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Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa

análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo

Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa: análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo

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Não são raros erros de fato ou de direito ao construir antecedente ou consequente das duas normas individuais e concretas postas por auto de infração e imposição de multa. Em casos mais difíceis, o artigo propõe outra forma para construir essas normas.

Resumo:Pelo Auto de Infração e Imposição de Multa são introduzidas geralmente duas normas jurídicas individuais e concretas no ordenamento: a em que se exige multa por infração à lei do tributo; e a em que se exige o tributo que deixou de ser pago em razão da infração praticada (lançamento do tributo). A relação jurídica tributária em que se exige multa está no consequente da primeira norma; a em que se exige tributo, no consequente da segunda. No entanto, apenas o antecedente da primeira norma é enunciado: a descrição da infração ou acusação fiscal. O antecedente da segunda norma, que é o relato do evento (ou eventos) tributário não declarado à Fazenda Pública ou declarado em valor menor, não é.

Acusação fiscal é o relato de descumprimento de dever instrumental imputado ao sujeito passivo. Deve enquadrar-se com justeza a classe típica de infrações descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora. Na maioria dos casos, não é difícil identificar a infração que causou o não-pagamento do tributo e a norma geral e abstrata sancionadora cuja hipótese descreve classe típica de infrações a que o relato da infração praticada se subsome. Nesse caso, o relato preciso da infração e a demonstração de sua ocorrência são suficientes para exigir multa e tributo. Embora o evento (ou eventos) tributário não seja relatado no auto de infração, sua ocorrência poderá ser inferida do dever instrumental descumprido, demonstrado por meio das provas juntadas ao auto de infração.

No entanto, não são poucos os autos de infração julgados improcedentes por erro de fato no relato da infração praticada ou de direito na escolha da norma geral e abstrata sancionadora aplicada. Isso causa o cancelamento da multa e do tributo exigidos, embora o não-pagamento do tributo possa estar demonstrado pelas provas que instruem o auto de infração.

Sobressai, portanto, a importância da linguagem que deve ser utilizada na acusação fiscal irrogada ao sujeito passivo. Ela deve ser objetiva, clara, concisa e precisa, isto é, com enunciados ajustados à teoria das provas. A linguagem deve ser “competente”, no dizer de Paulo de Barros Carvalho.

A Lei 6.374/1989 do Estado de São Paulo, que dispõe sobre a instituição do ICMS, é bastante analítica na prescrição de sanções por infrações às suas normas. Exceto para poucos casos, é prevista multa para cada tipo de dever instrumental descumprido. Pela “base de cálculo da multa”, a lei gradua o valor da multa ao valor do imposto não pago na operação ou que deixou (ou poderia deixar) de ser pago em operação subsequente; pela “percentagem da multa”, a lei gradua o valor da multa à gravidade da infração (dolo ou culpa). Como a multa é o produto das duas variáveis, atende-se ao “princípio da isonomia em sua face positiva”: tratar desigualmente os desiguais, à medida que eles se desigualam.

Embora, “a priori”, o detalhamento das infrações em abstrato favoreça a observância do princípio da isonomia em sua face positiva,[1] ele pode dificultar a elaboração, pela autoridade administrativa, do relato da infração praticada pelo sujeito passivo e a escolha da norma geral e abstrata sancionadora a que o relato se subsome. A par disso, uma corrente jurídica somente admite a revisão de lançamento no caso de “erro de fato” no relato da infração, mas não no caso de “erro de direito”. Outra corrente jurídica, porém, admite a revisão em ambos os tipos de erro, enquanto não extinto o direito de crédito da Fazenda Pública.

Para evitar erro de acusação naqueles casos, propomos separar os relatos da infração fiscal e do evento (ou eventos) tributário. O relato da infração continuará a ser feito de forma usual, no antecedente de norma individual e concreta de exigência da multa; o relato do evento (ou eventos) tributário será feito no antecedente de norma individual e concreta de lançamento do imposto.


1. Introdução

"Sem norma não há fato jurídico, sem fato jurídico não se cria direito novo". (SANTI, 2001, p. 59). Não se produz norma jurídica individual e concreta sem se aplicar norma jurídica geral e abstrata a evento do mundo real-social. “A aplicação das normas jurídicas se consubstancia no trabalho de relatar, mediante o emprego de linguagem competente, os eventos do mundo real-social (descritos no antecedente das normas gerais e abstratas), bem como as relações jurídicas (prescritas no consequente das mesmas regras)” (CARVALHO, 2008a, p. 90). Como os relatos do evento e da relação jurídica têm de ser feitos em linguagem competente, conclui-se que não se cria direito novo sem linguagem.

Geralmente, os relatos que correspondem à aplicação de norma jurídica geral e abstrata a caso concreto são feitos em linguagem "escrita", mas a linguagem pode ser "oral" ou até mesmo "gestual". Assim como promessa de compra e venda de imóvel escrita e assinada por vendedor e comprador cria direitos e obrigações para cada um, acordo verbal entre proprietário e profissional da construção civil, para que este, por preço avençado, execute pequena reforma na residência daquele, produz direitos e obrigações para ambos. Sem nada dizer, uma parte pode demonstrar sua vontade de contratar e o silêncio de representante da outra parte indicar que ela aceita o contrato, como a pessoa que entra em ônibus urbano e, ao passar pela catraca, paga o preço da passagem ao cobrador. Embora nada seja dito, passageiro e empresa de transportes celebram contrato de prestação de serviço de transporte.

São em linguagem escrita os relatos da infração tributária (ou do evento tributário) e da relação jurídica tributária em que se exige multa (ou o tributo), efetuados respectivamente no antecedente e no consequente de norma individual e concreta. No entanto, se a linguagem que relata a infração tributária ou o evento tributário não for clara e precisa, não se instaurará a relação jurídica tributária, com direito de crédito para a Fazenda Pública e correlata obrigação para o sujeito passivo.

Em exemplo citado pelo jurista romano Gaio, postulante perdeu litígio que tratava do corte indevido de suas videiras por um vizinho, por ter pronunciado erradamente a palavra árvore ("arbor"), em vez de videiras ("vites"). No direito processual atual, não só se rejeita o formalismo exacerbado, como também se recomenda o aproveitamento dos atos sanáveis (preceito contido no brocardo "pas de nullité sans grief"). O direito tributário não é solene como era o direito romano, mas é formal como este, pois a falta de precisão na linguagem que relata infração fiscal pode levar à improcedência do auto de infração.


2. Sistema do direito positivo. Normas: primárias e secundárias. Normas primárias: obrigatórias, proibitivas e sancionadoras

Eventos ocorrem no mundo real-social, mas se perdem no tempo e no espaço. Somente quando relatado em linguagem, ainda que coloquial, o evento passa a "fato". Quando relatado na linguagem do direito, no antecedente de norma individual e concreta, o evento passa a "fato jurídico".

O “sistema do direito positivo” é formado por normas que se destinam a regular as condutas intersubjetivas, possibilitando a vida em sociedade. Normas jurídicas distinguem-se de outras normas sociais de conduta (morais, religiosas, de etiqueta etc.) porque são “coativas”. Isso significa: se a norma é "obrigatória" ou "imperativa", a seu mando ninguém se pode furtar; se é "proibitiva" da prática de ato, deve o destinatário dessa norma abster-se de praticá-lo (SILVA, 1973, p. 1068).[2] Se o destinatário de norma jurídica "primária" obrigatória ou proibitiva descumprir a prescrição contida em seu consequente, deverá ser-lhe aplicada sanção prescrita no consequente de outra norma jurídica, primária "sancionadora", que em seu antecedente descreve o descumprimento da prescrição contida no consequente da primeira norma. Norma "primária" é a de direito material, assim entendido o Direito Objetivo que vem estabelecer a substância, a matéria da "norma agendi", fonte geradora e asseguradora de todo direito (SILVA, 1973, p. 540). O consequente da norma primária "sancionadora" prescreve uma sanção administrativa ou contratual que deverá ser aplicada ao sujeito que descumprir o dever jurídico prescrito no consequente de norma primária obrigatória ou proibitiva.

Se, mesmo assim, o destinatário (devedor) não pagar a multa (sanção) e o tributo, exigidos cada um em norma individual e concreta, poderá a Fazenda Pública (credor) pedir ao Estado-juiz (detentor de parcela do monopólio da força) que aplique uma terceira norma jurídica ("secundária", "processual" ou de "direito formal"), para obrigar o destinatário a pagar ambas as exigências, sob pena de expropriar o patrimônio deste, a fim de obter recursos para satisfazer a pretensão do credor, compondo o conflito de interesses e restabelecendo a paz social. Direito Formal ou Direito Adjetivo estabelece a forma ou os meios para o exercício dos direitos objetivos (SILVA, 1973, p. 538).


3. Da incidência da norma jurídica geral e abstrata

Norma jurídica é uma relação de implicação. Na norma jurídica geral e abstrata a relação de implicação é do tipo: se ocorrer o fato F, então “deve ser” a relação jurídica R, entre os sujeitos S’ e S’’. Simbolicamente, temos:

D[ F –> (S’ R S’’) ]; em que D é o “functor deôntico” não modalizado. A norma é “geral” porque se dirige a um conjunto de sujeitos indeterminados quanto ao número; é “abstrata” porque o fato hipotético descrito no antecedente resulta da tipificação de um conjunto de fatos (CARVALHO, 2008b, p. 35).

Quando agente credenciado pelo sistema jurídico faz incidir norma jurídica geral e abstrata sobre evento do mundo real-social (isto é, aplica a norma ao caso concreto), ele produz direito novo: a norma jurídica individual e concreta. Nessa norma, a relação de implicação é do tipo: dado que ocorreu o fato F, então “deve ser” a relação jurídica R, com obrigação determinada, entre os sujeitos determinados S’ e S’’. Fazer incidir norma jurídica geral e abstrata sobre evento é relatá-lo no antecedente de norma jurídica individual e concreta, de modo que se instaure automática e infalivelmente relação jurídica que se conforma à relação jurídica prescrita no consequente da norma geral e abstrata. A norma é “individual” porque se volta a certo indivíduo ou a grupo identificado de pessoas; é “concreta” porque o fato e a conduta prescrita são especificados no espaço e no tempo (CARVALHO, 2008b, p. 35-36).

O veículo introdutor da norma jurídica individual e concreta no ordenamento (o auto de infração ou o ato administrativo de lançamento) é também norma jurídica, mas só que do tipo “geral e concreta”. É “concreta” porque, em seu antecedente, há o relato de uma atividade realizada por agente competente em determinadas coordenadas de espaço e de tempo, segundo procedimento previsto em norma de produção normativa. É “geral” porque a relação jurídica prescrita em seu consequente obriga todos a observar as disposições da norma jurídica introduzida (MOUSSALLEM, 2006, p. 132).


4. Das provas

Por meio de provas podemos reconstituir fato pretérito, ou seja, inferir a ocorrência, no mundo fenomênico, de evento relevante para o direito, ou seja, a que o legislador atribui determinado efeito jurídico. No campo do direito tributário, esse evento é naturalmente o tributável ou o qualificado como infração à lei tributária.

Para que o evento ingresse no mundo do direito e produza efeito jurídico, é preciso escolher norma jurídica geral e abstrata, válida, vigente e eficaz à época de ocorrência do evento, e fazê-la incidir sobre este. Dito de modo mais técnico: é necessário relatar o evento na linguagem do direito, isto é, subsumir esse relato a fato descrito hipoteticamente no antecedente de norma jurídica geral e abstrata, de sorte que sejam conhecidos os sujeitos da relação jurídica prescrita no consequente dessa norma e a correspondente prestação, que é o objeto da obrigação.

Com a subsunção, realizada apenas por agente credenciado pelo sistema jurídico (no que concerne aos tributos instituídos pelo Estado de São Paulo, o agente credenciado é o Agente Fiscal de Rendas), nasce a norma jurídica individual e concreta. O relato do evento, que está no antecedente dessa norma, é o fato jurídico tributário. A relação jurídica, instaurada automática e infalivelmente no preciso instante do relato do evento, outorga direito a um sujeito (sujeito ativo) e impõe correlato dever jurídico a outro (sujeito passivo).

Provas documentais colhidas ou produzidas pelo Agente Fiscal de Rendas, depois de devidamente ordenadas, permitem reconstituir o fato (relato do evento tributário ou da infração à legislação tributária). Reunir e ordenar provas do fato tributário, portanto, são tarefas que devem preceder o ato de lavratura do Auto de Infração e Imposição de Multa ou de lançamento do tributo.

A Fazenda Pública do Estado de São Paulo exige o Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) que deixou de ser pago[3] e a multa por infração à legislação desse imposto em um só documento: o Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM). O Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, de quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD) que deixou de ser recolhido e a multa por infração à legislação desse imposto são também exigidos por AIIM. O mesmo ocorria com o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e a multa por infração à lei do imposto. No entanto, com a edição da Lei 12.181/2005, IPVA, juros de mora e multa de mora (por não-recolhimento do imposto até a data de vencimento) passaram a ser exigidos por lançamento por notificação, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo.

No AIIM, o Agente Fiscal de Rendas relata uma infração (acusação fiscal), impõe ao infrator (sujeito passivo) o pagamento de multa a título de sanção, e, se foi o caso, exige o imposto que deixou de ser pago em razão da prática da infração. Para exigir o imposto, parte-se de premissa implícita simples e convincente: se imposto sujeito a homologação por autoridade administrativa não foi pago espontaneamente, pelo menos 1 (um) dever instrumental foi descumprido. Daí por que a exigência de imposto sonegado não prescinde de 1 (uma) acusação fiscal, que implica exigência de multa.[4]

A elaboração da acusação fiscal é uma das etapas finais do procedimento a que se refere o art. 142 do Código Tributário Nacional (CTN). A acusação, que é o relato de evento qualificado como infração à legislação tributária, depende das provas que instruem o AIIM e de haver norma jurídica geral e abstrata sancionadora com hipótese que descreve infração a que o relato se subsome.

Muitas vezes, a análise das provas permite inferir a prática de duas ou mais infrações. No entanto, quando as infrações inferidas são fases de um mesmo desígnio do sujeito passivo, só uma deve ser relatada no auto de infração. Em geral, é a infração mais próxima, no espaço e no tempo, da conduta ilícita inferida pelo exame das provas. Por exemplo: após abordar contribuinte que transportava mercadorias sem documentação fiscal, o agente fiscal deve acusá-lo de "ter remetido e transportado mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal", e não de "ter deixado de emitir documento fiscal", já que essa infração, não demonstrada, se ocorreu, foi em outro local e antes do flagrante.

Há situações, porém, em que:

a) se descreve apenas a segunda infração cometida pelo contribuinte, já que a primeira é "meio" para a realização da segunda (consunção); p. ex., ao constatar crédito de ICMS decorrente de entrada de mercadoria no estabelecimento, fundado em documento que não atende às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989[5] (documento inidôneo), acusa-se o contribuinte de "ter se creditado de imposto, decorrente de entrada de mercadoria no estabelecimento, fundado em documento que não atende às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989", sem, contudo, cumular essa infração com a de “ter recebido mercadoria desacompanhada de documentação fiscal”, que é a primeira infração, no tempo, que se infere da constatação da inidoneidade do documento, a teor do disposto no inc. I do art. 184 do RICMS/2000.[6]

b) se deve descrever apenas a primeira infração cometida pelo contribuinte, já que a segunda é “absorvida” pela primeira (consunção); p. ex., ao constatar emissão, em determinado período, de documentos fiscais relativos a operações tributadas mas que não foram escriturados regularmente no livro Registro de Saídas, e a entrega de GIAs com consequente indicação incorreta de informação econômico-fiscal, acusa-se o contribuinte apenas de "ter deixado de pagar o ICMS no período de ... a ..., por emissão de documentos fiscais relativos a operações tributadas, mas que não foram escriturados regularmente no livro Registro de Saídas"; a acusação de “ter entregado GIAs com soma de débitos do ICMS inferior à correta” é consequência lógica da infração anterior.

Para evitar "bis in idem"[7] na aplicação de pena, para cada desígnio de sonegar imposto, só uma norma geral e abstrata sancionadora deve ser aplicada.

Não há diferenças ontológicas entre infrações tributárias e penais. Natural, portanto, que, na imposição de multas tributárias, sejam utilizados conceitos do Direito Penal, como “consunção”, princípio do “non bis in idem”.

4.1.    Provas diretas

Por meio de provas inferimos a ocorrência de evento pretérito. Relatar evento é reconstruir fato passado. Interessa-nos o evento tributado ou que é infração à legislação tributária. O relato do primeiro se subsome a fato descrito na hipótese de regra-matriz de incidência tributária; o relato do segundo, a fato descrito na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora.

Há situações, porém, em que o agente fiscal assiste à infração. É quando ele surpreende o infrator remetendo, entregando, recebendo, transportando ou depositando mercadorias sem documentação fiscal hábil ou constata o estoque dessas mercadorias. Nesse caso, a infração relatada no AIIM será a de remessa, entrega, recebimento, transporte, depósito ou estocagem de mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal. O registro da infração constatada pelo agente fiscal é efetuado mediante lavratura de Auto de Apreensão de Bens (AAB), que é prova material da infração.

O agente fiscal teve acesso à infração, mas quem consulta os autos do processo administrativo tributário somente infere a sua ocorrência por meio do AAB. O AAB é "prova direta"[8] da infração, pois se refere imediatamente ao fato probando, representando-o (SANTOS, 1989-1991, p. 330).

Em outras situações, documento entregue pelo contribuinte ou juntado pelo agente fiscal, traz o registro da infração praticada pelo contribuinte. É o que ocorre com o demonstrativo de entrega de Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA), com data de entrega posterior ao termo final do prazo regulamentar; nesse caso, a infração relatada no AIIM será a de entrega de GIA até o décimo quinto dia após o transcurso do prazo regulamentar ou de entrega após o décimo quinto dia. O demonstrativo é prova direta da infração.

4.2.    Provas indiretas

Na maioria das situações, porém, a partir de evento (ou eventos) constatado, o agente fiscal infere a falta de pagamento do tributo ou a infração praticada. É a "prova indireta"[9], que ocorre, por exemplo, nos seguintes casos:

a) pela não-escrituração, no livro Registro de Saídas, de documento fiscal relativo a operação tributada, o agente fiscal infere a falta de pagamento do ICMS no período de apuração; a acusação deve ser: "deixou de pagar o ICMS de R$ ..., por não haver escriturado regularmente, no livro Registro de Saídas, documento fiscal emitido, relativo a operação tributada";

b) pela escrituração, no livro Registro de Saídas, de saída de algodão em caroço de produção paulista para outro Estado, com lançamento de débito do imposto, e de inexistência, na Conta Fiscal do contribuinte,[10] de registro de recolhimento do ICMS por guia especial para aquela saída, o agente fiscal infere adiamento indevido no recolhimento do imposto;[11] a acusação deve ser: "deixou de pagar o ICMS de R$ ..., por ter escriturado regularmente[12] a operação no livro Registro de Saídas, mas, nos termos da legislação, o recolhimento do imposto deve ser feito por guia especial";

c) por meio de levantamento específico de determinado tipo de mercadoria em certo período, o agente fiscal constata que, no final deste, o estoque físico era menor do que o estoque contábil (diferença de saídas); a acusação deve ser: "deixou de pagar, no período de ... a ..., o ICMS de R$ ..., apurado por meio de levantamento fiscal".


5. Do erro de fato e do erro de direito

Consiste o erro de fato em se ter uma falsa ideia sobre o exato sentido das coisas, crendo-se uma realidade que não é verdadeira. Consiste o erro de direito em enganar-se a respeito da existência da regra jurídica própria ao ato praticado (ignorância da regra) ou interpretá-la de forma equivocada, para aplicá-la ao fato concreto ou ao ato a ser cumprido. O erro de fato ou o erro de direito não gera obrigações (SILVA, 1973, p. 612).

No entanto, nem sempre é fácil distinguir o erro de fato do erro de direito. É que, algumas vezes, o próprio relato do evento ocorrido no mundo fenomênico, que é o antecedente da norma individual e concreta, é construído com a linguagem das provas e com conceito definido por uma norma jurídica.

No que concerne ao lançamento, para Carvalho (2008a, p. 450) "o erro de fato é um problema intranormativo, um desajuste interno na estrutura do enunciado, por insuficiência de dados lingüísticos (sic) informativos ou pelo uso indevido de construções de linguagem que fazem as vezes de prova. Esse vício na composição semântica do enunciado pode macular tanto a oração do fato jurídico tributário como aquela do conseqüente (sic) em que se estabelece o vínculo relacional. Ambas residem no interior da norma e denunciam a presença do erro de fato."

Há erro de fato quando, na norma individual e concreta de exigência da multa, ocorre um desajuste entre o enunciado da infração ou da relação obrigacional, e o enunciado, daquela ou desta, que estaria autorizado pelas provas juntadas ao auto de infração.

"Já o erro de direito é também um problema de ordem semântica mas envolvendo enunciados de normas jurídicas diferentes, caracterizando-se como um descompasso de feição externa, internormativa" (CARVALHO, 2008a, p. 451). Há erro de direito no lançamento quando um ou mais elementos do fato jurídico tributário, no antecedente, ou um ou mais elementos da relação obrigacional, no consequente, ou ambos estão em desalinho com os enunciados da hipótese ou da consequência da regra-matriz do tributo (CARVALHO, 2008a, p. 451).

Também há erro de direito quando o enunciado da infração ou da relação obrigacional, da norma individual e concreta de exigência da multa, está em desalinho com o enunciado da hipótese ou da consequência da norma geral e abstrata sancionadora aplicável à infração que foi inferida.


6. Do erro de acusação fiscal

O erro de acusação fiscal pode ser "de fato" ou "de direito". O "erro de fato" ocorre quando a infração relatada no antecedente da norma individual e concreta de exigência da multa não é a que melhor se ajusta às provas juntadas ao auto de infração. O sujeito passivo tem bons argumentos para contestar a ocorrência da infração. O "erro de direito" ocorre quando a infração relatada, embora ajustada às provas, não se subsome à hipótese da norma geral e abstrata sancionadora que foi aplicada ou que deveria ser aplicada a outro relato de infração, mais específico, que também pode ser inferido pelo exame das provas.

O erro de acusação fiscal implica improcedência do auto de infração e, por conseguinte, cancelamento do crédito tributário por ele exigido, que inclui imposto, multa por sonegação e juros moratórios. Isso porque:

a) "motivo" do ato é o "fato" que autoriza ou exige a prática do ato; motivo é "pressuposto" para a elaboração do "ato-norma";

b) no auto de infração: o "fato" é a "infração", que é reconstruída (mentalmente) por meio das provas; o "ato-norma" é a norma individual e concreta de exigência de multa e a de lançamento do imposto;

c) "motivação" é a descrição do motivo do ato administrativo, parte integrante da "estrutura" do "ato-norma"; no ato-norma de exigência de multa, motivação é o relato da infração praticada; a motivação deve observar a "Teoria dos Motivos Determinantes", do Direito Administrativo, segundo a qual "uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam" (BANDEIRA DE MELLO, 2014, p. 408).

Ante o exposto, "o erro de fato vicia, no plano fáctico da constituição do ato-norma, o motivo do ato; por outro lado, o erro de direito vicia a motivação, elemento da estrutura normativa da norma individual e concreta do lançamento tributário" (SANTI, 2001, p. 267). Assim, erro de fato ou de direito na acusação fiscal, torna "invalidável" o ato-norma de exigência de multa e, portanto, o ato-norma de lançamento do tributo, já que a exigência do tributo é resultado de infração que não está demonstrada ou cujo relato não se subsome à infração descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora aplicável ao caso.

6.1.    Acusação fiscal com erro de fato

É extensa a relação de deveres instrumentais cometidos ao contribuinte do ICMS desde a ocorrência do evento tributado até a declaração à Fazenda Pública do valor do imposto devido no período que inclui aquele evento. É necessário: emitir Nota Fiscal para cada operação de saída de mercadorias ou de produtos acabados; escriturar a Nota no livro Registro de Saídas; escriturar as Notas Fiscais de aquisição de mercadorias ou matérias-primas no livro Registro de Entradas; calcular as somas, no mês, de débitos e de créditos do imposto daquele e deste livro; transportá-las para o livro Registro de Apuração do ICMS; realizar o confronto entre essas somas no mês, para apurar o valor do imposto a recolher (saldo positivo) ou o valor do saldo credor do imposto (saldo negativo) a ser transportado para o mês seguinte; declarar esses valores em Guia de Informação e Apuração do ICMS (GIA); ou ainda, relativamente a eventos tributados específicos, recolher diretamente o imposto por guia de recolhimentos especiais. Muitos, portanto, podem ser os tipos de infração praticados pelo contribuinte ao exercer todas essas atividades.

Quando a infração praticada pelo sujeito passivo for simples e o agente fiscal descrevê-la sem circunstanciá-la além do necessário, dificilmente a descrição se afastará de conduta que pode ser inferida pelo exame das provas. Não haverá erro de fato. A descrição da infração certamente se enquadrará com justeza a infração descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora da lei do ICMS, não havendo, portanto, erro de direito.

Algumas vezes, porém, as provas juntadas ao auto de infração permitem construir mais de uma descrição para a infração. Deve-se evidentemente escolher a que o contribuinte terá mais dificuldade em impugnar.

Exemplos:

a) por meio de documentos oficiosos (controle paralelo) apreendidos no estabelecimento do contribuinte, infere-se ter havido sonegação do imposto em um período, mas os documentos não permitem identificar os dados de cada operação de saída realizada sem emissão de documento fiscal:

o contribuinte deve ser acusado de “ter deixado de pagar o ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., apurado por meio de levantamento fiscal” – com multa capitulada na al. "a" do  inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;

não é correta a acusação de “ter deixado de emitir documentos fiscais em operações de saída tributadas” – com multa capitulada na al. "a" do  inc. IV do art. 85 da lei –, pois ela exigiria o conhecimento de dados essenciais de todas as operações de saída sem emissão de documento fiscal;

b) caminhão de propriedade do remetente foi abordado pela fiscalização, transportando mercadorias desacompanhadas de documento fiscal:

o contribuinte deve ser acusado de “ter remetido e transportado mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal, apreendidas pelo Auto de Apreensão de Bens n° ...” – com multa capitulada na al. "a" do  inc. III do art. 85 da Lei 6.374/1989;

não é correta a acusação de “ter deixado de emitir documento fiscal” – com multa capitulada na al. "a" do  inc. IV do art. 85 da lei;

esta infração, anterior à constatada, pode não ter ocorrido – o motorista pode ter esquecido de pegar Nota Fiscal já emitida ou pode ter recebido por engano Nota Fiscal de mercadorias adquiridas por outro cliente e que foram transportadas por outro veículo;

c) ao examinar o livro Registro de Entradas do contribuinte, constatou-se a escrituração de créditos do ICMS de documentos considerados inidôneos; não há prova de que as mercadorias não entraram no estabelecimento:

o contribuinte deve ser acusado de "ter se creditado de valores de ICMS no total de R$ ..., no período de ... a ..., decorrentes de entradas de mercadorias no estabelecimento, acompanhadas de documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989" – com multa capitulada na primeira parte da al. "c" do  inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989;

não é correta a acusação de "ter se creditado indevidamente de valores de ICMS no total de R$ ..., no período de ... a ..., decorrentes de escrituração de documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 e que não correspondem a entradas de mercadorias no estabelecimento" – com multa hoje capitulada na segunda parte da al. "c" do  mesmo inciso[13] –, pois deveria ter sido provado que as mercadorias não entraram no estabelecimento.[14]

6.2.    Acusação fiscal com erro de direito

Em alguns casos, os documentos juntados para comprovar a infração permitem ao agente fiscal construir duas ou mais descrições para a infração, que se subsomem a infrações descritas nas hipóteses de duas ou mais normas gerais e abstratas sancionadoras. No entanto, só uma norma deve ser aplicada.

Exemplos:

a) contribuinte remeteu mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, com suspensão do lançamento do imposto, mas ela não retornou ao estabelecimento de origem dentro de 60 (sessenta) dias nem foi realizada a transmissão de sua propriedade:

o contribuinte deve ser acusado de ter deixado de pagar ICMS de R$ ..., por meio de guia especial, em remessa de mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, que não retornou ao estabelecimento de origem dentro de 60 (sessenta) dias nem foi realizada a transmissão de sua propriedade” – com multa capitulada na al. “e” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;

não são corretas as acusações de:

I)   “ter deixado de emitir, no 61º (sexagésimo primeiro) dia contado da remessa da mercadoria, a Nota Fiscal prevista nos §§ 1º e 2º do art. 320 do RICMS/2000”[15] – com multa capitulada na al. "a" do  inc. IV do art. 85 da Lei 6.374/1989 –, pois nela deve constar o número, a data e o valor da guia de recolhimentos especiais (item 3 do § 2°), o que mostra que o dever de recolher o ICMS precede o de emitir a Nota Fiscal;

II) “ter deixado de pagar ICMS de R$ ...., por haver emitido e escriturado documento fiscal de operação tributada, como se fosse isenta” – com multa capitulada na primeira parte da al. "c" do inc. I do art. 85 da lei –, pois, a remessa, isenta, só se torna tributada quando a mercadoria não retorna ao estabelecimento de origem em 60 dias ou, nesse prazo, não é transmitida a sua propriedade;

b) contribuinte creditou-se de determinado valor no Campo “Outros Créditos” de GIA; notificado a apresentar documentos que fundamentassem o valor creditado, o contribuinte não atendeu à notificação:

o contribuinte deve ser acusado de “ter se creditado indevidamente de R$ ... de imposto, lançado no Campo ‘Outros Créditos’ da GIA de .../... (mês/ano)” – com multa capitulada na al. “j” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989, que cuida de hipótese não prevista nas alíneas anteriores;

embora pareça mais ajustada ao caso, não é correta a acusação de “ter se creditado de R$ ... de imposto, lançado no Campo ‘Outros Créditos’ da GIA de .../... (mês/ano), não fundado em documento e sem a correspondente entrada da mercadoria no estabelecimento ou sem a aquisição de sua propriedade ou sem o recebimento de prestação de serviço” – com multa capitulada na al. “b” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989;

é que a base de cálculo da multa prevista na alínea “b” é o valor escriturado como o da operação ou da prestação, mas o fisco não obteve documento com a escrituração desse valor; haverá erro de direito na base de cálculo da multa se o agente fiscal, mal interpretando a norma, fixá-la como o quociente entre o valor do imposto creditado e 0,18; no entanto, a base de cálculo da multa prevista na al. “j” é o valor do crédito indevidamente escriturado;

c) contribuinte emitiu Notas Fiscais de vendas de mercadorias em determinado período para destinatário de outro Estado – com alíquota interestadual de 7% (sete por cento) –; transporte por conta do remetente das mercadorias; há declaração de preposto da empresa de destino das mercadorias, de que esta não celebrou negócio jurídico com o remetente; notificado, o remetente não apresentou outros documentos que comprovassem a realização das operações:

o contribuinte deve ser acusado de "ter deixado de pagar o ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., por ter emitido Notas Fiscais que indicam outro Estado como destino das mercadorias, sem que estas tenham saído do território paulista" – com multa capitulada na al. “g” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989;[16]

não são corretas as acusações de:

I)   "ter emitido Notas Fiscais, no período de ... a ..., que consignam declaração falsa quanto ao estabelecimento de destino das mercadorias" – com multa capitulada na primeira parte da al. “b” do inc. IV do art. 85 da lei;[17]

II) "ter remetido e transportado, no período de ... a ..., mercadorias desacompanhadas de documentação fiscal" (a teor do disposto na primeira parte do inc. III do art. 184 do RICMS/2000)[18] – com multa capitulada na al. “a” do inc. III do art. 85 da Lei 6.374/1989;[19]

nas duas primeiras acusações exige-se o total dos valores de imposto que correspondem à diferença entre a alíquota interna e a interestadual;

a segunda e a terceira acusações não serão verdadeiras se falsa for a declaração do preposto;

a norma geral e abstrata sancionadora aplicada na terceira acusação é geralmente utilizada em situações de flagrante, que não é o caso;

a existência da "presunção legal relativa" do § 3º do art. 23 da Lei 6.374/1989 é decisiva para a escolha da primeira acusação,[20] que se subsome perfeitamente à infração descrita na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora, especialmente elaborada para os casos da espécie;

a presunção legal relativa inverte o ônus da prova: é o contribuinte quem deve provar que as mercadorias foram de fato remetidas e transportadas para o destinatário indicado nas Notas Fiscais;

diante do “conflito aparente de normas”, a norma geral e abstrata sancionadora aplicada à primeira acusação, mais específica, prefere às aplicadas à segunda e à terceira acusações ("critério da especialidade").


7. Da escolha da norma geral e abstrata sancionadora a ser aplicada

São muitos os deveres instrumentais atribuídos ao contribuinte do ICMS do Estado de São Paulo. Porque o legislador paulista descreveu minuciosamente o descumprimento de tais deveres em hipóteses de normas gerais e abstratas sancionadoras, ocorre dúvida algumas vezes sobre a norma geral e abstrata sancionadora a ser aplicada a caso concreto. Se a norma escolhida não for a adequada, ocorrerá erro de direito.

Se a conduta do contribuinte for desconforme com a prescrita na lei do imposto ou contrária a esta (ato ilícito) mas não houver norma geral e abstrata sancionadora a cuja hipótese o relato da conduta se subsome, não poderá a autoridade administrativa aplicar sanção ao infrator.[21] O mesmo ocorrerá no caso inverso: existência de norma geral e abstrata sancionadora cuja hipótese descreve infração a que o relato da conduta se subsome, mas inexistência de norma geral e abstrata, obrigatória ou proibitiva, cujo consequente prescreve dever jurídico que é a conduta oposta à descrita na hipótese da norma sancionadora. O preceito decorre do princípio da legalidade[22] e é ratificado pelo fato de, após cada acusação fiscal do auto de infração e antes da respectiva “capitulação da multa”, ser indicada a “infringência”, relação de um ou mais dispositivos onde constam os deveres instrumentais que o contribuinte descumpriu.

Se previsível a infração, seu relato provavelmente se subsumirá ao descrito na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora específica. Se isso não ocorrer, mas a infração implicar falta de pagamento do ICMS ou creditamento indevido do imposto, a descrição da infração se subsumirá à hipótese de norma geral e abstrata sancionadora mais genérica: a da alínea “l” do inciso I ou a da alínea “j” do inciso II, ambas do art. 85 da Lei 6.374/1989.[23]


8. Das normas individuais e concretas de exigência da multa e do imposto, no Auto de Infração

Com a notificação ao contribuinte de Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) são postas geralmente duas normas individuais e concretas no ordenamento: a de exigência da multa e a de exigência do imposto. No entanto, somente o relato do antecedente da primeira norma (a acusação fiscal) está expresso. O relato do evento (ou eventos) tributário cujo imposto não foi pago ou foi pago a menos não está: basta que a ocorrência do evento possa ser inferida da infração fiscal e estar demonstrada pelas provas que instruem o AIIM.

Como exemplo na área do ICMS, consideremos o comerciante que escriturou, no livro Registro de Entradas, em determinado período, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas, com valores de "crédito do imposto" superiores aos destacados nas Notas, deixando, portanto, de pagar imposto.

A norma geral e abstrata sancionadora aplicável pode ser assim enunciada:

Se contribuinte paulista não escriturar regularmente, no livro fiscal próprio, documento fiscal, dando causa a falta de pagamento do ICMS, então ele deverá pagar ao Estado de São Paulo, a partir do momento da escrituração irregular, multa igual a 75% (setenta e cinco por cento) do valor total de imposto que deixou de ser pago”.[24]

Conforme lição de Carvalho (2008a, p. 543-544), na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora temos: o "critério material" (não escriturar regularmente, no livro fiscal próprio, documento fiscal, dando causa a falta de pagamento do ICMS); o "critério espacial" (território do Estado de São Paulo); o "critério temporal" (momento em que ocorrida a escrituração). No consequente da norma sancionadora temos: o “critério pessoal”, formado pelo "sujeito ativo" (pessoa jurídica de direito público interno investida do poder de exigir a multa: o Estado de São Paulo) e pelo "sujeito passivo" (pessoa que deve pagar a multa: o contribuinte infrator); e o "critério quantitativo", formado pela "base de cálculo da multa" (valor total do imposto devido) e pela "percentagem da multa" (de 75% – setenta e cinco por cento).

A norma individual e concreta de exigência da multa, enunciada na forma de implicação, é:

Dado que o contribuinte acima identificado não escriturou regularmente, no livro Registro de Entradas, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas no período de ... a ..., relativas a operações tributadas, dando causa a falta de pagamento do ICMS de R$ ..., então deve pagar ao Estado de São Paulo a multa de R$ ... , apurada conforme demonstrativo anexo”.

No entanto, as normas individuais e concretas de exigência da multa e do imposto são assim enunciadas no auto de infração:

“Deixou de pagar ICMS de R$ ..., no período de ... a ..., por não haver escriturado regularmente, no livro Registro de Entradas, Notas Fiscais de mercadorias por ele adquiridas, relativas a operações tributadas, conforme demonstrativo anexo”.

Apenas o inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989 refere-se diretamente a infrações que dão causa ao não-pagamento do imposto. Com efeito, todas as alíneas do inciso são de “falta de pagamento do imposto”. Em seguida é descrita a causa da “falta de pagamento do imposto” (“descumprimento de dever instrumental”), exceto na alínea “a”, que menciona o “meio” pelo qual a “falta” foi apurada, e na alínea “l”, que se refere a causa não prevista nas demais alíneas.

Cada um dos demais incisos do art. 85 refere-se a determinado tipo de “descumprimento de dever instrumental” – infrações relativas ao crédito do imposto (inc. II); infrações relativas a documentação fiscal na entrega, remessa, ... (inc. III); infrações relativas a documentos fiscais e impressos fiscais (inc. IV) etc. – que pode ser causa ou não da “falta de pagamento do imposto”. Quando o “descumprimento de dever instrumental” for causa do “não-pagamento do imposto”, a capitulação da multa (alínea e inciso do art. 85, em que está a norma geral e abstrata sancionadora aplicada) deverá ser combinada com o § 1º do art. 85. De acordo com a primeira parte do § 1°, a aplicação das penalidades previstas nesse artigo deve ser feita sem prejuízo da exigência do imposto em auto de infração. Após o relato da infração, são apresentados os cálculos da multa e do imposto.

Em casos previstos a partir do inc. II do art. 85, descreve-se a infração e exige-se o imposto não-pago dela decorrente, o que condiciona a validade da relação jurídica de exigência do imposto à da norma individual e concreta de exigência da multa, que requer relatos da infração e da relação jurídica dessa norma de acordo com as provas e subsunção desses relatos ao do evento hipotético descrito no antecedente e ao da relação jurídica prescrita no consequente, respectivamente, da norma geral e abstrata sancionadora aplicada.

Suponhamos que a análise de controles paralelos elaborados pelo contribuinte e apreendidos pelo fisco permitisse inferir que, em determinado período, operações de saída de mercadorias não foram declaradas à Fazenda Pública.

Se construída separadamente, a norma individual e concreta de exigência do imposto poderia ser:

Dado que, no período de ... a ..., o contribuinte acima identificado efetuou operações de saída de mercadorias, inferidas por documentos anexos, então deve pagar ao Estado de São Paulo o imposto de R$ ..., diferença entre o imposto apurado e o declarado, conforme documentos e demonstrativo anexos".

Se a exigência do imposto for feita na forma utilizada no auto de infração, mesmo que demonstrada a falta de pagamento do imposto, este não poderá ser exigido em caso de acusação fiscal incorreta. É o que ocorreria se o contribuinte tivesse sido acusado de “deixar de emitir documentos fiscais no período de ... a ..., conforme documentos e demonstrativo anexos”, mas os controles paralelos elaborados pelo contribuinte não permitissem identificar os dados essenciais das operações de saída sem emissão de documento fiscal.[25] Nesse caso, o contribuinte deveria ter sido acusado de “deixar de pagar o imposto de R$ ..., apurado por meio de levantamento fiscal”.

No auto de infração, a infração praticada (ou o evento tributário) é “motivo” do ato administrativo de exigência da multa (ou do imposto). No que concerne aos vícios relativos ao “motivo” do ato administrativo, seguimos lições de Di Pietro (2003, p. 3).[26] Se a ocorrência da infração (ou do evento tributário) não estiver demonstrada pelas provas juntadas ao auto de infração, haverá vício no “motivo”, por inexistente a matéria “de fato” (“pressuposto de fato”); se estiver demonstrada, mas o relato da infração (ou do evento tributário) não se subsumir ao que está descrito no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora (ou na hipótese da regra-matriz de incidência) aplicada, haverá vício no “motivo”, por juridicamente inadequada a matéria “de direito” (“pressuposto de direito”, “fundamento legal” ou “motivo legal”). Num ou noutro caso haverá vício na “motivação” (que é a descrição dos motivos) do ato administrativo de exigência da multa (ou de lançamento do imposto), o que torna o ato “anulável”.

Atos administrativos de exigência da multa e de lançamento do imposto são anulados quando a norma individual e concreta de exigência de multa perde sua validade. A perda da validade ocorre quando, impugnada a norma, o órgão julgador, administrativo ou judicial, singular ou colegiado, a retira do sistema do direito positivo por meio da introdução de outra norma individual e concreta (a decisão), com aquela incompatível. A norma introdutora dessa norma individual e concreta, porém, é concreta e geral. É “concreta”, porque, em local e momento determinados, o órgão julgador exerceu sua competência legal de acordo com procedimento prescrito em norma de produção normativa; é “geral”, porque todos devem respeitar o disposto na norma introduzida.


9. Dos limites objetivos para a revisão do lançamento

Na revisão do lançamento há o conflito entre o "sobreprincípio da segurança jurídica" e o "princípio da legalidade" (CAMPILONGO, 2005, p. 188). O princípio rege a atuação da Administração Pública. Em muitos casos, porém, o sobreprincípio limita tal atuação, ao buscar a previsibilidade e a estabilidade das relações jurídicas entre Administração e administrados.

"A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública" (parágrafo único do art. 149 do CTN).[27] Logo, é o mesmo o termo final dos prazos para efetuar o lançamento original e para fazer a revisão desse lançamento. No primeiro caso, o prazo é de decadência; no segundo, de preclusão, visto que já instaurada a relação processual.

A maioria dos autores entende taxativa ("numerus clausus") a enumeração apresentada nos incisos do art. 149. Como apenas o "erro de fato" está previsto ("quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior" – inc. VIII), concluem que o legislador não autorizou a revisão de lançamento com "erro de direito".[28] Pela regra do inc. I do art. 149, o lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa "quando a lei assim o determine." Interpretação mais restritiva da regra, porém, é de que ela se aplica apenas aos tributos em que o lançamento (e não a revisão) é de ofício, como o IPTU.

Alguns autores, porém, admitem a revisão de lançamento tanto com "erro de fato" quanto com "erro de direito", desde que observado o prazo do parágrafo único do art. 149.[29]


10.  Regra-matriz de incidência do ICMS e norma individual e concreta de exigência do imposto

Em todos os exemplos em que o ICMS deve ser exigido pelo Estado de São Paulo, podemos construir a seguinte regra-matriz de incidência:

Se pessoa natural ou jurídica domiciliada em território paulista ('critério espacial': art. 23, I, ‘a’, da Lei 6.374/1989), de modo habitual ou em volume que caracterize intuito comercial, efetuar operação de circulação de mercadorias tributadas ('critério material': art. 1°, I da lei; art. 155, II, da Constituição Federal), e tendo ocorrido momento escolhido pelo legislador para que o fato irradie efeitos jurídicos ('critério temporal': art. 2°, I, da lei), então essa pessoa, denominada contribuinte (art. 7°, “caput”, da lei, espécie de sujeito passivo – parte do 'critério pessoal'), deverá pagar ao Estado de São Paulo (sujeito ativo: indicado no preâmbulo da lei – parte do 'critério pessoal') ICMS igual ao produto do valor da operação (base de cálculo: art. 24, I, da lei – parte do ‘critério quantitativo’) por alíquota determinada (art. 34 da lei – parte do ‘critério quantitativo’)”.

Em princípio, enunciada na forma de implicação, a norma individual e concreta de exigência do ICMS é:

Dado que a pessoa natural (ou jurídica) acima identificada realizou operação de circulação de mercadorias tributadas no período de ... a ..., então ela ('sujeito passivo' da 'relação jurídica tributária') deve pagar ao Estado de São Paulo ('sujeito ativo' dessa relação) o ICMS de R$ ... (obrigação de referida relação), diferença entre o imposto apurado pelo fisco e o por ela declarado, conforme demonstrativo anexo".

Conforme vimos, o Auto de Infração e Imposição de Multa é veículo introdutor de duas normas individuais e concretas no ordenamento jurídico: a de lançamento, cujo antecedente é o relato de fato lícito e o consequente uma relação jurídica em que se exige tributo; a de imposição de multa, em que o antecedente é a descrição de um ilícito e o consequente uma relação jurídica em que se exige multa.

O ICMS, porém, é imposto sujeito à homologação pela autoridade administrativa, em que a lei atribui ao contribuinte extensa relação de deveres instrumentais para: apurar o valor do “imposto devido” ou do “saldo credor do imposto”, no período; e declarar aquele ou este valor à Fazenda do Estado, em Guia de Informação e Apuração do ICMS. O ato de lançamento seria anulável se, em sua “motivação” (parte da estrutura do ato administrativo e antecedente da norma individual e concreta), não fossem descritos, ainda que de forma sucinta, os “motivos” por que o fisco está a modificar a apuração (ou apurações) do imposto realizada pelo contribuinte no período fiscalizado e a exigir, em auto de infração, valor (ou valores) do imposto que o contribuinte deveria ter declarado e recolhido espontaneamente. Para Carvalho (2008c, p. 443-444), isso é o “pressuposto causal” de validade do lançamento tributário. Quando o lançamento é lavrado em substituição ao ato de linguagem emitido com deficiência pelo sujeito passivo, ou seja, sem traço inovador (relato de relações jurídicas novas), Carvalho (2008a, p. 427), louvando-se em classificação de Ruy Cirne Lima, afirma que o lançamento é ato “modificativo”. Se no lançamento houver relato de relações jurídicas novas, ele será ato “constitutivo”.

Conforme se vê, se o lançamento for “ato modificativo”, não há como dissociá-lo da conduta pretérita do contribuinte. Para que a “motivação” do ato não esteja sujeita à anulação, não deve o agente fiscal referir-se a fato que não possa provar (erro de fato) e, ao relatar conduta pretérita do contribuinte que levou à falta de pagamento do imposto, não deve subsumir o relato a classe típica de infrações descrita em hipótese de norma geral e abstrata sancionadora.

Como o contribuinte deve ser notificado do lançamento do imposto, este pode ser feito da seguinte forma:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por operações de circulação de mercadorias, tributadas, apurado no período de ... a ..., conforme motivos e demonstrativo anexos”.

Os “motivos” do lançamento devem ser relatados sucintamente no antecedente da norma individual e concreta, podendo ser detalhados em demonstrativo anexo ao lançamento.

Suponhamos que, em determinado período, o agente fiscal apurou:

a) operações de circulação de mercadorias, sem emissão de Notas Fiscais;

b) escrituração, no livro Registro de Entradas, de créditos de imposto destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 (documentos inidôneos);

c) escrituração inexata, em livro fiscal próprio, de débitos de ICMS destacados em Notas Fiscais de saídas e de créditos de ICMS destacados em Notas Fiscais de aquisições de mercadorias, de sorte que, nos meses em que isso ocorreu, o contribuinte apurou valores de “imposto a recolher” inferiores aos devidos ou “saldos credores” superiores aos reais.

No caso da letra “a”, haverá o relato de relações jurídicas novas. O lançamento é ato constitutivo. A omissão do contribuinte não precisa constar do relato. Nos casos das letras “b” e “c”, o lançamento modifica apurações que o contribuinte realizou no período fiscalizado. Com efeito, na apuração realizada pelo agente fiscal constarão:

a) nos meses em que houve operações de circulação de mercadorias sem emissão de Notas Fiscais, débitos de ICMS relativos a essas operações;

b) nos meses em que houve escrituração de créditos de ICMS destacados em documentos inidôneos, o estorno desses créditos;

c) nos meses em que houve escrituração, em livro fiscal próprio, de valores diferentes dos valores dos débitos (créditos) de ICMS destacados em Notas Fiscais de saídas (aquisições de mercadorias), as diferenças entre os débitos (créditos) de ICMS destacados (escriturados) e os escriturados (destacados).

Quando, para cada evento tributário (ou conjunto de eventos, no levantamento específico ou contábil) a falta de pagamento do ICMS é demonstrada por vários documentos, o agente fiscal deve agrupá-los por tipo, ordenar os grupos de forma lógica e, em Relatório Circunstanciado, com índice por tipo de documento, explicar como documentos de cada tipo se encadeiam para demonstrar a ocorrência do evento tributário (ou do conjunto de eventos) e a falta de pagamento do ICMS. O Relatório Circunstanciado descreverá a conduta do contribuinte e as providências que o agente fiscal tomou para, após o exame das apurações efetuadas pelo contribuinte, suprir omissões, estornar créditos indevidos, corrigir valores com erro de escrituração e calcular valores de imposto devidos no período fiscalizado. De fato, com o cotejo entre valores das apurações realizadas pelo agente fiscal e das efetuadas pelo contribuinte no período fiscalizado, ou com o confronto entre deveres instrumentais que o contribuinte deveria ter cumprido e os que de fato cumpriu, a “motivação” do ato também poderá ser conhecida pelo contribuinte ou por órgão julgador, caso impugnada a acusação.

Guerra (2004, p. 132-137) propõe sejam enunciadas separadamente, no Auto de Infração e Imposição de Multa, as normas individuais e concretas de exigência do imposto e de exigência da multa, visto que a gênese da primeira é fato lícito, enquanto a da segunda é fato ilícito. Em seu "Esquema da Incidência da Autuação Fiscal", propõe sejam também relatadas a regra-matriz de incidência do imposto e a regra-matriz de multa pelo não pagamento (norma geral e abstrata sancionadora). Afirma a Autora que, para cada infração que tenha causado falta de pagamento do imposto, a apresentação da hipótese e do consequente de cada regra-matriz, e do antecedente (fato jurídico tributário ou fato jurídico tributário ilícito) e do consequente (relação jurídica tributária ou relação jurídica da multa) da respectiva norma individual e concreta permite deixar mais clara a coerência da subsunção, o que muito ajuda no controle da legalidade dos atos praticados pelo agente administrativo.

No entanto, ao relatar, no antecedente da norma individual e concreta de lançamento do imposto, evento (ou eventos) jurídico tributário declarado defeituosamente pelo contribuinte (lançamento modificativo), não deixa a Autora de mencionar a falta (ou faltas) cometida pelo contribuinte. Nem poderia ser de outro modo, visto que essa falta é “motivo” do ato administrativo de lançamento. Não descrito o motivo (ou motivos) do ato administrativo, este poderá ser anulado. Somente em relação a evento (ou eventos) não declarado pelo contribuinte (lançamento constitutivo) é que se pode relatar o evento lícito sem ter de mencionar a omissão do contribuinte, que evidentemente está implícita.


11.  Construção de normas individuais e concretas de exigência do ICMS para exemplos anteriores

Para o exemplo da letra “c” do subitem 6.1, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., em razão do estorno, pelo fisco, de créditos de ICMS correspondentes a valores de imposto destacados em documentos que não atendem às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989”.

Observações:

Provas:

a) documentos com destaques de ICMS (motivo do ato administrativo de lançamento: ocorrência de operações de circulação de mercadorias);

b) folhas do livro Registro de Entradas com escrituração dos créditos (motivo do ato administrativo de lançamento: apropriação dos créditos de ICMS);

c) cópias do Relatório de Apuração de Inidoneidade dos Documentos e da Ficha-Resumo (motivo do ato administrativo de lançamento: o suposto vendedor simulava sua existência).

O não-atendimento às condições do item 3 do § 1° do art. 36 da Lei 6.374/1989 é “pressuposto de direito” de motivo do ato administrativo de lançamento. Se o agente fiscal estornou créditos do ICMS destacados em documentos que não atendem àquelas condições, é porque o contribuinte apropriou-se de créditos indevidos.

Antes de julgado o REsp 1148444/MG,[30] em casos de escrituração de créditos de imposto destacados em documentos que não atendiam às condições do item 3 do § 1° do art. 36 da Lei 6.374/1989, teria sido conveniente que o fisco relatasse os eventos jurídicos tributários ocorridos no período, “modificados” por estornos de crédito de imposto por ele efetuados, no antecedente de norma individual e concreta de exigência do imposto. Assim, a procedência da exigência dos valores de ICMS assim apurados e exigidos dependeria apenas de haver provas concludentes[31] de que, no período em que os documentos foram emitidos, o suposto fornecedor simulava sua existência. Se na impugnação ao auto de infração, o contribuinte demonstrasse ter agido de boa-fé,[32] poderia o órgão julgador considerar improcedente a acusação fiscal, mas procedente a exigência do imposto, já que a boa-fé do adquirente não legitima crédito de ICMS destacado em documento que indica local de onde as mercadorias seguramente não saíram. Se a exação fiscal fosse reduzida ao total dos créditos estornados e respectivos juros de mora, talvez o contribuinte quitasse o débito fiscal.

Para o exemplo da letra “a” do subitem 6.2, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por remessa de mercadoria para demonstração dentro do território do Estado, com suspensão do pagamento do imposto, mas que, no prazo de 60 (sessenta) dias, não retornou ao estabelecimento de origem nem foi realizada a transmissão de sua propriedade (cf. dispõe o § 1° do art. 319 do RICMS/2000)”.

Observações:

Provas:

Nota Fiscal n° ..., Série ..., emitida em __ / __ / ___: (motivos do ato administrativo de lançamento: saída de mercadoria para demonstração, com suspensão do pagamento do imposto; mercadoria não retornada ao estabelecimento de origem no prazo de 60 dias; transmissão de propriedade da mercadoria não realizada nesse prazo).

Valor da mercadoria: R$ ... ;

Alíquota: ... ;

Valor do imposto: R$ ... ;

Juros de mora calculados a partir do mês de saída da mercadoria.

O “pressuposto de direito” de dois fatos (ou motivos) do ato administrativo de lançamento está na regra do § 1º do art. 319.

Conforme se vê, o relato não menciona o descumprimento de dois deveres do contribuinte: recolher o imposto devido, por meio de guia de recolhimentos especiais, com atualização monetária e acréscimos legais (cf. item 1 do § 1° do art. 320); emitir, no 61° (sexagésimo primeiro) dia contado da saída da mercadoria, a Nota Fiscal a que se referem os §§ 1°, 2° e 3° do art. 320 do RICMS/2000.

Para o exemplo da letra “c” do subitem 6.2, podemos construir a seguinte norma individual e concreta de lançamento do ICMS:

“Fica o contribuinte em epígrafe notificado do lançamento do ICMS de R$ ..., por emissão, no período de ... a ..., de Notas Fiscais de vendas de mercadorias para outro Estado, sem que, após notificado, conseguisse comprovar a realização das operações, conforme o demonstrativo anexo”.

Observações:

Transporte por conta do remetente das mercadorias;

Provas:

a) Notas Fiscais de vendas de mercadorias com destinatário de outro Estado e com alíquota interestadual (representam operações de circulação de mercadorias: motivo do ato administrativo de lançamento);

b) declaração, de preposto do suposto destinatário das mercadorias, de que essa empresa não celebrou negócio jurídico com o contribuinte paulista;

c) notificação ao contribuinte paulista para a apresentação de documentos que comprovassem a realização das operações;

d) resposta à notificação sem que fosse demonstrada a realização das operações.

Documentos descritos nas letras “b”, “c” e “d” mostram que o contribuinte não comprovou a ocorrência das operações, embora instado a fazê-lo: fato que é motivo do ato administrativo de lançamento. A presunção relativa do § 3° do art. 23 da Lei 6.374/1989 é “motivo legal” da não-ocorrência de operações interestaduais (motivo do ato administrativo de lançamento). O dispositivo não precisa constar da motivação do ato, já que, “nos atos vinculados, por tratar-se de tipo normativo estrito, a breve descrição do motivo do ato é suficiente para identificação do motivo legal” (SANTI, 2001, p. 110).

O demonstrativo de cálculo do imposto devido poderá ser planilha com dados de Nota Fiscal de venda preenchidos em cada linha, por ordem de data de emissão, e com as seguintes colunas: número da Nota Fiscal, Série, data de emissão, valor total da Nota, base de cálculo do ICMS, valor do ICMS destacado com alíquota de 7% (sete por cento), valor de ICMS calculado com alíquota de 18% (dezoito por cento), valor do ICMS devido (diferença entre o valor do ICMS calculado e o destacado). No final de cada mês do período fiscalizado será inserida linha para cálculo do subtotal do ICMS devido no mês. O valor do ICMS exigido no lançamento será a soma daqueles subtotais.

Em todos os exemplos, a norma individual e concreta de exigência do imposto não será invalidada se a norma individual e concreta de exigência de multa (enunciada separadamente) o for, por:

a) “erro de fato” em seu antecedente (relato da infração em desacordo com as provas);

b) “erro de direito” em seu antecedente (subsunção de relato de infração conforme às provas a classe típica de infrações – descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora – em que o relato não se enquadra);

c) “erro de fato” em seu consequente (erro na “base de cálculo da multa”, elemento quantitativo do consequente) (CARVALHO, 2008a, p. 451);

d) “erro de direito” em seu consequente (erro na “percentagem da multa”, que, assim como o “sujeito ativo” da relação jurídica tributária, é fator compositivo da estrutura normativa que não pode ser encontrado na contextura do ilícito tributário) (CARVALHO, 2008a, p. 452).


12.  Conclusões

No Auto de Infração e Imposição de Multa há geralmente duas normas individuais e concretas: a de exigência da multa e a de exigência do tributo. No entanto, só o antecedente da primeira norma (relato da infração) está enunciado; o antecedente da segunda (relato do evento tributário) não está: a falta de pagamento do tributo decorre da infração relatada e das provas. Por essa razão, erro de fato ou de direito no relato da infração leva à improcedência do auto de infração e ao cancelamento da multa e do tributo.

Nos tributos sujeitos à homologação (como o ICMS) não pode haver falta de pagamento do imposto sem que, pelo menos, 1 (um) dever instrumental tenha sido descumprido. Lógico, portanto, que multa e imposto sejam exigidos em auto de infração, que, no caso, é veículo introdutor de duas normas individuais e concretas no ordenamento.

Não há problemas quando o relato da infração, inferida pelas provas juntadas ao auto de infração, se subsome a classe típica de infrações descrita na hipótese de norma geral e abstrata sancionadora. Eles surgem quando o relato da infração é infirmado pelo sujeito passivo por insuficiência ou inadequação das provas (erro de fato na acusação fiscal) ou quando o relato, incontestável em face das provas juntadas, não se subsome a classe típica de infrações descrita na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora aplicada ou que deveria ser aplicada a outro relato de infração, mais específico, que também pode ser construído pelo exame das provas (erro de direito na acusação fiscal).

Na acusação fiscal, há de se evitar o erro de fato ou o erro de direito. Corrente jurídica majoritária não admite revisão de lançamento com erro de direito. Um ou outro tipo de erro, porém, deve ser evitado, pois: retarda a arrecadação do imposto devido; a revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública.

Há casos em que as provas permitem construir dois ou mais relatos de infração (acusações fiscais), que se subsomem às hipóteses de duas ou mais normas gerais e abstratas sancionadoras. Deve-se aplicar a norma (mais) específica ou especial, uma vez que ela prefere à norma (mais) geral.

Ante o exposto, quando houver dúvida na elaboração do relato da infração ou na escolha da norma geral e abstrata sancionadora aplicável, propomos construir duas normas individuais e concretas com relatos separados: do evento (ou eventos) tributário e do(s) motivo(s) (fato ou fatos) por que o fisco modificou a apuração (ou apurações) do imposto realizada pelo contribuinte, no antecedente da primeira norma; da infração que foi praticada, no antecedente da segunda. Desse modo, se houver erro no relato da infração ou na escolha da norma sancionadora aplicada, a exigência do imposto, feita no consequente da primeira norma, não será considerada improcedente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Pressupostos do ato administrativo – vícios, anulação, revogação e convalidação em face das leis de processo administrativo. I Seminário de Direito Administrativo – TCMSP “Processo Administrativo”: São Paulo, setembro de 2003. Disponível em: <http://www.tcm.sp.gov.br/legislacao/doutrina/29a03_10_03/4Maria_Silvia3.htm>  Acesso em: 03/11/2019.

GUERRA, Renata Rocha Guerra. Auto de Infração Tributário: Produção e Estrutura. Tese de Doutorado em Direito apresentada a Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2004.

MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2006.

SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil, 2° vol. São Paulo: Saraiva, 1989-1991.

SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001.

SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Vols. II e III. Rio de Janeiro: Forense, 1973.


NOTAS

[1] Utilizamos a locução latina “a priori” porque a experiência mostra que a observância do princípio da isonomia nem sempre é alcançada. Com efeito, há na lei do ICMS infrações fiscais em que o dolo é ínsito à conduta, como, por exemplo, a emissão ou o recebimento de documento fiscal que consigne importância inferior ao valor da operação (al. “e” do inc. IV do art. 85 da Lei 6.374/1989). Nesse caso, a percentagem da multa é 100% (cem por cento) e a base de cálculo da multa é a diferença entre o valor real da operação e o declarado ao fisco. Há infrações, contudo, que podem ser praticadas de forma dolosa ou culposa, como, por exemplo, a falta de pagamento do imposto, quando o documento fiscal relativo à respectiva operação ou prestação tenha sido emitido mas não escriturado regularmente no livro fiscal próprio (al. “b” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989). Nessa infração, menos grave que a anterior, a percentagem da multa é 75% (setenta e cinco por cento), mas a base de cálculo da multa é o valor do imposto. Conforme se vê, no segundo exemplo, condutas dolosa e culposa são punidas com o mesmo rigor, o que não atende ao princípio da isonomia em sua face positiva.

[2] Há também a "norma permissiva", "que atribui à pessoa a faculdade de fazer ou não fazer, ou de proceder dêste (sic) ou daquele modo, ficando, pois, a forma ou a prática do ato a seu serviço. Dizem-se, também, normas facultativas" (SILVA, 1973, p. 1068).

A lei do ICMS (6.374/1989) possui “normas permissivas”, mas é sempre possível referirmo-nos a “norma proibitiva” a ela equivalente. Por exemplo, pelos textos do “caput” do art. 36 da lei e do item 3 do § 1° do artigo, podemos construir norma que “permite” ao contribuinte creditar-se de imposto relativo a mercadoria entrada ou a prestação de serviço recebida, desde que o imposto seja destacado em documento hábil, o documento seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante de recolhimento do imposto. Isso significa: “não é permitido” ou “é proibido” ao contribuinte creditar-se de imposto destacado em documento que não preenche qualquer das três condições.

[3] Na legislação do ICMS, “pagar” o imposto tem um significado diferente de “recolher” o imposto. “Recolher” imposto é o ato de entregar dinheiro ao Estado-credor. “Pagar” imposto é declará-lo como devido à Fazenda Pública do Estado. Assim: i) é possível “pagar” ICMS, sem, contudo, recolhê-lo; ii) “não pagar” ICMS devido é “sonegação”, “fraude” ou “conluio”; iii) “não recolher” ICMS declarado é “inadimplência”.

[4] Assim era com o IPVA, até que o art. 7° da Lei 12.181/2005 revogou o inc. I do art. 18 da Lei 6.606/1989, que sujeitava a penalidade a falta de pagamento do imposto.

[5] Disponível em: <https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Home.aspx#> / Acesso Rápido ICMS / . Lei 6.374/89 Acesso em: 02/11/2019.

[6] Regulamento do ICMS (Decreto 45.490/2000). Disponível em:

<https://legislacao.fazenda.sp.gov.br/Paginas/Home.aspx#> / Regulamento do ICMS . RICMS 2000 - Tabela de Artigos Acesso em: 02/11/2019. Dispõe o inc. I do art. 184 do Regulamento do ICMS:

"Art. 184 - Considerar-se-á desacompanhada de documento fiscal a operação ou prestação acobertadas por documento inábil, assim entendido, para esse efeito, aquele que:

I - for emitido por contribuinte que não esteja em situação regular perante o fisco nos termos do item 4 do § 1º do artigo 59;

 . . . ".

[7] Para evitar o "bis in idem", o § 3° do art. 85 da Lei 6.374/1989 enumera penalidades que não devem ser aplicadas cumulativamente. Como é óbvio, o legislador não conseguiu prever todos os casos possíveis.

[8] É a que “se refere ao próprio fato probando, ou consiste no próprio fato” (SANTOS, 1989-1991, p. 329).             

[9] É a que não se “refere ao próprio fato probando, mas sim a outro, do qual, por trabalho do raciocínio, se chega àquele, ... São provas indiretas as presunções e indícios” (SANTOS, 1989-1991, p.330).

[10] Conta Fiscal é uma conta corrente efetuada pela Fazenda Pública do Estado, onde, para cada exercício, são registrados os débitos fiscais declarados pelo contribuinte e os recolhimentos de ICMS por ele efetuados, ordenados por data e agrupados por período de apuração do imposto (mês).

[11] De acordo com o caput do art. 331 do RICMS/2000, o imposto deve ser recolhido por ocasião da remessa, por guia especial, que acompanhará a mercadoria, para ser entregue ao destinatário.

[12] A expressão “escriturada regularmente”, que consta da norma jurídica geral e abstrata sancionadora (al. “e” do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989), e que por isso é colocada no relato da infração, deve ser interpretada como a que seria escriturada regularmente, se o imposto tivesse de ser pago por meio de "conta gráfica".

[13] Antes de a Lei 16.497/2017 revogar a alínea “a” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989 e colocar a situação fática descrita no antecedente dessa norma no antecedente da alínea “c” do mesmo inciso, a multa para o caso de não ter havido a correspondente entrada das mercadorias no estabelecimento era mais gravosa: 50% (cinquenta por cento) do valor indicado no documento como o da operação, em vez de 35% (trinta e cinco por cento) desse valor, conforme prescrito no consequente da norma da alínea “c”.

[14] Prova da não-entrada de determinado tipo de mercadoria no estabelecimento pode ser feita por meio de “levantamento específico”. Por exemplo: mercadoria infungível (veículo automotor, identificável por número do chassi e número do motor) não entrou no estabelecimento quando ela não se encontrava no estoque de mercadorias existente no dia de início de fiscalização nem o contribuinte exibiu Nota Fiscal de saída dessa mercadoria, emitida até referido dia; mercadorias fungíveis (substituíveis por outra da mesma espécie, qualidade e quantidade) não entraram no estabelecimento quando, em "levantamento específico" em período que abrange as supostas entradas e termina no dia de início de fiscalização, partindo-se do estoque inicial, somadas todas as entradas e subtraídas todas as saídas dessa espécie de mercadoria, a diferença entre os estoques finais "contábil" e "físico" for maior ou igual à soma dos totais indicados nas Notas Fiscais com créditos de ICMS impugnados. A diferença será maior se, no período, houve saídas da mercadoria sem a emissão de Notas Fiscais.

[15] "Art. 320 - Na saída de mercadoria a título de demonstração, promovida por estabelecimento comercial ou industrial, será emitida Nota Fiscal, sem destaque do valor do imposto.

§ 1º - Ocorrendo o decurso do prazo de que trata o artigo anterior, será emitida, no 61º (sexagésimo primeiro) dia, contado da saída original, outra Nota Fiscal para efeito de:

1 - recolhimento do imposto devido, que se fará por guia de recolhimentos especiais, com atualização monetária e acréscimos legais;

2 - transmissão, quando for o caso, do correspondente crédito ao destinatário.

§ 2º - Além da data da emissão e dos dados relativos ao destinatário, na Nota Fiscal prevista no parágrafo anterior constarão apenas:

1 - o número de ordem, a série e a data de emissão da Nota Fiscal original;

2 - a expressão "Emitida nos termos do Artigo 320 do RICMS";

3 - o número, a data e o valor da guia de recolhimentos especiais aludida no item 1 do parágrafo anterior;

4 - o destaque do valor do imposto recolhido.

§ 3º - Essa Nota Fiscal será lançada no livro Registro de Saídas, mediante utilização, apenas, das colunas 'Documento Fiscal' e 'Observações', devendo nesta constar a expressão 'Emitida nos termos do Artigo 320 do RICMS'."

[16] "Art. 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, ... :

I - infrações relativas ao pagamento do imposto:

( . . . )

g) falta de pagamento do imposto, quando indicado outro Estado ou Distrito Federal como destino da mercadoria, não tenha esta saído do território paulista – multa equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor total da operação;

 . . . ".

[17] "Art. 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, ... :

( . . . )

IV - infrações relativas a documentos fiscais e impressos fiscais:

( . . . )

b) emissão de documento fiscal que consigne declaração falsa quanto ao estabelecimento de origem ou de destino da mercadoria ou do serviço; emissão de documento fiscal que não corresponda a saída de mercadoria, a transmissão de propriedade da mercadoria, a entrada de mercadoria no estabelecimento ou, ainda, a prestação ou a recebimento de serviço – multa equivalente a 30% (trinta por cento) do valor da operação ou prestação indicado no documento fiscal;

 . . . ".

[18] "Art. 184 - Considerar-se-á desacompanhada de documento fiscal a operação ou prestação acobertadas por documento inábil, assim entendido, para esse efeito, aquele que:

( . . . )

III - contiver declaração falsa, ou estiver adulterado ou preenchido de forma que não permita identificar os elementos da operação ou prestação;

  . . . " (grifamos).

[19] "Art. 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, ... :

( . . . )

III - infrações relativas a documentação fiscal na entrega, remessa, transporte, recebimento, estocagem ou depósito de mercadoria ou, ainda, quando couber, na prestação de serviço:

a) entrega, remessa, transporte, recebimento, estocagem ou depósito de mercadoria desacompanhada de documentação fiscal – multa equivalente a 35% (trinta e cinco por cento) do valor da operação, aplicável ao contribuinte que tenha promovido a entrega, remessa ou recebimento, estocagem ou depósito da mercadoria; 15% (quinze por cento) do valor da operação, aplicável ao transportador; sendo o transportador o próprio remetente ou destinatário – multa equivalente a 50% (cinquenta por cento) do valor da operação;

  . . . " (grifamos).

[20] "Art. 23 - O local da operação ou da prestação, para efeito de cobrança do imposto e definição do responsável, é:

( . . . )

§ 3º - Presume-se interna a operação quando o contribuinte não comprovar a saída da mercadoria do território paulista com destino a outro Estado ou ao Distrito Federal, ou a sua efetiva exportação.

 . . . "

[21] De acordo com o inc. XXXIX do art. 5º da Constituição Federal, “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. O preceito pode ser estendido à infração tributária e à sanção a ela correspondente.

[22] De acordo com o inc. II do art. 5° da Constituição Federal, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. A norma legal que prescreve o dever jurídico cometido ao sujeito passivo deve, portanto, ser expressa. Deve indicar o fato ou a situação em que o sujeito passivo deve agir de forma oposta à descrita na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora. No direito penal, porém, a conduta lícita não precisa estar expressa na lei. Basta que o sujeito se abstenha de praticar a conduta descrita na hipótese da norma geral que prescreve a pena, salvo se essa ação for uma excludente da ilicitude.

[23] "Art. 85 - O descumprimento das obrigações principal e acessórias, ... :

I - infrações relativas ao pagamento do imposto:

( . . . )

l) falta de pagamento do imposto, em hipótese não prevista nas demais alíneas deste inciso – multa equivalente a 100% (cem por cento) do valor do imposto;

( . . . )

II - infrações relativas ao crédito do imposto:

( . . . )

j) crédito indevido do imposto, em hipótese não prevista nas alíneas anteriores, incluída a de falta de estorno – multa equivalente a 100% (cem por cento) do valor do crédito indevidamente escriturado ou não estornado, sem prejuízo do recolhimento da respectiva importância;

 . . . ”. (grifamos)

[24] A multa aplicada, de 75% (setenta e cinco por cento) do imposto devido, é a prevista na al. "b" do inc. I do art. 85 da Lei 6.374/1989.

[25] “Pedidos” de clientes contêm geralmente os dados essenciais da operação, tais como: data, discriminação das mercadorias, quantidades e valores totais de cada tipo de mercadoria, valor total do pedido, de modo que é possível calcular o valor do imposto não declarado ao fisco.

[26] Sobre o “motivo” do ato administrativo, assim se manifesta Maria Sylvia Zanella di Pietro:

“Com relação ao motivo, eu sempre o relaciono com o fato; motivo é o fato. Costuma-se definir o motivo como o pressuposto de fato e de direito do ato administrativo. O motivo precede à prática do ato, ele é alguma coisa que acontece antes da prática do ato e que vai levar a Administração a praticar o ato. Por exemplo, o funcionário pratica uma infração, a infração é o fato. O ato é a punição e o motivo é a infração; ele tem um fundamento legal, embora nem sempre a lei defina o motivo com muita precisão; normalmente quando nós falamos com base no artigo tal, nós estamos mencionando o motivo, o pressuposto de direito, porque aquele fato vem descrito ou vem previsto na norma; na hora em que aquele fato descrito na norma acontece no mundo real, surge um motivo para a administração praticar o ato.

Por exemplo, a lei diz: o funcionário que faltar 30 dias consecutivos incide em abandono de cargo. A falta por 30 dias é a infração, que levará a Administração a instaurar o processo e aplicar a pena”.

[27] "Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

I - quando a lei assim o determine;

( . . . )

VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;

IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.

Parágrafo único. A revisão do lançamento só pode ser iniciada enquanto não extinto o direito da Fazenda Pública".

[28] Para Paulo de Barros Carvalho (2008a, p. 458), “a autoridade administrativa não está autorizada a majorar a pretensão tributária, com base em mudança de critério jurídico. Pode fazê-lo, sim, provando haver erro de fato. Mas como o direito se presume conhecido por todos, a Fazenda não poderá alegar desconhecê-lo, formulando uma exigência segundo determinado critério e, posteriormente, rever a orientação, para efeito de modificá-la. A prática tem demonstrado a freqüência (sic) de tentativas da Administração, no sentido de alterar lançamentos, fundando-se em novas interpretações de dispositivos jurídico-tributários. A providência, entretanto, tem sido reiteradamente barrada nos tribunais judiciários, sobre o fundamento explícito no art. 146 do Código Tributário Nacional: ...”

De acordo com Ricardo Lobo Torres (in "Auto de infração e defesa administrativa fiscal". Revista de Direito Processual Geral 48: Rio de Janeiro, 1995, p. 179), o lançamento é insuscetível de revisão por erro de direito, na órbita administrativa. A revisão só será possível com a impugnação do sujeito passivo ao lançamento (Disponível em:

<https://www.pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MjAyMg%2C%2C>

Acesso em: 03/11/2019).

Assim, constatado erro de direito na acusação fiscal, a autoridade julgadora deve cancelar a exação.

[29] Hugo de Brito Machado (in "Curso de direito tributário". São Paulo: Malheiros, 1995, p. 121) admite a revisão do lançamento em face de erro de fato ou de direito. Para ele: essa é "a conclusão a que conduz o princípio da legalidade, pelo qual a obrigação tributária nasce da situação descrita na lei como necessária e suficiente à sua ocorrência". Muitos autores aproximam o "erro de direito" da "modificação no critério jurídico" adotado pela autoridade administrativa no exercício do lançamento, de que trata o art. 146 do CTN. Para Hugo de Brito Machado (obra citada, p. 121), porém, "há mudança do critério jurídico quando a autoridade administrativa simplesmente muda de interpretação, substitui uma interpretação por outra, sem que se possa dizer que qualquer das duas seja incorreta".

Para Eurico Marcos Diniz de Santi (obra citada, p. 267), "há potencial ilegalidade do 'ato-norma' ante os casos de 'erro de fato' ou 'erro de direito'." "Como a Administração pauta-se pelo princípio da 'estrita legalidade', cinge-se no dever de invalidar ou se possível convalidar o ato-norma administrativo que se apresentar nessa situação".

Paulo Antonio Fernandes Campilongo (obra citada, p. 211) filia-se à corrente “que admite a revisão de lançamento, seja em decorrência de erro de fato ou erro de direito, desde que respeitados os limites adjetivos, objetivos e temporais postos no sistema”.

[30] No REsp 1148444/MG, em que foi Relator o Ministro Luiz Fux, julgado em 14/04/2010 em sede de recurso repetitivo (nos termos do art. 543-C do Código de Processo Civil – CPC), foi reconhecida a legitimidade de créditos do ICMS destacados em Notas Fiscais emitidas antes da declaração de inidoneidade dos documentos, porque o adquirente demonstrou ter agido de boa-fé. De acordo com a decisão, a boa-fé é caracterizada quando o contribuinte adquirente toma as cautelas necessárias antes de realizar as operações e comprova a realização destas. A decisão consolidou entendimento firmado há anos no Superior Tribunal de Justiça.

[31] São provas concludentes ou inequívocas de simulação de existência de estabelecimento: não haver edifício no endereço indicado como local do estabelecimento do suposto fornecedor; inexistência do número do suposto estabelecimento, na rua indicada no documento; contrato de locação do estabelecimento falso; declaração do locador, de haver retomado a posse do imóvel antes de ocorridas as supostas operações; estabelecimento comercial com dimensões exíguas, incompatíveis com as quantidades e os volumes das mercadorias que, supostamente, teriam por lá circulado.

[32] Quando o transporte das mercadorias é por conta do remetente ou de empresa transportadora por este contratada, pode o adquirente ter agido de boa-fé, mesmo no caso de as mercadorias não terem saído do estabelecimento indicado nos documentos que acompanharam o transporte das mercadorias. O Tribunal de Impostos e Taxas (TIT) aceita como prova da boa-fé: fotograma de cheque em nome do fornecedor, com valor coincidente com o de Nota Fiscal ou com o total de grupo de Notas Fiscais com datas de emissão próximas; duplicata comercial relativa a Nota Fiscal, quitada em banco ou em cartório de protestos; comprovante de depósito em conta corrente de titularidade do suposto vendedor.


Autor

  • Wagner Pechi

    Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. Considerações sobre a linguagem do auto de infração e imposição de multa: análise à luz da legislação do ICMS do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6110, 24 mar. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77851. Acesso em: 20 abr. 2024.