ruptura com o ancien régime como pelo de proposição de novas concepções de vida social (que hoje não existem); segundo, porque o Iluminismo foi um movimento de pregação dos valores científicos sobre os da ‘crença’, inspirados em Francis Bacon, a quem os iluministas dedicaram a elaboração da sua Enciclopédia; terceiro, porque Hübner descreveu formas de atuação do Supremo, com o predomínio de concepções mutantes e voluntaristas, que levaram antes à obscuridade do que à luz de um sistema de conhecimento novo.

QUANDO foi julgada a Ação 470, conhecida como o processo do ‘Mensalão’, os ministros Cesar Pelluso e Aires Brito haviam votado pela condenação. Eles foram atingidos pela aposentadoria compulsória e substituídos por Teori Zavaski e Roberto Barroso que, como bons pagadores de promessa por sua nomeação no Governo Dilma, constituiram nova maioria por ocasião do julgamento do agravo regimental, formando o placar de 6 x 5 pela absolvição de oito réus do crime de formação de quadrilha.

Todavia, não escapa ao entendimento mediano das coisas do Direito que jamais poderia haver a completa segmentação delitiva do pagamento de propina a parlamentares, com verbas retiradas da publicidade superfaturada de órgão oficiais, se não houvesse um comando, a atribuição variada de tarefas e uma complexa rede de agentes e operadores, tudo tipificando às escâncaras o crime de formação de quadrilha.

Barroso, por fim, em seu artigo – largamente criticado por ser pretensioso e derivativo – não respondeu nada do exposto no texto de Hübner.


3. O voluntarismo e a precariedade da justificação

POUCO DEPOIS, o professor Conrado Hübner Mendes passou a ser colunista da revista Época. Ali, em seguida, produziu outro texto, apropriadamente classificável como magistral, enfocando a atuação do ministro Gilmar Mendes (“Um juiz de princípios”, 17.05.2018, com o subtítulo “Decisões de Gilmar são previsíveis, mas essa previsibilidade não tem relação com segurança jurídica, como se pede a um bom juiz”).

Poucos textos jurídicos respondem tão bem à ironia defendida, como abordagem das situações irrisórias da nossa existência, por Machado de Assis em seu conto “O Medalhão”.

Na verdade, Hübner descreve a atuação de Gilmar Mendes como a de um juiz sem princípios, e esta é a segunda e verdadeira leitura de seu título ao artigo.

Mostrando isso, vale a transcrição deste excerto:

“Gilmar Mendes é retrato de uma época. Nenhum outro protagonista da deterioração da democracia brasileira nos últimos anos teve, sozinho, tamanha onipresença nos eventos que importam para contar essa história. Nenhum movimento significativo do xadrez político nacional foi dado sem sua assessoria. Quando Luis Roberto Barroso lhe confessou que “V. Exª. é um constrangimento para o STF”, expressava mal-estar que transcende o tribunal. É também constrangedor, para um professor de direito, escrever repetidas vezes sobre um mesmo personagem. À medida que seu grau de malignidade volta a subir, contudo, não custa alertar para o perigo de sua normalização: no momento em que o padrão Gilmar se tornar o novo normal, já teremos cruzado o ponto de não retorno.” (...)

Mais adiante, Hübner expõe o estado de inércia que o STF cultua em seu reino intocável onde, não obstante, reside o seu declínio:

“Restam outras facetas. Uma delas é a do juiz-empresário: se a Constituição veda a juízes exercer outra atividade, exceto uma de magistério (art. 95), como pode um juiz ser sócio de empresa de ensino? Como pode a empresa do ministro prestar serviços (sem licitação) a governos de todos os níveis e receber patrocínios (alguns ocultos) de grandes empresas, todos com ações no STF? Como pode esse juiz negociar patrocínios (com Joesley Batista, por exemplo)? Como pode se ausentar de sessão do Supremo para participar de evento da empresa? Como pode a presidente do STF silenciar?”

O artigo conclui com o ingrediente que o autor acrescentou aos seus textos, marcando-os idelevelmente,  – a coragem:

“No ano em que o livro “Coronelismo, Enxada e Voto”, clássico de Victor Nunes Leal, talvez o maior ministro da história do STF, completa 80 anos, Gilmar lhe presta homenagem involuntária. Difícil medir o mal que faz à corte e a irresponsabilidade do colegiado que o tolera.”

TODAVIA, se fossem (ou vierem a ser) focadas as atuações dos ministros Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, bem como as metamorfoses acometidas ao já morto Teori Zavaski e ao citado Roberto Barroso, o resultado será apenas um pouco menos estarrecedor do que o exame de caso de Gilmar Mendes, com a nota significativa de que os dois últimos mencionados – depois de um começo desastroso, e quem sabe por causa dele – voltaram a prestigiar com mais coerência o sistema legal, evitando vulnerá-lo com interpretações pró-crime.

A ‘consciência súbita’ que acometeu Barroso e Zavaski parece estar expressa no comentário do último, quando já relator da Operação Lava-Jato no STF: “a gente puxa uma pena e vem uma galinha”.

Em que pese prosaico, próprio do tipo humano de cultura ligeira que o brasileiro trata com malícia como gringo ilustrado, esse comentário foi repetido por Herman Benjamin, relator da impugnação da chapa Dilma/Temer no julgamento do TSE. Sinal de que, de fato, o exame das provas dos autos, necessárias para o voto de qualquer relator, mostrou nos dois tribunais sinais tão veementes de crimes que não era mais possível esconder ou tergiversar sobre eles.


4. O colapso da autoridade judicial

NÃO É À PUDICÍCIA da ministra Cármen Lúcia que pode ser atribuído o silêncio da Corte Suprema diante dos devaneios jurídicos de Gilmar Mendes ou a sua ostensiva má conduta funcional. Na verdade, se há alguma situação de vida que justifique a expressão, um tanto retórica mas aqui verdadeira, “eloqüência do silêncio”, tal situação é a do contexto atual do STF, na sua composição, na sua errância, na assimilação deformada do que seja o ativismo judicial ou do que signifique modulação de efeitos em um sistema que não é o da common law.

Por ativismo tem sido praticada toda a sorte de voluntarismo, fugindo às regras estabelecidas de interpretação e de fixação da norma jurídica, bem como têm sido supridas lacunas que não existem ou realizadas aplicações extensivas, mesmo diante de um preceito que é restritivo por definição e finalidade legal.

Já a modulação de efeitos serve para tudo, como se vê no julgamento sobre a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em que tantas condições são estabelecidas em torno do cumprimento do julgado, de tal modo que se cria um código de procedimento ou de conduta, tal como também acontece com a chamada súmula vinculante das algemas. A modulação é estabelecida como um intercurso que, para ser cumprido, exige verdadeira liturgia.

Essa confusão que faz jus ao espírito bizantino, já que temos um sistema constitucional e legal baseado no texto dispositivo explícito, mostra que o Supremo ainda longamente navegará na cabotagem do direito alheio, às vezes conhecido superficialmente. A adoção voluntária da influência americana tem sido trabalhada no melhor estilo das Ordenações e o resultado só poderia ser uma grande fantasia das palavras, em que nada é preciso e todo esforço parece ser feito para construir uma imaginosa alegoria.

É em volta dessa catedral de papel que Gilmar Mendes passeia praticando todos os desvios que lhe vêm à mente e não se pode atribuir somente a Cármen Lúcia a falta de providências a respeito, pois outros presidentes da corte, antes dela, já conheciam esse mundo dos “infortúnios da virtude” que Gilmar frequenta amiúde, e também nada fizeram a respeito.

TAMBÉM FAZ SILÊNCIO sobre Gilmar Mendes o ministro Marco Aurélio “Protagonista” de Mello, pois já confessou publicamente ter feito lobby para a nomeação de sua filha desembargadora pelo quinto no TRF-2, ainda que jovem profissional inexperiente.

Marco Aurélio, cujo acréscimo ao nome é indispensável pela perseguição compulsiva que faz ao protagonismo pessoal, sem que isso tenha sido suficiente para criar uma tendência interpretativa sua, coerente e respeitável, em que pese seu longo tempo de judicatura no Supremo, também concedeu liminar assegurando aos funcionários do Senado a percepção de ganhos acima do teto constitucional, o que acontece até hoje, em detrimento dos cofres públicos, de modo que fabricou uma oportunidade para Renan Calheiros, quando presidente daquela casa legislativa, posar de defensor da moralidade na administração pública.

Logo ele, multiprocessado por corrupção; mas, no caso, estava certo ao cortar os salários multiplicados indevidamente além do teto.

Marco Aurélio “Protagonista” de Mello age assim: subverte a realidade das coisas pois certamente é partidário de alguma teoria cósmica de que o mundo é mesmo um caos.

Deve ser isso o que entende por “subversão”, certamente tida por ele como um mérito atribuído a outros – e invejado – já que progrediu e mesmo caracterizou sua carreira como servidor da ordem estabelecida, como também serviu-se bastante bem dela.

IGUALMENTE FAZ SILÊNCIO sobre Gilmar Mendes o ministro Ricardo Lewandowski. Ele já foi marcado para sempre pelo fato de acolher, em longo voto escrito, a preliminar suscitada de improviso, da tribuna, pelo advogado Márcio Thomás Bastos, na primeira sessão de julgamento do “Mensalão”, no sentido de desmembrar o processo em relação aos réus que não tinham foro privilegiado.

A pretensão já havia sido apresentada duas vezes durante o curso da ação, ambas negadas. Pesava a acusação por crimes continuados e outros que só poderiam ser praticados por associação. Logo, as características do processo recomendavam sua unidade.

Mesmo diante desse histórico, estranho é que Ricardo Lewandowski já soubesse antecipadamente que o advogado Bastos iria suscitar a questão pela terceira vez, tanto que preparou seu voto por escrito, acolhendo-a.

Se existe algum sentido para a expressão jogo de cartas marcadas então obviamente é este.

Lewandowski não soube nem mesmo disfarçar.

Recentemente, deu liminar obstando a venda de subsidiárias da Eletrobrás e, como mostra o artigo “O direito de privatizar e a liminar do ministro Lewandowski”, de Irapuã Santana do Nascimento e Elena Landau, publicado no ConJur de 10.07.2018, o ministro referido adulterou os precedentes que ali cita e, na verdade, nada havia em apoio à liminar que concedeu. Tanto assim que o presidente do TRF-2 decidiu em contrário e a ministra Cármen Lúcia manteve este último julgamento, o que deixou Lewandowski diante do vazio.

O vazio que é seu verdadeiro habitat e só será substituído, no adequado tempo, pelo seu ingresso no Museu de Cera de Madame Tussauds.

O TERCEIRO ‘silencioso’ sobre Gilmar Mendes é Dias Toffoli. A sintonia entre ambos é de tal sorte que hoje formam uma parceria. Como não se trata de uma dualidade eminente, voltada para os altos interesses da justiça e da República, essa parceria “fuleira” atrai esse qualificativo que nosso idioma herdou do lunfardo portenho. Tais são os “parças” como se diz na linguagem – adequada para o caso - dos times de futebol. Bem a propósito, pois sua ‘tática’ é destruir o colegiado do STF.

Quando o Supremo discutiu recentemente sobre a manutenção da execução da pena após o julgamento de segundo grau, examinando o Caso Lula, duas eram as proposições de voto, bastante conhecidas.

Uma sustentava uma leitura literal do texto contido no art. 5º da Constituição, de modo que equiparava a redação que trata da (1) culpa definitivamente formada com o trânsito em julgado de sentença condenatória penal (2) com o cumprimento da pena.

A outra entendia que o esgotamento do exame da matéria de fato nas instâncias ordinárias autorizava a execução provisória, uma vez que os recursos cabíveis somente poderiam enfrentar, a partir de então, matéria de direito, pois no STJ ou no STF não haveria mais revisão de provas.

Esta última corrente havia triunfado em julgamento ocorrido em 5.10.2016, na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 44 do Distrito Federal, rel. Édson Fachin, num alentado acórdão de 250 páginas. Esse entendimento voltou a ser vitorioso no exame do Caso Lula em 4.04.2018.

Pois Dias Toffoli resolveu encontrar um tertius onde ele não existe: o início da execução da pena não dependeria do trânsito em julgado, é certo, mas também não incidiria após o julgamento de segundo grau.

Teria de aguardar o pronunciamento do STJ no julgamento do recurso especial.

Esqueceu-se o ministro de apresentar uma fundamentação teórica para essa orientação, já que ela nega a interpretação literal da Carta Magna, mas também nega o esgotamento da matéria de fato como dies a quo para o cumprimento da pena.

Na verdade, não há teoria nenhuma no voto de Dias Toffoli, mas ele foi acompanhado por Gilmar Mendes, o parceiro que não o abandonou nem no delírio interpretativo.

Isto não só revela a situação peculiar – hoje vigente no Supremo -, mostrada no teatro do absurdo de Samuel Beckett e de Eugène Ionesco, de não haver uma razão para as atitudes e as coisas, como também haver uma sem-razão, permanente e inescapável, para afirmar que nos movemos num tempo e espaço sem sentido.

NÃO É TUDO, o terceiro ‘silencioso’ sobre os desvios de Gilmar Mendes, e agora aliado dele, inovou novamente ao conceder habeas corpus de ofício a José Dirceu, em 26.06.2018, em uma reclamação regimental que foi rejeitada (e ainda tinha o objeto diverso de questionar os fundamentos da ordem de prisão...).

Dias Toffoli sustentou então, sendo acompanhado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, que “havia plausibilidade” no recurso especial ao STJ, de modo que a pena (de 30 anos e 9 meses) poderia ser alterada.

Não explicou que esse não é um critério jurídico para concessão de habeas corpus e que todos os recursos, excepto os que não podem ser conhecidos, têm de alguma forma plausibilidade ou virtualidade de produzirem modificação no julgamento recorrido. Caso contrário, não teriam objeto.


5. Não existe um sistema autocorretivo nos tribunais

OUTROS PERSONAGENS se movem nesse palco; nele há muitos figurantes tomando o lugar dos atores principais, ao mesmo tempo em que o roteiro não comporta tantos incidentes e o tumulto em cena, de modo que seja possível permitir que a comédia possa chegar a um fim.

Em termos de encenação, talvez coubesse ao decano Celso de Mello o papel do corifeu, cuja presença nos vem do teatro grego, mas ele teria de estabelecer uma palavra prevalente, teria que anunciar a definição de um destino.

O decano, porém, não é um anunciador; voltou-se para a interioridade do amor à palavra, que cultua com animada ênfase, ainda que o seu significado seja o curial.

Seus votos são recheados de negritos, sublinhados e itálicos.

Parece que o som, os fonemas, constituem para ele a grande paródia da cena verdadeira; parece bem que a ‘enfeitam’.

É como se a indisciplina dos atores fizesse com que o diretor abandonasse a sua mise en scene, ou o chef d’orchestre perdesse o andamento ou o controle da partitura (ou seja, das leis), e tudo fosse entregue ao improviso....

Ao lado do decano, o ministro Luiz Fux tem suas qualidades de julgador reconhecidas há muitos anos, por ser juiz de carreira, mas, como seu colega mais velho, perde-se no acessório, e esse acessório passa a ser o mais marcante em sua atuação.

Por exemplo, seu empenho na nomeação da filha (tão jovem como a filha de Marco Aurélio “Protagonista” de Mello, e que integrava o mesmo escritório de advocacia de Sérgio Bermudes, onde também trabalha a mulher de Gilmar Mendes) como desembargadora do quinto no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deixou-o  devedor de favores à magistratura carioca. Talvez por isso, sendo relator do caso, não concluiu por quase cinco anos o exame dos penduricalhos pagos com base em leis estaduais e resoluções do próprio TJ-RJ à magistratura daquele Estado, embora inquinados de inconstitucionalidade em ação movida pela Procuradoria estadual.

Luiz Fux também sustentou uma liminar que estabelece o pagamento de auxílio-moradia, por ele dada e que vige há mais de quatro anos. Por ela, ele concedeu aos juízes ativos o mesmo que ele próprio recebia a igual título. Era então o único ministro do Supremo que auferia auxílio-moradia. Hoje não há tal pagamento no STF.


6. Por que o texto e o discurso jurídico não portam mais o conhecimento do Direito que é aplicado

É DIANTE DISSO, dessa realidade palpável e conhecida de todos, que se produzem o texto e o discurso jurídico.

Daí a sua decadência.

Não há como produzir uma teoria do processo, por exemplo, ou sobre a definição de culpa, ou qualquer outro sistema justificador do ordenamento jurídico tanto quanto um rol aceitável de requisitos para a fundamentação de um julgado.

O Supremo Tribunal Federal perverteu Heráclito (que seu contemporâneo Sócrates já considerava obscuro): ali não se atravessa o mesmo rio (do Direito) duas vezes...

O próprio professor Conrado Hübner Mendes, que continua a produzir textos excelentes, publicou (Época, 26.07.2018) um artigo com o título “Reformar ou ser reformado: o dilema do STF”, tendo como subtítulo “Há tribunal constitucional que incomoda pelo que faz bem. O STF incomoda mais pelo que faz mal”.

Embora, em linhas gerais ele reafirme a crítica que vem desenvolvendo, mostrando que a vontade de se afirmar dos ministros do Supremo, como personalidades de um direito plenipotenciário, vem impedindo o tribunal de se reformar, o trecho que passa a ser analisado aqui revela um somatório de erros, prova cabal de que é impossível colocar uma ordem sistemática na cena contraditória e repleta de malícias que ali se desenha.

Diz o texto de Hübner:

“O STF precisa de uma boa reforma, não de qualquer reforma.

Intuição, palpite e afeto podem ser gatilhos de mudança, mas não são nortes. O antipetismo, sob condução de Eduardo Cunha, aumentou em 2015 a aposentadoria de ministros para 75 anos de idade por meio da “PEC da Bengala”.  (*) Fabricou pânico diante de uma “Corte de ministros do PT”. Não apontou evidência empírica de que ministros se curvam ao partido. (**) O petismo, por sua vez, em reação ao julgamento do mensalão, buscou combater o “ativismo judicial” — que mal conseguiu conceituar ou demonstrar — por meio da PEC 33, de 2011. Propunha, entre outras coisas, um recurso plebiscitário contra certas decisões do STF. (***)

A maioria dos Projetos de Lei sobre o STF que tramitam no Congresso trata do método de nomeação de ministros. Variável importante, mas que toca na superfície do colapso arquitetônico do tribunal. A Câmara também aprovou, há poucos dias, Projeto de Lei que proíbe liminares monocráticas no controle de constitucionalidade. Não explicou o que essa lei acrescentaria à Lei 9882/99, que já proíbe tais liminares. (****) Se o STF ignora essa lei, por que seguiria a nova? Não se reforma cultura decisória numa canetada legislativa.”

E ainda:

“P.S.: sob a regência de Luiz Fux e Cármen Lúcia, o pagamento ilegal de auxílio-moradia universal a juízes e promotores vai completar quatro anos. Ao que parece, o caso será procrastinado até que um acordo atenda à magistocracia. Bilhões de reais depois, poderá ser arquivado. Outra vitória da baixa política judicial.” (*****)

EIS OS ERROS de Hübner marcados pelos asteriscos:

(1) – (*) O antipetismo conduzido por Eduardo Cunha estabeleceu a PEC da bengala em 2015

Errado: A PEC conhecida com esse nome recebeu o nº. 457 e foi de autoria do senador Pedro Simon, tendo sido apresentada em 2005.

Naquela época, o Governo Lula havia indicado apenas um ministro para o STF, Cézar Pelluso (2003). Só veio a indicar o segundo (Menezes Direito) em 2007.

A aprovação da PEC deu-se no âmbito do Congresso, e não somente na Câmara de Deputados. Logo, não poderia ser conduzida por Eduardo Campos, então presidente da câmara baixa.

Além disso, a PEC da bengala previa lei complementar para estender o novo limite de idade a outras categorias, uma vez que não se destinava somente à magistratura. Assim surgiu a Lei Complementar 125/2015, com projeto de autoria do senador José Serra, sendo vetado integralmente por Dilma Roussef. O veto foi derrubado pela expressiva votação de 64x2 no Senado e 350x15 na Câmara.

(2) – (**) O antipetismo fabricou o pânico de ministros indicados pelo PT e não demonstrou evidência empírica de vinculação deles ao partido

Errado: A vinculação dos votos de Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski têm histórico de “evidência empírica” gritante com os interesses de dirigentes do PT, notável principalmente quanto aos principais dirigentes, José Dirceu e Lula.

Negar isso, diante do verdadeiro rosário de episódios reveladores desse espírito (chamemos assim) é o mesmo que pretender apagar uma estrela com o dedo.

Também os ministros Teori Zavaski e Roberto Barroso ingressaram  quando houve o julgamento dos embargos infingentes ao acórdão condenatório do “Mensalão”. Compuseram nova maioria exatamente para excluir o crime de formação de quadrilha, quando sabido que os crimes praticados em ampla rede de desvio dos recursos públicos, subtraídos de superfaturamento, para subornar parlamentares, jamais poderia ser praticado sem que houvesse uma organização criminosa compartimentada.

Esses ministros se comportaram como pagadores de promessa de sua própria indicação.

Depois mudaram, quando a Operação Lava-Jato desabou sobre suas consciências e trabalhar partidariamente contra ela seria cavar a própria tumba como juiz.

(3) – (***) O petismo buscou combater o ativismo judicial pela PEC 33/2011, que submetia decisões do Supremo a plebiscito.

Errado: é uma má metodologia dividir correntes interpretativas em dois lados, só para facilitar a conclusão de que ambos têm seus vícios.

Na verdade, a PEC 33-A/2011 teve a autoria do deputado piauiense, que é médico, Nazareno Fonteles, conhecido por apresentar projetos que se enquadram no folclore político, como o que estabelecia o “consumo fraterno”, segundo o qual as famílias não poderiam ultrapassar um padrão médio de gastos, fixado pelo IBGE, de modo que o excesso de suas rendas seria destinado aos programas sociais.

É o mesmo que pretender os efeitos de uma revolução sem ter o trabalho de fazê-la.

O projeto da PEC 33-A foi logo arquivado, ainda no âmbito das Comissões, depois de sofrer questionamentos no STF.

Não se pode subentender que ele foi uma tática consistente para combater o ativismo judicial, embora o cite em seu texto.

Mesmo porque o que se mostra sob o nome de ‘ativismo’ no Supremo, como percebeu o próprio professor Hübner, é um voluntarismo dispersivo e destruidor.

Ou seja: no nome não reveste o fato.

(4) – (****) A Câmara aprovou projeto que proíbe liminares individuais que reconheçam inconstitucionalidade, o que é inócuo, pois a Lei 9882/99 já veda essa prática e não é cumprida

Errado: Eis o que diz a mencionada lei:

“Art. 5o O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.

§ 1o Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.”

Como se vê, o texto legal vigente permite que a liminar seja concedida apenas pelo relator em três amplas hipóteses, e geralmente elas incidem na maioria dos casos em que é pedida.

Assim sendo, não se pode dizer, genericamente, que a lei vigente é descumprida; nem se preconizar que o projeto agora aprovado na Câmara será inócuo, quando na verdade ele inova e evita o protagonismo temerário e oportunista.

(5) – (*****) A baixa política judicial sustenta o pagamento ilegal do auxílio moradia e favorece à magistocracia

Errado: Tanto a liminar do ministro Luiz Fux concedendo aos juízes em atividade o auxílio-moradia incondicionado, como sua demora no voto de vista sobre os ‘penduricalhos’ concedidos à magistratura do Rio de Janeiro, com base em leis estaduais, resoluções do Tribunal de Justiça ou interpretações extensivas, fazem parte de um elenco de flagrantes ilegalidades dentre as muitas que os ministros do Supremo cometem desde que arvoraram-se em atores de televisão, ou celebridades que comparecem a programas gravados em estúdios ou ao vivo, ou ainda tornaram-se viajantes intercontinentais assíduos que vão a casamentos de amigos na ilha de Capri, ou a festas da realeza britânica ou – sem que isso seja o fim de um extenso rol – frequentam tribunas de congressos ou universidades onde destampam toda sorte de conceitos esdrúxulos, como o ministro Roberto Barroso, contumaz nessa prática, que sustentou no Reino Unido que o Brasil tem mais ações trabalhistas do que todas as nações do mundo somadas.

Isto não é, de nenhum modo, política judicial, nem mesmo baixa política judicial visando a implantar uma magistocracia. Primeiro, porque não há sinal do horizonte de qualquer programação que justifique a existência de uma política, desde que se tenha por esta a organização prática de acesso e do exercício do poder. Segundo, porque só haveria uma magistocracia caso a magistratura estivesse se entendendo, adotando uma visão de mundo uniforme, reivindicando uma identidade comum do seu papel. Ora, o que se vê é o contrário: uma magistratura convulsionada, com seu lado que mente e outro que o desmente, em que a procura da verdade não será melhor nem mesmo com a lanterna de Diógenes.

É PRECISO que esses erros sejam apontados ainda que incidentes nos melhores textos analíticos, entre eles o do professor Hübner, para que não se cristalize uma concepção de que existem ondas insondáveis ou impossíveis de controlar, que trazem a dissolução opressiva que não nos é dado deter.

Saber se o Supremo se reformará ou será reformado é hoje apenas uma especulação.

Quando Teori Zavaski e Roberto Barroso compuseram uma nova maioria no STF, em julgamento de embargos infringentes, com a ajuda (hoje, quem diria?) de Cármen Lúcia, para começarem o desmonte das condenações do ‘Mensalão’, Joaquim Barbosa, relator do caso e então presidente da Corte, fez uma declaração seca: “Alerto o país que este é só o primeiro passo”. De lá para cá muitos outros foram dados.

A desconstrução do Supremo é uma operação cruenta: sangra o Direito, sangra o país, sangram outras instituições que só podem operar com parâmetros estáveis.

Não se pode mais afirmar se um torturador está absolvido ad aeternitatem, embora vivo, identificado, aposentado e recebendo de cofres públicos. O julgamento do STF a respeito da anistia é simplesmente inconvincente, além de falho, pois não examinou todos os aspectos da questão e manteve uma espécie de feitiço interpretativo de que a lei editada no Governo Figueiredo foi “negociada”, sendo então intocável (ver, a propósito, “Caso Vladimir Herzog, o Estado brasileiro fora da lei” e “Ainda o Caso Herzog”, de Márcio Sotelo Felippe, in ConJur de 18.06.2018 e de 26.07.2018).

O Supremo é um case study de quem decaiu de si mesmo e se decompôs, mas que sobrevive – com pompa - na decomposição.


7. Conclusão: o esgotamento de um modelo

POR QUE se trata da decadência de um modelo?

Porque não é possível sustentar estudos a respeito de contratos como de teoria processual, assim como de políticas criminais ou de reformas legislativas coerentes, pois não há uma presunção de efetividade que os anime.

A cada dia, nada será como antes.

Em 15.03.2017, o Supremo julgou que o PIS e o COFINS não incluem o valor do ICMS na sua base de cálculo (RE 574706-PR). Bastou para que fossem criados cursos de atualização relâmpagos para incentivar ações em massa, pleiteando as diferenças tributárias daquela exclusão.

Esse é o único ensino, ou mais propriamente treinamento, que o quadro analisado permite. E que o tumultua ainda mais.

O negócio não é mais objeto do Direito, nas suas implicações com a transferência de propriedade, por exemplo: o que hoje avulta é o “negócio do Direito”. Ou seja, o Direito é o objeto do negócio.

Não há nenhum absurdo jurídico, teratológico que seja, que não possa ser acolhido por qualquer dos ministros do Supremo aqui referidos.

A crítica é um elemento fundamental para reconstituição de posições interpretativas, como para rever concepções do mundo, mas é impossível estabelecê-la quando seu processo de verificação, sua práxis, se torna interminável devido a modificações sucessivas, arranjos carregados de oportunismo (como de cinismo) ou infindáveis explicações incapazes de produzir o convencimento.

NUM TEMPO em que se entendia serem as relações jurídicas algo estável, e que a estabilidade era um desiderato relevante do Direito, o jurista Vicente Ráo produziu a obra “O Direito e a Vida dos Direitos”. Seria exagero escapista dizer que os direitos morreram desde então, mas é adequado sustentar que o Direito malbaratado que hoje temos não pode mais incutir vida aos direitos.

A crítica, que os revitalizaria, tornou-se marginal, não tem força para erguer novos parâmetros. Entre a teoria e os julgados há uma defasagem gigantesca, tão esmagadora que todos acorrem para apontá-la e, ao mesmo tempo, para constatar que não há muito (ou mesmo nada) o que fazer.

O pior que pode acontecer para um país, tendo um modelo esgotado, é nele persistir.

O acesso aos tribunais, o modo como estes se organizam e operam, as ações multiplicadas com direcionamento variado mas sempre especulativo, os filhos e cônjuges que atuam junto aos tribunais compostos por seus parentes (só no STJ, a então Corregedora do CNJ Nancy Andrighi listou dez ministros nessa situação e essa ousadia custou-lhe o cargo de presidente daquela Corte, pois sua eleição ficou inviabilizada), a inversão tumultuária de pautas e de prioridades em julgamentos, as contradições insolúveis dos julgados, os precedentes manipulados, as excentricidades e, movendo tudo isso, interesses poderosos arregimentados em um exército de produtores de recursos e incidentes os mais estapafúrdios... tudo isso já traçou um caminho sem volta e o Direito é incapaz de recompô-lo.

É como se os propósitos elevados da sincera República de Weimar pudessem ter sido invocados para impedir a ascensão do nazismo.

UMA PASSAGEM bastante conhecida da ópera Tosca, de Giacomo Puccini, expõe bem o espírito de nossa época. O personagem Mario Cavaradossi é levado à morte pelo vilão Scarpia, sob pretextos, pois este último visava arrebatar a amada do outro. Cavaradossi redige então sua última carta, que é a ária “E lucevan le stelle”: mesmo diante da morte, se brilhavam as estrelas, ele tinha razões para amar a vida.

Assim estamos.

Porém, no nosso caso, talvez seja apropriado sermos menos patéticos e enxergarmos o fracasso do Brasil dentro do horizonte que nos cerca, a ponto de reconhecer que tocar-se pelas estrelas “ia ser o brilho bonito mas inútil, porém de mais uma constelação”, como concluiu Macunaíma, ao pensar na própria morte. Então, “cruzou os braços num desespero tão heroico que tudo se alargou no espaço pra conter o silêncio daquele penar.”


Autor

  • Luiz Fernando Cabeda

    Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. A decadência do texto e do discurso jurídico frente ao judiciário do sortilégio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5572, 3 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68066. Acesso em: 10 maio 2024.