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Trabalho com condições análogas à escravidão em cruzeiros de luxo

Trabalho com condições análogas à escravidão em cruzeiros de luxo

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O salário nos cruzeiros de luxo é atrativo aos olhos, pago em moeda estrangeira, em dólar ou euro. Porém, a carga horária é exaustiva, podendo chegar a dezesseis horas por dia, e as condições são muitas vezes degradantes.

RESUMO: Em um mundo paralelo ao de navios luxuosos, que são sinônimos de requinte e conforto, temos sua tripulação, dispostos a servir vinte e quatro horas por dia. Por trás de todo o luxo encontram-se trabalhos com condições precárias e desgastantes, com turnos de mais de doze horas por dia, sofrendo por diversas vezes assédio moral e sexual. Essas condições muitas vezes equiparam-se às condições análogas a escravidão e com isso, muitas companhias de cruzeiros marítimos, para “fugir” da atual Legislação Brasileira clamam pela aplicação do Decreto nº 18.871/1929, também conhecida como Lei do Pavilhão. A presente Lei dispõe que as embarcações são extensões do território do País de seu registro, ou seja, todas as relações de trabalho da tripulação são regidas pelas leis do País da embarcação. Contudo, a 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região decidiu recentemente que é possível a aplicação da Legislação Trabalhista Brasileira, por entender mais benéfica ao tripulante. Portanto, se faz necessário uma análise sobre qual Legislação deve ser aplicada no caso concreto.

Palavras chaves: Escravidão. Legislação Brasileira. Lei do Pavilhão. Cruzeiros marítimos.


1 INTRODUÇÃO

Ao analisar o cenário atual, podemos verificar que o trabalho escravo ainda persiste em existir, mesmo após a abolição da escravidão no país em 1888. Existe com algumas condições diversas, seja em trabalhos urbanos ou rurais, em terra ou no mar.

Hoje não se trata mais da mera compra e venda de indivíduos ou a da imposição de castigos, mas sim de qualquer trabalho que viole a dignidade da pessoa humana.

Com isso, diversos Órgãos como o Ministério Público do Trabalho e o Ministério do Trabalho e Emprego têm implantado mecanismos de combate ao trabalho escravo contemporâneo. Através de uma maior fiscalização e com a criação de mecanismos que coíbem a sua prática. Além disso, a Organização Internacional do Trabalho também tem promovido ações em formas de convenções, acordos e tratados internacionais.

Portanto, o presente artigo abordará em primeiro momento os aspectos iniciais a respeito do trabalho escravo contemporâneo, seus conceitos, formas e mecanismos de coibição.

Em um segundo momento, pretende-se analisar os aspectos dos trabalhadores marítimos e a situação real da exploração de tripulantes através do trabalho escravo contemporâneo.

O turismo de cruzeiros marítimos cresceu exponencialmente ao longo dos anos, o que gerou milhares de empregos. Em uma época onde a taxa de desemprego no Brasil é altíssima, os brasileiros se viram tentados com o trabalho em alto-mar, a bordo dos navios de cruzeiro, como uma tentativa de mudar de vida.

O salário é atrativo aos olhos, pago em moeda estrangeira, em dólar ou euro. Porém, a carga horária é exaustiva, podendo chegar a dezesseis horas por dia, e as condições são muitas vezes degradantes.

A maior dificuldade é em definir qual legislação deve ser aplicada aos tripulantes, tendo em vista que muitos laboram em costa nacional ou estrangeira.

As temporadas de cruzeiros marítimos são realizadas sempre no verão, portanto a cada quatro ou cinco meses vai para outro Continente. Com isso há uma grande dúvida sobre qual legislação deve-se aplicar aos tripulantes brasileiros: a lei do pavilhão, onde a lei aplicável é a da bandeira do país da embarcação, ou a Lei Trabalhista Brasileira, que no caso concreto é mais favorável ao empregado. Assim, em um último momento passaremos a analisar o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região em reclamações trabalhistas contra algumas companhias de cruzeiro marítimo.


2 TRABALHO ANÁLOGO À ESCRAVIDÃO

O índice de desemprego no Brasil demonstra a exclusão social de milhares de brasileiros, que não possuem um trabalho decente. Isso facilita o trabalho escravo, pois muitos acabam se sujeitando a trabalhos com jornadas exaustivas, trabalhos por produção, sem direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal.

O trabalho escravo foi abolido oficialmente em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, porém, a escravidão persiste em existir com algumas condições diversas.

Assim, José Cláudio Monteiro de Brito Filho conceitua (2004, p. 14):

Podemos definir trabalho em condições análogas à condição de escravo como o exercício do trabalho humano em que há restrição, em qualquer forma, à liberdade do trabalhador ou quando não são respeitados os direitos mínimos para o resguardo da dignidade do trabalhador. É a dignidade da pessoa humana violada, principalmente, quando da redução do trabalhador à condição análoga a de escravo. Tanto no trabalho forçado, como no trabalho em condições degradantes, o que se faz é negar ao homem direitos básicos que o distinguem dos demais seres vivos; o que se faz é coisificá-lo; dar-lhe preço, e o menor possível.

Trabalho escravo, portanto, é todo aquele trabalho forçado, com jornada exaustiva ou sob condição degradante.

Previsto no art. 149 do Código Penal, reduzir alguém a condição análoga à escravidão é crime, com pena de dois a oito anos e multa. Além disso, de acordo com o § 1º (BRASIL, 1940):

Nas mesmas penas incorre quem: I – Cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – Mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

Assim, é visível que trabalho escravo contemporâneo não se resume apenas em privação de liberdade, mas também a qualquer meio de trabalho degradante e com jornada exaustiva.

Cezar Roberto Bittencourt defende que "a liberdade protegida pelo art. 149 não se limita à auto locomoção, mas principalmente procura impedir o estado de sujeição da vítima ao pleno domínio de alguém". (BITTENCOURT, 2009, p. 397-398).

Portanto, não se trata mais da compra e venda de indivíduos, mas sim de qualquer trabalho que não respeite a dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º da Constituição Federal.

O trabalho análogo à escravidão pode ocorrer de diversas maneiras, como por exemplo: trabalho forçado, degradante ou com jornada exaustiva. 

2.1 Trabalho forçado

O trabalho forçado compreende-se em “todo trabalho ou serviço, exigido de um indivíduo, sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”. (OIT, 1957).

Entretanto, excluem-se aqueles trabalhos prestados em razão do serviço militar obrigatório, os exigidos em consequência de condenação judicial e os provenientes de serviços eleitorais.

O trabalho forçado engloba também a falsa promessa de condição de trabalho, pois impossibilita o trabalhador de deixar o emprego por causa das coações físicas, morais ou psicológicas.

Truck System é um exemplo de coação moral, que ocorre através da servidão por dívidas. Muito freqüente em áreas rurais, onde o empregado, sob forte ameaça, é obrigado a comprar itens de subsistência e até mesmo seu próprio material de trabalho no estabelecimento comercial do próprio empregador.

Para evitar esse tipo de prática, o Precedente Normativo da SDC-TST autoriza o empregado rural a faltar um dia no serviço por mês ou meio dia a cada 15 dias para fazer compras.

As coações físicas e psicológicas por outro lado, ocorrem quando há ameaça, ofensa, ou até mesmo agressão física através de castigos estipulados pelo empregador.

A OIT estima que só em 2012 quase 21 milhões de pessoas foram vítimas de trabalho forçado em todo mundo. Além disso, a Ásia é o continente com maior número de trabalhadores forçados. (ILO, 2012, s.p)

2. 2 Trabalho degradante

São aquelas condições que desrespeitam as necessidades básicas do trabalhador. Neste caso, o trabalhador geralmente é submetido à humilhação, com violação do princípio da dignidade humana. O trabalho degradante também é caracterizado pelas péssimas condições de trabalho e sua remuneração inadequada.

Para José Claudio Monteiro Brito (2018, p.101):

Condições impostas pelo tomador de serviços que, em relação de trabalho em que prestador de serviços tem sua vontade cerceada ou anulada, com prejuízos à sua liberdade, resultam concretamente na negação de parte significativa dos direitos mínimos previstos na legislação vigente, desde que isso signifique a instrumentalização do trabalhador.

Portanto, trabalho degradante ocorrerá quando houver exigência abusiva por parte do empregador, em relação à execução do trabalho. Seja em razão de sua intensidade, quantidade ou até mesmo quando houver privação de direitos fundamentais.

Da mesma forma, é o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (2013, s.p):

DANO MORAL. MAQUINISTA DE TREM DA VALE. TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES. DESRESPEITO AO MÍNIMO EXISTENCIAL. COMPROVAÇÃO. É patente o trabalho em condições degradantes a que estava sujeito o empregado que trabalha na função de maquinista e que é privado de utilizar o banheiro sempre que necessário, em virtude da existência de um dispositivo de segurança intitulado “alertor” que o impede de se afastar do painel de controle, quando em movimento a locomotiva, por mais de 1min25seg, sendo obrigado, por conseguinte, a defecar em jornais e sacos plásticos, bem como a urinar pela janela ou em copos e garrafas no mesmo local onde fazia suas refeições (cabine do trem). Tal situação atenta contra a garantia do mínimo existencial: conjunto de garantias materiais para uma vida digna.

O impedimento imposto ao funcionário de utilizar o banheiro durante o horário de serviço também pode ser considerado trabalho degradante, tendo em vista que viola direitos fundamentais.

Deste modo, a ausência de condições básicas de higiene, alimentação, ou qualquer violação aos direitos indisponíveis do trabalhador são considerados trabalho com condições degradantes.

2.3 Jornada Exaustiva

Sempre que a jornada for excedente a previsão legal por reiteradas vezes pode caracterizar a jornada exaustiva.

Atualmente, a jornada máxima no Brasil é de 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais, podendo ser estendida por mais 2 (duas) horas extras. Ainda, quando houver labor extraordinário, será acrescido na remuneração um adicional de no mínimo 50%, de acordo com o art. 59 da CLT (BRASIL, 1943):

Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. 

§ 1o  A remuneração da hora extra será, pelo menos, 50% (cinquenta por cento) superior à da hora normal.

O indivíduo necessita de um tempo razoável de descanso para recuperar suas forças para a jornada seguinte e, portanto, nas situações em que o descanso semanal remunerado é violado também pode ser considerada jornada exaustiva.

Essas condições afastam o direito de repouso, lazer, convívio social e familiar, causando abalos psicológicos ou à saúde.

O Colendo Tribunal Superior do Trabalho, recentemente condenou (2016, s.p):

DANO MORAL. JORNADA DE TRABALHO EXAUSTIVA. RESTRIÇÃO AO DIREITO SOCIAL AO LAZER. As regras de limitação da jornada e duração semanal do trabalho tem importância fundamental na manutenção do conteúdo moral e dignificante da relação laboral, preservando o direito social ao lazer, previsto constitucionalmente (art. 6º, caput). É fácil perceber que o empresário que decide descumprir as normas de limitação temporal do trabalho não prejudica apenas os seus empregados, mas tenciona para pior as condições de vida de todos os trabalhadores que atuam naquele ramo da economia. Diante desse quadro, tem-se que a deliberada e reiterada desobediência do empregador às normas de limitação temporal do trabalho ofende toda a população, que tem por objetivo fundamental construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3°, I, da CF). Tratando-se de lesão que viola bem jurídico indiscutivelmente caro a toda a sociedade, surge o dever de indenizar, sendo cabível a reparação por dano moral. Frise-se que, na linha da teoria do danum in reipsa, não se exige que o dano moral seja demonstrado. Ele decorre, inexoravelmente, da gravidade do fato ofensivo que, no caso, restou materializado pela exigência de prática de jornada exaustiva e consequente descumprimento de norma que visa à mantença da saúde física e mental dos trabalhadores no Brasil. Recurso de revista conhecido e desprovido.

De acordo com a jurisprudência, a jornada exaustiva ocasiona um dano existencial e a sua limitação está, portanto, ligada diretamente à dignidade da pessoa humana.

Assim, a jornada exaustiva se caracteriza através da reiterada extrapolação de jornada ou até mesmo por meio da intensidade do trabalho durante várias horas.


3 AÇÕES PROMOVIDAS PARA COMBATER AO TRABALHO ESCRAVO

De acordo com o Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de escravo, criado pelo Ministério público do Trabalho e emprego, o Brasil reconheceu oficialmente a existência de trabalho em condições análogas à escravidão apenas em 1995. Somente a partir deste momento o Governo Brasileiro deu início às medidas para erradicá-la. (BRASIL, 2011, pg. 8).

Apesar do tardio reconhecimento, o país é referência na implantação de mecanismos de combate ao trabalho escravo. Os principais órgãos fiscalizadores são o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e o Ministério Público do Trabalho (MPT).

O MTE é um órgão do Poder Executivo, responsável por receber todas as denúncias de trabalho escravo e verificá-las. Para verificação dessas denúncias, o órgão conta com o auxílio de um Grupo Especial de Fiscalização Móvel. Este grupo é extremamente necessário para acesso a lugares de difícil acesso, conseguindo assim, resgatar milhares de trabalhadores.

Outro mecanismo utilizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego é a Lista Suja, que serve para registrar os empregadores que mantiveram empregados em condições degradantes. Essa lista serve inclusive para aplicar sanções, como o cancelamento de financiamentos por bancos públicos.

Porém, a Lista Suja sobre diversas críticas a respeito de sua constitucionalidade. Muitos alegam sua ilegalidade, com base nos princípios da inocência e da reserva legal. De outro lado, há que se falar que o cadastro não viola o ordenamento jurídico, pois seguem princípios constitucionais fundamentais que constituem o Estado Democrático de Direito.

O Ministério Público do Trabalho também realiza diversas ações para erradicar o trabalho escravo contemporâneo, principalmente por meio de ações judiciais. Criou a CONAETE, que tem por objetivo (2002, s.p):

Integrar as Procuradorias Regionais do Trabalho em plano nacional, uniforme e coordenado, para o combate ao trabalho escravo, fomentando a troca de experiências e discussões sobre o tema, bem como a atuação ágil onde necessária se faça a presença do Ministério Público do Trabalho.

Esses órgãos tentam erradicar o trabalho escravo de diversas formas, tais quais: a) dando atenção ao trabalhador, através do resgate, da inclusão e informações, para que não se submeta novamente ao trabalho com estas condições; b) realizando sanções aos empregadores, para dificultar cada vez mais a prática; c) alertando a população em geral, para que compreendam que trabalho escravo contemporâneo é uma realidade, e que a denúncia é muito importante para coibir tais práticas. (VILLATORE, 2015, pg. 80).

3.1 Ações de combate no âmbito internacional

Em âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) foi criada em 1919, com o objetivo de promover a justiça social. "Formada por representantes de trabalhadores, empregadores e governo”, que são “responsáveis pela formulação e aplicação das normas internacionais do trabalho”. (OIT, 2018).

A OIT trouxe um avanço significativo para o cenário atual com a formalização do conceito de trabalho decente (BRASIL, 2012, p.3):

Sintetiza a sua missão histórica de promover oportunidades para que homens e mulheres possam ter um trabalho produtivo e de qualidade, em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humanas. Ponto de convergência dos quatro objetivos estratégicos da OIT (o respeito aos direitos no trabalho, a promoção de mais e melhores empregos, a extensão da proteção social e o fortalecimento do diálogo social), o Trabalho Decente é condição fundamental para a superação da pobreza, a redução das desigualdades sociais, a garantia da governabilidade democrática e o desenvolvimento sustentável.

Cavalcante e Villatore acreditam que a OIT passou a defender a ideia de um trabalho decente para possibilitar uma “globalização justa, capaz de oferecer a inclusão social”, independente do sexo e condição social. (2017, p. 9-24).

A OIT defende ainda, que todo trabalho deve ser adequadamente remunerado, com condições plenas de liberdade, equidade e segurança. Sempre priorizando a dignidade da pessoa humana.

José Cláudio Monteiro conceitua (2013, p. 57):

Trabalho decente, então é um conjunto mínimo de direitos do trabalhador que corresponde: ao direito ao trabalho; à liberdade do trabalho; à liberdade no trabalho; ao trabalho com condições justas, incluindo a remuneração e que preservem sua saúde e segurança; à proibição do trabalho infantil; à liberdade sindical; e à proteção contra os riscos sociais.

Trabalho decente é, portanto, um trabalho que permite satisfazer as necessidades pessoais e familiares, de modo que sejam garantidos todos os direitos fundamentais do trabalhador.

Ainda, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem tido um papel importantíssimo nesse cenário. Sua preocupação com o trabalho escravo iniciou-se na década de 30, com a edição da Convenção nº 29. Convenção pela qual, diversos países se comprometeram em abolir o trabalho forçado ou obrigatório, de qualquer forma, o mais breve possível.

Em 1948, a ONU promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, buscando a preservação dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Essa declaração é considerada o marco inicial da preocupação mundial com os direitos humanos.

O artigo 4º da Declaração prevê que: “ninguém pode ser mantido em escravidão ou em servidão; a escravatura e o comércio de escravos, sob qualquer forma, são proibidos”.


4 INDÚSTRIA DE CRUZEIROS E AS CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Aproximadamente no ano de 2000, o número de pessoas que buscavam o serviço de turismo marítimo cresceu absurdamente e de acordo com estatísticas da Organização Mundial do Turismo, é o tipo de turismo que mais cresce no mundo.

Com esse crescimento exponencial da indústria de cruzeiros marítimos foram gerados milhares de empregos. De acordo com dados da Cruise Lines Internacional Association (CLIA), “na temporada de 2016/2017 foram gerados 25.279 postos de trabalho na economia brasileira”. (CLIA BRASIL, 2017, p. 24).

Ressaltando ainda, que “de acordo com a legislação de cabotagem brasileira, as operadoras de Cruzeiros têm a obrigação de preencher um mínimo de 25% de suas vagas com tripulação brasileira”. (CLIA BRASIL, 2015, s.p).

Com isso, os trabalhadores se vêem tentados com as vagas de emprego nesse ramo de turismo. Porém, muitos só conhecem as vantagens: o salário é atrativo, pago em moeda estrangeira, sem descontos, alimentação gratuita no local, seguro de vida e também a oportunidade de conhecer diversos países.

Os processos de seleção geralmente ocorrem no Brasil, por um agente intermediário, onde é realizada a entrevista e assinado os contratos com prazos determinados de seis a nove meses. Toda a formalização do contrato ocorre em solo Brasileiro, porém é comum embarcarem no estrangeiro.

Todas essas condições parecem atrativas, porém, o Ministério Público do Trabalho recebe inúmeras denúncias de trabalho escravo em navios de cruzeiro. Em 2014, o MPT resgatou cerca de onze tripulantes em um navio de luxo da empresa MSC Cruzeiros (BRASIL, 2015, s.p).

Quem opta pelo trabalho como tripulante, portanto, deve ter em mente também que muitas vezes esse trabalho possui condições degradantes e jornadas extenuantes, de doze a dezessete horas diárias. Sem direito ao descanso semanal remunerado ou férias.

É importante ressaltar que em contratos nacionais, o trabalhador marítimo está sujeito à legislação brasileira. O art. 248 da CLT prevê a jornada dos trabalhadores marítimos, a qual não poderá ultrapassar 8 (oito) horas diárias. Além disso, o parágrafo 2º ainda trata que qualquer serviço que possa prejudicar a saúde do marítimo deve ser executado com intervalos de no mínimo, 4 (quatro) horas.

Em contrapartida, nas embarcações estrangeiras, é comum a realização de jornada de 11 (onze) horas regulares mais 3 (três) horas extraordinárias por dia.

Além disso, quando o marítimo é embarcado em navios de bandeira estrangeira, geralmente se utiliza a Lei do Pavilhão.

4.1 Lei do pavilhão

O Código de Bustamante de 1928, vigente no Brasil desde 1929, foi o primeiro código internacional que passou a regular as relações jurídicas em naves, no ar e em mares internacionais. Determinou em seus  arts. 274 e seguintes a aplicação da legislação referente à nacionalidade da embarcação, a chamada Lei do Pavilhão.

A lei do pavilhão dispõe que todas as relações de trabalho da tripulação de navios, devem ser regidas pela Lei do país do registro da embarcação.

Theophilo de Azeredo Santos conceitua (1968, p.43):

O pavilhão nacional, simboliza sua nacionalidade e indica o Estado a cujo regime jurídico está submetido e é nessa ideia que se considera o navio como porção flutuante ou como prolongamento do país a que pertence, e de que defluem consequências consideráveis. Primordialmente, tem direito à proteção das autoridades administrativas, civis e militares, do país a que pertence, assistência dos navios de sua marinha de guerra, devendo reciprocamente, obediência às ordens do Governo, submissão à vigilância dos navios de guerra e às instruções dos seus agentes consulares. 

Sendo assim, as embarcações ou aeronaves são extensões fictícias do território do país ao qual pertence e, deste modo, devem ter suas respectivas legislações aplicadas.

Porém, nem sempre essa lei será adotada, devido a hipótese denominada bandeira de favor. A Bandeira de favor se verifica quando o país onde está matriculado o navio não guarda qualquer relação com aquele que explora a atividade econômica, atrelada à embarcação. 

Para Valentim Carrion (2007, p. 27):

a lei da bandeira do navio não é o critério definitivo em matéria de competência jurisdicional trabalhista; é que a relação do emprego se estabelece entre o tripulante e a empresa que explora o navio, e não entre aquele e o proprietário da embarcação [...] o que também é verdade em face do Direito Brasileiro, não só pelos princípios que o iluminam como pelo direito posto em geral quanto ao armador, inclusive no que se refere às embarcações pesqueiras [...] e pelas possíveis fraudes da 'bandeira de favor' [...]. Por isso, mesmo os que aderem àquele critério [...] estabelecem exceções importantes; é o caso de empresa sediada no Brasil que arrenda navio estrangeiro. Russomano refere-se à nacionalidade da empresa, mas no Brasil o que pesa é o lugar onde são desenvolvidas as atividades ou onde se deu a contratação, a fim de que, sempre que possível, prevaleçam a norma e a jurisdição nacionais, evitando-se artifícios que deixem o trabalhador desprotegido quanto ao direito material específico e previdenciário, assim como quanto ao processual.

Portanto, nesses casos, o registro do navio traduz fraude, ou seja, viaja com determinada bandeira, mas a empresa na verdade pertence a outra nacionalidade.

Com isso, as empresas de cruzeiros marítimos podem tentar se esquivar de suas obrigações. Tal motivo se dá para se beneficiar das legislações de determinado local e favorecer unicamente o empregador.

Em 2006, como forma de regular e padronizar os patamares mínimos dos direitos assegurados aos trabalhadores marítimos em águas internacionais entrou em vigor a Convenção Internacional dos Marítimos (Maritime Labour Convention - MLC 2006).

Mas o maior problema surge quando o trabalhador brasileiro é contratado por uma agência de cruzeiros estrangeira, e labora em diversos países, incluindo o Brasil. Neste momento existe o conflito de leis trabalhistas no espaço, que explicaremos adiante.

4.2 Convenção do Trabalho Marítimo

A Convenção do Trabalho Marítimo foi aprovada durante a 94ª Conferência Internacional do Trabalho, assinado em Genebra em 2006.

Tem como objetivo regular, de forma igualitária, a atividade dos trabalhadores marítimos contratados de diferentes países, para laborar em águas nacionais e internacionais.

Com a advinda desta Convenção, os trabalhadores obtiveram muitos direitos e garantias fundamentais, como a questão da idade mínima, intervalo entre as jornadas, direito ao descanso, questões relativas ao pagamento, férias, entre outros.

Além dos direitos e garantias exclusivas do trabalhador, a Convenção ainda conta com orientações a respeito da prevenção de acidentes e segurança do trabalho, e cooperação internacional a respeito do tema.

É, portanto, uma enorme vitória para os trabalhadores marítimos, tendo em vista que, antes de 2006 só existiam algumas normas esparsas. Essa Convenção surgiu também para evitar desigualdades tendo em vista que os tripulantes do navio são de diversas nacionalidades diferentes.

Rodrigo de Lacerda Carelli estabelece (2017, pg. 2):

Com o fim de estabelecer efetivamente esse patamar mínimo de direitos globalmente, e ser o quarto pilar da regulação internacional marítima, juntamente com as convenções chaves da Organização Marítima Internacional, a OIT teve a preocupação de, ao contrário das demais convenções, que entram em vigor doze meses após a ratificação pelo país membro, que a MLC entrasse em vigor após grande parte do setor marítimo ser atingido efetivamente. Estabeleceu-se, assim, que entraria em vigor após ser atendido o mínimo de 30 países ratificantes, bem como fossem representados 33 por cento da tonelagem bruta mundial da navegação nas ratificações. A MLC entrou em vigor em 30 de agosto de 2013.

A análise da legislação internacional evidencia assim, a existência de dispositivos específicos e até mais benéficos que atendem a situações peculiares.

4.3 Lei aplicável aos tripulantes

Há uma grande discussão pela jurisprudência, sobre qual legislação deve-se aplicar nos casos dos marítimos, com árduos trabalhos para aplicar sempre a lei mais benéfica ao trabalhador,  seja brasileira ou estrangeira.

A Justiça Brasileira somente vai ser competente para julgar reclamatórias trabalhistas dos marítimos quando a prestação de serviço ocorrer no Brasil ou quando o contrato for celebrado em território nacional.

O art. 651 da CLT demonstra:

Art. 651 - A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. § 2º - A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário.  § 3º - Em se tratando de empregador que promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços.

Outro requisito muito importante é a naturalidade, o trabalhador deve ser brasileiro nato ou naturalizado, e, além disso, não pode haver tratado internacional dispondo contra a interposição de reclamatória trabalhista em país diverso.

Quando o trabalhador foi contratado no Brasil, mas presta labor no estrangeiro, a jurisprudência entende que é aplicável a lei de execução do local da prestação de serviço. No caso dos tripulantes, geralmente aplica-se a lei do pavilhão.

Porém Eliane Maria Octaviano Martins defende (2013, p.435):

Nos litígios internacionais, com fulcro no mesmo dispositivo, permite-se ao trabalhador marítimo optar por ajuizar a ação no país de celebração do contrato ou da prestação dos serviços. Permite-se, portanto, a ocorrência de forum shopping de lei ou de jurisdição. No contexto jurisdicional, o fórum shopping consiste em estratégia processual adotada por demandantes que buscam julgamento de seus litígios pela lei ou pelo tribunal, que por ventura resultem em uma decisão mais favorável à sua pretensão. Tal prática também é adotada pela parte demandada, quando esta procura tentar mudar o foro de julgamento para outro que eventualmente adotaria uma posição mais benéfica em relação à sua situação. 

O princípio da territorialidade deixou de ser unicamente utilizado com a advinda da Lei nº 7.064/1982 e posteriormente a Lei nº 11962/2009.

A referida lei, trouxe em seu artigo 3º:

Art. 3º - A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: I - os direitos previstos nesta Lei; II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.

Como consequência, a Súmula 207 do TST, que previa aplicação somente do princípio da territorialidade foi cancelada. A partir deste momento, os Tribunais têm adotado a norma mais favorável ao trabalhador.

Assim, há possibilidade da aplicação da norma mais favorável, pois o trabalhador é a parte mais frágil da relação, e, deste modo, deve-lhe aplicar a lei mais benéfica sempre que possível.

Hussek explica (2015, p.218):

Há necessidade de ponderar o caso concreto. Por exemplo, no caso de navio com a bandeira de outro país, de legislação trabalhista mais frágil, mas cujo proprietário é brasileiro e o empregado (marinheiro é também nacional, aqui contratado, seria absurda a aplicação de lei do domicílio do armador. Seria uma exceção à lei da bandeira, no caso de empresa sediada no Brasil que arrenda navio estrangeiro.

O Colendo Tribunal Superior do Trabalho, decidiu (TST, 2013):

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. EMPREGADO CONTRATADO NO BRASIL E QUE DESENVOLVEU PARTE DO CONTRATO DE TRABALHO EM ÁGUAS TERRITORIAIS BRASILEIRAS. INCIDÊNCIA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. INAPLICABILIDADE DA ANTIGA SÚMULA 207/TST (HOJE, INCLUSIVE, JÁ CANCELADA). A jurisprudência trabalhista, sensível ao processo de globalização da economia e de avanço das empresas brasileiras para novos mercados no exterior, passou a perceber a insuficiência e inadequação do critério normativo inserido na antiga Súmula 207 do TST (lex loci executionis) para regulação dos fatos congêneres multiplicados nas duas últimas décadas. Nesse contexto, já vinha ajustando sua dinâmica interpretativa, de modo a atenuar o rigor da velha Súmula 207/TST, restringido sua incidência, ao mesmo tempo em que passou a alargar as hipóteses de aplicação das regras da Lei n. 7.064/1982. Assim, vinha considerando que o critério da lex loci executionis (Súmula 207) - até o advento da Lei n. 11.962/2009 - somente prevalecia nos casos em que foi o trabalhador contratado no Brasil para laborar especificamente no exterior, fora do segmento empresarial referido no texto primitivo da Lei n. 7064/82. Ou seja, contratado para laborar imediatamente no exterior, sem ter trabalhado no Brasil. Tratando-se, porém, de trabalhador contratado no País, que aqui tenha laborado para seu empregador, sofrendo subsequente remoção para país estrangeiro, já não estaria mais submetido ao critério normativo da Convenção de Havana (Súmula 207), por já ter incorporado em seu patrimônio jurídico a proteção normativa da ordem jurídica trabalhista brasileira. Em consequência, seu contrato no exterior seria regido pelo critério da norma jurídica mais favorável brasileira ou do país estrangeiro, respeitado o conjunto de normas em relação a cada matéria. Mais firme ainda ficou essa interpretação após o recente cancelamento da velha Súmula 207/TST. No caso concreto, ficou evidenciado que o Reclamante foi contratado no Brasil e que parte do tempo de duração do contrato de trabalho desenvolveu-se em águas territoriais brasileiras. Não há como assegurar o processamento do recurso de revista quando o agravo de instrumento interposto não desconstitui a decisão denegatória, que subsiste por seus próprios fundamentos. Agravo de instrumento desprovido".

Isto posto, observamos que a lei do pavilhão não é absoluta, podendo ser afetada quando ocorrer a chamada bandeira de favor, ou quando houver legislação mais favorável ao trabalhador marítimo, sempre devendo analisar o caso concreto.


5 CASO PULLMANTUR

Devido ao grande número de ações recorridas no Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região contra os Réus Pullmantur Ship Management LTDA e Pullmantur Cruzeiros do Brasil LTDA, faz-se necessário uma análise a respeito das condições de trabalho dos tripulantes. Os autos analisados estão disponíveis no site oficial do TRT – 9ª Região.

No caso em tese, o Reclamante ajuizou reclamação trabalhista de numeração 0011420-27.2016.5.09.0014, em 20 de setembro de 2016, postulando o período laborado de 2011 a 2016.

O Reclamante alegou que laborou em navios de cruzeiro das Rés em quatro períodos distintos: a) 07/12/2011 até 19/05/2012; b) 08/09/2012 até 03/03/2013; c) 12/11/2014 até 18/06/2015; e d) 26/09/2015 até 19/03/2016.

Durante este período, exerceu as funções de Assistente de Garçom e Garçom, sendo dispensado sem justa causa. Recebeu remuneração média mensal no importe de U$ 2.600,00 (dois mil e oitocentos dólares americanos), equivalente ao valor médio de R$ 8.000,00 (oito mil reais).

Além disso, o reclamante alegou em petição inicial que laborou das 07h00 às 24h30, com intervalos para refeições, laborando, portanto, em média 17 horas diárias.

O autor ainda teve sua honra gravemente ferida, ao posto que a reclamada exigia a submissão a exame de drogas, álcool e HIV, o que ocasionou abalo moral e psíquico.

Portanto, a conduta do empregador viola os direitos fundamentais do trabalhador, como o direito à saúde e ao lazer. É visível que o reclamante estava submetido a jornada extenuante, com descanso mínimo de apenas 5 (cinco) a 6 (seis) horas por dia. Essa extrapolação por si só já caracteriza trabalho com condições análogas a escravidão. 

Importante ressaltar que o navio foi registrado em Malta, portanto, deveria aplicar a conhecida lei do pavilhão, ou seja, a legislação do País do registro da embarcação.

No entanto, caso haja a comprovação da existência de "bandeira de favor", poderá aplicar a legislação do País de sede da empresa, Bahamas. Ainda, se não bastasse, poderá aplicar a lei mais favorável ao empregado, que no caso em tese, é a legislação brasileira.

5.1 Defesa Pullmantur

Em defesa, as empresas Rés alegam preliminarmente, que o litígio deve ser submetido a julgamento perante a câmara de arbitragem. Sob fundamento de que todos os contratos de trabalho dos marítimos possuem cláusula específica a respeito. Como consequência o processo deveria ser extinto sem resolução do mérito.

Além disso, as Rés postulam a incompetência da Justiça do Trabalho Brasileira, em razão do princípio da territorialidade. Alegando ser competente a lei do país da bandeira da embarcação, ou da sede da empresa. Sucessivamente, se não for esse o entendimento, postulam a aplicação da Convenção do Trabalho Marítimo.

Afirmam também que o processo seletivo foi realizado por agências de recrutamento, sem nenhuma correlação com as Rés. O processo de seleção sempre ocorre no país onde o candidato reside, porém a assinatura do contrato ocorre somente a bordo dos navios das Rés, inclusive em alto-mar.

De acordo com as Rés, o reclamante possui diversos contratos de trabalho pois os contratos são por prazo determinado, tendo em vista que os cruzeiros são realizados em determinadas temporadas, em diversos continentes.

Em sua defesa, afirma ainda que a Convenção do trabalho marítimo autoriza a realização de jornadas de 11 a 14 horas diárias. Sendo assim, como a jornada do reclamante não ultrapassava 10 horas diárias, nada lhe é devido.

Outra alegação interessante diz respeito a não possibilidade de requerimento de danos morais. As Rés alegam que a solicitação de exames é corriqueira em todos os navios, pois passam a maior parte do tempo em alto-mar necessitando deste modo, um atendimento médico especial devido ao atendimento limitado.

5.2 Sentença

A respeitável sentença foi proferida pelo Meritíssimo Juiz José Roberto Gomes Junior, da 14ª Vara do Trabalho de Curitiba.

Decidiu pela rejeição da preliminar argüida pelas Rés, pelo entendimento de que a arbitragem deve ser utilizada somente para ações coletivas.

Quanto ao mérito, determinou a aplicação da legislação Maltesa sob fundamento de que apesar da lei do pavilhão admitir exceções, é impossível aplicação diversa pois os trabalhadores são de diversas nacionalidades. Só seria possível se o autor laborasse a maior parte do tempo em águas nacionais. Porém, no presente caso, não é possível estabelecer em qual país o reclamante permaneceu por maior tempo.

Deste modo, a sentença rejeitou todos os pedidos postulados pelo autor, condenando ao pagamento de honorários advocatícios de sucumbência.

5.3 Recurso ordinário

O reclamante restou inconformado com a respeitável sentença, reiterando portanto, todos os pedidos feitos na inicial.

Além disso, os honorários também merecem reforma, pois as normas de honorários advocatícios de sucumbência possuem natureza híbrida e por este motivo só deve ser aplicado nos processos ajuizados a partir de 11 de novembro de 2017, data de vigência da lei nº 13.467/2017.

O acórdão com a decisão da 5ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região está aguardando a data de publicação. Porém, há diversas reclamações trabalhistas contra as mesmas Rés, com situações semelhantes a este apresentado. 

O Desembargador Sérgio Sampaio, afirma que diante da análise da Convenção dos marítimos consta-se a existência de diversos dispositivos específicos ao trabalhador marítimo. Considerando que foi criada visando um tratamento mais igualitário para todos. Porém o entendimento que prevalece é que a legislação brasileira deve ser aplicável por dois motivos: pela aplicação da legislação mais benéfica ao trabalhador e pela ocorrência da bandeira de favor.


7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho escravo foi abolido oficialmente em 1888, com a advinda da Lei Áurea, mas isso não impediu que isto continuasse e se perpetuasse até os dias de hoje. Atualmente, trabalho escravo não está restrito unicamente a sua visão ultrapassada, onde geralmente um indivíduo possuía direitos sobre o outro, como se propriedade dele fosse. É muito mais que isso, é qualquer trabalho que viole a dignidade da pessoa humana, que possua jornadas extenuantes, trabalho forçado ou degradante.

Com isso, diante da análise de vários aspectos a respeito do trabalho dos tripulantes em navios de cruzeiro, constata-se a existência de trabalho análogo à escravidão. Essas condições reduzem o trabalhador a condição de coisa, retirando do trabalhador o direito de repouso, lazer, convívio social e familiar, com consequências de abalos psicológicos ou à saúde.

Atualmente, a jornada de trabalho máxima no Brasil é de 8 (oito) horas diárias, podendo ser estendida até o limite de 2 (duas) horas extraordinárias. Os tripulantes chegam a realizar 17 (dezessete) horas por dia. É visível, portanto, que os tripulantes excedem com frequência esse limite estabelecido, constatando-se jornada extenuante. As pouquíssimas horas de descanso violam a dignidade do ser humano, e assim, retira do trabalhador direitos fundamentais, como o direito ao lazer e a saúde.

Muitas vezes os tripulantes também passam por situações vexatórias, como a exigência de exame de sorologia, assédios morais e sexuais por superiores, seja por opção sexual, nacionalidade, cor de pele, ou gênero. Deste modo, a honra subjetiva e objetiva dos tripulantes é claramente ferida, tendo em vista que denota violação de privacidade e ato de discriminação.

Diante dessa situação, há uma grande dificuldade em identificar qual a legislação aplicável para proteger os direitos trabalhistas destes indivíduos. Existe um conflito aparente de normas, pois o tripulante brasileiro é contratado por uma empresa estrangeira, para laborar em águas nacionais e internacionais.

Podemos observar que a lei do pavilhão não é absoluta e admite diversas exceções. No caso apresentado, é visível que a aplicação da legislação brasileira é mais benéfica ao trabalhador marítimo e por isto deve ser aplicada. Ainda, foi constatado que o trabalhador foi contratado em território Brasileiro e que a empresa contratante possui sede no Brasil. Fica claro deste modo, que a aplicação da legislação brasileira seria a mais correta.

Este é o entendimento recente e majoritário da 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, que recentemente determinou a aplicação da Consolidação das Leis do Trabalho aos tripulantes e condenou a empresa Ré a pagar as verbas rescisórias e uma indenização por danos morais no valor de R$ 7.500,00 (sete mil e quinhentos mil reais). 


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