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Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no direito sucessório

Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no direito sucessório

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Ainda não existe legislação que solucione dilemas relativos às técnicas de reprodução humana assistida e ao direito sucessório.

1 Introdução

O presente estudo, diante das implicações que envolvem inseminação artificial homóloga post mortem, busca desenvolver e entender a teoria que envolve as técnicas de reprodução assistida que permitem que um indivíduo seja concebido após o falecimento do seu pai, utilizando material genético do genitor, e quais suas implicações no direito sucessório.

Utilizando-se do que dispõe a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002, decisões de alguns tribunais brasileiros e da doutrina, através de uma pesquisa bibliográfica, buscou-se desenvolver como o direito pode suprir a lacuna legislativa ocupada por aqueles que são concebidos post mortem do genitor por técnica de inseminação artificial homóloga. Esse estudo se faz necessário por não existir uma legislação específica no Brasil que trate sobre o tema e porque o que prescreve a legislação atual, principalmente o Código Civil de 2002, dá margem a diferentes interpretações. Essa situação traz insegurança jurídica e dificulta uma uniformização do Direito.

Com isso, quais os direitos sucessórios do filho concebido por inseminação artificial post mortem e como preencher a lacuna jurídica deixada na análise do referido tema? Em um primeiro momento, é necessário analisar conceitos básicos da reprodução humana assistida, principalmente as técnicas de reprodução, para depois debruçar-se sobre a legitimidade do indivíduo no direito sucessório. Posteriormente foi necessário compreender a inseminação artificial homóloga post mortem e a legitimidade do embrião implantado para compreender como esse ser poderia garantir seus direitos sucessórios.

Finalizando, buscou-se sustentar a necessidade de legislação específica sobre o tema para garantir os direitos sucessórios daqueles que nascem através de técnicas reprodutivas.


2 Reprodução humana assistida e o direito sucessório

As novas técnicas de reprodução humana, que se desenvolveram através do avanço da tecnologia, trouxeram novos paradigmas para a sociedade, pois esbarram em princípios éticos e jurídicos como o risco de má-formação genética e a igualdade de filiação.

O direito por muitas vezes não consegue acompanhar os avanços sociais, culturais e tecnológicos. Porém, a sociedade necessita de uma resposta rápida da lei para as questões cotidianas que necessitam de uma intervenção da norma, a exemplo o direito sucessório do filho gerado após o falecimento do pai, por inseminação artificial homóloga, que é objeto de estudo desta pesquisa.

2.1 Técnicas de reprodução assistida

A revolução ocorrida no campo da reprodução humana inicia-se na década de 1960 impulsionada pelos métodos contraceptivos e pela mudança de costumes das mulheres que não mais se colocam somente como administradoras de suas residências, esposas e mães. (LEWICKI, 2001).

A medicina e a biotecnologia se encarregam de estudar e possibilitar novas formas de reprodução humana que venham a sanar, por exemplo, problemas de infertilidade.

Inteiramente ligado ao desenvolvimento destas ciências está o desejo humano de constituir família, melhorar sua qualidade de vida e reproduzir-se. Porém, uma parcela significativa da sociedade possui infertilidade, o que dificulta a realização do sonho de conceber um filho. A crescente infertilidade advém, dentre outros fatores, da baixa qualidade de vida e saúde da população e do retardamento para iniciar uma família. Para Sartoni (2015), diversas áreas do conhecimento buscam solucionar o problema de infertilidade através das técnicas de reprodução assistida -TRA.

A reprodução humana deve ser entendida como um direito fundamental que não está previsto de forma expressa na Carta Magna (CAVAGNA, 2015). Contudo, Santoni (2015) considera que a reprodução humana se relaciona com o direito fundamental social previsto no artigo 6º da Constituição Federal que trata, dentre outros direitos, do direito à saúde. Se os genitores, dentro do âmbito privado, não conseguem e desejam procriar. O Estado, segundo o autor, deve garantir a efetivação do direito de procriação através da disseminação de técnicas de reprodução assistida à coletividade.

De acordo com Diniz (2016) deve existir uma ponderação em relação aos avanços das técnicas de reprodução e a ciência jurídica. Essa discussão se faz necessária, segundo a autora, tendo em vista a necessidade de definição de limites legais no âmbito da reprodução humana assistida para impedir a coisificação do homem. Por um lado essas técnicas solucionam problemas reprodutivos dos seres humanos, mas por outro acabam acarretando problemas éticos, sociais, religiosos e jurídicos.

Miranda (2016) em seu estudo considera que nascituro seria o ser já concebido e implantado no ventre materno e embrião o ser já concebido e vivo. A autora observa que as duas categorias devem ser consideradas como pessoas humanas e que possuem capacidade de direito e personalidade jurídica. Para a autora:

Como não há definição jurídica positivada sobre o conceito de embrião, parte-se para a Biologia. Sem dificuldade de interpretação, nota-se que as nomenclaturas embrião e feto dizem respeito tão somente à diferença do período de vida, importantes para embriologia, pois nos diferentes estágios pré-natal permitem compreender as causas das más-formações congênitas. (MIRANDA, 2016, p. 116).               

De acordo com Habra (1996, p.9 apud Sartoni, 2015, p. 172): “[...] reprodução humana é a união de dois ou mais indivíduos de sexos diferentes (ou então de suas células) para originar um novo ser.” Tal conceito resume com simplicidade a finalidade da reprodução. Com isso reprodução assistida seria:

“[...] a intervenção do homem no processo de procriação natural, com o objetivo de possibilitar que as pessoas com problema de infertilidade e esterilidade satisfaçam o desejo de alcançar a maternidade ou a paternidade”. (GASPAROTTO apud SARTONI, 2015, p. 176)

Para Cavagna (2015, p. 233): “Entende-se por TRA os procedimentos terapêuticos de infertilidade conjugal onde ocorre a manipulação laboratorial dos gametas masculino e feminino.” A sigla TRA significa técnica de reprodução assistida e para o autor tal conceito confunde-se com o de fertilização in vitro. A fertilização in vitro  também pode ser denominada de ectogênese.

Percebe-se que os autores colocam em evidência a infertilidade, pois esta é o principal motivador para o desenvolvimento de das técnicas reprodutivas. Esse tecnicismo possibilita ao homem intervir no meio reprodutivo e ditar novas regras para que a infertilidade e esterilidade sejam ultrapassadas e a reprodução ocorra.

Para Barboza (2014), considerando a reprodução humana, são três os aspectos a serem observados em relação às técnicas de reprodução asssistida: a não-dependência de relação sexual, o local da fertilização e a interferência de um terceiro. A relação sexual é dispensada, existindo apenas a coleta dos gametas de ambos os sexos. A técnica reprodutiva utiliza-se dos gametas masculinos e femininos e pode ocorrer no interior do corpo feminino ou através de uma inseminação artificial (fora do copo feminino). E o terceiro pode participar do processo doando ou não seus gametas ou oferecendo seu útero para geração do bebê.

Sartoni (2015) cita que a inseminação artificial pode ser intrauterina, intracervical, intraperitoneal e infrafolicular, mas preocupa-se somente em conceituar a primeira baseando-se no estudo de Passos, Freitas, Cunha-Filho (2003, p. 59 apud SARTONI, 2015, p. 181):

[...] consiste na introdução de espermatozoides capacitados, na cavidade uterina, de modo direto. Importante mencionar que a inseminação artificial pode ser homóloga (com sêmen do parceiro) e heteróloga (com sêmen de doador).

Essa técnica, como o nome sugere, permite a fecundação dos gametas masculinos e femininos no interior do útero da mulher. Será objeto de estudo deste, a inseminação artificial homóloga.

Segundo Scalquette (2009, p.66) a técnica mais comum de reprodução assistida é a: “[...] Inseminação Artificial Intrauterina – IIU, em que uma quantidade de espermatozoides é introduzida no interior do canal genital feminino com o auxílio de um cateter, sem a ocorrência da relação sexual. Gozo (2015) possui o mesmo entendimento e considera a inseminação artificial intrauterina como técnica reprodutiva considerando que o liquido seminal ao ser inseminado no útero seguirá seu curso e ocorrerá a fecundação do óvulo sendo assim, uma intervenção artificial. Sobre o tema Zegers-Hochschild et al. (2009 apud CAVAGNA, 2015) diz que a inseminação intrauterina não deve ser considerada como técnica de reprodução assistida por ser uma técnica mais simples.

Cita-se ainda, como técnicas de reprodução assistida, a transferência intratubária de gametas (transferência dos gametas para as trompas-GIFT), técnicas de micromanipulação para fertilização assistida (procedimentos microperatórios nos gametas) e injeção intracitoplasmática de espermatozoides (técnica em que um único espermatozoide injetado no citoplasma oócito que se utiliza da sigla ICSI). Todas essas técnicas são reflexos da evolução da tecnologia e a cada ano novas técnicas surgem para facilitar a reprodução do ser humano. (SARTONI, 2015).

A transferência dos gametas para as trompas (GIFT) seria a técnica em que: “Os espermatozoides e oócitos são aproximados e transferidos para a tuba. Assim, o processo de fertilização poderá ocorrer naturalmente à luz desse órgão” (SANTOS, IZZO e SILVA, 2005, p. 397 apud SCALQUETTE, 2009, p. 67). Os oócitos são conceituados como células sexuais as femininas produzidas no ovário dos animais. Segundo Diniz (2011, p. 610) GIT: “[...] seria a inoculação do sêmen na mulher, sem que haja qualquer manipulação externa de óvulo ou de embrião.”

Relacionado à transferência dos gametas para as trompas (GIFT) existe a transferência intratubária do zigoto (ZIFT):

O ZIFT significa Zibot Intra Fallopian Transfer, ou seja, consiste na retirada do óvulo da mulher para fecunda-lo na proveta, com sêmen do marido ou de doador, para depois de introduzir o embrião diretamente em seu corpo. (SCALQUETTE, 2009, p.67).

Concordando com tal entendimento Diniz (2011, p.610) preceitua que ZIFT:       “[...] consiste na retirada de óvulo da mulher para fecundá-lo na proveta, com sêmen do marido ou de outro homem, para depois introduzir o embrião no seu útero ou no de outra.”

O que difere os dois métodos citados é o fato que ZIFT há a manipulação externa do óvulo que é fecundado na proveta diferente do GIFT em que a fertilização ocorre naturalmente no interior do órgão feminino.

Outra técnica bastante conhecida é a:

A transferência de embrião e fecundação in vitro teriam como sigla a palavra FIVETE. Esta técnica pode ser usada para mulheres com problemas nas trompas, anovulação crônica, endometriose ou ovários policísticos. A fertilização do óvulo pelo espermatozóide ocorre em laboratório com posterior transferência de embriões. A ovulação é geralmente estimulada, os óvulos são colhidos por punção guiada por ultrassonografia endovaginal. Após serem colocados juntamente com os espermatozoides, são processados em ambiente com cinco por cento de CO² e temperatura de 37º C e, depois de 24 a 48 horas, são transferidos para a cavidade uterina os pré-embriões formados, contendo de quatro a oito células (BARCHIFONTAINE, 2004, p. 125 apud SCALQUETTE, 2009, p.66).

Essa técnica, segundo Gozo (2015) também é conhecida como “bebê de proveta” e com ela a criopreservação, técnica em que células ou tecidos biológicos são preservados através do congelamento a temperaturas muito baixas, de óvulos, sêmen e embriões foram aperfeiçoadas.

O primeiro expoente dessa técnica de reprodução assistida é o nascimento de Louise Brown em 1978, na Inglaterra, concebida com o auxílio do cientista Robert Edwards e do ginecologista Patrick Steptoe. (Stetoe & Edwards, 1978 apud Cavagna, 2015).

Barchifontaine (2004, p. 125 apud SCALQUETTE, 2009, p.68) cita ainda como técnica a injeção intracitoplasmática do espermatozoide(ICSI):

“[...] ocorre a injeção de um único espermatozoide no citoplasma do óvulo, por meio de um aparelho especialmente desenvolvido, que contém microagulhas para injeção.”

No Brasil as técnicas de reprodução assistida são reguladas pela Resolução Nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina. Essa norma adota preceitos éticos que regulam a utilização de técnicas de reprodução assistida pelo homem. Ela prevê que em caso de problema médico que impeça a gestão ou no caso de união homoafetiva as técnicas de reprodução assistida podem ser utilizadas.

Concluindo, segundo Lourenço (2015) as técnicas de reprodução assistida levantam questões em relação à história humana. A primeira questão denota na possibilidade de casais inférteis poderem conceber seus filhos e a segunda questão relaciona-se com os vínculos psicológicos que se estabelecem a partir dessas novas técnicas gestacionais. A família sócio afetiva se desenvolve e os vínculos passam a ser não somente biológicos.

Com isso a reprodução, filiação, maternidade e paternidade atingem novos patamares e rompem a barreira biológica de geração de descendentes. A sociedade se permite construir novas configurações de família, que não seriam possíveis sem o avanço da tecnologia e o homem e a mulher passaram a decidir como desejam procriar. Acontece que esse avanço possibilitou a conservação dos gametas por tempo indeterminado e sua utilização gerou uma certa discussão no âmbito jurídico como exemplifica-se no caso da inseminação após a morte.

2.2 Análise da legitimidade no Código Civil de 2002

A sucessão é alvo de interesse de estudiosos há vários anos. O capital movimenta o mundo e por consequência as repercussões de sua transmissão após a morte de um de cujus, aquele de quem a sucessão se trata, é de extrema relevância para o Direito. Segundo Farias e Rosenvald (2017, p. 30) sucessão tem origem: “[...] do latim sucessio, do verbo succedere (sub+ cedere), significando substituição, com ideia subjacente de uma coisa ou de uma pessoa que vem depois de outra.” Dessa forma a expressão sucessão assume uma ideia que indica a transmissão.

O ramo do direito sucessório advém da antiguidade e é ligado basicamente a continuidade da família e transmissão de bens pautado pela religião desde os povos romanos, gregos e indianos. (GONÇALVES, 2014).

Na disciplina jurídica, a sucessão seria a substituição de um sujeito na relação jurídica por uma circunstância de causa mortis. De acordo com Farias e Rosenvald (2017) somente as relações patrimoniais permitem a substituição de um indivíduo quando há a morte de um titular de direitos, ocorre segundo o autor, uma mutação subjetiva.

Analisa-se, então, que a morte é de fundamental importância para o direito sucessório. De acordo com o artigo 6º do Código Civil a existência do ser humano finda com a morte e a partir dela há a abertura de sucessão definitiva.  A herança e o testamento transmitem-se respectivamente, aos herdeiros legítimos e herdeiros legatários ainda que eles não desejem tal fato. (GONÇALVES, 2014).

Ao tratar da morte em seus estudos Villegas (2009, p. 18) apud Farias e Rosenvald (2017, p. 90) cita: “A rigor, para o reconhecimento da morte (e, por conseguinte, para a extinção da personalidade jurídica) exige-se uma declaração médica da ocorrência da morte encefálica, para que seja, então, lavrada a necessária certidão de óbito.” O falecimento necessita de uma comprovação médica, comprovação esta de que a morte encefálica ocorreu. A partir desse momento extingue-se a personalidade jurídica e os direitos sucessórios são transmitidos aos herdeiros.

A sucessão pode ser testamentária ou legítima ou ab intestado.  A primeira caracteriza-se por ato em que o de cujus dispõe de sua vontade, antes de seu falecimento, e determina de forma livre, respeitando os limites estabelecidos pela lei, o que cada herdeiro necessário irá receber. Contudo essa disposição abrange somente metade de seu patrimônio. Já a segunda espécie de sucessão é resultante na norma e não necessita de um testamento cabendo a divisão àqueles herdeiros legítimos. (DINIZ, 2014).

Contudo para suceder é necessário existir legitimidade. No momento que ocorre a transmissão automática da herança deve ocorrer a verificação da legitimidade para suceder. Essa legitimidade seria a disposição para receber a herança ou legado e ocorre no momento da abertura da sucessão. Seria necessário assim que o indivíduo estivesse vivo no instante em que ocorre a transmissão automática (saisine) dos bens. Algo que venha a fugir dessa análise seria uma exceção, a falta de legitimação seria algo excepcional. (FARIAS, 2017).

Sobre a legitimidade Lôbo (2016) pontua que os herdeiros ou legatários são sujeitos de direito qualificados para suceder. Para o autor não há que se confundir capacidade com legitimidade, pois a última é ampla e atinge sujeitos que não são pessoas, a exemplo sujeitos de direito não personalizados, e por isso o Código Civil adota o termo legitimidade e não capacidade. O autor cita ainda, que são legitimados para suceder no direito brasileiro: pessoas físicas, nascituros, indivíduos ainda não concebidos contemplados em testamento, pessoas jurídicas designadas em testamento, entidades não personificadas e pessoas jurídicas futuras.

Segundo Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 1.394):

O art. 1.798 do Código Civil brasileiro de 2002 consagra a regra geral sucessória, aplicável tanto à Sucessão Legítima como à Testamentária, segundo a qual têm legitimidade para suceder “as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.

A legitimidade adquire importância na sucessão por balizar aqueles que estariam aptos a suceder, seja através da testamentária ou testamentária e para. Nem todo indivíduo pode suceder, é necessária uma legitimação provisória que autoriza juridicamente o indivíduo a receber sua herança ou legado.

De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2016, p. 1,395):

Em síntese, o art. 1.798 do Código Civil contém uma regra material para a sucessão hereditária em geral, que legitima as pessoas nascidas ou os nascituros (aqueles seres humanos já concebidos, embora não nascidos), ao tempo da morte do autor da herança, para receber parte ou todo o patrimônio deixado pelo falecido.

Fica evidente que o indivíduo falecido com a abertura da sucessão não irá suceder e nada herdará. Como regra deve haver concepção para adquirir essa legitimidade. Quando trata de vocação hereditária o código civilista preceitua em seu artigo 1.799, inciso I, o que segue: “Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; [...]”. (BRASIL, 2002).  De acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2016) o inciso I do artigo 1.799 trata da prole eventual, filhos não concebidos, mas indicados pelo progenitor antes da abertura da sucessão com a devida verificação de vontade. O autor da herança indica o progenitor que deve estar vivo no momento de sua morte. Gagliano e Pamplona Filho (2016) descreve ainda que seguindo a norma civilista, em seu artigo 1.800, a herança é confiada a um curador, que seria a pessoa cujo o filho o testador espera ter por herdeiro, podendo ser o cônjuge ou companheiro. Estando em falta este, o descendente mais próximo, que se mostra mais apto deve suceder.  Não sendo possível em nenhum dos casos o juiz escolhe o curador.

Segundo Tarturce (2017, 52) o inciso I, do artigo 1.799, [...] reconhece a legitimação daqueles ainda não concebidos, filhos de pessoas indicadas pelo testador, desde que vistas estas últimas ao abrir-se a sucessão. A norma trata da prole eventual ou concepturo, não se confundindo com o nascituro.

Relacionado ao tema o artigo 1.800 § 3o cita que: “Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da morte do testador.”

Para Faria (2017) o disposto no artigo 1.800 do código civil visa diminuir quaisquer desentendimentos sobre a administração dos bens daquele ainda não concebido. O autor considera que houve uma equiparação entre os bens deixados à essa prole eventual e os bens do curatelado.


3 Legitimidade sucessória do filho concebido após a morte do pai

A filiação não pode, à luz do desenvolvimento tecnológico da atualidade, ser entendida apenas como um simples vínculo biológico que se estabelece entre pais e filhos. A relação que existe entre prole e genitores abre espaço não só para a concepção biológica, mas para a inseminação artificial e a adoção.

Sob o espectro do princípio da igualdade dos filhos, previsto na Constituição Federal, o parentesco advém da consanguinidade e de outras formas, desde que haja uma relação entre pais e filhos. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1.593, preceitua que o parentesco pode ocorrer de forma natural ou civil tendo consanguinidade ou outra origem. Inclui-se nas diferentes formas citadas pelo artigo 1.593 a reprodução assistida heteróloga e o parentesco socioafetivo.

3.1 Inseminação artificial homóloga post mortem e a legitimidade do embrião implantado

De acordo com Maluf (2016), na contemporaneidade, a legitimação da filiação ganha novos aspectos pois as relações amorosas se formam por pessoas de mesmo sexo, inconcebíveis há poucos anos, e por intersexuais, que tradicionalmente se configuram na sociedade. Além disso, filhos não oriundos da relação matrimonial tradicional não eram vistos com bons olhos e eram considerados ilegítimos. Mas isso já é passado e a Constituição Federal de 1988 não permite a distinção entre filhos.

Pode-se dizer, segundo Carvalho (2015), que a filiação, dita como civil, vem ganhando recorrente destaque por que a paternidade e a maternidade se mostraram insuficientes em termos de filiação. Além da descendência biológica, existem diversas outras questões que envolvem uma relação entre pais e filhos. O afeto, a segurança, o convívio e o amor são essenciais para que se construa uma relação de afetividade. Diante de uma relação socioafetiva ocorre a prevalência do melhor interesse para o filho. O autor considera assim que há uma desbiologização da paternidade e chega a afirmar que a paternidade socioafetiva superou a biológica. Cada vez mais o aspecto puramente biológico, que evidencia a descendência genética, vem perdendo força e cedendo para a descendência socioafetiva.

O artigo 227, §6º da Constituição Federal brasileira normatiza a proibição de distinção entre os filhos, independente da forma que este filho é gerado. Essa interpretação equipara não só os filhos concebidos fora do casamento como também os concebidos de forma artificial e não convencional.

Acontece que além de não ser possível a distinção dos filhos concebidos de forma não convencional, esses filhos, desde a sua concepção, possuem direitos personalíssimos e devem ser considerados em sua humanidade. (MALUF, 2016).

A preservação dos homens se faz garantindo todos os direitos possíveis aquele ainda não nascido. O direito á vida, saúde, segurança e sucessórios permitem que essa humanidade seja efetivada.

O material que fecunda uma mulher pode ser de forma homóloga ou heteróloga. Quando se utiliza de gametas de um casal, a inseminação artificial é denominada homóloga. Por sorte, quando os gametas são doados por um terceiro denomina-se de inseminação heteróloga. (BARBOZA, 2014).

Seguindo o mesmo raciocínio, de acordo com Gagliano e Pamplona Filho (2017, p. 1.291): em seus ensinamentos:

Entenda-se por concepção artificial homóloga aquela realizada com material genético de ambos os cônjuges e, por inseminação artificial heteróloga, aquela realizada com material genético de terceiro, ou seja, alguém alheio à relação conjugal.

A inseminação artificial homóloga é objeto de estudo deste trabalho científico quando da análise do direito sucessório do filho concebido através desse método. O conceito de inseminação artificial homóloga evidencia a necessidade de contribuição do material genético do casal para que tal procedimento se realize.

A resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina trata da reprodução assistida post-mortem:

VIII - REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST-MORTEM É permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica do (a) falecido (a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente.

No ponto de vista do viés médico, as técnicas de reprodução assistida após a morte do doador são autorizadas restando a necessidade de consentimento do de cujus para que o procedimento seja concretizado.

É de conhecimento que o Código Civil brasileiro pontuou em seu artigo 1.597, quanto trata de filiação a respeito da inseminação artificial homóloga:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. (BRASIL, 2002).

Tal dispositivo, sem tecer maiores esclarecimentos, tipifica situações em que a paternidade é presumida. Inicialmente a análise que deve ser feita, em relação ao tema, é a respeito da concepção. A lei não faz uma distinção sobre a forma que a fecundação deve ocorrer, seja de forma natural ou artificial. Segundo a primeira situação os filhos nascidos cento e oitenta dias depois do estabelecimento da sociedade conjugal presumem-se filhos do casal. Na segunda situação considera-se o espaço temporal de trezentos dias, após o fim da sociedade conjugal, separação judicial, morte, nulidade ou anulação do casamento para a presunção.

Barboza (2014) afirma que o inciso III do artigo 1.597 do Código Civil deixa margem a discussões a respeito da não concordância do marido falecido em relação à concepção e eventual oposição familiar sobre a utilização do material genético do de cujus.

Com isso questões sucessórias são levantadas considerando que o artigo 1.798 do mesmo código considera que a vocação hereditária legitima as pessoas nascidas ou já concebidas na abertura da sucessão. Barboza (2014) esclarece o problema abre margem a discussão sobre o princípio da dignidade humana e direito ao planejamento familiar. Estes princípios se configuram a partir do momento que o homem cede seu sêmen, essa ação faz com que haja uma presunção de que o mesmo tem ideia de constituir família.

Para Tartuce (2017, p. 52), o Código Civil atual inova, em relação ao Código de 1.916, por trazer a figura do nascituro no art. 1798 e por interpretar os direitos sucessórios do mesmo desde a sua concepção sem restrição de direitos. Sobre as técnicas de reprodução assistida o autor preceitua que:

Outro aspecto tormentoso tem relação à extensão da regra sucessória prevista para o nascituro aos embriões havidos das técnicas de reprodução assistida. Respondendo positivamente, o Enunciado n. 267 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil, de autoria de Guilherme Calmon Nogueira da Gama com o seguinte teor: “A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras previstas para a petição da herança”.

Para Gonçalves (2014) a doutrina brasileira se debruça sobre a legitimidade sucessória dos filhos concebidos por métodos de reprodução assistida por que, em princípio, o código civil, em seu artigo 1.798 cita que as pessoas devem ter nascido ou terem sido concebidos no momento da abertura da sucessão. O autor cita que a doutrina, em sua maioria, tende a negar os direitos dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida na hipótese de morte do doador de material genético e na hipótese de implantação dos embriões após a abertura da sucessão.

Considerando que os não concebidos por reprodução assistida não possuem direitos, Delgado (2009, p. 641, apud MIRANDA, 2016, p. 194) considera que por serem biologicamente diferentes, embriões e nascituros não devem ter o mesmo tratamento legal. A lei não menciona embriões em seu texto e segundo a autora os direitos sucessórios não devem ser estendidos a eles, como segue:

Em suma, o artigo 1798 refere-se ao nascituro, e embrião pré-implantatório nascituro não é. Sendo assim, filhos havidos por quaisquer das técnicas de reprodução assistida, desde que a implantação do embrião no ventre materno ou a fecundação do óvulo tenha se dado após a morte do autor da herança, não obstante, o estado de filiação legalmente assegurado (art. 1.597), direito sucessório algum terão.

Já para Chinellato (2009 apud MIRANDA, 2016, p.195) o embrião não implantado pode ser equiparado ao nascituro. Para a autora tanto os embriões excedentários citados no dispositivo 1.597, inciso IV do Código Civil, quanto os embriões criopreservados possuem direito sucessório.

O Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil concretiza a igualdade de filiação entre os filhos concebidos biologicamente, os adotados e os concebidos através de técnicas reprodutivas:

O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho. (I Jornada de Direito Civil – Enunciado 103)

Na mesma linha de pensamento, o Enunciado 256 da III Jornada de Direito Civil estabelece o conceito de posse de estado de filho: “A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.” (III Jornada de Direito Civil – Enunciado 256). Este conceito “posse do estado de filho” segundo Carvalho (2015) reconhece a filiação independente de origem biológica e relaciona-se com o tratamento recíproco paterno-filial.

Como observado, foi necessária uma interpretação jurisprudencial para atender às necessidades impostas por técnicas de reprodução assistida. Segundo o entendimento do Enunciado 103, ao embrião são estendidos os mesmos direitos do nascido vivo, observadas as regras previstas no código, relacionadas à petição de herança. O autor reconhece a personalidade jurídica plena do embrião ponderando somente em relação ao momento da fecundação.

Com já discutido, para suceder é necessário haver legitimidade. No caso do concepturo, para ele adquirir legitimidade para suceder, deve haver o nascimento com vida. Havendo o nascimento com vida torna retroativo o efeito da abertura da sucessão. (FARIA, 2017).

Considerando que não houve concepção e apenas o armazenamento do material genético do homem falecido, configura situação distinta. Não se trata de um embrião por isso não há que se falar em direito sucessório de acordo com Farias e Roselvald (2017). Os autores citam ainda, que nada impede a transmissão de um legado a esse ser ainda não concebido e não fecundado. Sendo observado o que preceitua o artigo 1.800 em seu § 4º há caducidade do direito. Em outro caso se o de cujus não deixou expressa sua vontade de que seu material genético fosse utilizado no caso de seu falecimento não há que se falar em direito sucessório retornando ao previsto no artigo 1.798 do Código Civil.

Observando os estudos de Colombo (2012 apud FARIAS e ROSENVALD, 2017, p. 134):

Em posição inédita, que desperta reflexões, Cristiano Colombo advoga o reconhecimento do direito de herança no caso de fertilização artificial in vivo post mortem, com material genético do falecido marido, se houve prévio uso do sêmen após óbito.

Este entendimento considera a vontade do de cujus e da mulher sobrevivente e pressupõe que diante desta vontade apesar de não existir concepção o material genético masculino viria a gerar uma vida em momento posterior. A concepção não estaria efetivada necessitando segundo o autor de uma presunção de que essa concepção teria ocorrido na constância do casamento.

Sobre o consentimento o 3º artigo da Resolução nº 2.121/2015 do Conselho Federal de Medicina cita que:

4 - O consentimento livre e esclarecido informado será obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA serão detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido informado será elaborado em formulário especial e estará completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão bilateral entre as pessoas envolvidas nas técnicas de reprodução assistida.

Percebe-se a preocupação com veracidade dos procedimentos a serem realizados. Os progenitores devem estar esclarecidos sobre a técnica a serem utilizadas, implicações jurídicas e preceitos éticos. Seguindo a mesma esteira de pensamento o Enunciado 106 da 1ª Jornada de Direito Civil dispõe que:

Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatória, ainda, a autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte.

O consentimento não deve ser presumido, deve ser expresso e de forma escrita segundo preceitua a Jurisprudência do Tribunal do Distrito Federal:

DIREITO CIVIL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS INFRINGENTES. UTILIZAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR. AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA. IMPOSSIBILIDADE DE SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO DE CUJUS PARA A UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM. RESOLUÇÃO 1.358/92, DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 1. Diante da falta de disposição legal expressa sobre a utilização de material genético criopreservado post mortem, não se pode presumir o consentimento do de cujus para a inseminação artificial homóloga post mortem, já que o princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do sêmen criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse fim. 2. "No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-lo" (a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina) 3. Recurso conhecido e desprovido. (TJ-DF- EIC:20080111493002, Relator: CARLOS RODIRGUES, Dta de Julgamento: 25/05/2015, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 18/06/2015. Pág.:82)

A utilização de sêmen armazenado para inseminação artificial post mortem está condicionada à manifestação expressa de vontade do doador como já citado. O mesmo Tribunal de Justiça em outra decisão entendeu que o fato de o de cujus ter guardado material genético, não significaria uma aceitação expressa para uma inseminação post mortem. Por falta de disposição legal expressa, presumir o consentimento do de cujus caracterizaria violação ao princípio da autonomia da vontade segundo os julgadores:

AÇÃO DE CONHECIMENTO - UTILIZAÇÃO DE MATERIAL GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR - AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO - PRELIMINAR DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO AFASTADA - MÉRITO - AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA - IMPOSSIBILIDADE DE SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO DE CUJUS PARA A UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST MORTEM.1. Não se conhece do agravo retido diante da ausência do cumprimento do disposto no art. 523, §1º, do CPC.

2. Afasta-se a preliminar de litisconsórcio necessário entre a companheira e os demais herdeiros do de cujus em ação de inseminação post mortem, porquanto ausente reserva a direito sucessório, vencido o Desembargador Revisor.3. Diante da falta de disposição legal expressa sobre a utilização de material genético criopreservado post mortem, não se pode presumir o consentimento do de cujus para a inseminação artificial homóloga post mortem, já que o princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do sêmen criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse fim. (Acórdão n.º 820873, 20080111493002APC, Relatora: NÍDIA CORRÊA LIMA, Relator Designado: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Revisor: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, 3ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/09/2014, Publicado no DJE: 23/09/2014. Pág.: 139)

 Com isso o consentimento do doador é de extrema importância para a garantia dos direitos sucessórias daquele ainda não nascido. O material genético deve ser utilizado com o devido respeito à vontade do doador e sua simples existência não é garantidor de consentimento para realização de uma futura inseminação.

3.2 Formas de garantias dos direitos sucessórios aos embriões

Considerando que há necessidade de discussão sobre o direito sucessório do ser humano concebido por inseminação homóloga post mortem o direito deve garantir formas para que esse direito seja preservado. O artigo 1.799 do Código Civil trata da prole eventual e dispõe que as pessoas indicadas pelo testador podem gerar filhos e estes serão entendidos como herdeiros, se nascerem com vida. O artigo 1.800 do mesmo Código prescreve à figura do curador a administração dos bens atribuídos ao não nascido. Contudo o §4º, do artigo 1.800 da norma civilista dispõe: “§ 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.” Com isso o Código Civil garante direito daquele ainda não concebido através da curadoria de seus direitos mas estabelece um lapso temporal para que esse nascimento ocorra.

O Código Civil estabelece o prazo temporal de dois anos para que o nascimento ocorra. Essa limitação, segundo Oliveira (2016), visa suprir o vácuo deixado pelo Código Civil de 1.916 que perpetuava a situação da prole eventual. O autor considera ainda, que caso os filhos fossem adotados também possuiriam direito sucessório se fossem adotados até dois anos após a abertura da sucessão, apesar de não conter nenhuma indicação nesse sentido no Código. O autor considera que o princípio da igualdade dos filhos, já citado, permite tal situação. Lôbo (2016) possui o mesmo entendimento em relação aos filhos adotados até dois anos após a abertura da sucessão, os mesmos possuem direitos sucessórios iguais aos demais herdeiros, não havendo impedimento legal para isso, segundo o autor.

Em seus estudos Gagliano e Pamplona Filho (2017) levantam o questionamento que segue:

O embrião, preservado em laboratório, concebido antes da morte do testador ou durante o prazo de dois anos a contar da abertura da sucessão (uma vez que o falecido poderia autorizar a utilização de material fecundante seu), não implantado no útero materno, poderia ser beneficiado pela deixa testamentária?

Os autores preceituam que, por existir uma indefinição legislativa a respeito do direito sucessório dos filhos ainda não concebidos, para manter uma segurança jurídica, o prazo de dois anos deve ser respeitado. Se a mãe decidir conceber o embrião preservado através da criogenia, após o prazo de dois anos, este ser não deixará de ser filho, contudo não terá direito a suceder o de cujus. Essa decisão, segundo os autores, se mostra acertada para não gerar uma indefinição no quadro testamentário.

Para Lôbo (2016), o Código Civil estabeleceu o prazo de dois anos, após a abertura da sucessão, para que houvesse a concepção. Se o prazo findar, os bens devem ser redistribuídos entre os herdeiros. O prazo de dois anos não compreende o período gestacional, somente a concepção deve ocorrer até dois após a abertura da sucessão.

Faria (2017) preceitua sem seus estudos que a limitação temporal de dois anos é motivo de “aplausos”, pois suprime uma espera indeterminada dos herdeiros legítimos por um nascimento. Caso o filho aguardado não seja concebido, os bens que se encontram a disposição do curador, devem ser devolvidos ao acervo testamentário.

Outro viés que deve ser analisado em relação aos direitos sucessórios do filho concebido por inseminação artificial homóloga post mortem é em relação ao prazo prescricional do direito à petição de herança. A ação de petição de herança é proposta pelo herdeiro para ter seu direito sucessório garantido ou a restituído a universalidade de bens ou a quota ideal da herança da qual não foi possível sua participação.

Considerando que o direito à petição de herança, segundo o dispositivo 205 do Código Civil prescreve com dez anos, para alguns autores, o início desses dez anos ocorre após a abertura da sucessão, para outros após o reconhecimento do vínculo parental e para outros seria imprescritível questiona-se se o prazo para o filho ainda não concebido deve ser diferenciado. (TARTURCE, 2017).

Neste mesmo sentido, pondo fim ao momento de início da contagem do prazo para a prescrição da herança o Supremo Tribunal Federal cita em sua jurisprudência que:

PRESCRIÇÃO - AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA. 1. CONTANDO VELHA CONTROVERSIA DOUTRINARIA, A SÚMULA 149 JA FIXOU QUE A AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE E IMPRESCRITIVEL, MAS PRESCREVE A DE PETIÇÃO DE HERANÇA. 2. A JURISPRUDÊNCIA RECENTE E PREDOMINANTE NO STF ENTENDE QUE O DIES A QUO DO PRAZO PRESCRICIONAL DA AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA DEVE SER CONTADO DA ABERTURA DA SUCESSÃO DO INVESTIGADO, PORQUE REPUGNA A DEMANDA POR HERANÇA DE PESSOA VIVA (RE 55.270, RE 71.088/71, ERE 74.100/73. - SÚMULA 286).(STF - RE: 80426 GB, Relator: ALIOMAR BALEEIRO, Data de Julgamento: 11/03/1975, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 25-04-1975 PP-*****)

Com isso se finaliza com o entendimento de que a petição de herança prescreve com o prazo de dez anos e inicia-se, a contagem do prazo, a partir da abertura da sucessão. Contudo o prazo de dez anos não se aplica àquele que pleiteia seu direito sucessório por ter nascido por uma técnica de inseminação artificial homóloga post mortem. Isso ocorre para não criar uma insegurança jurídica e segue o que postula o artigo 1.800, §4º do Código Civil brasileiro.

Sobre o tema existem alguns projetos de lei que buscam garantir os direitos daqueles concebidos por técnicas de inseminação artificial. A exemplo o Projeto de Lei N.º 7.591, de 2017, do Deputado Federal Carlos Gomes Bezerra que visa acrescentar parágrafo único ao art. 1.798 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para conferir capacidade para suceder aos concebidos com o auxílio de técnica de reprodução assistida após a abertura da sucessão. Outro exemplo seria o projeto de lei 115 de 2015, do Deputado Federal Juscelino Rezende Filho, que objetiva instituir o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais. Esses projetos encontram-se apensados ao Projeto de Lei 4892/2012.

O Projeto de Lei 4892/2012 do Deputado Federal Eleuses Paiva visa Instituir o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais. Esse encontra-se apensado ao Projeto de Lei 1184/2003 Lucio Alcantara que foi  apresentado em 03 de junho de 2003 e define as normas para realização de inseminação artificial e fertilização "in vitro"; proibindo a gestação de substituição (barriga de aluguel) e os experimentos de clonagem radical. O projeto de Lei 1184/2003 está aguardando parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e sua última atualização de 18/08/2015 foi aprovado sob o requerimento do Sr. Ivan Valente que requereu a inclusão de convidados para compor a mesa da Audiência Pública.

Com isso, percebe-se a preocupação dos parlamentares brasileiros em relação a temática, contudo os projetos encontram-se em processo de discussão deixando a cargo dos juízes as definições sobre os direitos sucessórios daqueles concebidos por inseminação artificial homóloga post mortem.


CONCLUSÃO

A matéria aqui tratada evoluiu com o avanço da tecnologia e das técnicas de reprodução, o que proporciona a necessidade de um estudo aprofundado sobre o tema. A temática ainda não possui uma legislação específica que vislumbre a problemática existente entre as técnicas de reprodução humana assistida e o direito sucessório.

A legislação atual abre espaço para diferentes interpretações, aqui relatadas, e deixa a cargo dos juízes a definição dos direitos daqueles nascidos por inseminação artificial homóloga post mortem. Essa situação ocasiona diferentes situações e desencadeia uma insegurança jurídica com a possibilidade da existência de diferentes decisões.

Sem admitir um juízo favorável ou contrário à utilização das técnicas de reprodução assistida, este artigo firma-se no entendimento de que aquele nascido pela técnica de inseminação artificial homóloga post mortem deve ter sua paternidade e seus direitos sucessórios assegurados observando o prazo de dois anos disposto no artigo 1.800, § 4º do Código Civil. Não deve haver uma indefinição em relação aos direitos sucessórios e deixar totalmente a escolha da mãe o momento certo para gerar seu filho. O nascimento após o prazo de dois anos inviabiliza a legitimidade sucessória do nascido através da inseminação artificial homólogo post mortem, contudo não retira seu status de filho observando o que prescreve a Constituição Federal no princípio da igualdade dos filhos.

Por fim, considera-se necessária uma legislação específica, pois o legislador não deve omitir-se devendo resguardar aqueles que nascem por inseminação artificial homóloga post mortem e outras técnicas reprodutivas. Existem alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional brasileiro a exemplo, o Projeto de Lei N.º 7.591, de 2017 de autoria do Deputado Carlos Gomes Bezerra que visa inserir no artigo 1.798 um parágrafo único com os dizeres: “Legitimam-se a suceder, ainda, as pessoas concebidas após a abertura da sucessão com o auxílio de técnicas de reprodução assistida. (NR)”. O autor do projeto possui uma visão contrária a limitação temporal de 2 anos para o herdeiro nascido por técnica de inseminação artificial homóloga pleitear seu direito sucessório. Essa tímida inserção traria novos questionamentos e geraria ainda mais dúvidas a respeito do tema. Outro exemplo seria o projeto de lei 115 de 2015, de autoria do Deputado Federal Juscelino Rezende Filho, que institui o Estatuto da Reprodução Assistida e trata de uma forma mais clara da regulamentação e aplicação dessas técnicas Esse projeto de lei estabelece conceitos, princípios, proibições de determinas práticas e determina o prazo de 3 anos, da abertura da sucessão, para que se constate a gravidez do descendente biológico da pessoa falecida.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALISA, Danylo Amaral. Reflexos da inseminação artificial homóloga post mortem no direito sucessório. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5828, 16 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73234. Acesso em: 18 abr. 2024.