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Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição

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Reflexões sobre a questionável constitucionalidade do aborto em casos de estupro, previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. CAPÍTULO 1. A CONSTITUIÇÃO E O DIREITO À VIDA.  1.1. A Constituição Federal como fundamento de validade.  1.2. Direitos e Garantias Fundamentais: A inviolabilidade do direito à vida. 1.3. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e sua relação com o direito à vida. 1.4. A legislação penal como ferramenta de observância constitucional. CAPÍTULO 2. A PROTEÇÃO À VIDA NO CÓDIGO PENAL. 2.1. Uma breve análise dos crimes contra a vida.  2.1.1. Homicídio. 2.1.1.2. Feminicídio.  2.1.2. Induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.  2.1.3. Infanticídio. 2.1.4. Aborto. CAPÍTULO 3. ABORTO: C. RIME CONTRA A VIDA DO NASCITURO.  3.1. O nascituro: conceito e natureza jurídica. 3.2. Aborto: algumas breves considerações. 3.2.1. Conceito.  3.2.2. Evolução histórica. 3.2.3. Sujeitos do delito e objeto jurídico. 3.3. Quando o aborto não é passível de punição. 3.3.1. Aborto terapêutico. 3.3.2. Aborto de fetos anencéfalos: análise da Decisão do STF na ADPF 54. 3.3.3. Aborto humanitário. CAPÍTULO 4. O ABORTO HUMANITÁRIO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988.   4.1. Estado de necessidade ou inexigibilidade de outra conduta?.   4.1.1. Estado de necessidade.  4.1.2. Inexigibilidade de conduta diversa. 4.2. Uma análise à luz da Constituição Federal.  4.2.1. O instituto da Recepção e a Constituição do Estado Novo.  4.2.2. O alcance dos direitos fundamentais na Constituição de 1988.   4.2.3. Quando a lei permite a violação da vida.  4.2.4. O aborto humanitário foi recepcionado pela Constituição de 1988?. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo analisar o artigo 128, inciso II, do Código Penal brasileiro, que dispõe sobre o aborto em casos de gravidez decorrente de estupro, chamado pela doutrina de aborto humanitário, ético ou sentimental. Faremos uma análise deste instituto à luz da Constituição Federal e seus preceitos fundamentais, em especial aquele positivado no caput do 5º artigo da Lei Maior, que garante a todos a inviolabilidade do direito à vida.

O referido dispositivo penal determina que, quando a gravidez se originar de um estupro, o procedimento abortivo realizado pelo médico não será passível de punição. Em sentido oposto, a Constituição Federal garante a todos os seus destinatários a proteção do direito à vida, estando, entre eles, incluído o nascituro. Temos, dessa maneira, um claro e evidente conflito de bens jurídicos: de um lado, a honra e a integridade emocional da mulher violentada; de outro, o direito à vida do produto da concepção.

Diante desse problema levantado, este estudo buscará encontrar a melhor resposta possível, do ponto de vista jurídico, sobre qual seria o melhor caminho a ser tomado pelo legislador. Analisaremos o que a doutrina ensina sobre o tema e buscaremos lições também na jurisprudência. Sendo o objetivo final entender se a norma penal em questão é constitucional ou não, o trabalho será apresentado a partir de quatro capítulos elaborados de forma estratégica.

O primeiro capítulo se destinará a estudar a força normativa da Constituição, seu caráter norteador de toda a legislação infraconstitucional e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais nela positivados. Apresentaremos argumentos devidamente embasados pela doutrina que consagram o entendimento de que não há norma alguma que possa contrariar determinações constitucionais. Analisaremos também a força normativa dos princípios constitucionais, procurando descobrir quais bens jurídicos merecem proteção mais acentuada do aplicador do Direito.

O segundo capítulo, por sua vez, tratará da função exercida pelo Código Penal de garantir o direito constitucional à inviolabilidade do direito à vida, através da criminalização de condutas que atentem contra a vida humana. Veremos aí que a legislação penal se configura como o mecanismo infraconstitucional mais eficaz na proteção deste direito fundamental estampado no artigo 5º da Carta Republicana.

No terceiro capítulo, iremos finalmente estudar o tipo penal do aborto, abordando primeiramente a questão do nascituro como sujeito de direitos e as garantias que nosso ordenamento jurídico dispõe para assegurar esses direitos. Após, faremos algumas considerações sobre a natureza jurídica, os precedentes históricos e os elementos essenciais deste instituto para, no quarto capítulo, finalmente nos aprofundarmos no tema central deste trabalho: o aborto humanitário.

Pretendemos, conforme já mencionado, analisar o alcance dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, tendo como foco a previsão legal para a mulher abortar quando a gravidez se originar de um estupro. Iremos abordar a colisão deste dispositivo com a inviolabilidade do direito à vida, clausula pétrea de nossa Carta Magna. Nosso objetivo é entender até onde a legislação infraconstitucional pode contrariar previsão constitucional, e quais requisitos devem ser observados para legitimar esse conflito.

Esperamos que esse estudo sirva para esclarecer controvérsias que são inerentes à condição de ciência humana que o Direito possui. Se a leitura desse trabalho servir para despertar no leitor a vontade de buscar respostas às questões que o Direito e a vida de modo geral nos apresentam, o esforço dessa pesquisa terá valido a pena.


CAPÍTULO 1. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA

    1.1. A Constituição como fundamento de validade.

O objetivo central desse trabalho é analisar se o tipo penal previsto no artigo 128, inciso II, do Código Penal, que autoriza o procedimento abortivo quando a gravidez se originar de um estupro, teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Desse modo, em um primeiro momento, é necessário que entendamos a alocação do Direito Constitucional em nosso ordenamento jurídico e seu caráter de orientador de toda a legislação infraconstitucional.

A Constituição é a Lei Maior de nosso ordenamento, e, por isso, orienta toda atividade estatal, seja ela executiva, legislativa ou jurisdicional. No âmbito do poder executivo, tanto os prefeitos quanto os governadores de estados e o presidente da República estão sempre obrigados a observar os preceitos constitucionais, sob pena de nulidade do ato administrativo editado em desconformidade com a Constituição. O mesmo se aplica ao poder legislativo, que, na elaboração de diplomas legais, deve sempre obediência às disposições previstas na Carta Magna.

O poder judiciário, por sua vez, é o responsável por exercer o controle de constitucionalidade das normas jurídicas e atos administrativos. Ou seja, qualquer ato do executivo ou do legislativo que contrariar a Carta Magna será afastado do mundo jurídico por meio da atuação jurisdicional, exercida especialmente pelo Supremo Tribunal Federal.

Dessa maneira, é ponto pacífico que norma alguma pode contrariar disposição da Constituição, uma vez que a Lei Maior estabelece regras e princípios gerais a serem observados por todo o ordenamento, se configurando como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas.

Nesse sentido, explica o jurista Pedro Lenza:

No Direito percebe-se um verdadeiro escalonamento de normas, uma constituindo o fundamento de validade de outra, numa verticalidade hierárquica. Uma norma, de hierarquia inferior, busca seu fundamento de validade na norma superior e esta, na seguinte, até chegar a Constituição, que é o fundamento de validade de todo o sistema infraconstitucional. (LENZA, 2009, p.27)

A expressão “fundamento de validade” nos leva a concluir que qualquer construção legislativa que venha a existir só será válida se estiver de acordo com o que determina a Constituição Federal, pois é ela que confere validade a todas as normas. Essa validação, por sua vez, alcança tanto as normas editadas após a promulgação da Lei Maior, em 1988, quanto àquelas vigentes antes desta data.

Sendo assim, mesmo as leis anteriores à promulgação da Constituição devem obediência a ela. Se algum diploma anterior à entrada em vigor da Lei Maior contiver disposição que contrarie algum preceito constitucional, esta disposição perde a validade, em razão de não ter sido recepcionada..

O instituto da recepção, de forma resumida, consiste no recebimento, pela Constituição atual, de norma editada na vigência da Constituição passada, mas que esteja de acordo com o regramento constitucional presente. Ou seja, após o início da vigência da Carta Republicana de 88, as disposições legais anteriores que estiverem de acordo com seus dispostos são consideradas como recepcionadas, e permanecem válidas. Já aquelas que trouxerem previsões contrárias ao texto constitucional são tidas como não recepcionadas e terão sua eficácia afastada por meio do controle exercido pelo poder judiciário.

Assim, partiremos nesse estudo da premissa de que a Constituição é a norma maior do nosso ordenamento jurídico e fundamento de validade de todas as outras normas, não podendo, portanto, existir espécie legislativa alguma que contrarie preceito Constitucional. Dessa forma, a Lei Maior traz, em seu corpo, princípios e regras que devem ser observados por todos os outros ramos do Direito, entre eles, claro, o Direito Penal.

Estando clara essa natureza de fundamento de validade que a Constituição Federal possui, e não restando duvidas de que norma alguma pode se opor à Carta Magna, passaremos a analisar agora alguns princípios constitucionais relevantes para nosso trabalho.

1.2. Direitos e garantias fundamentais: inviolabilidade do direito à vida.

O Título II da Constituição dispõe sobre os Direitos e garantias fundamentais, que englobam os direitos e deveres individuais e coletivos, os direitos sociais, os direitos de nacionalidade e os direitos políticos. 

No artigo 5º, encontramos a previsão dos direitos e deveres individuais e coletivos, dentre os quais podemos destacar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, todos previstos no caput do citado artigo.

Se percorrermos a Constituição até o artigo 60, parágrafo 4,º inciso IV, iremos nos deparar com a vedação expressa da possibilidade de existir qualquer proposta de emenda constitucional que pretenda abolir os direitos e garantias individuais. Assim sendo, fica claro o caráter diferenciado das disposições previstas no artigo 5º, que não podem ser modificadas em hipótese alguma. São as chamadas cláusulas pétreas.

Além dos direitos e garantias individuais, o parágrafo 4º do artigo 60 também proíbe a existência de emenda constitucional que vise extinguir a forma federativa de Estado (inciso I), o voto direto, secreto, universal e periódico (inciso II) e a separação dos poderes (inciso III). São, portanto, direitos constitucionais imutáveis, considerados, por isso, cláusulas pétreas, por estarem petrificadas em nosso ordenamento. Esses direitos só podem ser suprimidos se houver uma ruptura na ordem institucional que revogue completamente a nossa Constituição. Caso contrário, tais proteções sempre estarão presentes em nosso ordenamento.

A respeito da impossibilidade de abolição dos direitos e garantias individuais, nos ensinam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

A Constituição Federal, no Titulo II, dedicado aos direitos e garantias fundamentais, destinou o Capitulo I aos direitos e deveres individuais e coletivos, enunciando estes no art. 5º e em seus setenta e oito incisos. Ao apontar as matérias protegidas com o manto de cláusula pétrea, o legislador constituinte gravou com essa cláusula assecuratória “os direitos e garantias individuais” (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.614).

Ou seja, enquanto estivermos sob o império do atual sistema constitucional, os direitos e garantias individuais sempre estarão presentes, não podendo ser abolidos por emendas constitucionais e nem contrariados por legislações infraconstitucionais.

Dessa forma, já sabemos que a Constituição Federal é o fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, não podendo existir norma alguma que a contrarie. Sabemos também que, dentro do corpo constitucional, há normas que o legislador constituinte quis deixar claro que possuem um caráter especial, sendo consideradas cláusulas pétreas. Ou seja, podemos afirmar com convicção que o respeito aos direitos e garantias individuais são exigências que qualquer legislação infraconstitucional deve observar.

Dentre essas disposições constitucionais imutáveis, uma se demonstra de extrema importância para nosso trabalho: a inviolabilidade do direito à vida. Conforme se depreende do próprio texto constitucional em seu artigo 5º, a vida é inviolável, sendo certo que, por ser norma constitucional, essa inviolabilidade já deve ser obrigatoriamente respeitada por todo ordenamento jurídico, e, por ser cláusula pétrea, essa observância deve ser mais rígida ainda, não permitindo que exista previsão legal alguma que desrespeite tal direito.

Vejamos novamente lição de Pedro Lenza:

O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º caput, abrange tanto o direito de não ser morto, privado da vida, como também o direito de ter uma vida digna (LENZA, 2009, p.678).

Na definição do professor Lenza, podemos perceber a expressão “vida digna”. Trata-se da conjugação da inviolabilidade do direito à vida com o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no primeiro capítulo da Carta Magna e que será estudado no próximo item.

1.3. O Princípio da dignidade da pessoa humana e sua relação com o direito fundamental à vida.

O Titulo I da nossa Constituição dispõe sobre os Princípios Fundamentais. Ou seja, nos traz os fundamentos da República, que são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.

Dessa forma, os direitos e garantias fundamentais já estudados no capítulo anterior devem ser observados sempre à luz destes princípios fundamentais. Em nosso trabalho, daremos destaque ao princípio da dignidade humana e sua relação com o direito fundamental à inviolabilidade da vida.

A previsão do princípio da dignidade na Constituição representa o reconhecimento de que o homem possui direitos e garantias fundamentais que são inerentes à sua condição humana. Esta positivação, portanto, confere a todos a possibilidade de ter acesso às condições necessárias para uma vida digna.

Vejamos o entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, acerca deste princípio fundamental:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2009, p. 21-22, grifos originais).

Assim, temos a dignidade humana como o princípio que orienta a aplicação de todas as disposições elencadas na Carta Magna, sendo a realização das condições essenciais para o exercício dos direitos básicos de toda pessoa. Conforme mencionamos anteriormente, este trabalho se destina ao estudo de institutos jurídicos sempre sob o prisma da relação inseparável entre a dignidade humana e o direito constitucional à vida.

Exatamente sobre essa relação, escreve o jurista Cleber Francisco Alves:

Um ponto crucial, que suscita vivos debates e discussões no campo da dignidade da pessoa humana, é aquele relativo ao direito à vida. Muito se fala em direitos humanos, em dignidade da pessoa humana, mas esquece-se de sua premissa elementar que é exatamente o direito à vida. Sem a vida, qualquer outro direito inexiste.’ (ALVES, 2001, p. 166)

Partindo dessa definição, temos como condição essencial para a dignidade humana o respeito à inviolabilidade do direito à vida. Podemos afirmar, então, que o direito à vida seria o mais importante de nosso ordenamento jurídico, uma vez que pode ser entendido como premissa de um princípio fundamental do direito.

Desse mesmo entendimento, compartilha Alexandre de Moraes:

A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. (MORAES, 2009, p. 35, grifos originais).

Ou seja, o direito à vida se configura como condição elementar de um princípio sob o qual se funda o Estado Democrático de Direito. Um princípio elencado no primeiro artigo da Carta Magna e que dita os rumos da aplicabilidade de todo o texto constitucional.

É premissa desse trabalho, portanto, que o direito à vida possui status mais relevante do que a dignidade humana, visto que, conforme lições dos juristas acima citados, para que se tenha vida digna é preciso, antes, ter vida.

Nesse ponto, compete destacar que, para alguns juristas, a dignidade da pessoa humana teria força jurídica maior do que o direito a vida, por ser mencionada primeiro no texto constitucional, estando positivada no primeiro artigo da Carta, enquanto a inviolabilidade da vida se encontra no artigo 5º.

Com todo respeito a essa posição, mantenho-me firme na convicção defendida pelo professor Cleber Francisco Alves, no sentido de que a vida precede qualquer outro direito, destacando que, se prevalecesse este entendimento, isso significaria afirmar que todos os direitos que se encontram positivados em artigos anteriores ao artigo 5º seriam mais importantes do que o direito à vida.

O artigo primeiro da Constituição dispõe que são fundamentos da República a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político, nessa exata ordem. Dessa forma, se aceitarmos que o princípio da dignidade tem mais força do que o direito à vida por estar previsto primeiro na Carta, devemos concordar que também os outros fundamentos seriam mais importantes do que a inviolabilidade do direito à vida.

Mais ainda, se aceitarmos como correta esta posição, teremos que concordar que a soberania e a cidadania seriam valores ainda maiores do que a dignidade humana, o que não procede, pois, como visto na lição do Ministro Alexandre de Moraes, a dignidade é um valor moral e espiritual inerente a pessoa, referente à sua autodeterminação enquanto indivíduo, o que lhe torna pré-requisito tanto para o exercício da cidadania quanto para a formatação de uma República efetivamente soberana.

Ou seja, a ordem de menção no texto constitucional não indica superioridade normativa de um instituto sobre o outro, devendo sempre ser realizada uma interpretação sistemática, analisando todo o ordenamento, para que seja delimitado qual princípio ou direito deve se sobrepor em situações de conflito.

Nos parece claro, portanto, que o direito à vida precede todos os fundamentos da República, pois sem vida não há soberania, não há cidadania, não há trabalho, não há livre iniciativa, não há pluralismo político e, também, não há dignidade.

Por fim, para que não reste dúvidas de que nosso ordenamento coloca o direito à vida em patamar superior ao princípio da dignidade humana, citaremos o caso da eutanasia, que é vedada em nosso sistema jurídico.

A respeito deste instituto, compete apresentar o seguinte conceito de José Afonso da Silva:

Hoje, contudo, de eutanasia se fala quando se quer referir à morte que alguém provoca em outra pessoa já em estado agônico ou pré-agônico, com o fim de liberá-la de gravíssimo sofrimento em consequência de doença tida como incurável, ou muito penosa, ou tormentosa. Chama-se, por esse motivo, homicídio piedoso. É, assim mesmo, uma forma não espontânea de interrupção do processo vital, pelo que implicitamente está vedada pelo direito à vida consagrado na Constituição, que não significa que o indivíduo possa dispor da vida, mesmo em situação dramática. Por isso, nem o consentimento lúcido do doente exclui o sentido delituoso da eutanásia no nosso Direito. (SILVA, 1992, p.185, grifos nossos).

Trata-se, portanto, de hipótese em que alguém está acometido de doença incurável, que lhe traz enorme sofrimento, o impossibilitando de desfrutar de uma viga digna. A eutanásia consiste, justamente, na eliminação desta vida, sob a alegação de que manter o paciente vivo seria afrontoso a sua dignidade.

Tem-se, portanto, que o fundamento da eutanásia seria a superioridade normativa da dignidade humana sobre o direito à vida, sendo a prática permitida em alguns países, como Holanda, Belgica, Suíca, Canadá e alguns estados norte-americanos. No Brasil, no entanto, tal conduta é vedada por nosso sistema jurídico-constitucional, ainda que o doente manifeste seu consentimento, visto que a vida humana é inviolável e indisponível, o que demonstra que, de forma inequívoca, nosso ordenamento a considera um bem jurídico de maior expressão do que a dignidade humana.

Assim, se o ordenamento proíbe a antecipação da morte em situações fáticas que demonstram completa impossibilidade de vida digna, não restam dúvidas de que a vida é o principal bem jurídico protegido pelo sistema jurídico brasileiro, sendo condição elementar de todos os outros direitos.

Desse modo, cada vez se torna mais claro que o direito à inviolabilidade da vida humana, por todos os aspectos já estudados até aqui, deve ser garantido por toda legislação infraconstitucional, uma vez que a Constituição é o fundamento de toda a ordem jurídica. Dessa maneira, o Código Penal, como legislação infraconstitucional que é, tem o dever de observar todas as disposições da Carta Magna, em especial a inviolabilidade do direito à vida. É o que será estudado agora.

1.4. A legislação penal como ferramenta de observância à Constituição

Conforme já vimos, toda espécie legislativa deve obedecer aos mandamentos constitucionais, de modo que o Código Penal também está sujeito a essa observância. Assim sendo, a lei penal não pode conter dispositivo que contrarie nenhuma previsão da Carta Magna. Pelo contrário, deve conter mecanismos de proteção aos direitos e garantias fundamentais.

Assim, toda legislação em matéria penal deve ser sempre editada buscando a preservação dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, visando a proteção da vida e da dignidade humana, sob pena de, não cumprindo essa missão, ser afastada do mundo jurídico por ser inconstitucional.

Sobre o tema, ensina Fernando Capez:

Podemos então afirmar que do Estado Democrático de Direito parte o princípio da dignidade humana, orientando toda a formação do Direito Penal. Qualquer construção típica cujo conteúdo contrariar e afrontar a dignidade humana será materialmente inconstitucional visto que atentatória ao próprio fundamento da existência de nosso Estado. Cabe, portanto, ao operador do Direito, e principalmente ao juiz, exercer controle técnico de verificação da constitucionalidade de todo tipo penal e de toda adequação típica, de acordo com seu conteúdo. Se afrontoso à dignidade humana, deverá ser expurgado do ordenamento jurídico. (CAPEZ, 2007, p. IX)

Nessa definição podemos notar novamente que o princípio da dignidade humana é fundamento da existência do Direito. Partindo da premissa de que o Direito à vida é elemento essencial da dignidade humana, uma vez que o precede, a conclusão lógica é a de que é dever do Direito Penal zelar pela proteção desse Direito fundamental, devendo ser expurgada do ordenamento jurídico qualquer norma penal que o afronte.

E é justamente o que está positivado no Titulo I da parte especial do Código Penal brasileiro, que dispõe sobre os crimes contra a pessoa. Temos, no primeiro capítulo deste título, a criminalização das condutas contra a vida, o que se configura como a forma mais eficaz da legislação penal observar os mandamentos constitucionais para a proteção daquele que é o maior bem jurídico tutelado por nosso ordenamento.

A vida, por ser direito fundamental inviolável, é considerada bem jurídico indisponível, de modo que o Direito Penal, ao definir como crime condutas que atentem contra a vida humana, busca uma forma de proteger esse bem tão valioso, cumprindo sua missão de agir conforme determinam os preceitos constitucionais.

No entanto, apesar da previsão legal dos crimes contra a vida contida no Código Penal buscar a plena efetivação da inviolabilidade deste direito fundamental, é possível perceber, na própria lei penal, hipóteses em que se permite que este bem jurídico seja violado. Seria essa permissão inconstitucional? É o que veremos em breve neste estudo.


CAPÍTULO 2. A PROTEÇÃO À VIDA NO CÓDIGO PENAL

2.1. Crimes contra a vida: uma breve análise

  O Código Penal brasileiro foi instituído pela Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, e permanece vigente até a data da publicação deste estudo. A parte geral do referido diploma, que define conceitos, regras e princípios gerais para a aplicação da lei penal, foi alterada, em sua totalidade, pela Lei nº. 7.209, de 11 de julho de 1984. Já a parte especial, que define os crimes em espécie e estipula suas respectivas sanções, sofreu somente alterações pontuais, com a exclusão de alguns crimes e acréscimo de outros, sem maiores reformulações.

 Conforme mencionado no capítulo anterior, o capítulo I do título I da parte especial do nosso Código Penal dispõe sobre os crimes contra a vida. Ao criminalizar as condutas ali previstas, fica claro que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana. Dessa forma, a lei penal efetiva a proteção ao bem jurídico mais valioso garantido pela Constituição Federal de 1988.

  Nesse sentido, ensinam Costa Machado e David Teixeira de Azevedo:

O primeiro bem jurídico relacionado à pessoa humana a receber tutela do direito penal é a vida humana, reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência como o bem de maior valor no ordenamento jurídico. (MACHADO e AZEVEDO, 2016, p.181)

Da leitura da lição acima reproduzida, fica evidente, novamente, que a vida é o bem de maior valor no nosso ordenamento, motivo pelo qual o Código Penal dedica o primeiro capítulo de sua parte especial aos crimes cometidos contra este bem jurídico, buscando, dessa forma, conferir a máxima proteção possível à missão conferida pelo artigo 5º. da Constituição da República.

O tema central de nosso trabalho, o aborto humanitário, encontra-se previsto justamente no capítulo primeiro do título I da parte especial do Código Penal, o que nos permite concluir, desde já, que o nascituro, que é aquele que ainda está por nascer, também é destinatário da proteção constitucional à vida.

Porém, antes de tratarmos efetivamente desse tipo penal, é importante fazermos uma breve exposição dos demais crimes que o diploma penal elencou como atentatórios à vida humana. Vejamos agora.

2.1.1. Homicídio.

O delito de homicídio está previsto no artigo 121 do Código Penal, que o define de forma extremamente objetiva: “Matar alguém. Pena – reclusão de 6 a 20 anos.” É o chamado homicídio simples. Temos aí a proteção à vida humana de forma genérica. Qualquer pessoa que matar outra, via de regra, pratica o tipo penal previsto nesse artigo.

No parágrafo 1º do artigo 121, temos as hipóteses de diminuição de pena no delito de homicídio, quando o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Nesses casos, a pena poderá ser reduzida de um sexto a um terço. Ou seja, mesmo que haja algum motivo especial que tenha levado o agente a praticar homicídio, o delito continua sendo punido, ainda que de forma mais branda, pois a vida humana é bem jurídico inviolável.

O parágrafo 2º do artigo 121 dispõe sobre a forma qualificada de homicídio, que tem previsão de pena maior do que a da modalidade simples, em razão do motivo pelo qual o agente pratica a conduta (mediante recompensa ou por razão fútil ou torpe – incisos I e II), do meio empregado na ação (veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura, emboscada, dissimulação, dificultação da defesa do ofendido ou outro meio cruel ou que possa resultar perigo comum – incisos III e IV), da finalidade do crime (para assegurar a execução, ocultação, impunidade ou vantagem de outro delito – inciso V), ou da condição pessoal da vítima (no caso de crimes cometidos contra mulher no âmbito da relação doméstica, vede tópico posterior, e na hipótese de crimes contra agentes da segurança pública e seus respectivos familiares – incisos VI e VII). Para o homicídio qualificado, o legislador estipulou pena de 12 a 30 anos.

Já no parágrafo 3º, temos o instituto do homicídio culposo, quando o agente não tem a intenção de matar. Nessa modalidade, a pena prevista é de detenção, de um a três anos. Notem que, mesmo que o homicida não tenha nenhuma intenção de cometer o delito, há previsão legal de pena. É a legislação penal demonstrando, mais uma vez, a inviolabilidade do direito à vida

  2.1.1.2. Feminicídio.

Retornando às hipóteses de crime qualificado, previstas no parágrafo 2º do artigo 121, compete ressaltar que a Lei nº 13.104, de 09 de março de 2015, acrescentou uma nova qualificadora, referente a condição feminina da vítima, instituindo o chamado delito de feminicídio.

A referida legislação incluiu o inciso VI ao parágrafo 2º do artigo 121, definindo como crime qualificado aquele que for praticado contra a mulher, por razões da condição de sexo feminino. Nesse caso, a pena também será de reclusão de 12 a 30 anos.

Essa nova qualificadora é fruto da tendência, cada vez mais crescente, de aumento da proteção jurídica da mulher, buscando coibir abusos cometidos no ambiente doméstico, movimento que se iniciou com a Lei de Violência Doméstica (Lei 11.340/2006), popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, e culminou na recente alteração do Código Penal.

A intenção do legislador, com esta alteração, é penalizar com maior rigor o crime cometido pelo homem que se vale da privacidade do lar para praticar condutas cruéis contra sua companheira, visto que, ao longo dos tempos, atos de violência doméstica sempre ocorreram com uma triste frequência em nosso país.

Cumpre destacar que parte da doutrina questiona a constitucionalidade desta alteração, visto que estabelece uma desigualdade de tratamento entre homens e mulheres que são vítimas de homicídios cometidos no ambiente doméstico. No entanto, para o fim que pretende este trabalho, é irrelevante discorrer a este respeito, bastando destacar que o feminicídio é mais uma forma prevista no ordenamento para tutelar o direito constitucional a inviolabilidade da vida humana.

2.1.2 Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio

 Segundo disposto no artigo 122 do Código Penal, é crime a seguinte conduta: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena – reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”

Nessa situação, o Estado atua no sentindo de impedir que uma pessoa elimine a própria vida, criminalizando a conduta de quem, de alguma forma, contribuir para isso. Todo aquele que induzir, instigar ou auxiliar de qualquer forma alguém a atentar contra a própria vida incorre prática delituosa prevista no artigo 122 e será criminalmente processado, pois a vida humana é bem jurídico indisponível, constitucionalmente garantido.

A legislação penal não prevê esse delito na modalidade culposa, no entanto, a doutrina entende ser possível a prática desse crime por dolo eventual, que é a modalidade de dolo em que o agente, embora não tenha a real intenção de cometer o crime, age de modo a não se importar com o resultado fático de sua conduta, como no clássico exemplo de quem dirige embriagado. Ou seja, quem pratica alguma conduta que pode levar outrem a se suicidar, incorre na prática delituosa, mesmo que não tenha agido diretamente nesse sentido. Para demonstrar isso, citaremos exemplo do jurista Cesar Roberto Bitencourt:

Nada impede que o dolo orientador da conduta do agente configure-se em sua forma eventual. A doutrina procura citar alguns exemplos que, para ilustrar, invocaremos: o pai que expulsa de casa a filha desonrada, havendo fortes razões para acreditar que ele se suicidará; o marido que sevicia a esposa, conhecendo a intenção desta de vir a suicidar-se, reitera as agressões. (BITENCOURT, 2003, p. 124-125)

Segundo o exemplo da doutrina, podemos perceber que, ainda que o agente não auxilie, induza ou instigue alguém a se suicidar, se praticar qualquer conduta de modo a não se importar se dela resultar o suicídio da vítima, incorrerá na prática do tipo penal previsto no artigo 122, e será punido criminalmente, devido ao caráter inviolável da vida humana.

Para finalizarmos essa breve exposição sobre o artigo 122, compete mencionar o artigo 146, parágrafo 3º, inciso II do Código Penal, que determina que não configura crime de constrangimento ilegal a coação exercida para impedir suicídio. Ou seja, aquele que constranger alguém (mediante violência, grave ameaça ou após lhe reduzir a capacidade de resistência) a não se suicidar, não estará praticando qualquer crime, pois estará atuando no sentido de preservar a vida humana. No entanto, ninguém poderá se eximir da responsabilidade penal se praticar tal conduta para evitar que alguém pratique atos imorais, como a prostituição, por exemplo, já que aí não é a inviolabilidade da vida que está em jogo.

Nesse sentido, afirma Rogério Greco:

Assim, se alguém, mediante violência ou grave ameaça, mesmo que no intuito de ajudar a vítima, a impede de prostituir-se, estaria praticando a infração penal tipificada no art. 146 do estatuto repressivo, vale dizer, o delito de constrangimento ilegal. Ao contrário, se o agente, por exemplo, mediante o emprego de violência impede que a vítima extermine a própria vida não pratica qualquer delito pois que, nesse caso, própria lei penal entendeu por bem afastar a tipicidade desse comportamento. (GRECO, 2007, p. 201).

Dessa forma, cada vez nos fica mais claro que o legislador penal atua sempre no intuito de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a máxima proteção à vida humana, admitindo até mesmo a não culpabilidade de conduta tipificada como crime se ela for cometida para salvar uma vida, conforme demonstrado nessa curta exposição sobre o delito de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio. Trata-se, mais uma vez, do Código Penal cumprindo a missão de preservar a inviolabilidade do principal direito garantido pela Constituição.

2.1.3 Infanticídio

  Infanticídio é o delito previsto no artigo 123 do Código Penal, que assim dispõe: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após. Pena – detenção de dois a seis anos.” Ou seja, trata-se de crime cometido contra a vida do recém nascido. O sujeito ativo, nesse caso, é a mãe sob efeito do estado puerperal. Para conceituarmos essa condição, utilizaremos da definição médica do obstetra Jorge de Rezende:

Puerpério, sobreparto ou pós-parto, é o período cronologicamente variável, de âmbito impreciso, durante o qual se desenrolam todas as manifestações involutivas e de recuperação da genitália materna havidas após o parto. Há, contemporaneamente, importantes modificações gerais, que perduram até o retorno do organismo às condições vigentes antes da prenhez. A relevância e a extensão desses processos são proporcionais ao vulto das transformações gestativas experimentadas, isto é, diretamente subordinadas à duração da gravidez. (REZENDE, 1998, p. 373).

Estamos diante, portanto, de um período em que a parturiente está acometida por fortes abalos psicológicos que acabam a levando a matar o próprio filho. O penalista Paulo José da Costa Júnior assim escreve sobre o estado puerperal e o delito de infanticídio:

A mulher, abalada pela dor obstétrica, fatigada, sacudida pela emoção, sofre um colapso do senso moral, uma liberação de instintos perversos, vindo a matar o próprio filho. (COSTA JÚNIOR, 1991, p. 18)

Ou seja, temos uma situação em que o sujeito ativo do delito encontra-se com a capacidade psicológica abalada, não possuindo condições suficientes para distinguir o certo do errado. Sob influência desse estado, a mãe acaba eliminando a vida do próprio filho que acabara de nascer.

Devido a essa condição psicológica da parturiente, poderíamos estar diante de uma excludente de culpabilidade. No entanto, não é o que ocorre, pois ainda que haja uma deturpação do senso moral da mãe, o direito à vida do recém-nascido é inviolável e deve ser garantido pelo ordenamento jurídico. Dessa maneira, o legislador penal adotou a criminalização dessa conduta, surgindo assim o delito de infanticídio.

Assim, o estado puerperal que debilita a capacidade psicológica da mãe serve apenas para caracterizar o cometimento de um delito diverso do homicídio, com previsão de pena menor, detenção de dois a seis anos. Ainda que a pena seja menor, devido a essa debilidade emocional do sujeito ativo, a conduta é criminosa e haverá a responsabilização criminal da agente, uma vez que a vida humana é bem jurídico inviolável, seja ela do recém-nascido, da criança, do adulto, do idoso ou do nascituro, conforme será estudado a seguir.

2.1.4 Aborto

  O aborto é, indiscutivelmente, um dos crimes que mais causam polêmica na doutrina e em toda a sociedade de modo geral. Sua previsão legal encontra-se entre os artigos 124 e 128 do Código Penal brasileiro. Trataremos agora, resumidamente, sobre cada um destes artigos, para, nos capítulos seguintes, finalmente nos aprofundarmos sobre o aborto humanitário, tema central deste trabalho.

Assim dispõe o artigo 124: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe provoque. Pena – detenção de 1 a 3 anos”. Temos, na primeira parte desse artigo, o chamado auto-aborto, que é aquele provocado pela própria gestante. É um crime de mão própria, onde somente a gestante pode ser sujeito ativo. A grávida, segundo disposição da segunda parte do artigo, também incorre na prática delituosa ao permitir que um terceiro pratique a conduta abortiva.

Nos artigos 125 e 126, temos as hipóteses de criminalização deste terceiro que provoca o aborto na gestante. Para aquele que provoca sem o seu consentimento (art. 125), temos previsão de pena de reclusão de 3 a 10 anos. Já o que provoca com a concordância da grávida (art. 126) está sujeito à pena de reclusão de 1 a 4 anos, exceto quando a gestante for menor de 14 anos, possuir debilidade mental, ou o consentimento for dado mediante fraude, grave ameaça ou violência, hipóteses em que a pena será a mesma do artigo 125, reclusão de 3 a 10 anos, conforme disposição do parágrafo único do artigo 126.

No artigo 127, temos a forma qualificada do aborto, quando, em consequência dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal grave (pena aumentada em um terço) ou morre (pena duplicada). Já no artigo 128, temos as hipóteses onde o aborto não é passível de punição, que serão estudadas mais adiante.

Indiscutivelmente, o bem jurídico que se quer proteger ao criminalizar o aborto é a vida humana intra-uterina, a vida do nascituro. Assim sendo, o Código Penal, ao inserir este delito no rol de crimes contra a vida, deixa claro que o nascituro já é possuidor de uma vida, que deve ser preservada em todos os seus estágios de desenvolvimento dentro do útero.

Para ilustrar este pensamento, nos valeremos da brilhante definição de Nelson Hungria:

O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, o rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto. (HUNGRIA, 1955, p. 281).

Temos, portanto, o Código Penal atuando no sentido de preservar o direito à vida do nascituro. Dessa forma, fica claro e inequívoco que a inviolabilidade do direito à vida garantida pela Constituição alcança não só a vida extra-uterina, mas também àquela existente dentro do útero materno.

Assim, é possível chegarmos à conclusão de que todos os crimes estudados neste capítulo têm fundamento na inviolabilidade do direito fundamental à vida, seja ela do nascituro, do recém-nascido ou de qualquer pessoa. O delito do aborto, no entanto, é cercado de diversas controversas no mundo jurídico e, em razão disso, merece ser tratado em um capítulo a parte. É o que faremos a seguir.


CAPÍTULO 3. ABORTO: CRIME CONTRA A VIDA DO NASCITURO

3.1. O Nascituro: conceito e natureza jurídica

  Como já visto, o aborto é um crime praticado contra a vida do nascituro, de modo que, antes de mais nada, se faz extremamente necessário assimilarmos alguns conceitos sobre essa figura.

Segundo o ilustre professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, a palavra nascituro se origina do latim nascituru, que significa “aquele que está por nascer” ou “aquele que há de nascer”. É, portanto, aquele que foi gerado e ainda não nasceu.

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 2º, dispõe da seguinte forma: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Assim sendo, fica claro que a lei civil define o nascituro como sujeito possuidor de direitos, mas não delimita que direitos são esses.

Apesar do diploma civil não especificar quais são os direitos garantidos ao nascituro, é perfeitamente possível afirmar que seriam os previstos na Constituição Federal, especialmente em seu artigo 5º, visto que, conforme já estudado neste trabalho, a Carta Magna é o fundamento de validade de toda norma jurídica e possui caráter orientador de todo o ordenamento, o que obriga o aplicador do direito a sempre interpretar qualquer legislação infraconstitucional à luz das disposições da lei maior.

Não obstante, a doutrina também proclama o entendimento de que o nascituro é destinatário dos direitos garantidos pela Constituição. Como exemplo, citaremos a questão do alcance do direito constitucional à vida, segundo valiosa lição do constitucionalista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes:

A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista, tão somente, dar-lhe o enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. Assim a vida viável, portanto, começa com a nidação, quando se inicia a gravidez. Conforme adverte o biólogo Botella Lluzia, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina. (MORAES, 2009, p. 36, grifos nossos)

Dessa forma, podemos dizer que os direitos garantidos ao nascituro pelo Código Civil seriam realmente aqueles previstos na Constituição Federal. Assim, sendo sujeito dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna, ele tem garantidos, desde sua concepção, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, conforme manda o art. 5º do diploma orientador. Esses direitos, por sua vez, deverão ser observados sob o prisma da dignidade da pessoa humana, princípio positivado no artigo primeiro da Carta Magna.

É possível percebermos no ordenamento jurídico alguns mecanismos utilizados para efetivar esses direitos do nascituro, como, por exemplo, os alimentos gravídicos concedidos à gestante, que seriam uma forma de garantir tanto o direito patrimonial daquele que está por nascer, quanto sua dignidade. Da mesma maneira, temos o direito de toda mulher grávida se submeter a acompanhamento pré-natal gratuito, obedecendo ao direito social à proteção à maternidade, previsto no artigo 6º da Constituição e efetivando para o nascituro as garantias da segurança e da igualdade dispostas no artigo 5º.

A inviolabilidade do direito à vida, por sua vez, é efetivada através do Código Penal, que criminaliza a conduta abortiva e a inclui no rol dos crimes contra a vida, garantindo, assim, mais um comando constitucional, conforme veremos detalhadamente a partir de agora.

 3.2. Aborto: algumas breves considerações

3.2.1. Conceito

 O aborto é caracterizado pela interrupção da gravidez com destruição do produto da concepção. Trata-se, portanto, da eliminação da vida intra-uterina. O Código Penal não faz menção a nenhuma etapa específica da gestação, o que nos leva a concluir que, desde a concepção até o início do parto, a conduta que atentar contra a vida do nascituro se adequará ao tipo penal do aborto.

 Vejamos o entendimento do penalista Fernando Capez:

A lei não faz distinção entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o início do parto, pois após o início do parto poderemos estar diante do delito de infanticídio ou homicídio. (CAPEZ, 2007, p. 110).

Assim, qualquer ato que viole a vida do produto da concepção antes do início do parto será considerado aborto. Após iniciado o parto, poderá ser considerado infanticídio ou homicídio, dependendo do caso concreto. Vejamos que há uma linha temporal tênue que separa o delito do aborto do homicídio: o início do trabalho de parto. Se a parturiente já tiver começado a dar a luz, mesmo que o dolo do agente seja de provocar o aborto, nesse momento ele já estará em seara de homicídio (ou infanticídio, se for a própria mãe o agente violador), o que nos leva a concluir que a intenção do legislador foi a mesma ao tipificar os delitos de homicídio, infanticídio e aborto: proteger a vida humana.

  Seguindo essa mesma linha de raciocínio, preleciona Rogério Greco:

O problema no delito de aborto é que não percebemos a dor sofrida pelo óvulo, pelo embrião ou mesmo pelo feto. Como não presenciamos, não enxergamos, não ouvimos o seu sofrimento, aceitamos a morte dele com tranqüilidade. A vida, independentemente do seu tempo, deve ser protegida. Qual a diferença entre causar a morte de um ser que possui apenas 10 dias de vida, mesmo que no útero materno, e matar outro que já conta com 10 anos de idade? Nenhuma, pois vida é vida, não importando a sua quantidade de tempo. (GRECO, 2007, p. 239).

  Dessa forma, não nos resta dúvidas de que o bem jurídico que se quer proteger é a vida humana intra-uterina, pois, ainda que existente apenas dentro do útero materno, é vida humana e, em razão disso, está protegida pelas disposições da Constituição da República.

3.2.2. Evolução histórica

Nos primórdios do direito romano, o produto da concepção não era considerado ser dotado de vida, e sim mera extensão do corpo da mulher, razão pela qual não havia previsão do delito de aborto, o que fazia com que as praticas abortivas fossem constantes. O primeiro registro da criminalização desta conduta em Roma data do reinado do imperador Septimius Severus (193-211 dC), quando o aborto passou a ser considerado crime contra os direitos do pai, por frustrar suas expectativas quanto a sua descendência, podendo ser punido inclusive com pena de morte, se praticado visando lucro.

O entendimento romano quanto à condição do ser que está por nascer só foi modificado a partir da expansão do Cristianismo, o que levou os imperadores Adriano, Constantino e Teodósio a implementarem reformas na legislação sobre o aborto, passando a considerá-lo crime contra a vida do produto da concepção, o que equiparou este delito ao do homicídio. Nesse momento, o nascituro passa a ser considerado possuidor de vida humana, assim como o ser já nascido.

Na idade média, surgiu a ideia defendida por alguns teólogos, entre eles Santo Agostinho (baseado em doutrina de Aristóteles), de que o aborto só seria crime se o feto já tivesse recebido uma alma, o que acreditavam ocorrer de 40 a 80 dias após a concepção. Era o chamado feto animado. Esse entendimento, no entanto, não era unânime entre os pensadores cristãos. São Basílio, por exemplo, defendia que o aborto fosse considerado sempre crime, independente do estágio do feto.

  Essa controvérsia durou até 1869, quando o Papa Pio IX aboliu a distinção entre feto inanimado e animado, estabelecendo a criminalização da conduta abortiva em qualquer caso. Esse posicionamento acabou por orientar a formação de diversos ordenamentos jurídicos em nações com grande influência do catolicismo. Equipara-se, portanto, o delito de aborto ao homicídio.

  Essa equiparação entre esses crimes durou até o iluminismo, quando se achou por bem aplicar uma pena menor para o delito do aborto, especialmente nas hipóteses praticadas pela gestante por motivo de honra (causa honoris). Esse entendimento ganhou vários adeptos, repercutindo de forma considerável na elaboração das legislações modernas. Notem que há apenas uma distinção de penas, não deixando, portanto, de considerar que a prática abortiva configura crime contra a vida do nascituro.

No Direito brasileiro, o Código Criminal de 1830 considerava crime o aborto praticado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante. O fornecimento de meios abortivos também era incriminado, mesmo quando o aborto não se consumava. O auto-aborto só foi tipificado no Código Penal de 1890, no entanto, com previsão de atenuante de pena quando praticado para ocultar desonra própria. Este diploma fazia ainda a distinção entre aborto com e sem expulsão do feto, atribuindo pena mais grave ao primeiro caso.

No nosso estatuto repressivo atual, temos a criminalização do auto-aborto e do aborto praticado por terceiro (com ou sem o consentimento da gestante) e independente de expulsão ou não do feto. Nosso código, aliás, segue a tendência adotada pela maioria das legislações penais contemporâneas, que consideram o nascituro como ser possuidor de vida e, em razão disso, tipificam a prática abortiva.

  Tendo em vista esses aspectos históricos, podemos perceber que a criminalização do aborto no Brasil varia de acordo com a percepção da nossa sociedade sobre a condição do ser intra-uterino. Nesse sentido, é importante destacar valiosa lição do jurista Aníbal Bruno:

À proporção que as ideias filosóficas, com os seus reflexos sociais e jurídicos, iam acentuando a importância a ser concedida ao homem em atenção a eles mesmo, mudava a opinião sobre a natureza do feto, passando da concepção de simples porção do corpo da gestante à posição de um ser autônomo, com vida própria, apenas transitoriamente ligado, pelas deficiências de uma fase de sua evolução, ao organismo materno. É como a um ser humano que as legislações penais estendem hoje a sua proteção sobre o feto. (BRUNO, 1976, p. 157).

 Ou seja, a criminalização do aborto no nosso ordenamento está sempre relacionada ao modo como a sociedade brasileira enxerga o nascituro. Ao admitirmos que o ser intra-uterino é dotado de vida humana, assim como o ser já nascido, a consequência lógica é a tipificação da prática abortiva como crime.

Em sentido oposto ao nosso, alguns sistemas jurídicos de outros países descriminalizaram a prática abortiva, como, por exemplo, os Estados Unidos, que, desde 1973, a partir do precedente firmado pela Suprema Corte no julgamento do caso Roe vs Wade, passaram a autorizar a prática abortiva em todos os seus estados.

O paradigma norte-americano se baseia na ideia de que a proibição do aborto violaria os direitos à privacidade da gestante, e, por isso, a conduta foi descriminalizada quando realizada no primeiro trimestre da gestação.

Esse entendimento, no entanto, não cabe em nosso sistema jurídico, pois, no ordenamento normativo dos Estados Unidos, percebe-se uma relativização do direito à vida que não encontra espaço no Brasil, tanto que, no sistema norte-americano, a pena de morte é aplicada em alguns estados, enquanto nossa Constituição veda esta prática, com exceção feita somente aos tempos de guerra.

Ou seja, no direito norte-americano a liberdade da mulher seria um valor jurídico com maior expressão do que a vida do nascituro, entendimento que não é acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, embora seja defendido por algumas correntes doutrinárias e por movimentos feministas.

Nesse sentido, como o presente estudo busca realizar uma análise do sistema jurídico vigente em nosso país, a partir das regras e princípios da nossa Constituição, a menção ao sistema norte-americano é feita apenas para ilustrar, sendo irrelevante para o fim proposto neste trabalho, que busca analisar um tipo penal previsto no Código Penal Brasileiro à luz das disposições previstas na Constituição que se encontra em vigor em nosso país.

3.2.3. Sujeitos do delito e objeto jurídico

Como já vimos, o aborto pode ser provocado pela própria gestante (auto-aborto, Código Penal, artigo 124, primeira parte), por terceiro com consentimento da gestante (art. 124, segunda parte, e art. 126) ou por terceiro sem o seu consentimento (art. 125). Assim, o bem jurídico tutelado depende de cada caso, sendo certo apenas que a vida do nascituro está protegida por todos esses tipos penais. O óvulo, embrião ou feto implantado no útero materno é também o objeto material do delito, aquele sob o qual recai a conduta delitiva.

No auto-aborto, estamos diante de uma situação em que o único bem jurídico tutelado é a vida do nascituro, que é, portanto, o sujeito passivo do delito, enquanto a gestante é o único sujeito ativo possível, pois se trata de um crime de mão própria.

No aborto praticado por terceiro sem o consentimento da gestante, além da vida intra-uterina, procura-se tutelar também a integridade física e psíquica da mulher. Nesse caso, o sujeito ativo é o terceiro que executa a prática abortiva (que pode ser qualquer pessoa, o que configura crime comum), enquanto a grávida e o nascituro são sujeitos passivos.

Já no aborto praticado por terceiro com consentimento da gestante, esta e o terceiro são os sujeitos ativos, enquanto o nascituro é o único sujeito passivo. O bem jurídico tutelado nesse caso volta a ser apenas a vida humana do ser que ainda está por nascer.

Por fim, é importante destacar que, conforme prevê o artigo 127 do Código Penal (aborto qualificado), se, no abortamento provocado por terceiro (mesmo que consentido), a gestante morrer ou sofrer lesão corporal grave, ela também se torna sujeito passivo do delito.

  Vejamos ensinamento de Luiz Régis Prado:

É, pois, o nascituro portador do bem jurídico vida humana dependente. A mãe somente figurará como sujeito passivo do delito quando se atente também contra sua liberdade (aborto não consentido) ou contra a sua vida ou integridade pessoal (aborto qualificado pelo resultado), como bens jurídicos mediatos. Nos demais casos (auto-aborto/aborto consentido/aborto consensual), porém, não será a mulher, a um só tempo, sujeito ativo e passivo, pois não há crime na autolesão. (RÉGIS PRADO, 2002, p. 95).

 Assim, conforme mencionado anteriormente, a criminalização da conduta abortiva se relaciona sempre com a percepção que uma determinada sociedade possui acerca do produto da concepção. Nosso ordenamento, claramente, considera o nascituro como ser possuidor de vida humana e, justamente em razão disso, o delito de aborto está elencado no rol de crimes contra a vida do Código Penal. Não obstante esta previsão topográfica no estatuto repressivo, ampla maioria da doutrina brasileira também comunga do mesmo entendimento, como podemos perceber na lição de Luiz Régis Prado transcrita acima.

Para ilustrar, vejamos também o entendimento de Fernando Capez:

No auto-aborto só há um bem jurídico tutelado que é o direito à vida do feto. É, portanto, a preservação da vida humana intra-uterina. No abortamento provocado por terceiro, além do direito à vida do produto da concepção, também é protegido o direito à vida e a incolumidade física e psíquica da própria gestante. (CAPEZ, 2007, p. 111, grifos nossos)

Assim, não há que se falar em outra condição para o nascituro que não a de possuidor de vida humana. Uma vida que, apesar de existente apenas no útero materno ainda, deve gozar da mesma proteção que a do ente já nascido, uma vez que o Código Penal protege ambas no mesmo capítulo, que dispõe sobre os crimes contra a vida.

Como já vimos no decorrer deste estudo, a criminalização das condutas que atentam contra a vida humana se configura como um mecanismo de garantia da inviolabilidade do direito à vida, prevista no art. 5ª da Constituição Federal. Dessa maneira, ao considerar que o nascituro goza do mesmo direito que o já nascido possui de ter sua vida preservada, a legislação penal consagra o entendimento de que a Constituição Federal garante, em seu rol de direitos individuais, o direito à vida em qualquer estágio, independente de intra ou extra-uterina.

Conforme demonstrado no início deste trabalho, a Constituição da República possui caráter norteador de todo o ordenamento jurídico e deve orientar o legislador, o intérprete e o aplicador do direito a sempre obedecerem suas disposições. É exatamente por isso que a vida humana (e agora já sabemos que não somente a do ente nascido, como também a do nascituro) se configura como direito inviolável, uma vez que sua inviolabilidade é garantida por uma cláusula pétrea da Lei Maior. É essa garantia que o Código Penal vem assegurar ao tipificar os delitos de homicídio; instigação, induzimento e auxílio a suicídio; infanticídio e aborto.

Tudo isso que defendemos nestes últimos parágrafos se confirma em brilhante manifestação de Luiz Régis Prado, que não poderíamos deixar de citar:

O direito a vida, constitucionalmente assegurado (art. 5º, caput, CF), é inviolável, e todos, sem distinção, são seus titulares. Logo, é evidente que o conceito de vida, para que possa ser compreendido em sua plenitude, compreende não somente a vida humana independente, mas também a vida humana dependente (intra-uterina). (RÉGIS PRADO, 2002, p. 94).

Tendo em vista tudo o que foi demonstrado, acrescido do entendimento de renomados juristas, é possível que afirmemos que o nascituro possui o mesmo direito à vida que o ente já nascido, em virtude da obediência que toda legislação infraconstitucional deve aos preceitos da Carta Magna. No entanto, o tipo penal aborto apresenta situações em que não há previsão de pena para o agente que o pratica. São as chamadas hipóteses de aborto legal, que serão abordadas a partir de agora.

3.3 Quando o aborto não é passível de punição

  Assim dispõe o artigo 128 do Código Penal: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Segundo essa disposição, temos, no inciso I, o chamado aborto necessário ou terapêutico, enquanto o inciso II nos traz o aborto chamado pela doutrina de sentimental ou humanitário (ou ainda ético, para alguns autores). São as hipóteses onde o agente que pratica a conduta abortiva não está sujeito a pena. É o que se chama de aborto legal. Veremos agora algumas considerações sobre a primeira possibilidade.

 3.3.1 Aborto terapêutico

Conforme entende a doutrina brasileira majoritária, o aborto terapêutico se configura como uma excludente de ilicitude por estado de necessidade, pois a conduta do médico visa afastar do perigo a vida da gestante.

Vejamos o entendimento de Julio Mirabete:

No primeiro caso está previsto o aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza estado de necessidade (...) cabe ao médico decidir sobre a necessidade do aborto a fim de ser preservado o bem jurídico que a lei considera importante (a vida da mãe) em prejuízo do bem menor (a vida do feto). (MIRABETE, 2004, p. 99).

 Assim, temos um conflito entre o bem jurídico “vida da gestante” e o bem “vida do nascituro”. Segundo Mirabete, o ordenamento considerou a vida da mãe como tendo mais relevância. Também é este o posicionamento de Luiz Régis Prado, que argumenta que, como o delito do homicídio tem previsão de pena maior que o aborto, a vida já consolidada da grávida teria proteção jurídica maior que a do ser que ainda não nasceu.

O estado de necessidade encontra-se previsto no artigo 24 do Código Penal, que assim dispõe: “Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias não era razoável exigir-se”. Antes disso o artigo 23, inciso I, já previa o seguinte: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade.”

Assim, quando a gravidez trouxer riscos para a vida gestante, o médico estará acobertado por essa excludente de ilicitude para executar a prática abortiva, visto que estará agindo para garantir direito alheio que, de acordo com a circunstância, não era razoável exigir que fosse sacrificado.

O sacrifício do direito à vida, aliás, nunca é razoável exigir. Por essa razão, o aborto terapêutico realmente configura excludente de ilicitude por estado de necessidade. Nessa situação, o Estado opta por preservar a vida da mãe em detrimento da vida do nascituro pela simples razão de que a primeira já estava consolidada e independente, enquanto a segunda, embora seja uma vida diferente, quando existente apenas dentro do útero materno se torna extremamente dependente da saúde da mãe para sobreviver.

Não obstante, não seria razoável preservar a vida do nascituro e deixar a gestante morrer, já que, nesse cenário, nasceria uma criança sem mãe. Uma criança que, possivelmente, poderia ter problemas de saúde em razão da gravidez conturbada, e ainda teria que enfrentar as dificuldades do crescimento sem a companhia materna. Além disso, é possível também que essa mulher sacrificada tivesse outros filhos que dependessem dela, ou então pais, marido e amigos que sentiriam sua falta. Enfim, na hipótese em que somente uma das vidas poderia ser preservada, a escolha lógica do médico deve ser pela gestante. É por isso que, nessa situação, podemos afirmar que a vida da mãe se configura como um bem jurídico mais valioso que a do nascituro.

Essa escolha, no entanto, não quer dizer de forma alguma que a vida intra-uterina não tenha valor. Apenas trata-se de uma situação extrema, em que a gravidez irá ocasionar a morte da gestante, e não sabemos nem se o nascituro conseguirá sobreviver. Assim, o legislador optou pelo lógico: salvar aquela que tem mais chances de se manter viva. O aborto terapêutico garante, portanto, a inviolabilidade do direito à vida da gestante. Ou seja, é uma norma perfeitamente constitucional.

Este entendimento de que a escolha pela vida da gestante não quer dizer que a vida do nascituro seja desprovida de valor e proteção jurídica é confirmado pela doutrina, que se utiliza dos mesmos argumentos utilizados nos parágrafos anteriores para justificar a conduta abortiva. Ademais, os doutrinadores são categóricos em afirmar que o aborto deve ser a única forma de salvar a vida da mãe, sendo inadmissível a prática abortiva para evitar que a gestante venha a ter alguma complicação futura que não venha a acarretar sua morte, visto que a vida do nascituro é um bem jurídico mais importante que a saúde da grávida, por força do disposto no artigo 5º da Constituição Federal.

Para ilustrar o posicionamento doutrinário, vejamos a lição de Fernando Capez:

Observe-se que não se trata tão-somente de risco para saúde da gestante; ao médico caberá avaliar se a doença detectada acarretará ou não risco de vida para a mulher grávida. Ele, médico, deverá intervir após o parecer de dois outros colegas, devendo ser lavrada ata em três vias, sendo uma enviada ao Conselho Regional de Medicina e outro ao diretor clínico do nosocômio onde o aborto foi praticado. (CAPEZ, 2007, p. 125, grifos nossos)

Assim, vemos que não basta mero risco à saúde da gestante. O risco tem que ser de morte, e é necessário ainda o parecer de outros dois médicos, o que demonstra mais uma vez que o aborto terapêutico só deve ser utilizado em caso extremo, quando não houver outro meio de salvar a vida da mulher grávida. O médico deve, até o último instante, buscar preservar as duas vidas. Quando não houver mais possibilidade, aí sim fará o procedimento para salvar a mãe, devido a todos os motivos já elencados.

Dessa maneira, podemos afirmar que a modalidade prevista no inciso I do artigo 128 do Código Penal busca garantir a inviolabilidade do direito à vida da gestante, que corre risco devido à gravidez. Atende-se, portanto, ao mandamento constitucional do artigo 5º da Carta republicana.

A outra modalidade de aborto legal é a prevista no inciso II do mesmo artigo 128, o chamado aborto humanitário, realizado em casos de gravidez que se originam a partir de um estupro. Como podemos perceber, nessa situação a vida da gestante não está em risco. Ou seja, o bem jurídico que o ordenamento busca preservar é outro, que não a vida humana. Por ser um instituto cercado de controvérsias, merece tratamento especial, que será dado mais adiante. Antes, porém, falaremos um pouco sobre uma nova espécie de aborto, recentemente considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal: o aborto de fetos anencéfalos.

3.3.2 Aborto de fetos anencéfalos: a decisão do STF na ADPF 54/2004

Segundo a literatura médica, a anencefalia é definida como a má-formação do cérebro e do córtex do feto, havendo apenas um "resíduo" do tronco encefálico. Segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), esta anomalia provoca a morte de 65% dos bebês ainda dentro do útero materno e, quando conseguem chegar ao nascimento, há sobrevida de apenas algumas horas, ou, no máximo, alguns poucos dias.

Nesse cenário, estamos diante de uma gravidez em que não há a menor expectativa de vida para o produto da concepção, situação em que levar a gestação até o fim serviria apenas para provocar um sofrimento irreparável na gestante. Em razão disso, a CNTS ajuizou, no ano de 2004, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, provocando o Supremo Tribunal Federal a manifestar-se sobre a descriminalização da prática abortiva em situações de gestação de feto anencéfalo.

A ADPF é uma ação constitucional proposta exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental estabelecido pela Constituição, resultante de ato do poder publico, ou então questionar a constitucionalidade de alguma norma que, supostamente, desrespeite tal preceito.

Assim, a confederação dos trabalhadores da saúde buscou, através da ADPF 54, questionar os artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que criminalizam a conduta abortiva e dispõe como únicas possibilidades de excludentes de ilicitude os casos de gravidez com risco de vida para a gestante e gravidez decorrente de estupro. Pleiteava a ação que o aborto do anencéfalo fosse descriminalizado, passando a ser considerado como antecipação terapêutica do parto, visto que a tipificação desta conduta como crime descumpriria os preceitos fundamentais da dignidade humana e da proteção à maternidade. No entendimento da CNTS, não há que se falar em aborto conforme o regulado na lei penal, visto que não se trata de eliminação da vida intra-uterina, uma vez que o anencéfalo não possui nenhuma expectativa de sobreviver.

Outra argumentação utilizada foi a invocação do princípio da legalidade, estampado no inciso II do artigo 5º da Constituição, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer nada senão em virtude da lei. Ora, se, conforme o alegado pela CNTS, não podemos falar em aborto quando se tratar de feto anencéfalo, visto que o aborto é um crime contra a vida e nesse cenário não há expectativa alguma de sobrevivência, não pode haver criminalização de uma conduta que não estaria prevista, uma vez que a lei penal se refere a aborto e a conduta objeto da ADPF seria antecipação terapêutica do parto, segundo entendimento dos proponentes.

Em suma, a CNTS alegava que o anencéfalo não tem condições nenhuma de sobreviver, e como o Código Penal, ao criminalizar o aborto, busca a preservação da vida humana, a interrupção da gestação de feto anencefálico não poderia de forma alguma ser considerada crime.  

Embora a ADPF tenha sido proposta em 2004, o processo teve seu julgamento iniciado apenas no dia 11 de abril de 2012, sendo encerrado no dia seguinte, com a vitória da tese levantada pela CNTS, por oito votos a dois. Na ocasião, a Corte era formada pelos Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Carmem Lúcia, Rosa Maria Webber, Luiz Fux e Dias Toffoli.

A manifestação favorável de grande maioria da Corte demonstrou que o Supremo compartilha do entendimento de que o aborto de feto anencéfalo sequer pode ser considerado aborto, visto que este é um crime contra a vida e o anencefálico jamais terá vida em potencial. Assim, prevaleceu a teoria de que a interrupção da gestação em casos de anencefalia não é conduta abortiva, e sim antecipação terapêutica do parto.

O foco central do voto de todos os ministros foi o direito constitucional à vida garantido ao nascituro. Os oito que votaram a favor da tese levantada pela CNTS alegaram que a descriminalização da interrupção antecipada do parto em casos de anencefalia não viola este preceito, visto que o feto anencéfalo não tem expectativa alguma de vida e a morte ocorre em 100% dos casos, sendo a maioria dentro ainda do útero materno.

O relator do processo, ministro Marco Aurélio de Mello, considerou que “anencefalia e vida são termos antitéticos”. Segundo ele, não há conflito entre direitos fundamentais, uma vez que não há qualquer possibilidade do feto anencéfalo sobreviver fora do útero. Em seu voto, o relator sustentou que a arguição proposta pela CNTS não se refere à descriminalização do aborto, uma vez que existe uma clara distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. Nas palavras do ministro, “Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível”. Ele destacou ainda que não se trata realmente de um nascituro, mas sim de um natimorto.

 Na mesma linha se posicionou Celso de Melo, que afirmou o seguinte: “Se não há, na hipótese, vida a ser protegida, nada justifica a restrição aos direitos da gestante”. O ministro mencionou em seu voto a Lei 9.434/97 e a Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, que consideram a morte do ser humano como o momento em que se encerra completamente sua atividade cerebral, ou seja, a morte encefálica. Segundo ele, seria perfeitamente possível fazer uma analogia no sentido de afirmar que o anencéfalo não é um ser humano vivo, pois não possui cérebro e jamais desenvolverá atividade cerebral. Dessa maneira, não existe crime de aborto possível, pois este é um delito contra a vida e, segundo suas palavras, “se não há vida a ser protegida, não há tipicidade”.

Seguindo a mesma tendência, a ministra Rosa Maria Weber afirmou que a anencefalia não é compatível com as características de compreensão de vida para o Direito e por isso a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não pode ser considerada aborto, visto que não é crime contra a vida. A ministra, assim como Celso de Mello, fez alusão à questão da falta de atividade cerebral do feto, relembrando o conceito de morte para o Conselho Federal de Medicina. Carmem Lúcia, por seu turno, fez a seguinte afirmação: “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família [mãe, pai] no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.

E essa foi a tendência da maioria dos ministros. Os únicos a votarem contra o requerido pela CNTS foram Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O primeiro, argumentou que o Supremo não pode criar uma nova possibilidade jurídica, uma vez que isto é atribuição do legislativo. Já o segundo, defendeu a tese que o anencéfalo também é sujeito de direitos, e, por isso, destinatário do direito constitucional à vida. Segundo suas palavras, “A vida não é um conceito artificial criado pelo ordenamento jurídico para efeitos operacionais. A vida e a morte são fenômenos pré-jurídicos das quais o direito se apropria para determinado fim”.

No mais, Luiz Fux, Ayres Britto e Joaquim Barbosa votaram favoravelmente a tese da CNTS, afirmando que não se trata de aborto, e sim de interrupção antecipada do parto, visto que o anencéfalo não tem chance alguma de ter vida viável. Gilmar Mendes também se posicionou a favor da descriminalização da conduta, no entanto entendeu que se trata de aborto sim, porém deve ser enquadrado como hipótese de excludente de ilicitude. Assim foi construído o placar de 8 a 2. O ministro Dias Toffoli não votou, pois se declarou impedido em razão de ter trabalhado no parecer da Advocacia-Geral da União em favor do pleiteado, na época em que era o advogado-geral.

Outro ponto que merece destaque neste julgamento é a sustentação do então advogado Luís Roberto Barroso, atual Ministro do Supremo e patrono da CNTS naquele feito. Na ocasião, Barroso que afirmou não se tratar de caso de aborto, uma vez que este tipo penal pressupõe vida, o que é impossível em casos de ancenfalia. Nesse cenário, só estão em jogo os direitos fundamentais da gestante. Segundo suas palavras, “A mulher não sairá da maternidade com um berço. Sairá da maternidade com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para cessar o leite que produziu para ninguém. É uma tortura psicológica”. Ele afirmou ainda que todas as autoridades médicas garantem que o diagnóstico de anencefalia é 100% certo e a letalidade ocorre em 100% dos casos, conforme documentos anexados aquele processo.

Ou seja, todo o julgamento se pautou pela questão do direito constitucional à vida. A tese levantada pela CNTS foi de que não há vida viável para o nascituro, e foi essa a argumentação de todos os ministros que votaram a favor da descriminalização. O Código Penal protege a vida, é um verdadeiro mecanismo de efetivação deste direito fundamental positivado no 5º artigo da Lei Maior. Assim, não estando esse bem tão valioso em jogo, não há porque haver incidência do instituto do aborto, que, conforme regula o estatuto repressivo, é crime contra a vida humana.

Para alguns ministros, este foi o julgamento mais importante da história da Corte. Um julgamento que, ao descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, reafirmou para toda a sociedade que a Constituição Federal e todo o ordenamento que por ela é comandado protegem a vida humana, que, nesse caso, não estava em jogo. O Supremo, na verdade, não criou uma nova excludente de ilicitude para o aborto, e sim confirmou que este é um crime contra a vida, e como não há vida a ser protegida em casos de anencefalia, a antecipação do fim da gestação não pode ser definida como conduta criminosa.

Já conhecemos, portanto, duas possibilidades em que a gravidez pode ser interrompida antes do termo final sem que haja punição para o agente que praticou o procedimento: o aborto terapêutico, quando a gestação traz risco de morte para a gestante, e os casos de fetos anencéfalos, porque nessa situação não há vida a ser protegida (logo, não há aborto). Veremos a partir de agora a outra hipótese prevista em nosso ordenamento jurídico: o aborto humanitário, tema central deste trabalho.

3.3.3. Aborto humanitário

Previsto no inciso II do artigo 128 do Código Penal, o aborto humanitário também é chamado pela doutrina de sentimental ou ético. É a possibilidade da realização de aborto sem punição quando a gravidez se origina a partir de um estupro. É mister que o procedimento seja realizado por médico e precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal, nos casos de incapacidade.

Neste dispositivo, o legislador buscou preservar a gestante de ter que levar adiante uma gestação oriunda de uma violência por ela sofrida. Para a maioria da doutrina, trata-se de uma norma penal não incriminadora excepcional, o que impede a utilização de analogia. Ou seja, o inciso traz requisitos que são de observância obrigatória. Não pode, por exemplo, a própria mulher estuprada praticar o aborto, pois estaria incorrendo na conduta criminosa descrita no artigo 124 da lei penal. Portanto, para os doutrinadores filiados a essa corrente, é indispensável que a prática abortiva seja realizada pelo médico. Como exemplo de adeptos deste entendimento, citaremos o posicionamento de José Frederico Marques:

Aceita que foi, porém, a impunidade dessa forma de aborto, deve-se aplicar a lei, no que diz respeito às exigências nela contidas, com o mais absoluto rigor, só admitindo a licitude da ação, quando preenchidos, irrestritamente, os pressupostos exarados na norma permissiva. Em primeiro lugar, nem a gestante, e muito menos parteiras ou pessoas sem habilitação profissional, podem provocar o aborto para interromper gestação oriunda de estupro. Em segundo lugar, indeclinável é o consentimento da gestante ou de seu representante legal, como antecedente ou prius da operação abortiva. Por fim, indispensável é que o médico tenha elementos seguros sobre a existência do estupro. Faltando um desses requisitos, que seja, o aborto será criminoso. (MARQUES, 1999, p. 219).

Em sentido contrário, temos o entendimento de Rogério Greco, que defende ser possível a realização da conduta por outra pessoa que não o médico, sem que haja responsabilidade criminal. Em sua opinião, é perfeitamente cabível a aplicação de analogia in bonam partem no sentindo de excluir a ilicitude de alguns agentes que venham a praticar o aborto em uma mulher estuprada, quando se tratar de situação extrema. Vejamos exemplo mencionado pelo ilustre autor:

Imagine-se a seguinte hipótese: uma mulher que reside em uma aldeia de difícil acesso, no interior da floresta amazônica, por exemplo, é vítima de um delito de estupro. Não tendo condições de sair de sua aldeia, tampouco existindo possibilidade de receber, em sua residência, a visita de um médico, solicita à parteira da região que realize o aborto, depois de narrar-lhe os fatos que a motivaram ao ato extremo. Pergunta-se: Não estaria também a parteira acobertada pelo inciso II do art. 128 do Código Penal, ou, em decorrência do fato de não haver médicos disponíveis na região, a gestante, por esse motivo, deveria levar sua gravidez a termo, contrariamente à sua vontade? Entendemos, aqui, perfeitamente admissível a analogia in bonam partem, isentando a parteira de qualquer responsabilidade penal. (GRECO, 2007, p. 257)

Ou seja, para Greco é possível, apenas em casos extremos, que outra pessoa diferente do médico realize o aborto. No entanto, a corrente majoritária compartilha do mesmo entendimento que José Frederico Marques: o aborto humanitário é norma penal não-incriminadora excepcional, e por isso não podemos falar em analogia, apenas cumprir os requisitos legais.

Se há entendimentos contrários quanto à obrigatoriedade da conduta ser realizada unicamente por médico, no tocante ao segundo requisito previsto no inciso, referente consentimento da gestante ou de seu representante legal, não há quaisquer controvérsias. Toda a doutrina se manifesta no mesmo sentido: o consentimento é essencial para que o médico possa praticar a conduta abortiva.

Não são raras as hipóteses em que a gestante, mesmo tendo sido estuprada, opta por levar a gravidez até o final. Em muitos casos, o amor por esse filho acaba fazendo a mãe superar o trauma pela violência sofrida. Por outro lado, também não é incomum que a gestante queira realizar o aborto, por entender que não teria condições psicológicas para suportar a gestação. Por essa razão, é de suma importância que essa mulher manifeste sua opinião quanto à interrupção ou não da gravidez. Não pode, de maneira nenhuma, o médico praticar a conduta abortiva sem autorização, pois incorrerá na prática do crime previsto no artigo 125 do Código Penal e estará sujeito a pena de reclusão de 3 a 10 anos.

O consentimento é, portanto, sempre necessário. Quando a gestante for incapaz, quem deverá autorizar a prática do procedimento é seu representante legal. Acerca dessa possibilidade, a doutrina costuma indagar o que fazer quando uma menina incapaz em razão de sua idade deseja prosseguir com a gravidez, enquanto seu representante quer o aborto. Embora haja algumas opiniões contrárias, a maioria dos doutrinadores entende que deve prevalecer o raciocínio pela vida do feto, uma vez que, nesse caso, a própria gestante assume que os danos psicológicos gerados em razão do estupro não são suficientes para justificar a interrupção da gravidez. Assim, segundo Rogério Greco, o consentimento do representante legal deve ser interpretado apenas como uma forma de legitimar a vontade já manifestada pela grávida.

Ainda sobre o consentimento, há na doutrina quem defenda que, embora a autorização seja condição essencial para a realização do aborto, ela não é justificativa jurídica suficiente para excluir a ilicitude da conduta do médico. É essa a posição sustentada por Luis Régis Prado, que não poderíamos deixar de expor:

Em que pese, porém, a exigência expressa do consentimento da gestante ou de seu representante legal para a realização do aborto sentimental ou humanitário, cabe advertir que a exclusão de ilicitude pelo consentimento do ofendido somente pode operar nos delitos em que o único titular do bem ou interesse juridicamente protegido é a pessoa que aquiesce e que pode livremente dispor. Embora o legislador tenha conferido relevância à liberdade de autodeterminação da mulher, o consentimento da gestante não conduz à exclusão da ilicitude do aborto provocado pelo médico, já que essa conduta implica a lesão de um bem jurídico de que ela não é titular e do qual, de consequência, não pode livremente dispor. Com efeito, é o nascituro o titular do bem jurídico tutelado (vida) e, ante a absoluta impossibilidade de obtenção de seu consentimento, não há que se cogitar da exclusão da ilicitude da conduta do médico com base em tal causa de justificação (consentimento de ofendido). (RÉGIS PRADO, 2002, p. 107)

Assim, Régis Prado sustenta que o consentimento da gestante, embora seja requisito indispensável, não pode por si só justificar a exclusão da ilicitude, pois a mulher não é detentora da vida do nascituro. É o mesmo posicionamento defendido por Aníbal Bruno:

A gestante não é o titular do bem jurídico protegido pela incriminação do aborto. O seu consentimento não pode mesmo ser objeto de apreciação para a justificação dessa espécie punível, tanto que uma das suas formas é aquela em que o agente é a própria gestante. (BRUNO, 1976, p. 165)

  Ou seja, se o bem jurídico que a lei penal busca preservar ao incriminar a conduta do aborto é justamente a vida do nascituro, não é razoável que a simples autorização da gestante seja suficiente para permitir a eliminação desta vida. Dessa maneira, se faz de extrema necessidade que haja comprovação que realmente houve estupro, o que não precisa necessariamente emanar de sentença condenatória do estuprador ou então de autorização judicial, podendo ser demonstrada através de boletim de ocorrência, declaração ou outros meios.

Essa comprovação, no entanto, deve ser oriunda de elementos sérios e inequívocos, não podendo haver qualquer dúvida quanto à existência do crime sexual. Quando os médicos não se sentirem seguros sobre a ocorrência do delito de estupro, aí se fará necessário que a gestante busque em juízo autorização para a realização do aborto. Vejamos, como exemplo, jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

PEDIDO DE ABORTO. ESTUPRO. VIOLÊNCIA INDEMONSTRADA. DIREITO DO FETO À VIDA. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL. DIREITO NATURAL. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, visto que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem constitui direito natural inalienável de todo o ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. RECURSO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº 70001010446, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 03/05/2000)

Ou seja, os elementos apresentados sobre a ocorrência do estupro não podem permitir qualquer dúvida sobre sua veracidade, sob pena de impossibilidade de realização do procedimento abortivo, conforme se depreende da decisão acima transcrita. Apenas se estiver comprovado, de forma inequívoca, que realmente houve a violência sexual, o Estado permitirá que a gravidez seja interrompida mediante intervenção médica. Busca-se aí preservar a integridade psíquica e emocional da gestante, com a permissão para que seja eliminada a vida do feto.

Assim, no aborto humanitário, estamos diante de uma hipótese em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida do nascituro para garantir a dignidade de sua mãe. No aborto terapêutico, vimos que se confrontam bens jurídicos iguais (vida da gestante e vida do nascituro) e o ordenamento opta por garantir a vida que, pelas circunstâncias, seria mais razoável preservar. Já na outra hipótese de interrupção antecipada de gravidez sem punição (casos de anencefalia), o Supremo entendeu que não há vida a ser protegida. Ou seja, o aborto humanitário é a única possibilidade em que o direito pátrio permite que a vida seja violada para preservar um bem jurídico menor, o que torna esse instituto muito mais complexo que os demais. Em razão disso, nos aprofundaremos mais sobre essa espécie de aborto no capítulo seguinte.


CAPÍTULO 4. O ABORTO HUMANITÁRIO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

4.1 Estado de necessidade ou inexigibilidade de outra conduta?

  4.1.1 Estado de necessidade

Ao estudarmos o instituto do aborto terapêutico, previsto no inciso I do art. 128 do Código Penal, vimos que a doutrina é unânime ao afirmar que se trata de excludente de ilicitude por estado de necessidade. No tocante ao aborto humanitário, no entanto, há controvérsias sobre a natureza jurídica. Parte da doutrina entende que essa excludente também se aplica a este instituto, porém, a corrente majoritária se manifesta de forma contrária a este entendimento.

Conforme já estudado, o artigo 24 do Código Penal dispõe que o estado de necessidade se configura quando o agente pratica o fato típico para salvar direito próprio ou alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não é razoável exigir. A disposição exige ainda que o perigo seja atual, não provocado pela vontade do agente e impossível de por ele ser evitado.

Assim, vemos que o estado de necessidade é marcado pelo confronto de bens jurídicos protegidos pelo ordenamento. Cabe ao aplicador do direito ponderar qual deles deve prevalecer em relação ao outro. Podemos afirmar que essa ponderação deve ser feita a partir da indisponibilidade de cada direito, tendo como parâmetro sempre os preceitos contidos na Constituição Federal, que é a Lei orientadora de toda a ordem jurídica. Ou seja, se houver conflito entre o direito à liberdade e algum direito patrimonial, por exemplo, podemos perfeitamente afirmar que não seria razoável sacrificar à liberdade, que é direito fundamental e inviolável segundo disposição do artigo 5º da Carta Republicana. Segundo Rogério Greco, o operador do direito deverá colocar os bens jurídicos em uma espécie de balança imaginária para realizar a ponderação. Vejamos sua lição sobre essa excludente:

Quando os bens estão acondicionados nos pratos desta “balança”, inicia-se a verificação da prevalência de um sobre o outro. Surge como norteador do estado de necessidade o princípio da ponderação dos bens. Vários bens em confronto são colocados nessa balança, a exemplo da vida e do patrimônio. A partir daí, começaremos a avaliá-los, a fim de determinar sua preponderância, ou mesmo a sua igualdade de tratamento, quando tiverem o mesmo valor jurídico. (GRECO, 2010, p. 307, grifos originais)

Assim, percebemos que é necessário ponderar sobre qual bem deve prevalecer no caso concreto, para que se possa invocar a excludente do estado de necessidade. Acerca dessa ponderação, existem duas teorias que são indispensáveis que conheçamos: a teoria unitária e a teoria diferenciadora.

Segundo a teoria unitária, para estar caracterizado o estado de necessidade é preciso que o bem que se queira proteger tenha valor jurídico superior ou igual àquele que será sacrificado. É o que se chama de estado de necessidade justificante. Já a teoria diferenciadora traça uma distinção entre esse estado de necessidade justificante e uma outra modalidade: o estado de necessidade exculpante, que poderia ser alegado quando o bem sacrificado tivesse valor menor que o bem protegido. Nessa hipótese, não se afasta a ilicitude da conduta (como na modalidade justificante), mas sim a culpabilidade.

A doutrina majoritária entende que o Código Penal brasileiro, devido à redação do dispositivo contido no artigo 24, adotou a teoria unitária. Vejamos entendimento de Heleno Cláudio Fragoso:

A legislação vigente, adotando a fórmula unitária para o estado de necessidade e aludindo apenas ao sacrifício de um bem que, ‘nas circunstâncias, não era razoável exigir-se’, compreende impropriamente também o caso de bens de igual valor (é o caso do naufrago que, para reter a única tábua de salvamento, sacrifica o outro). Em tais casos subsiste a ilicitude da culpa (inexigibilidade de outra conduta), que a seu tempo examinaremos. (FRAGOSO, 1993, p. 189)

Assim, percebemos que Fragoso descarta se tratar de estado de necessidade a situação em que o bem que se quer proteger for menor que aquele que será violado. Para o jurista, assim como para a maioria da doutrina, a única possibilidade de não haver punição nesses casos é a exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, que também abordaremos mais adiante.

Dessa maneira, podemos afirmar que a lei penal adotou a teoria unitária no que diz respeito ao estado de necessidade. Assim, essa excludente de ilicitude só estaria configurada quando o bem protegido fosse igual ou mais valioso que o bem violado. Retornando ao aborto humanitário, já vimos que se trata de uma hipótese onde a legislação admite que a vida do nascituro seja violada para preservar a honra e a integridade psíquica da mãe. Fica claro, portanto, que não se tratam de bens iguais. Tampouco aquele bem que se quer proteger é mais valioso do que o que será sacrificado. Em razão disso, a grande maioria da doutrina proclama ser impossível falar em estado de necessidade quando se tratar de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro.

Assim sendo, o aborto humanitário não cumpre o requisito objetivo da razoabilidade estampado no artigo 24 do Código Penal, portanto, não há possibilidade de se falar em estado de necessidade, pois, como já vimos neste trabalho, a vida é o principal direito garantido pela Constituição e premissa elementar de todos os outros direitos. Por essa razão, não podemos nunca admitir que uma vida seja sacrificada para preservar outro direito que não seja também direito à vida. É este também o posicionamento defendido por Cezar Roberto Bitencourt, que assim nos ensina:

O princípio da razoabilidade nos permite afirmar, com segurança, que quando o bem sacrificado for de valor superior ao preservado, será inadmissível o reconhecimento do estado de necessidade. No entanto, como já referimos, se as circunstâncias o indicarem, a inexigibilidade de outra conduta poderá excluir a culpabilidade. (BITENCOURT, 1997 p. 279-280)

Assim como Fragoso, Bitencourt afirma que o sacrifício de bem maior para preservar bem menor impede a invocação do estado de necessidade, mas pode, dependendo das circunstâncias, configurar excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta, hipótese que abordaremos em breve.

Partindo, portanto, do princípio da razoabilidade como condição essencial para a aplicação do estado de necessidade, é possível concluir que não há essa excludente de ilicitude quando se tratar de aborto humanitário, pois em hipótese alguma seria razoável sacrificar uma vida para preservar a integridade emocional.

Podemos afirmar com convicção que o direito do nascituro à vida seria mais importante que a integridade psíquica/dignidade de sua mãe em razão de tudo que já estudamos no decorrer deste trabalho. Já vimos que a vida é o principal direito garantido pelo ordenamento jurídico e premissa fundamental de todos os outros direitos. Vimos também que esse direito alcança tanto o individuo já nascido quanto a vida intra-uterina, e vimos que o legislador penal buscou, na criminalização do aborto, uma forma de efetivar esse direito inviolável. Dessa maneira, não é razoável sacrificar a vida humana para preservar outro direito menor, o que impede a invocação do estado de necessidade para excluir a ilicitude do aborto humanitário. É este o entendimento proclamado pela grande maioria da doutrina, conforme demonstra a seguinte lição de Rogério Greco:

Pela redação do art. 24 do Código Penal, somente se pode alegar o estado de necessidade quando o sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. (...) Não entendemos razoável no confronto entre a vida do ser humano e a honra da gestante estuprada optar por este último bem. (GRECO, 2007, p. 254-255)

Assim, não nos resta dúvidas de que não há estado de necessidade nas situações de aborto em casos de estupro. Conforme entendimento de todos os penalistas já citados, a situação em que se viola um bem mais valioso para preservar um bem menor só pode escapar da punibilidade se restar comprovada a inexigibilidade de outra conduta. Seria essa a natureza jurídica do aborto humanitário? É o que estudaremos agora.

 4.1.2 Inexigibilidade de conduta diversa

A inexigibilidade de conduta diversa (ou inexigibilidade de outra conduta) é um instituto caracterizado pela exclusão da culpabilidade pela prática de um fato típico, em virtude de, pelas circunstâncias, não haver possibilidade de atuar de outra maneira.

Essa excludente de culpabilidade é muito complicada de ser aferida, em razão de depender de aspectos intrínsecos de cada pessoa. Uma conduta que, para um, seria perfeitamente exigível, para outro pode ser inexigível devido a alguma condição pessoal especial.

Compete acrescentar, outrossim, que a inexigibilidade de conduta diversa é uma excludente de culpabilidade supralegal, visto que sua definição não está prevista de forma expressa no Código Penal, ao contrário das excludentes de ilicitude, como a legitima defesa e o estado de necessidade, que são conceituadas nos artigos 24 e 25 do estatuto repressivo. Assim, embora não haja definição expressa acerca desse instituto, o certo é que o ordenamento jurídico dita parâmetros a serem observados, e, a partir desses parâmetros, devem ser feitos juízos de valoração de cada caso concreto para se chegar a uma conclusão sobre a culpabilidade ou não de determinada conduta.

Este é um instituto, portanto, que atua no campo da culpabilidade, enquanto o estado de necessidade, já estudado, atua no campo da ilicitude. Quem alega inexigibilidade de conduta diversa tem plena consciência de que praticou fato tipificado como crime, no entanto busca a exclusão de sua culpabilidade em razão dos fatores que o influenciaram a agir de tal forma.

Vejamos a definição do jurista Leonardo Isaac Yarochewsky:

Sendo a exigibilidade de comportamento conforme o Direito um dos elementos da culpabilidade, a sua ausência manifestada pela inexigibilidade exclui, portanto, a culpabilidade, do mesmo modo que a inimputabilidade e a falta da consciência da ilicitude também a excluem. Assim, o agente pode praticar uma ação típica, ilícita, sem conduto ser culpável por estar amparado por uma das causas que excluem a culpabilidade, dentre elas a inexigibilidade de outra conduta. (YAROCHEWSKY, 2000, p. 46)

Assim, uma conduta criminosa pode ser justificada mediante a invocação da inexigibilidade de conduta diversa. Nesse cenário, estando comprovado que não havia mesmo a possibilidade de agir de outra forma, fica afastada a culpabilidade e não há que se falar em responsabilidade criminal.

A maioria da doutrina proclama que o aborto em casos de estupro se configura como uma situação de inexigibilidade de outra conduta, visto que seria inaceitável que o Estado obrigasse a mulher a carregar em seu ventre um feto oriundo de uma relação sexual forçada. Assim, a única conduta esperada por essa mulher seria autorizar que o médico realizasse o procedimento abortivo, não podendo haver culpabilidade diante de situação tão delicada.

É este o entendimento da grande maioria dos doutrinadores penalistas. Fernando Capez, por exemplo, afirma que o Estado não poderia obrigar a mulher a gerar um filho que é fruto de um a violência sexual, uma vez que isso lhe pode causar graves danos psicológicos. Julio Mirabete vai além e conclui que, além dos danos que a gestação por si só acarretaria, frequentemente o autor do estupro é uma pessoa degenerada e anormal, o que pode provocar problemas ligados à hereditariedade.

Por mais assustador que possa parecer o argumento de Mirabete, ele tem o intuito de deixar claro que não se pode exigir da mulher violentada outra conduta que não o aborto, assim como Capez faz ao invocar os danos psicológicos que essa gestação traria a grávida. Nelson Hungria, por sua vez, afirma que nada pode justificar que se obrigue uma mulher violentada a aceitar uma maternidade que, segundo suas palavras, seria odiosa e daria vida a um ser que lhe fará sempre lembrar do estupro.

Por fim, concluímos com Rogério Greco:

Entendemos, com a devida vênia das posições em contrário, que, no inciso II do art. 128 do Código Penal, o legislador cuidou de uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, não podendo exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção de sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será típico e ilícito, mas deixará de ser culpável (GRECO, 2010, p.399)

Assim, a mulher que engravida ao ser vítima de estupro, ao optar por interromper a gravidez, estaria, na opinião da doutrina majoritária, acobertada pela excludente de culpabilidade por inexigibilidade de outra conduta. Seria essa, portanto, a natureza jurídica do aborto humanitário.

No entanto, já vimos no início deste estudo que qualquer construção jurídica deve obediência aos comandos da Constituição Federal. Assim sendo, à luz dos preceitos da Carta Magna, será que esta seria realmente uma situação onde não se pode exigir outra conduta? É isso que estudaremos a partir de agora.

4.2 Uma análise à luz da Constituição Federal

 4.2.1. O instituto da Recepção e a Constituição do Estado Novo

Conforme já introduzido neste estudo, o fenômeno da recepção ocorre quando uma norma infraconstitucional, editada sob a vigência de uma Constituição que já não está mais em vigor, apresenta compatibilidade material com a Constituição atual. Nessa situação, a norma em questão permanece válida, por ter sido recepcionada. Por consequência, se a referida disposição legal for incompatível com a Carta Federal vigente, não terá ocorrido a recepção e a norma deve ser afastada do mundo jurídico.

Essa norma não recepcionada pode ser afastada simplesmente por deixar de ser aplicada, sem a necessidade da intervenção do poder judiciário, ou então através do controle judicial de constitucionalidade, que pode ocorrer pela via difusa, com a declaração de inconstitucionalidade sendo proferida por qualquer magistrado que se deparar com uma situação fática a ele submetida que enseje a aplicação da referida norma, ou pela via concentrada, quando a inconstitucionalidade é declarada pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo de ações próprias para esse fim, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade e a Ação Declaratória de Constitucionalidade, ambas previstas no artigo 102, inciso I, alínea “a”, da Carta Federal de 1988.

Entender o instituto da recepção é fundamental para este trabalho, visto que seu objetivo central é realizar uma análise sobre a constitucionalidade do artigo 128, inciso II, do Código Penal, que é uma legislação datada de 07 de dezembro de 1940, época em que vigorava em nosso ordenamento a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937, também chamada de Constituição do Estado Novo, que vigorou até 1946.

A Constituição de 1937 foi uma carta outorgada, com claras inspirações totalitárias e sem maiores preocupações com os direitos fundamentais, conforme nos ensinam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino:

Como se vê, foi uma carta outorgada, fruto de um golpe de Estado. Era Carta de inspiração fascista, de caráter marcadamente autoritário e com forte concentração de poderes nas mãos do Presidente da República. A Constituição de 1937, frequentemente chamada de “Constituição Polaca” (alusão à Constituição polonesa de 1935, que a teria inspirado), embora contivesse um rol de pretensos direitos fundamentais, não contemplava o princípio da legalidade, nem o da irretroatividade das leis. Não previa o mandado de segurança. Possibilitava a pena de morte para crimes políticos e previa a censura prévia da imprensa e demais formas de comunicação e entretenimento, dentre outras disposições restritivas inteiramente incompatíveis com um verdadeiro Estado Democrático de Direito. (PAULO e ALEXANDRINO, 2011, p.28-29, grifos nossos).

Além da lição acima, compete destacar que, no tópico referente aos direitos e garantias individuais da Carta de 1937, não se encontrava a previsão de proteção do direito à vida, mas tão somente à liberdade, à segurança individual e à propriedade, como se percebe pela redação de seu artigo 122:

Art, 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes (...)

Ou seja, enquanto o caput do artigo 5º da atual Constituição elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança, o dispositivo correspondente da Constituição de 1937 não inseriu vida e igualdade neste rol, deixando claro que se tratava de um sistema normativo que não colocava a vida como principal bem jurídico a ser protegido, tanto que admitia a pena de morte para crimes políticos, algo inconcebível nos tempos atuais.  

Desse modo, considerando tratar-se de ordenamento completamente distinto do atual, que não atribua tanto valor a vida humana como agora, é natural que não tenha havido maiores preocupações com as proteções ao nascituro na ocasião de tipificar o delito do aborto, motivo pelo qual o artigo 128, inciso II, do Código Penal demonstra ser compatível com o sistema jurídico vigente em 1940, data em que o referido dispositivo entrou em vigor.

No entanto, com o advento da Constituição de 1988, toda a ordem legal preexistente precisou ser compatível com o novo ordenamento para permanecer válida. Assim, considerando que o sistema normativo instaurado em 1988 consagra a vida como principal bem jurídico tutelado pelo Direito, como demonstrado a exaustão nesse trabalho, buscamos compreender se o artigo 128, inciso II, do Código Penal foi ou não recepcionado pela Carta Vigente, o que, em breve, será esclarecido.

4.2.2. O alcance dos direitos fundamentais na Constituição de 1988

Vamos, nesse momento, relembrar alguns conceitos vistos no início deste trabalho que se fazem de extrema importância para que realizemos uma abordagem constitucional sobre o aborto humanitário, a partir de conceitos estabelecidos pela Constituição vigente

O título II da Constituição Federal de 1988 dispõe sobre os direitos e garantias fundamentais, que já vimos se tratar de cláusulas pétreas, visto que impossíveis de serem abolidos do ordenamento (não pode existir projeto de emenda constitucional que suprima essas disposições). Dessa maneira, não devemos ter receio algum em afirmar que os direitos fundamentais possuem um caráter diferenciado na nossa ordem jurídica.

O artigo 5º da Carta Federal elenca como fundamentais os direitos à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade e à segurança. São direitos invioláveis, conforme demonstra a redação do dispositivo. Ademais, já sabemos que a Constituição Federal é fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico, devendo ser encarada como diploma orientador de todo o direito. Assim, não pode haver norma alguma que contrarie preceito constitucional, quanto mais ainda preceitos que a Lei Maior elencou como fundamentais.

O Código Penal, em seu artigo 124, tipifica como crime a realização de conduta abortiva. Esse dispositivo, por sua vez, está elencado no título referente a crimes contra a vida do estatuto repressivo. Como vimos que toda a legislação infraconstitucional busca efetivar os direitos garantidos pela constituição, é lógica a conclusão de que os direitos fundamentais previstos na Carta Magna alcançam tanto o sujeito já nascido quanto o nascituro, visto que o direito o considera como possuidor de vida, que é um direito fundamental estampado no 5º artigo da Lei Maior.

Noutro giro, o próprio Código Civil consagra a tutela jurídica do nascituro, conforme se depreende de seu artigo 2º, que põe seus direitos a salvo desde o momento de sua concepção. Como é a Constituição que orienta toda a interpretação e aplicação dos demais ramos do direito, fica claro que as disposições constitucionais fundamentais alcançam a vida intra-uterina.

Assim, será premissa das próximas abordagens que são destinatários dos direitos fundamentais tanto o já nascido quanto o nascituro.

4.2.3 Quando a lei permite a violação da vida

Já sabemos que a vida é direito fundamental inviolável, que deve ser preservado por todos os ramos do Direito. O Código Penal, dessa forma, se configura como o principal meio de garantir este direito, ao criminalizar condutas atentatórias à vida humana, conforme positivado no capítulo I do título I da parte especial do referido diploma. Entretanto, esse mesmo estatuto repressivo admite, em alguns casos, que esse direito seja violado sem haver punição para o violador. São hipóteses onde há exclusão da ilicitude da conduta ou exclusão da culpabilidade do agente.

O artigo 23 da lei penal assim dispõe: “Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.” São as situações de excludente de ilicitude, em que o agente pratica fato definido como crime, mas, devido às circunstâncias, a lei considera lícita a conduta e exime o sujeito de responsabilidade criminal.

Sobre o estado de necessidade, já discorremos algumas considerações. Sabemos, por exemplo, que é possível invocar essa excludente quando o bem jurídico protegido for de valor jurídico maior, ou no mínimo igual, ao bem violado. Assim, uma vida humana só poderia ser violada sob a guarita dessa excludente se fosse pra proteger outra vida humana. Respeita-se, dentro das circunstâncias, o disposto no 5º artigo da Constituição, que protege o direito à vida, visto que, no caso concreto, se salva apenas uma porque não há possibilidade de salvar as duas. Já vimos também que essa excludente é a natureza jurídica do aborto terapêutico, conduta prevista no inciso I do art. 128 do Código Penal.

A hipótese prevista no inciso III do supracitado artigo 23, que se refere a estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular do direito, exclui a ilicitude apenas de conduta que não atentem contra a vida humana. Ninguém poderá matar alguém e invocar esta excludente, pois não existe profissional algum em nosso Estado Democrático de Direito que tenha o dever legal de matar. Vejamos, para ilustrar, trecho de decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Espírito Santo:

Não age ao abrigo da excludente do estrito cumprimento do dever legal o policial que, a título de fazer averiguação, atira na vítima pelas costas quando esta, temerosa de uma possível detenção, se afastava a correr (Rel. Desembargador José Eduardo Grandi Ribeiro: RT 644/311)

Justamente por ser o direito à vida inviolável, por força da disposição imutável do artigo 5º da Constituição, é que nosso ordenamento veda a pena de morte. Dessa forma, na nossa ordem jurídica não existe o dever legal de matar. Por essa razão, a excludente prevista no inciso III do art. 23 só incidirá sobre outros delitos, que não atentem contra a vida humana.

A outra excludente prevista no artigo 23 é a legitima defesa, assim definida pelo Código Penal em seu artigo 25: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.”

Dessa forma, o agente que praticar fato definido como crime poderá se eximir da responsabilidade criminal se comprovar que agiu nas condições previstas no artigo 25. Conforme se depreende da disposição legal, a agressão que se vai repelir deve ser atual ou iminente, e os meios utilizados devem ser moderados.

Percebemos a existência do requisito objetivo “moderação”, o que quer dizer que o agente não pode se utilizar de meios desproporcionais para se defender, sob pena de responder pelo excesso, conforme disposição do parágrafo único do artigo 23, que assim determina: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.”

Dessa definição, concluímos ser impossível alegar legitima defesa aquele que repele a agressão de maneira desproporcional. Vejamos lição do jurista Assis Toledo:

O requisito da moderação exige que aquele que se defende não permita que sua reação cresça em intensidade além do razoavelmente exigido pelas circunstâncias para fazer cessar a agressão. Se, no primeiro golpe, o agredido prostra o agressor tornando-o inofensivo, não pode prosseguir na reação até matá-lo. (ASSIS TOLEDO, 1994, p.204)

Assim, percebemos que a legítima defesa é mais uma das possibilidades em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. No entanto, a redação legal é clara ao dispor que a reação à agressão não pode ser desproporcional. Assim sendo, e conforme manifestação doutrinária de Assis Toledo, podemos afirmar que o agente só poderá matar em legítima defesa se acreditar fielmente que a agressão que lhe é imposta coloca a sua vida em perigo.

Esse entendimento da doutrina também se manifesta na lição de Rogério Greco:

Raciocinemos com a legítima defesa: se alguém está sendo agredido por outrem, a lei penal faculta que atue em sua própria defesa. Para tanto, isto é, para que o agente possa afastar a ilicitude da sua conduta e ter ao seu lado a causa excludente, é preciso que atenda, rigorosamente, aos requisitos de ordem objetiva e subjetiva previstos no art. 25 do Código Penal. (GRECO, 2010, p.343)

Assim, tal qual no estado de necessidade, a legitima defesa é um instituto onde o ordenamento, em caráter excepcional, permite que a vida de uma pessoa (o agressor) seja violada sem haver punição para o agente violador (agredido inicialmente). No entanto, conforme posicionamento doutrinário demonstrado e segundo a regra inserida no parágrafo único do artigo 23 do estatuto penal, podemos afirmar que o agredido só pode matar o agressor se julgar que sua vida corre risco em razão da agressão, e se essa for a única forma de se defender, sob pena de ser responsabilizado por atuar de forma desproporcional.

Desse modo, percebemos novamente que há confronto entre bens jurídicos iguais, a vida do agredido e a vida do agressor, situação em que o ordenamento opta por preservar aquele que não deu causa à situação inicial de violência. Portanto, da mesma forma que no estado de necessidade, a ordem legal permite a violação da vida para preservar justamente o direito à vida, inviolável segundo preceito constitucional do 5º artigo da Carta Federal.

Em seara de exclusão de ilicitude, são essas as possibilidades em que a lei permite a não punição da conduta atentatória à vida. Há, ainda, as situações de exclusão de culpabilidade, em que a doutrina insere o aborto humanitário. São os casos onde se entende que, devido às circunstâncias do caso concreto, não é possível culpar o agente que praticou o ato ilícito.

A culpabilidade é definida pela doutrina como o juízo de reprovação pessoal realizado sobre uma conduta típica e ilícita praticada pelo agente, ou seja, uma conduta definida como crime pelo Código Penal. Segundo ensina Rogério Greco, esse juízo de censura deve ser realizado de forma individual, visto que cada pessoa tem seus aspectos individuais que devem ser levados em conta para aferir sua culpabilidade.

Considera-se como elementos da culpabilidade os seguintes: imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato, e exigibilidade de conduta diversa. Os dois primeiros requisitos se referem às condições pessoais do agente, o que quer dizer que o sujeito definido pela lei como inimputável (como os menores de 18 anos) e aquele sem condições psíquicas de entender que está praticando crime (doentes mentais, por exemplo) serão beneficiados pela exclusão da culpabilidade de suas condutas criminosas.

Já a exigibilidade de conduta diversa depende de uma avaliação que deverá conjugar aspectos pessoais do agente com as particularidades do caso concreto em questão. Segundo entende a maioria da doutrina, o aborto humanitário seria um exemplo em que resta caracterizada a inexigibilidade de outra conduta.

Dessa maneira, essa excludente de culpabilidade se diferencia das excludentes de ilicitude já estudadas, uma vez que, nesta, o bem jurídico preservado pode ser menor que o violado, enquanto naquelas vimos que isso não é possível. A Constituição Federal preceitua que o direito à vida é inviolável, o que nos leva, portanto, a indagar se seria constitucional extinguir a culpabilidade de alguém que elimine uma vida para salvar bem jurídico de menor valor. Esperamos encontrar a resposta nos próximos parágrafos.

4.2.4 O aborto humanitário contraria a Constituição?

Alexandre de Moraes, conforme já visto neste trabalho, nos ensina que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, uma vez que é pré-requisito de todos os outros. No mesmo sentido, o professor Cleber Francisco Alves preceitua que, sem a vida, nenhum outro direito chega a existir. Esses entendimentos se fundamentam no texto do 5º artigo da Constituição Federal, que determina que a vida humana é direito inviolável, garantido a todos aqueles que residem em nosso país.

Nessa mesma linha, se posiciona André Ramos Tavares:

Prevê a Constituição Federal, no art. 5º, caput, expressamente, a inviolabilidade do direito à vida. É o mais básico de todos os direitos, no sentido de que surge como verdadeiro pré-requisito de existência dos demais direitos consagrados constitucionalmente. É, por isto o direito humano mais sagrado. (TAVARES, 2008, p.343)

Assim, por ser o topo da pirâmide jurídica e fundamento de validade de todo o direito, a Constituição se configura como o diploma orientador de todo o ordenamento jurídico, sendo vedada a existência de qualquer previsão legal contrária à Lei Maior. As leis infraconstitucionais devem, seguindo os comandos da Carta Republicana, estabelecer mecanismos que assegurem o pleno exercício dos direitos fundamentais contidos no texto constitucional.

O Código Penal, ao criminalizar as condutas atentatórias à vida humana, busca obedecer ao comando do 5º artigo da Constituição: garantir a inviolabilidade do direito à vida. Segundo entendimento já visto de Fernando Capez, um tipo penal que contrariar preceito constitucional deve ser expurgado do ordenamento jurídico.

Diante do exposto, faremos agora uma análise do artigo 128, inciso II, do Código Penal brasileiro, que determina a não punibilidade do aborto praticado em casos de gravidez decorrente de estupro. Essa disposição, batizada pela doutrina de aborto humanitário ou sentimental, teria natureza jurídica de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa.

Podemos afirmar, sem a menor dúvida, que a violência sexual é algo monstruoso para a saúde física e psíquica da mulher. Diante de tal situação odiosa, permite o Direito que a gravidez originada desse estupro seja interrompida, mediante intervenção médica. Como ficam, no entanto, os direitos que o ordenamento jurídico garante ao nascituro? É óbvio que o Estado tem a obrigação de preservar a dignidade dessa gestante vítima de abuso, mas, como tudo na vida, essa situação também comporta outro lado: o lado da vida humana existente dentro de seu útero.

Como já vimos, o ordenamento jurídico garante direitos ao nascituro desde sua concepção, conforme se depreende do artigo 2º do Código Civil, citado há pouco. O Código Penal, por sua vez, faz nascer a presunção absoluta que o nascituro é destinatário do direito fundamental à vida, uma vez que o delito do aborto está elencado justamente no rol dos crimes contra a vida do estatuto repressivo.

A Constituição garantiu a inviolabilidade deste direito fundamental, mas não fez nenhuma menção a respeito de quando ele começa. A lei penal, no entanto, ao tipificar o aborto como crime contra a vida, deixa claro que a preservação deste preceito constitucional se inicia no útero materno. Se a prática abortiva estivesse prevista em outro título do Código Penal, talvez esse trabalho perdesse o sentido. Como não é isso que acontece, não podemos falar em outra condição para o nascituro que não a de destinatário do direito constitucional à vida, por força do disposto nas legislações civil e penal.

Sendo, portanto, destinatário deste direito fundamental, o nascituro merece de nosso ordenamento a máxima proteção possível, assim como o sujeito já nascido. Causa estranheza, então, que possa existir uma construção jurídica que permita a violação deste direito em benefício de outro que, ainda que muito importante, possui menor valor jurídico, já que o direito à vida é o mais importante de todos os direitos, como já estudamos.

No julgamento da ADPF 54, que buscava descriminalizar a interrupção antecipada do parto em casos de fetos anencéfalos, o Ministro Luiz Fux fez uma brilhante observação nesse mesmo sentido, que se torna muito valiosa para nosso trabalho. Segundo suas palavras, “causa espécie, ainda, o fato de o legislador ter previsto, no art. 128, II, do atual Código, a permissão do aborto sentimental, na qual se admite a supressão da vida de um feto sadio como forma de tutelar a saúde psíquica da mulher”.

De fato, a previsão legal do aborto humanitário é, no mínimo, juridicamente estranha. Já abordamos aqui as possibilidades onde o direito prevê a violação da vida humana, e chegamos a conclusão de que em todas elas havia, ao menos presumidamente, outra vida em jogo, o que configura conflito de bens iguais. No aborto em casos de gravidez decorrente de estupro se confrontam bens distintos, e sabemos que a vida é o principal direito garantido pelo ordenamento constitucional. De tal maneira, há fortes indícios de inconstitucionalidade dessa previsão.

A inexigibilidade de conduta diversa, natureza jurídica que a doutrina atribui ao aborto humanitário, não nos parece argumento forte o bastante para permitir a violação da vida, que é o bem maior do nosso Direito. Devido a essa graduação de bens jurídicos, é possível afirmar que um agente poderia invocar exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa apenas quando praticasse delito que não fosse atentatório à vida humana. Não nos parece razoável que matar seja à única conduta possível em qualquer caso que seja, uma vez que a vida é direito constitucional fundamental e inviolável.

 No caso específico da gravidez decorrente de estupro, entendemos que se trata de uma situação extremamente delicada, que pode acarretar sérios danos psicológicos para a gestante. No entanto, a Constituição garante a inviolabilidade da vida, a lei civil coloca o nascituro como destinatário desse direito, e o Código Penal criminaliza o aborto. O conflito de bens jurídicos é claro, mas no Direito é a Constituição que dita as regras, e a regra é a inviolabilidade da vida humana.

A doutrina que se posiciona a favor da constitucionalidade do aborto humanitário costuma invocar o princípio da dignidade humana da gestante, argumento devidamente quebrado no início deste trabalho, quando vimos que o direito à vida é premissa do princípio da dignidade. Ademais, concordamos que a dignidade da gestante será ferida por ter de suportar uma gestação originada de violência sexual, no entanto, apesar de ferida, ela ainda existirá, enquanto o nascituro teria sua dignidade aniquilada ao ter sua vida eliminada pela prática abortiva.

O professor Cleber Francisco Alves, ao comentar a dissertação de mestrado do jurista Fernando Ferreira dos Santos, faz alusão a esse enfoque sobre a dignidade da pessoa humana. Vejamos:

O autor estuda de maneira aprofundada o problema concreto do aborto, partindo da premissa de que existe um conflito entre princípios constitucionais, seja o que assegura à honra da gestante, vítima de estupro, seja o direito à vida do nascituro, ambos em última análise vinculados à dignidade da pessoa humana. Partindo para um critério de proporcionalidade, afirma que a opção do legislador pelo direito à honra da gestante implica na eliminação – pura e simples – do direito à vida do nascituro, daí porque configura solução desmedida, desajustada, excessiva, desproporcional. (ALVES, 2001, p.168, grifos nossos)

Assim, não é juridicamente possível permitir a eliminação de uma vida alegando preservação da dignidade, pois o ser violado também tem uma dignidade a ser preservada. Aliás, somente a preservação da vida pode justificar a eliminação de outra vida, pois não há bem jurídico mais valioso que este em nosso ordenamento. Ademais, no aborto humanitário a eliminação do ser vivo existente no útero tem como fundamento o crime que seu pai cometeu, o que configura uma situação absurdamente desproporcional.

Imaginemos a seguinte hipótese: Uma mulher é violentada, engravida a partir dessa violência e aborta, acobertada pela disposição do art. 128 II do Código Penal. Meses depois, ela reconhece seu agressor na rua, decide se vingar e o mata. Nessa situação não há incidência do instituto da legitima defesa, visto que não se trata de reação à agressão atual ou iminente. Também não há que se falar em estado de necessidade, pois ela não o matou para se salvar de perigo. Ou seja, não há excludente alguma da qual essa mulher possa se beneficiar, o que a fará responder pelo delito de homicídio e ser processada criminalmente. Ou seja, a lei penal não permitiria nesse caso que ela eliminasse à vida do agressor, mas permitiu a morte do nascituro, que nada teve a ver com a agressão.

Não defendemos aqui, de forma nenhuma, a pena de morte. Pelo contrário, nossa defesa é do direito à vida, por ser o principal bem jurídico garantido pela Constituição Federal. O exemplo citado teve o único intuito de mostrar a incoerência jurídica da previsão contida no artigo 128 inciso II, que, na verdade, se trata de permitir a eliminação de uma vida inocente, em razão do crime cometido pelo seu genitor.

Esse raciocínio nos leva a perceber o desrespeito à outra previsão constitucional: a do princípio da responsabilidade pessoal, positivado no inciso XLV do artigo 5º da Carta Republicana, que dispõe que nenhuma pena passará da pessoa do condenado. Vejamos lição de Rogério Greco acerca deste instituto:

Quer o princípio constitucional dizer que, quando a responsabilidade do condenado é penal, somente ele, e mais ninguém, poderá responder pela infração praticada. (GRECO, 2010, p.75)

Ou seja, o ordenamento veda que a pena ultrapasse a figura do condenado. Assim, na situação específica do aborto humanitário, o legislador acabou impondo ao nascituro pena de morte em decorrência de um crime que seu pai cometeu. Desse modo, há clara violação ao princípio da responsabilidade pessoal. O Estado tem a obrigação de punir o estuprador com todo o rigor da lei, mas não pode, de forma alguma, responsabilizar seu filho.

A doutrina que defende a constitucionalidade do aborto humanitário costuma confrontar essa tese alegando que nosso ordenamento não prevê pena de morte (salvo em casos de guerra declarada), razão pela qual não há, no caso do aborto humanitário, pena passando da pessoa do condenado. Ou seja, não há ofensa ao princípio da responsabilidade pessoal, porque morte não é pena.

Ora, estamos diante então de uma situação juridicamente mais desproporcional ainda, pois o Estado está imputando ao nascituro, em decorrência do crime cometido pelo seu pai, uma conduta mais cruel que a pena mais severa prevista em nosso ordenamento. Salvo em casos de guerra, a Constituição realmente veda a pena de morte (art. 5º XLVII “a”), o que configura a desproporcionalidade da previsão contida no art. 128 II do Código Penal, que autoriza a morte de um ser em virtude de delito que seu pai cometeu.

Não estamos neste trabalho, de forma alguma, afirmando que suportar uma gestação oriunda de um estupro seja algo simples. Muito pelo contrário, sabemos que será algo odioso e quase insuportável. No entanto, existe uma ordem jurídica estabelecida pela Constituição Federal, que não admite violação por parte de legislação infraconstitucional. Conforme já mencionamos aqui neste trabalho, a Carta Magna garante o direito à vida sem mencionar quando ela começa. É o próprio Código Penal, ao inserir o aborto no rol dos crimes contra a vida, que faz nascer a presunção absoluta que este direito inviolável começa dentro do útero materno. Entendimento este compartilhado pela maioria esmagadora da doutrina, o que inclui tanto autores penalistas quanto constitucionalistas, conforme já demonstramos nas lições de Alexandre de Moraes, Nelson Hungria, Rogério Greco e outros.

Imaginemos, então, outra hipótese: Um jovem, de 18 anos, observa seu padrasto violentar, todos os dias, sua irmã, de apenas 12 anos. Não suportando mais a situação, ele se aproveita de um momento em que o estuprador está dormindo e o mata. O que acontecerá? Esse jovem responderá, assim como a mulher estuprada do exemplo anterior, pelo delito de homicídio, pois a vida humana do criminoso que ele matou é direito inviolável, constitucionalmente garantido pelo artigo 5º da Carta Magna. Se a lei penal garante a indisponibilidade da vida do ser humano em sua face mais horrenda, como pode desrespeitar a Constituição para permitir a morte de alguém que ainda nem teve chance de cometer delito algum?

A vida é a premissa de todos os direitos, e dela decorre o direito do nascituro existir, nascer, crescer, e viver todas as fases dessa existência. O filho do estuprador já possui vida e, por consequência, é destinatário de todos os direitos que lhe garantam o direito de viver. Por ter vida, ele já existe dentro do útero materno, cabendo ao Estado garantir que seja respeitado seu direito de existir também fora do útero, como manda a Constituição.

Com a maestria que lhe é costumeira, José Afonso da Silva assim nos ensina sobre o direito de existir:

Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. (SILVA, 1998, p.201)

Assim, não nos parece ser possível vislumbrar qualquer possibilidade de constitucionalidade no aborto humanitário. O nascituro, a partir do momento em que a lei o considera como ser dotado de vida, se torna possuidor de todos os outros direitos, razão pela qual o ordenamento jurídico deve garantir sua total proteção, obedecendo ao comando da Constituição Federal. É justamente por isso que o Código Penal criminaliza todas as formas de interrupção do processo vital, o que caracteriza uma incoerência jurídica a previsão legal do aborto em casos de gravidez originada a partir de estupro.

Desse mesmo entendimento, compartilhou o Magistrado Levine Raja Gabaglia Atiaga, da 4ª Vara Criminal da Comarca de Rio Verde – GO, ao negar autorização para realização de aborto humanitário. Segundo o Juiz, tal previsão do Código Penal fere o “bem juridico mais protegido no ordenamento constitucional, decorrente do próprio direito natural”, o que torna a prática contrária à Constituição Federal. Em suas palavras, a norma também “viola as garantias esculpidas no Código Cívil e usurpa os direitos dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente, que confere ao nascituro alguns direitos personalíssimos, como o direito à vida, proteção pré-natal, entre outros.”

Assim, em razão de tudo que estudamos até este momento, é perfeitamente possível vislumbrar a inconstitucionalidade do aborto humanitário. Sabemos o quão difícil seria para a mulher violentada levar uma gravidez originada de estupro adiante, mas, existem outras diversas situações onde uma pessoa é levada a enfrentar uma situação odiosa e mesmo assim o ordenamento não permite a violação da vida humana, como vimos no exemplo do jovem que assiste o padrasto estuprar sua irmã. Imaginemos ainda uma mãe que teve seu filho assassinado: Ela iria viver a vida inteira um trauma indescritível, mas não poderia matar o assassino sem ser responsabilizada conforme a lei penal, visto que a vida humana é direito constitucionalmente inviolável.

Ou seja, ainda que seja extremamente difícil e quase insuportável levar uma gravidez oriunda de violência adiante, é isso que a Constituição manda fazer ao garantir a inviolabilidade da vida do nascituro. Cabe ao Estado garantir todos os meios para que, na medida do possível, essa gestante tenha sua dignidade preservada ao máximo durante e após o processo gestacional, permitindo-lhe que após o nascimento a criança seja entregue para adoção, se a mãe julgar que não terá condições psicológicas de criá-la.

Assim, entendemos que, mesmo diante de uma situação monstruosa como é o estupro, não é razoável permitir a interrupção da vida gerada dessa violência, por ser o nascituro destinatário do direito fundamental à inviolabilidade de sua vida, que é o mais valioso de todos os direitos. A dignidade da gestante deve ser preservada ao máximo, tendo o Estado a obrigação de lhe prestar acompanhamento psicológico e financeiro durante e após a gestação, bem como facilitar uma futura adoção da criança se for essa sua vontade. Nos parece que essa é a única forma de obedecer aos comandos da Constituição Federal nesse conflito de bens jurídicos entre a vida do bebê e a honra da gestante, visto que a vida é o principal dos direitos e premissa de todos os outros. Qualquer solução jurídica diferente dessa, como é o aborto humanitário, caracteriza afronta a Lei Maior do nosso ordenamento jurídico e consequente inconstitucionalidade do dispositivo infraconstitucional.

Sendo o Código Penal anterior à Constituição Federal, podemos afirmar então que a previsão contida no artigo 128 II, que permite o aborto em casos de estupro, não teria sido recepcionada pela Carta Magna, por contrariar a previsão de seu artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida humana.

É dessa mesma forma que se manifestam Cleber Francisco Alves e Fernando Ferreira dos Santos:

Tendo em vista o dispositivo constitucional (art. 5 caput) que assegura a inviolabilidade do direito à vida, o artigo 128, do Código Penal, que admite o aborto dito “sentimental” – quando a mulher tenha sido vítima de estupro - não teria sido recepcionado pela Constituição de 1988 (ALVES, 2001 apud SANTOS, 2001, p. 167-168, grifos nossos).

Compete relembrar que, conforme já abordado neste estudo, a Constituição de 1937, que vigorava quando o atual Código Penal entrou em vigor, não inseriu a vida em seu rol de direitos individuais fundamentais, mostrando ser uma Carta que relativizava este direito, permitindo, inclusive, pena de morte para crimes políticos.

Assim, como o ordenamento normativo-constitucional vigente em 1940 não instituiu um sistema de proteção a vida nos moldes do que existe hoje, pode-se dizer que o aborto sentimental, embora fosse compatível com a Constituição de 1937, é materialmente incompatível com a Carta Republicana atual

Desse modo, após todos os argumentos elencados neste trabalho e toda doutrina e jurisprudência citadas, não nos resta duvidas que o artigo 128, inciso II, do Código Penal contraria mandamento constitucional. A Constituição de 1988 garante a inviolabilidade da vida e a legislação infraconstitucional nos mostra que essa proteção se inicia no útero materno. Sendo o nascituro destinatário desse direito fundamental, não há como encontrar brecha jurídica que indique constitucionalidade no abortamento em casos de estupro. Como estudamos, não é razoável a eliminação de uma vida em razão do crime cometido pelo seu pai. Aliás, nunca é razoável a eliminação de uma vida, exceto quanto existe outra em jogo, situação em que as circunstâncias indicarão qual deve ser preservada. Dessa maneira, se a gestação oriunda de estupro não trouxer riscos à vida da gestante, não há porque violar o direito fundamental à vida do nascituro, garantido por uma cláusula pétrea da Constituição Federal.

Assim, diante de tudo que foi exposto, entendemos que o aborto humanitário, conduta prevista no artigo 128 inciso II do Código Penal brasileiro, não foi recepcionado pela Constituição de 1988, por afrontar o disposto no caput de seu artigo 5º. A vida é o bem jurídico mais valioso de todos e o Estado, através da ordem jurídica estabelecida, deve zelar pela inviolabilidade deste direito fundamental e de todos os outros que dele decorrem, razão pela qual qualquer construção diferente disso será afrontosa a Carta Republicana e consequentemente inconstitucional.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partimos, nesse trabalho, da seguinte indagação: o aborto humanitário contraria a Constituição Federal ao permitir a violação da vida do nascituro para preservar a integridade psíquica, honra e dignidade de sua mãe? Após uma pesquisa aprofundada, dedicada a um bom tempo de leitura da doutrina e da jurisprudência, acreditamos ter chegado a uma conclusão.

Começamos esse estudo fazendo uma abordagem sobre o caráter que as disposições da Constituição Federal possuem em nosso ordenamento jurídico, e concluímos que a Carta Republicana se configura como verdadeiro fundamento de validade de todas as normas, não podendo existir qualquer construção jurídica que a contrarie. Partindo dessa premissa, nos dedicamos a analisar os direitos e garantias fundamentais, positivados no título II da Lei Maior, dentre os quais se insere o direito à inviolabilidade da vida humana, no caput do artigo 5º. Descobrimos, conforme se verifica no entendimento de diversos doutrinadores apresentados neste trabalho, que o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, visto que é pré-requisito de todos os outros, pois, sem ele, nenhum outro direito sequer chega a existir.

A essa altura do trabalho, já tínhamos em mente duas premissas: lei nenhuma pode contrariar a Constituição Federal e a inviolabilidade da vida humana é o principal direito constitucionalmente garantido. A partir daí, passamos a analisar a parte especial do Código Penal brasileiro, que, em seu capítulo I do título I, define como crime as condutas que atentam contra a vida humana, o que caracteriza uma forma da legislação penal obedecer aos comandos da Constituição, no sentido de preservar o maior dos direitos constitucionalmente garantidos.

Vimos que são quatro os delitos que o Código Penal elencou como atentatórios à vida humana: homicídio (abarcando a forma qualificada, o feminicídio e a forma culposa); infanticídio; instigação, induzimento ou auxílio a suicídio; e aborto. Ao percebermos a prática abortiva no rol de crimes contra a vida, chegamos à óbvia conclusão de que a preservação deste direito fundamental garantido pela Constituição se inicia ainda no útero materno. Conforme entendimento de doutrinadores penalistas apresentados, qualquer que seja a fase intrauterina em que o nascituro se encontre, a eliminação da sua vida será classificada como crime de aborto. Assim, chegamos a uma terceira premissa: o direito constitucional à inviolabilidade da vida alcança tanto o já nascido quanto o que está por nascer.

Após, começamos a analisar aspectos do instituto do aborto e nos deparamos com as possibilidades previstas nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal: as chamadas hipóteses de aborto legal, em que o estatuto repressivo dispõe que não será punido o procedimento abortivo praticado por médico quando a gravidez colocar em risco a vida da gestante (aborto terapêutico) ou então tiver se originado de um estupro (aborto humanitário ou sentimental). São hipóteses excepcionais em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida humana. Passamos então a analisar se tais previsões contrariam a Constituição Federal, que preceitua que o direito à vida é inviolável.

Ao estudarmos o aborto terapêutico, vimos que a doutrina atribui a este instituto natureza jurídica de estado de necessidade, excludente de ilicitude caracterizada por confronto de bens jurídicos no mínimo iguais, que é justamente o que ocorre na previsão do inciso I do Código Penal. Trata-se de uma situação onde não é possível salvar as duas vidas, e o médico acaba salvando a mãe, por ser a que tem mais chances de sobreviver. Ou seja, atende-se, dentro do possível, o comando da Constituição Federal que garante a inviolabilidade do direito à vida.

Antes de tratarmos da constitucionalidade do aborto humanitário, abordamos ainda as hipóteses em que o ordenamento jurídico permite a violação da vida, e percebemos que, em todas elas, deve haver, ainda que presumidamente, outra vida em jogo, como ocorre no estado de necessidade e na legitima defesa. Vimos também detalhes da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre gravidez de fetos anencéfalos, na qual a Corte considerou que a interrupção antecipada da gestação nesses casos não pode ser caracterizada como aborto, visto que não há vida a ser protegida. Neste processo, todos os Ministros reafirmaram que o direito à vida é o mais precioso de todo o ordenamento, e a maioria entendeu que a antecipação do parto nesses casos não pode ser considerada crime por não ser uma conduta atentatória à vida, visto que não há vida possível em casos de anencefalia e o feto seria, na verdade, um natimorto.

Após todas essas considerações, passamos a estudar diretamente o aborto humanitário, conduta prevista no inciso II do artigo 128 do Código Penal, e vimos que a maioria da doutrina atribui a ele natureza jurídica de excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa. No entanto, como já havíamos descoberto que o direito à vida é o principal bem jurídico tutelado pelo nosso ordenamento, e a lei só pode permitir sua violação quando houver outra vida em jogo, chegamos à conclusão que essa excludente só poderia ser invocada para isentar de culpabilidade delitos que não atentem contra a vida humana, visto que esse é o principal direito garantido pela Constituição, que, por sua vez, orienta a aplicação de toda ordem jurídica.

Assim, alcançamos uma quarta premissa: sendo a vida o mais fundamental de todos os direitos garantidos pela Constituição, a lei só pode permitir sua violação em circunstâncias que demonstrem haver outra vida em jogo. Dessa forma, a conclusão lógica foi a de que a inexigibilidade de conduta diversa não pode servir para justificar o aborto humanitário, pois nosso ordenamento constitucional nos ensina que eliminar uma vida só é a única conduta possível quando houver outra vida a ser preservada, o que não ocorre no aborto em casos de estupro.

Dessa maneira, após todos os argumentos levantados neste trabalho, devidamente embasados pela doutrina e jurisprudência, concluímos que todo o ordenamento jurídico deve caminhar no sentido de utilizar todos os mecanismos possíveis para garantir a inviolabilidade da vida humana, que é o principal direito garantido pela Constituição Federal. A partir dessa conclusão, passamos a analisar os argumentos que a doutrina que defende a constitucionalidade do aborto humanitário utiliza: a preservação da integridade psíquica, honra e dignidade da gestante violentada.

Entendemos que, sem a menor dúvida, uma mulher violentada enfrenta um trauma indescritível, e levar adiante uma gravidez oriunda dessa violência certamente abalará sua honra e ferirá sua dignidade. No entanto, desse ato forçado foi gerado um novo ser, que o direito já considera como possuidor de vida humana. E, sabendo que a vida é o principal dos direitos garantidos pela Constituição Federal, e que lei nenhuma pode contrariar preceito constitucional, não poderia o ordenamento jurídico, de forma alguma, permitir a violação deste direito.

Já chegamos à conclusão, neste trabalho, que uma vida só pode ser violada para preservar outra vida, o que não ocorre no aborto humanitário, já que, do outro lado da balança, está a dignidade e a honra da mulher violentada. Dessa maneira, embora reconheçamos que a dignidade de todo ser humano deve ser respeitada ao máximo, conforme manda a Constituição Federal, não é possível vislumbrarmos a constitucionalidade desta prática abortiva, uma vez que o direito à vida supera todos os outros direitos, já que é pré-requisito de todos eles, como nos mostrou a doutrina apresentada neste estudo.

Assim, na delicada situação específica da gestação originada de estupro, concluímos que o Estado deve utilizar de todos os meios que dispõe para garantir o melhor acompanhamento possível para essa gestante, facilitando, inclusive, uma futura adoção da criança, se for essa a vontade da mãe, não podendo, de forma alguma, permitir que essa vida intra-uterina seja interrompida, pois isso afrontaria a Constituição da República, diploma orientador de toda a ordem jurídica. Essa gravidez pode, sem a menor dúvida, abalar a dignidade da gestante. No entanto, embora abalada, continuará existindo dignidade. O aborto, por seu turno, não restaurará a honra ferida no estupro e servirá apenas para eliminar a dignidade do nascituro, impossibilitando-o de exercer o mais precioso de todos os direitos: o direito à vida.

Dessa maneira, após todo o esforço empreendido nessa pesquisa, a conclusão alcançada é a de que o aborto humanitário, disposição prevista no artigo 128, inciso II, do Código Penal, contraria a Constituição Brasileira, sendo, portanto, inconstitucional. Trata-se, no caso, de inconstitucionalidade por não ter sido recepcionada, visto que a norma em questão é anterior à vigência do atual sistema constitucional, tendo sido editada sob a égide da Constituição de 1937, que não elencava a vida em seu rol de direitos fundamentais, o que é completamente oposto ao que acontece no nosso sistema constitucional atual.

A Carta Republicana de 1988 é a lei maior de toda a nossa ordem jurídica, e todo profissional do Direito deve obediência aos seus preceitos, em especial, àquele previsto em seu artigo 5ª, que garante a inviolabilidade da vida humana. Sendo a conduta objeto deste trabalho contrária a esta disposição fundamental, a conclusão lógica é pela inconstitucionalidade desta previsão da lei penal, embora entendamos que trata-se de uma questão extremamente delicada, e que é imprescindível que o Estado forneça todas as condições possíveis para garantir uma gestação saudável a mulher violentada, com acompanhamento psicológico antes e depois do parto, por quanto tempo for necessário; com o pagamento de auxílio financeiro para as mulheres que ficarem psicologicamente impedidas de trabalhar; e com a implementação de mecanismos de facilitação da adoção de crianças nascidas nessa situação, se essa for a vontade da mãe.

Não foi fácil defender esse trabalho quando ele era somente uma monografia. Não é fácil defendê-lo em meus debates acadêmicos, pois o tema é extremamente polêmico e desperta emoções que impedem a realização de uma análise exclusivamente jurídica do problema. Também não é fácil defender essa ideia em casa, principalmente diante de uma família com veia progressista como a minha. Fui, diversas vezes, desencorajado a publicá-lo, sob o argumento de que seria rotulado de forma negativa logo em minha primeira publicação. No entanto, não recuei. Deixo aqui todo o meu respeito e solidariedade a todas as mulheres vítimas de estupro, que engravidaram ou não, e as peço que compreendam que entendo toda o sofrimento que sentem. Não quero, com esta publicação, nenhum mal a vocês. Pelo contrário, faço votos para que o Estado cumpra o que é determinado pela sistemática constitucional de assistência social e lhes garanta a dignidade suficiente para prosseguir da melhor forma que for possível, mas sem que nenhuma vida fique pelo caminho.

Desse modo, em um contexto em que as únicas vozes da sociedade que se levantam contra o aborto são ligadas a alguma religião, me orgulho profundamente por ter conseguido realizar um trabalho sem utilizar nenhum argumento religioso. Todo o estudo foi pautado, única e exclusivamente, na ordem jurídica constitucionalmente estabelecida, e é essa ordem que nos levou a concluir pela inconstitucionalidade do aborto sentimental.

Certa vez, ouvi de um professor a seguinte frase: “Na dúvida, morram abraçados à Constituição”. É isso que foi feito neste trabalho.


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Autor

  • Davi de Lima Pereira da Silva

    Procurador-Geral do Município de Areal/RJ; Especialista em Direito Administrativo; Fundador e sócio licenciado do Escritório "Lima, Pacheco & Arruda Advogados Associados"; Pós-Graduando em Direito Constitucional, Direito Tributário, Direito Ambiental, Gestão Pública e Direitos Humanos.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Davi de Lima Pereira da. Aborto humanitário: uma análise à luz da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6188, 10 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82986. Acesso em: 19 abr. 2024.