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Animais: natureza jurídica. Objetos ou sujeitos de direito?

Animais domésticos e guarda compartilhada

Animais: natureza jurídica. Objetos ou sujeitos de direito? Animais domésticos e guarda compartilhada

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A resposta é impossível de ser reduzida no campo de incidência normativa do tudo ou nada: ou se aceita que os animais são sujeitos de uma vida, pessoas não humanas, seres sencientes, ou se aceita que pertencem a categoria de seres especiais à parte, excluindo-os das "coisas".

Sumário:1. Objeto do Direito. 2. Sujeitos de Direitos. 3. O Direito Natural. 4.Maus Tratos de       Animais. 5. O Animal como Sujeito de uma Vida ou Sujeito de Direito. 6. Proteção Internacional. 7. Animais Domésticos. 8. O Animal  Doméstico na Convivência Familiar. 9. Guarda Compartilhada.


1. OBJETO DO DIREITO. È lição básica que coisas e bens são o objeto do Direito subjetivo. À parte o conceito elástico de bem, aqui enfocamos  somente os bens jurídicos, os tutelados pela ordem jurídica e sobre  os quais a pessoa/sujeito exerce seu poder. Conforme leciona Caio  Mário,

“Tudo que se pode integrar no nosso patrimônio é um  BEM, e é objeto do direito subjetivo. São os bens econômicos. Mas não somente estes são objeto do direito. A ordem jurídica envolve ainda outros bens inestimáveis economicamente, ou  insusceptíveis de se traduzirem por um valor econômico.” ( Instituições de direito civil. Rio Janeiro: Forense,  21ª. ed., 2005, v. I, p. 401).

Em sentido amplo, na ciência jurídica, BEM jurídico é tudo aquilo que pode ser objeto de relação jurídica, seja ele material ou imaterial. “Stricto sensu,” há uma dicotomia ou distinção dos BENS e das COISAS. Essas caracterizam-se pela concretude, pela materialidade, enquanto os BENS são imateriais ou abstratos, embora nem tudo que é corpóreo seja coisa. (Cf. Idem, ibidem, p. 402). Cita, o autor, como exemplo, o corpo humano que, embora material, não é coisa, porquanto não é possível separar a pessoa (sujeito de direito) de seu corpo. Somente será coisa na qualidade de cadáver ou em partes sem vida, separadas do corpo. (Idem, ibidem)

Evocando Espínola, diz Carvalho Santos que,

 “Em sentido lato,  BEM é tudo quanto é susceptível de se tornar objeto do Direito; em sentido restrito, significa apenas as COISAS que são objeto do direito,  que formam o nosso patrimônio, ou a nossa riqueza”. (Código Civil brasileiro interpretado. Parte Geral. Rio Janeiro: Calvino Filho Ed., 1934, v. II, p. 07-08).

Na linha do direito romano, dividem-se, inicialmente os bens, considerados em si mesmos, em corpóreos e incorpóreos  (res corporales e res incorporales). Anotando sobre o artigo 47 do nosso código civil anterior (Bens Móveis), escreve aquele autor:

“O que é preciso dizer, por enquanto, é que a distinção entre bens móveis propriamente ditos, e SEMOVENTES, não tem nenhuma importância prática, porque um  e outro são regulados pelas mesmas disposições.” (Cf. Op. cit., p. 29).

Como se observa, Carvalho Santos não faz essa distinção categoricamente,  eis que seu estudo fundamentou-se no direito posto, no direito legislado à época, ou seja, código civil de 1916.

Considera Caio Mário ser o critério distintivo básico da tangibilidade inexato, atualmente, por excluir coisas perceptíveis por outros sentidos, embora não material, “ad exemplum” os gases. Continua a existir aquela classificação tradicional, mas o critério distintivo é diverso do critério romano, porquanto não se baseia na tangibilidade em si, havendo coisas corpóreas intangíveis e coisas incorpóreas naturalmente tangíveis, como herança, fundo de comércio, etc, considerados incorpóreos em seu conjunto, embora possam se integrar de coisas corpóreas. (Cf. op. cit., p. 407).

Não há, na obra clássica do autor, qualquer relevo especial sobre os SEMOVENTES.

Nosso Código Civil atual  (Lei n. 10.406/2002), bem como o de 1916, na Parte Geral, Livro II, disciplinou sobre os BENS. No Título Único, encontram-se as diferentes classes de bens. No Capítulo I, está a divisão dos BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS e, na Seção II, os regimes sobre  OS BENS MÓVEIS.

 Melhorando as desandadas do Código anterior, o atual, nessa Parte Geral, emprega o rigor da nomenclatura  BENS para todas as categorias ali versadas.

Ao  disciplinar sobre  os  BENS MÓVEIS, o atual conceitua no art. 82:

“São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico social”.

A parte final, que destacamos, foi acrescida pelo atual Estatuto como caracterização para mantença da inteireza do bem, o que já era de emprego pela doutrina e julgadores.


2. SUJEITOS DE DIREITOS. A clássica teoria geral do direito civil assegura como sujeitos de direito a pessoa humana, a pessoa jurídica. Resguardamo-nos quanto aos entes elencados no artigo 75 do atual CPC, os quais não são Pessoas Jurídicas, conforme os requisitos exigidos pela lei, mas que são sujeitos de direitos em certas relações jurídicas, como o de figurar como parte processual; embora despersonalizados, a lei confere-lhes alguns direitos e deveres, como  a massa falida, a herança jacente, as sociedades sem personalidade jurídica, etc.  Tudo o mais está no campo do objeto do direito, onde se situam os animais.

 Entretanto, autores  modernos têm-se despertado para o questionamento a saber se aquela dogmática jurídica  da  teoria geral ainda se encontra no grau de evolução do atual desenvolvimento da sociedade e das ciências, ou seja, de acordo com os tempos hodiernos.  Indagam se ainda é válido elencar no mesmo nível o animal  com um objeto móvel qualquer. Há diferenças substanciais entre um cão e um sofá ou uma mesa.  A ausência de discussões sobre o tema ou o pouco interesse sobre  seu enfrentamento, parece-nos,  ainda vai durar certo curso de tempo; não é matéria fácil;  trata-se do mundo em que vivemos, porém envolve uma reformulação de antigos paradigmas do direito civil, no que tange às relações jurídicas: sujeitos e objetos, ou seja, fazer uma repersonalização legal.

 Uma vez reconhecida a personalidade jurídica dos não humanos, ela abrangeria todos os seres vivos ou haveria uma especificação ou classificação de categorias dos animais, segundo as espécies? É questão de difícil resposta, mesmo porque não se pode  reduzir o campo de incidência normativa ao tudo ou nada.

Pietro Paola Onida, da Universidade de Sassari, demonstra, ao longo de um estudo teórico que

“A ideia de afinidade entre TODOS OS SERES ANIMAIS, e do respeito pelos animais não humanos é transmitido da  filosofia grega para a cultura jurídica romana, através de duas vias expressivas : A) a recusa dos sacrifícios dos animais e  B) a individualização de um direito (ius naturale) comum ao homem e ao  animal não humano. ( La natura  degli animali e il ius naturale. In: www.dirittoestoria/dirittoromano/Onida-Animali-parte I-cap.I. Acesso em 01/11.2017).

Em sua análise interpretativa, envolvendo o direito natural, confronta, entre outros, citações de  Pitágoras, Aristogíton, Virgílio, Marco Túlio Cícero, Sêneca, Epicarpo, Apollonio, Ulpiano, Constantino, Gaio, Voltaire, Bonfante, Perozzi,  Pugliese,  Maschi. (Cf. Op. cit.).


3. O DIREITO NATURAL. Argumenta-se que o Direito Natural não pertence à ciência jurídica e, nesse ponto, residem controvérsias.

Hans Kelsen pontifica que uma doutrina do direito natural pode afirmar um fato, embora não o possa demonstrar, que a natureza determina o comportamento humano de certo modo. Porém, como  “um fato não pode ser fundamento de validade de uma norma,  uma teoria jusnaturalista,  logicamente correta, não pode negar que apenas podemos pensar  um direito positivo harmônico com o  Direito Natural como válida se pressupusermos a norma: devemos obedecer aos comandos da natureza. É esta a norma fundamental do direito natural.” (Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. Coimbra: Ed. Armênio Amado, 3ª. ed., 1974, p. 309).

E natureza é vida; é da essência dos seres criados a existência, o direito a ter vida. É contra a natureza impedi-la, agredi-la, desvirtuar sua essência; viver é da essência dos animais humanos ou não humano.

O conteúdo do direito natural é alargado, além da noção precisa de direito, quando definido por Ulpiano: “ius naturale est quod natura omnia animalia docuit” ( direito natural é o que a própria natureza ensina a todos os animais).

Na órbita do direito em si, Ulpiano é forçado a reconhecer que  “ acima do direito positivo, e sobre este, influindo no propósito de realizar o ideal de justiça, ditado por uma concepção de superlegalidade, o direito natural sobrepaira à norma legislativa, e, com este sentido, é universal e é eterno, integrando a normação ética da vida humana, em todos os tempos e em todos os lugares”. (Cf. Caio Mário. Op. cit., p. 08).

Nosso civilista, após discorrer historicamente sobre o direito natural, desde a antiguidade, perpassando pelo cristianismo com Santo Tomás de Aquino, pela Escola de Direito natural, criada por Hugo Grócio, pela Escola Positivista (adversária do direito natural), pelo movimento neotomista  (séc. XX), que retoma  a ideia jusnaturalista, arremata que

Em mais de dois mil anos, de  civilização ocidental,  “sempre se admitiu e ainda se afirma que nenhum sistema de direito positivo pode libertar-se das inspirações mais abstratas e mais elevadas”. “O direito natural é a expressão destes critérios de justo absoluto e de direito ideal”. (Op. cit., p. 08-11).

O Direito Natural é estável e imutável; é um direito maior que antecede as teorias jurídicas. Pela razão estabelece-se o que é universalmente justo.


4. MAUS TRATOS DE ANIMAIS.  Em nosso ordenamento jurídico, o Decreto n. 24.645, de 10.7.1934, atualmente revogado, estabelecia medidas de Proteção aos Animais. Trazia o mandamento, no artigo 1º., que todos os animais eram tutelados pelo Estado. Logo, no artigo 2º., rezava:

“Aquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fazer aplicar maus tratos aos animais, incorrerá em multa de (omissis)  e na pena de prisão celular de 2 a 15 dias, quer o delinquente seja ou não o respectivo proprietário, sem prejuízo da ação civil que possa caber.”

No artigo 3º. elencava, em XXXI incisos, os casos considerados  MAUS TRATOS. Compreendia na regra todo e qualquer animal, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos (art. 17).

Na Lei de Contravenções Penais ( Decreto Lei n. 3.688, de 03.10.1941, está configurado como ilícito:

“Art. 64. Tratar animal com crueldade ou submetê-lo a trabalho excessivo.”  Da mesma forma, condenava a experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, para fins didáticos ou científicos, realizada em lugar público ou exposto ao público (art. 64, §§ 1º e 2º.).

    A Lei n. 9.605, de 12.2.1998, que teve alterações posteriores, dispõe      sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente .   

O artigo 15 impõe, para agravamento da pena, a circunstância de  “ter o agente cometido a infração com o emprego de métodos cruéis para abate ou captura de animais” (II, m ).   

A Lei n. 14.064, de 29.9.2020, alterou o artigo 32 dessa última Lei, para aumentar as penas cominadas ao crime de maus tratos aos animais, quando se tratar de cão ou gato, acrescendo ao parágrafo 1º do artigo a alínea A, que determina reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda.

“Art. 32. Praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”  

Cães e gatos são animais extremamente sensíveis e, na nossa cultura, já são integrantes da família. Muitos se lembram do personagem Rubião, em “Quincas Borba” (Machado de Assis, 1891). Quincas Borba foi um cão herdado de Quincas Borba, entre outras fortunas. O testador deu seu próprio nome ao cão por ter-lhe estima e para continuidade de seu próprio nome. Ao final da vida, inteiramente na pobreza e perturbado, a morte colhe Rubião e também seu cão, constante companheiro, abandonados na rua.

A Lei n. 11.794, de 9.10.2008, disciplina sobre procedimentos para uso científico de animais. Entende por  morte por meios humanitários :  “a morte de um animal em condições que envolvam, segundo as espécies, um mínimo de sofrimento físico ou mental”  (art. 3º, IV). E os experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas (art. 14, § 5º.).

De observar-se que a matéria sobre maus tratos foi estudada desde os tempos gregos. Mahatma Gandhi, há mais de seis décadas, sempre defensor dos direitos e da não violência, deixou-nos preciosa sentença :

“A grandeza de uma nação e seu progresso moral podem ser julgados pelo modo como trata seus animais”. ( https://www.studiocataldi.it).


5. O ANIMAL COMO SUJEITO DE UMA VIDA OU SUJEITO DE DIREITO. No presente texto, não entraremos em discussões de vertentes  diversas dentro da mesma doutrina, nem filosóficas, nem nos posicionamentos de Peter Singer ou Tom Regan, embora a filosofia seja  ponto fulcral para reconhecer titularidade de direito aos animais, segundo nos parece,  em virtude do direito natural. A) Alguns autores modernos, seguindo a linha direcionada pelo direito estrangeiro, em bons  artigos, têm reconhecido o direito dos animais, evocando a teoria não antropocêntrica da terra, donde resultam valores diferenciados do antropocentrismo, ou seja, o homem como fonte de valores unicamente não prepondera.

 Por outro lado, o direito atual não mais finca suas bases nem tem como finalidade exclusiva a proteção patrimonial.

Apoiam-se no coletivismo, na ética da solidariedade que deve  ditar os rumos e a vida coletiva, voltando-se para  a proteção, conservação da natureza, que possui um valor intrínseco, abrangendo todos os seres vivos. Os animais são também seres vivos e possuem interesses a serem protegidos legalmente, sendo que o direito à vida não é exclusivo dos humanos. Entendem que, como componentes do meio ambiente, a Constituição da República lhes garante direitos básicos, como o direito à vida,  contra a crueldade,  etc, sendo sujeitos de direitos não humanos, podendo ter personalidade jurídica. Posicionamento recusado por outros, por entendê-lo divorciado da nossa Carta Maior, afirmando que ela somente lhes assegura o estado de bem jurídico do direito ambiental, dando-lhes, como tal, proteção; bens pertencentes à coletividade.

 No tocante ao MEIO AMBIENTE, o Decreto Lei n. 5.894, de 20.10.1943, que aprovou o Código de Caça, revogando os Decretos Leis anteriores que especificou, estabeleceu permissões, proibições, limitações, de forma a preservar os animais silvestres.

A Lei n. 5.197, de 3.1.1967, com alterações posteriores, dispõe sobre a proteção da fauna, revoga o Decreto Lei n. 5.894, de 20.10.1943, estabelece como propriedade do Estado os animais de qualquer espécie, que vivem naturalmente fora do cativeiro e que constituem a fauna brasileira, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais (art. 1º.).

A Lei n. 6.938, de 31.8.1981, que sofreu sucessivas alterações, dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação. “Tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando a assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios”, os quais elenca em dez incisos. Define o Meio Ambiente como

“o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida  em todas as suas formas”(art. 3º, I).

O direito ambiental tem como objetivo a proteção da biodiversidade.

Nossa Constituição da República de 1988, no Título VIII (Da Ordem Social), contém um capítulo (VI) destinado ao Meio Ambiente.

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e  essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo  e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Em seus parágrafos e incisos, elenca condutas políticas, deveres, proibições, tanto para o Poder Público quanto para as pessoas, de forma que o uso imoderado, descontrolado e irresponsável do ambiente não o transforme em deserto improdutivo ou mesmo abiótico. (Este artigo teve  regulamentações ampliando, efetivando, adequando a proteção, conservação, preservação de tudo que engloba o meio ambiente, pelas Leis nº. 9.985, de 18.7.2000 e nº 11.105, de 24.3.2005.).

Chamamos atenção para o inciso VII, do parágrafo 1º., segundo o qual, para assegurar a efetividade do direito em tela, incumbe ao Poder Público, entre outros,

“ Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade”.  (Inciso regulamentado pela Lei n. 9.985, de 18.7.2000, e teve acréscimo do parágrafo 7º. pela Emenda Constitucional n. 96, de 6.6.2017,  para excluir as práticas que sejam manifestações culturais. Essa Emenda foi objeto da ADi  (Medida Liminar)  nº 5728, proposta pelo Forum  Nacional de Proteção e Defesa Animal, e se encontra aguardando julgamento (Cf. www.stf.gov.br).

A Lei 11.794, de 9.10.2008, estabeleceu procedimentos para o uso científico dos animais.

B). Outra doutrina moderna sustenta-se na tese do Direito Natural, sobre  o qual nos manifestamos retro,  para reconhecer o animal como “sujeito de uma vida”, porque  essa é de todos os seres, humanos e não humanos.

Aqui podem incluir-se os defensores que se apoiam na capacidade de sofrimento (senciência) dos animais. Apesar de essa tese ser também  criticada, é a de relevância e fundamento das Declarações estrangeiras sobre direitos dos animais. Cada pessoa é sujeito de uma vida e o corolário de sujeito de uma vida é ser sujeito de direito; alguns animais demonstram sentimentos, reconhecem, têm capacidade cognitiva, têm vontade, etc, assim como os humanos. Sendo o animal sujeito de uma vida, seria sujeito de direito.

Segundo a GÊNESIS (cap.1, 24-25), antes de criar o homem, Deus criou seres viventes: animais domésticos, répteis e animais selvagens. Portanto,  Ele criou a terra e tudo que nela vive ou existe.

Na teoria Evolucionista, descrita em “A origem das espécies”, Charles Darwin, em 1859, detalhou a evolução animal ou biológica,  até que animais, plantas se aperfeiçoassem e o primata “homo” alcançasse o status de homem.

Atualmente, há cientistas de defendem o “Design Inteligente”, em oposição à teoria evolucionista, quanto ao surgimento da vida em nosso planeta e à seleção natural dos seres. A complexidade da vida e o perfeito equilíbrio do universo só se explicam pelo projeto, condução ou interferência de uma Inteligência Superior, não afirmando que essa seja o Deus da Bíblia.

Seja adotando a teoria Criacionista ou Evolucionista, é de se reconhecer que houve, no princípio, uma criação de TODOS os seres vivos.

Retornando à teoria do direito natural, sobre a qual fizemos abordagem retro, citamos estudos do professor  Pietro Paolo Onida,  que conclui,   no seu acurado exame:

“O aprofundamento sobre o tema do direito natural, no desenrolar ao longo da linha interpretativa agora sugerida, consente à visão justiniana uma interpretação “universalista” ou “ecumênica”, que caracteriza o desenvolvimento histórico completo do direito romano destacado,   escandido  nos três planos concêntricos do “ius civile”, “ius gentium” e “ius naturale”,  na qual (interpretação) os animais, no âmbito do  “ius naturale”, são destinatários dos direitos tais como os  homens.” (Cf. Op. cit).


6. PROTEÇÃO INTERNACIONAL. O “Tratado Constitutivo da Comunidade Europeia”, realizado em Roma, em 1957, teve anexado ao seu texto o Protocolo n. 33, que assentou, como regra, observar a proteção e respeito do bem estar dos animais como seres sensíveis (1997).

O “Tratado de Lisboa ou Tratado Reformador”, de 13.12.2007, com vigência a partir de 1º.12.2009, emendou o Tratado da União Europeia (Maastricht,1992)  E o Tratado que estabeleceu a Comunidade Europeia (Roma, 25 de março de 1957), passando esse último à renomeação de Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Nas Disposições de Aplicação Geral, do Título II, desse último, consta no

“Art. 13º. – Na definição e aplicação das políticas da União (omissis) a União e os Estados Membros terão plenamente em conta as exigências em matéria de bem estar dos animais, enquanto seres sensíveis (omissis)”. (In: http://bit.ly/Gzwfkn;  Diário Oficial da União Europeia, 30.3.2010, c 83/47).

A “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela Liga Internacional dos direitos dos Animais, em 15 de outubro de 1978, em Paris, no seu preâmbulo, é firme ao reconhecer que todo animal, como ser vivo, possui direitos naturais, como o direito à vida e o direito de ser respeitado. Elenca, entre outros, o direito  à existência e aos cuidados e à proteção do homem, não podendo ser submetido a maus tratos nem a atos cruéis; sendo seu abate necessário, que seja sem dor e de modo  a não provocar angústia. Em seu artigo 7º, Declara que

 Todo Ato que implique a morte de um animal sem necessidade é um crime contra a vida.

Em seu artigo 9.1 acentua:  “La personnalité  juridique de l’animal et ses droits doivent être reconnus par la loi”.  (Cf.  http://www.fondation-droit-animal.org).


 7. ANIMAIS DOMÉSTICOS. Os animais, especialmente os domésticos, são seres viventes, sencientes, capazes de sentir e demonstrar sensações, dotados de  capacidade, ainda que pequena, de entendimento, de compreender a significação de suas ações em seu ambiente, como também capacidade de querer, significando que podem controlar seus impulsos, obedecer ordens, reagir a estímulos, etc. Senciente é aquele que recebe impressões; percebe pelos sentidos. Observando-se esses animais, mais próximos do homem, não há como recusar essa afirmação.

São incontáveis e emocionantes os casos de animais caseiros, demonstrativos de grandes sentimentos e ligação para com as pessoas com quem convivem; os exemplos mais notáveis são sobre cães que parecem ser os mais evoluídos. Na película “Sempre ao seu Lado”, de 2009, foi levada às nossas telas um historia verídica, ocorrida no Japão, onde um professor universitário era sempre esperado, diariamente, na estação de trem,  quando do retorno do trabalho, por seu cão. Um dia o professor teve  morte súbita e não retornou no trem, mas o cão continuou todos os dias lá a esperá-lo, ganhando dos habitantes  da cidade uma estátua em homenagem àquela amizade e devoção pelo dono.

Teriam alma os animais. É uma indagação que se faz. Não nos compete adentrar, com base nos sentimentos e percepções dos animais, em discussões religiosas. No entanto, não podemos deixar de registrar estudo científico que envolve fenômenos supranormais sobre o tema.

Ernesto Bozzano , discípulo de Herbert Spencer  (filosofia evolucionista das espécies), foi filósofo e pesquisador italiano sobre os referidos fenômenos, no início do século XX. De formação positivista, realizou seus estudos sempre com o uso do método experimental. Segue parte de suas conclusões arrematadas na obra “Gli  Animali Hanno Alma?” ( Trad. Francisco Klörs Werneck. Rio Janeiro: Ed. Lachâtre, 4ª. ed., 2000, p. 155). Sua tese

“consiste em um primeiro ensaio para demonstrar, por um método científico, a sobrevivência da psique animal”, após a morte. “...a existência de faculdades supranormais na subconsciência animal, existência suficientemente comprovada pelos casos que expusemos, constitui uma boa prova em favor da ‘psique’ animal”. (Seu trabalho  prendeu-se aos animais mais próximos ao homem).

  Destacamos que nosso estudo é resumido, não se tratando de tema novo,  e  o direito brasileiro deve debruçar-se sobre ele. Se, em relação aos animais, ainda há ausência de firmeza nas afirmações ou posturas jurídicas para novos paradigmas, o que será então quando  estivermos engajados e submetidos à regência de relações, envolvendo a Inteligência Artificial,  rumo sem volta no evolver da nossa sociedade, onde a ciência evolui com estrondosa rapidez, criando situações inconcebíveis anteriormente,  e o homem se vê atarantado frente à alta tecnologia?

“Assim, os robôs, (omissis) mostram-se aptos, num futuro próximo, a adaptar-se a situações distintas e inesperadas, como fazem as pessoas”. “...essa é uma das habilidades  que a inteligência artificial precisará adquirir – assim como a de criação artística e a de simular emoções – antes de se considerar que os androides pensem como nós e, quem sabe, possam até ter os mesmos direitos e deveres na sociedade, como se fossem cidadãos de pele artificial” (Revista Veja. Ed. Abril, edição n. 2555, de 8.11.2017, p. 88).


8. O ANIMAL DOMÉSTICO NA CONVIVÊNCIA FAMILIAR. Os animais domésticos, principalmente os mais atentos ao ser humano, como cães e gatos, passam a integrar a família. Alguns são, como comprovado pela ciência, eficientes companhias para crianças, pessoas idosas ou portadoras de enfermidades, e as auxiliam, com esse relacionamento, na melhora dos sintomas enfermiços.

Enquanto a família se mantém coesa, tudo transcorre normalmente. Contudo, no caso de desfazimento da sociedade conjugal (art. 1571, código civil), podem surgir situações delicadas, sendo que as partes não conseguem solucioná-las, remetendo a matéria para o juízo. Com quem permaneceria o cão da família? Os cônjuges deverão ter bom senso e praticar algum ato de renúncia, normalmente  trazido pelas  dissoluções de vínculos, em geral.

A) Do ângulo exclusivo dos sujeitos, a análise se voltará para aquele que mais se dedica, cuida, trata do animal, OU  que desse necessita. B) Mas se voltarmos o olhar para o ângulo do animal, o que deverá também ser feito, a quem restaria a guarda ou posse, indagando-se a quem o animal (um cão, v.g.) está mais afeiçoado.

Pensamos que não é mais de se apoiar a doutrina de que o animal é uma coisa. Ser sujeito de uma vida abrange o humano e o não humano.  OU se aceita a teoria de que ele é sujeito de  uma vida,  sujeito de direito,  uma pessoa não humana, um ser senciente, como defendeu a Liga Internacional dos Direitos dos Animais, bem como o Código Civil Francês, cujo artigo 515-14 foi alterado pela Lei n. 177, de 16.2.2015, art. 2º., para incluir os animais como seres vivos dotados de sensibilidade.

OU se incluem os animais em outra categoria de seres especiais `a parte, protegidos por estatutos ou dispositivos  normativos especiais, excluindo-os das COISAS, matéria a ser debatida prévia e exaustivamente pela doutrina.  Em ambos os casos, conforme as circunstâncias, haveria de ser tomada, também, a decisão da guarda mais favorável a eles, mesmo não os reconhecendo no patamar jurídico do homem.

O eminente Senador Antônio Anastasia, jurista nacionalmente reconhecido,  apresentou Proposta ao Senado Federal ( Projeto de Lei n. 351, de 2015),  que altera os artigos 82, e inciso IV ao artigo 83, da Lei n. 10.406, de 10.1.2002 (Código Civil), para determinar que os animais não são considerados coisas  , mas BENS, porquanto esses podem ser materiais e imateriais.  Na Câmara dos Deputados, recebeu o n. PL 3670/2015, onde se encontra em tramitação.

Consta na sua Justificação:

“Não obstante a proposta que ora submetemos não se alinhe com a legislação francesa, consideramos que a medida é um grande passo para uma mudança de paradigma jurídico em relação aos animais, mesmo os tratando como bens”.

Observou que o Código Civil Suíço, artigo 641 a, o Alemão (§ 90ª) e o Austríaco (art. 285ª) reconhecem os animais como categoria intermediária entre coisas e pessoas.  Declaram que eles não são coisas.

Na Itália, a Lei de 4 de novembro de 2010, n. 201, ratificou a Convenção Europeia para Proteção dos Animais de Companhia/domésticos, realizada em Strasburgo, em 13.11.1987. O artigo 3º. dessa última  traça dentre os princípios fundamentais para o bem estar dos animais:

“1.Ninguém causará inutilmente dor, sofrimento ou angústia a um animal de companhia”.

2. Ninguém deve abandonar um animal de companhia” (doméstico).

O artigo 1º do capítulo I conceitua o animal de companhia:

“qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente em sua casa, para seu  entretenimento e enquanto companhia.”

Evocando esses preceitos jurídicos, o Tribunal de Milão, IX Seção Civil, asseverou que “O sentimento pelos animais tem proteção constitucional e reconhecimento europeu, pelo que deve ser reconhecido um verdadeiro e próprio direito subjetivo ao animal de companhia (Trib. Varese,  decreto 7 de dezembro de 2001)”. Afirmou que o animal  “não pode mais ser colocado na área semântica conceitual das coisas”, mas deve ser reconhecido como ser senciente, como consta no Tratado de Lisboa. Com essa natureza, “é legítima faculdade dos cônjuges de regular a permanência perto de uma ou outra habitação, e a modalidade que cada um dos proprietários deve ter à manutenção dele” (Cf. r. Marani S., Gli animali non sono cose. In: https://www.studiofontaine.it/attualita/448/diritto-civile).


9. GUARDA COMPARTILHADA. Não havendo concordância dos cônjuges quanto à questão, no caso de divórcio ou separação, qualquer que seja a modalidade, a guarda do animal, buscando equilibrar o sentimento desse  quanto daqueles, pode ser compartilhada, nos termos da Lei brasileira n. 13.058, de 22.12.2014, que altera os artigos 1.583, 1584, 1585 e 1634, do vigente Código Civil. A quanto está autorizado o julgador pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LIC- Dec. N. 4.654/1942, que teve sua terminologia alterada com a vigência da Lei n. 12.376, de 30.12.2010), art. 4º, :

“Quando a Lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.

Se uma das partes não tem ou não dispõe de tempo para  o exercício da guarda compartilhada, poderá ser-lhe assegurado o direito de visitas (art. 1589, C. Civil).

O recente Código Civil e Comercial Argentino  (Lei n. 26.994/2015), em seu artigo 227, mantém a natureza jurídica do semovente como coisa, tal como fizeram seu antecessor e nossos Códigos Civis.

Contudo, o STJ Argentino, em 18.12.2014, concedeu “habeas corpus” em favor de um orangotongo, impetrado pela ONG AFADA,  para que tivesse uma vida  de bem estar, longe de maus tratos. Não a considerou como coisa, nos termos do recente código civil, mas invocando a Lei Penal n. 14.346/1954, que pune aquele que causa dano, maltrata o animal (art. 183). O Tribunal decretou que “ a partir de uma interpretación jurídica dinámica y no estática, reconocer al animal el carácter de sujeto de derechos, pues los sujetos no humanos (animales) son titulares de derechos, por lo que se impone su protección em el ámbito competencial correspondiente”. (Cf. www.adda.or.ar).

No Brasil,  também encontramos decisuns sobre animais, mas em casos  nos quais  se discute a posse, ou seja, o animal como objeto do direito. Ainda assim, a situação fática, o bem estar deles foram levados em conta. No REsp n. 14.25943/RN, j. em 02.09.2014, Rel. Min. Herman Benjamin, cuidou-se de Ação Ordinária com pedido de Tutela Antecipada contra ato de apreensão de duas araras, que se encontravam por mais de vinte anos em poder do Recorrido, sendo bem cuidadas, não sofrendo maus tratos, e integradas no convívio familiar e no ambiente doméstico. O retorno delas ao habitat natural era de questionável adaptação, causando-lhes mais prejuízos do que benefícios. Considerou a  Segunda Turma do STJ inexistência de violação do artigo 1º, Lei nº 5.197/1997 (os animais que vivem fora do cativeiro são  de propriedade do Estado- Lei que Protege a Fauna), e não aplicação do artigo 25, da Lei nº 9.605/1998 ( apreensão do produto objeto da infração – Lei que dispõe sobre os Crimes contra o Meio Ambiente).

No mesmo sentido alinha-se o AgRg nº 2014/0130914-6 no REsp nº. 1457447/CE, j. em 16.12.2014, Rel. Min. Sérgio Kukina. Tratava o caso de Mandado de Segurança Preventivo, ajuizado pelo possuidor de papagaios, que se encontravam no ambiente doméstico por mais de dez anos. Ressaltou o julgado que aquela Corte “já se manifestou pela aplicação do princípio da razoabilidade em casos similares, relacionados a aves criadas por longo período em ambiente doméstico, sem qualquer indício de maus tratos ou risco de extinção.” (Cf. www.stj.jus.br).

 Seria um tresloucamento jurídico a incidência normativa dessa  Lei sobre a guarda compartilhada de pessoas aos animais? Pensamos que não. Mesmo porque, ainda que não invocada tal norma legal, os critérios ali contidos poderiam ser aplicados pelo julgador, tomando-os como diretrizes.

Após a finalização do presente texto, o STJ pronunciou-se sobre o direito de visitas de animal de estimação pelo ex companheiro, no Resp. n. 1713167, j. em 19.6.2018, tendo como Relator o Min. Luis Felipe Salomão. O TJSP reconheceu, em face da omissão legislativa, com fulcro na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, arts. 4º. e 5º., o direito de visitas ao cão, com aplicação analógica do instituto da guarda de menores, reconhecendo a relação afetiva entre pessoas e animais.

No Resp. citado, foi mantido o direito de visitas por maioria de votos. Enfatizou o Relator que não se tratava de humanizar o animal nem equipará-lo com a guarda de filhos, mas reconheceu-o como merecedor de tratamento especial, tanto sob o enfoque da afetividade, quanto em conformidade com o artigo 225, CR (preservação ambiental). (Cf. https://www2.stj.jus.gov.br).

No REsp n. 1.797.175/SP, j. em 21.3.2019, discutiu-se a manutenção em cativeiro e maus tratos a um papagaio. O Ministro Relator, Og Fernandes, enfatizou em seu voto:

“Assim, qualquer vedação à prática de “coisificação” não deve, em princípio, ser limitada à vida humana, mas sim ter o seu espectro ampliado para contemplar também outras formas de vida”. (https://www2.stj.jus.gov.br).

Já se nota que um passo importante foi dado na debatida matéria. A recusa da aplicação da guarda compartilhada não é de se estranhar, eis que é uma Lei de 2014 e ainda não houve discussão doutrinária suficiente para respaldo de seu acolhimento, principalmente pelo Judiciário.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARANTE, Aparecida I.. Animais: natureza jurídica. Objetos ou sujeitos de direito? Animais domésticos e guarda compartilhada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6118, 1 abr. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/80277. Acesso em: 25 abr. 2024.