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Gestação por substituição ou barriga de aluguel

Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro

Gestação por substituição ou barriga de aluguel: Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro

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Um olhar sobre a gestação por substituição e seus reflexos, à luz do Direito brasileiro e argentino.

Sumário: 1. Introdução. 2. Evolução histórica do conceito de família (2.1 Origem da família na antiguidade; 2.2 A família no Direito Romano; 2.3 A família durante a Idade Média; 2.4 A família e a Revolução Industrial; 2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX; 2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos; 2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988; 2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994; 2.9 A família pós-moderna do século XXI). 3. Gestação por substituição. 4.  Conclusão. 5. Bibliografia.


1. Introdução

No presente trabalho, pretendemos fazer uma analise comparada do direito argentino e brasileiro no tocante ao instituto da gestação por substituição, também chamado de maternidade sub-rogada ou, popularmente, “barriga de aluguel”, dentre várias outras denominações. Para isso, faremos primeiro uma breve abordagem histórica do direito de família e de sua evolução ao longo do tempo, culminando com os novos conceitos de família na era pós-moderna.

Em seguida e considerando a importância da prole na constituição e a continuidade da família, dentre outros aspectos, trataremos das formas de filiação e o princípio do melhor interesse para a criança.

Faremos também um cotejo entre as iniciativas legislativas no Brasil e uma breve análise do instituto, nos termos como fora previsto no projeto do novo Código Civil e Comercial Argentino.


2. Evolução histórica do conceito de família[1]

Para bem entender a matéria, é importante fazer um retrospecto histórico para compreender o que é a família atualmente, tendo em vista a evolução desse conceito ao longos dos anos.

2.1 Origem da família na antiguidade:

A família surge como um fato próprio da natureza humana, baseada, fundamentalmente, na necessidade de convivência entre as pessoas (afetividade); na necessidade da perpetuação da espécie (formação da prole); de reforço da mão de obra doméstica (função econômica) e, até mesmo, como um dever cívico, já que a prole iria servir aos exércitos de seus respectivos Estados (função política), sem esquecer a função religiosa, tendo em vista que o pai de família, na antiguidade, era ao mesmo tempo, o chefe político e religioso de sua comunidade.

2.2 A família no Direito Romano:

Embora a palavra família tivesse vários significados no direito romano, para o nosso estudo importa a família com significado de agrupamento de pessoas ligadas entre si e sujeitaS ao pater familia.

Nesse sentido, cumpre destacar que houve duas fases marcantes no direito romano:

  • 1ª. fase: no antigo direito romano, a família era organizada em torno do pater familia, que exercia sobre os filhos direito de vida e de morte, e no qual a mulher cumpria um papel de serviçal subserviência. O chefe de família era autoridade máxima sendo, a um só tempo, chefe político, religioso, sacerdotal e jurisdicional (pater potestas).
  • 2ª. fase: Já no século IV DC, com o imperador Constantino, as regras foram atenuadas e a família tomou contornos mais de ordem moral e religiosa, permanecendo o marido como o chefe de família, porém dando-se maior autonomia à mulher. Nesse período, também foi permitido aos filhos economia própria, especialmente os militares, que podiam administrar seus próprios os soldos e com ele formar um patrimônio. Assim também os intelectuais e os artistas.

2.3 A família durante a Idade Média:

Nesta fase predominou a família organizada em torno do trabalho agrário, principalmente os camponeses, sob o comando dos pais, preservando-se a convivência da unidade familiar.

A mulher devia obediência plena ao marido e deveria estar sempre às suas ordens, desde as camponesas até as mulheres da nobreza. Enquanto solteiras, estavam submetidas ao poder de seus pais. Com o casamento, assumia nova família cujo chefe agora era seu marido.

Nesse sistema, as filhas eram totalmente excluídas da sucessão, pois quem recebia a herança era o primogênito. Como a mulher ao se casar iria assumir a família do marido, isso servia de justificativa para a sua exclusão do direito sucessório tendo em vista que não daria continuidade ao culto familiar, base da sociedade medieval.

Sob forte influência do cristianismo, nessa época a única família reconhecida era a cristã, ou seja, aquela formada pelo casamento que se regia, exclusivamente, pelo direito canônico, sendo o casamento religioso o único aceito, admitido e conhecido.             

2.4 A família e a Revolução Industrial:

Na fase pré Revolução Industrial, a família tinha uma função essencialmente econômica, pois de duas uma: ou os filhos ajudavam os pais em seus ofícios (artesões), ou na atividade agro-pastoril (subsistência).

Com a Revolução Industrial e a introdução das máquinas, com a produção em série e o desenvolvimento dos centros urbanos houve, por assim dizer, o início da desagregação familiar tendo em vista que a prole procurava emprego nas áreas urbanas abandonando seus redutos familiares.

2.5 A família segundo a ótica dos Códigos do Século XIX:

Os Códigos promulgados pelas diversas nações a partir do Código Napoleônico (Código Civil Frances de 1804), inclusive o argentino de 1869 (Vélez Sársfield) e o brasileiro de 1916 (Clovis Bevilaqua), adotaram o regime de família patriarcal, ou seja, toda a organização da família girava em torno do chefe da família – o marido, estabelecendo algumas característica marcantes, vejamos:

  1. O casamento civil substitui o casamento religioso para efeito de proteção e reconhecimento pelo Estado;
  2. A família reconhecida pelo Estado é somente a legítima, de sorte que qualquer outra forma de união passa a ser proscrita e qualificada como concubinato;
  3. A indissolubilidade do vinculo familiar como forma de perpetuar a união entre os cônjuges, cujo vinculo somente era desfeito pela morte de um dos contraentes ou pela anulação do casamento;[2]
  4. Diferenciação de direito entre os filhos legítimos e os demais outros (chamados de adulterinos, bastardos, espúrios ou incestuosos), reforçando assim a idéia de família legítima; e,
  5. O homem é o chefe de família (sistema patriarcal), a mulher cumpre um papel de auxiliar e os filhos estão submetidos ao pátrio poder. Em síntese: todos devem obediência ao chefe da família.    

2.6 A família segundo a Declaração Universal dos Direito Humanos:

A Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, proclamou a igualdade de direitos entre homens e mulheres no que se refere ao casamento (art. 16, caput). Da mesma forma com os filhos, havidos ou não do casamento, ao preceituar que “todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social” (art. 25, II).

Considerou, ademais, que a “família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado” (art. 16, III).

Além disso, ao positivar o princípio da dignidade da pessoa humana e proclamar a igualdade entre todos os seres humanos, abriu a discussão sobre a igualdade dos cônjuges e dos filhos ao preceituar em seu artigo primeiro: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

2.7 A família brasileira após a Constituição de 1988:

A Constituição Federal de 1988, em consonância com o preceituado na Declaração Universal dos Direito Humanos, provocou uma revolução de caráter normativo excepcional no direito de família no Brasil, cujos efeitos tiveram o condão de também promover uma revolução de conceitos na mentalidade do povo brasileiro ao proclamar:

  1. A dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1°, III). Tanto o legislador quanto especialmente o aplicador da norma, não pode mais pensar o direito sem se ater a esse fundamento que é, a bem da verdade, um valor;
  2. A igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges na sociedade conjugal (art.226, § 5°). A partir deste dispositivo a mulher deixa de ser uma pessoa de segunda classe para se equiparar ao marido em direitos e deveres na condução da família. Substitui-se o pátrio poder pelo “poder familiar”.
  3. A igualdade entre os filhos, pouco importando se seu vínculo com os pais é de origem biológica (advinda do casamento ou mesmo fora dele) ou por vínculo jurídico, como no caso dos adotados e os advindos de inseminação artificial heteróloga (art. 227, § 6º);
  4. A família para proteção do Estado não é só a matrimonial, mas também as originárias da união estável (art. 226, § 3°), bem como as famílias monoparentais (art.226, § 4°), deixando em aberto a possibilidade de reconhecimento de outras formas de família; e,
  5. O planejamento familiar é livre decisão do casal, voltado para os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável (art.226, §7).

2.8 A família argentina após a reforma constitucional de 1994:

Com a reforma da Constituição da Nação Argentina, de 1994, foram incorporadas diversas modificações importantes ao texto constitucional originário. Dentre estas modificações, cabe destacar que muitas contribuíram para a modernização e redefinição do texto constitucional, de modo a fazer frente aos novos tempos, especialmente depois do período de exceção que recaiu sobre aquele país. Uma delas, foi a introdução dos direitos de terceira e quarta geração, que estatuiu normas para defesa da democracia e da própria Constituição, definiu as características dos órgãos de governo e novos órgãos de controle e, especialmente, concedeu prioridade legal aos tratados internacionais.

Ao conceder prioridade legal aos tratados internacionais, a Constituição fez por incorporar, ao ordenamento jurídico argentino, diversas Convenções e Tratados versando sobre direitos de família, especialmente a La Convención sobre los Derechos del Niño; la Convención sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; Convención Interamericana sobre Conflictos de Leyes en Materia de Adopción de Menores; la Convención Americana sobre Derechos Humanos (Pacto de San José de Costa Rica) de 1969, dentre outros.

Outro aspecto importante é que o artigo 16 consagrou a igualdade jurídica entre as pessoas, não se admitindo prerrogativas de sangue, nem de nascimento, nos seguintes termos: “La Nación Argentina no admite prerrogativas de sangre, ni de nacimiento: no hay en ella fueros personales ni títulos de nobleza. Todos sus habitantes son iguales ante la ley, y admisibles en los empleos sin otra condición que la idoneidad. La igualdad es la base del impuesto y de las cargas públicas.

Como leciona a professora Marisa Herrera, com a autoridade de quem integrou a Comissão de Revisão do Código Civil argentino, “la llamada "constitucionalización del derecho civil" y, dentro de este, la "constitucionalización del derecho de familia" han permitido el ingreso de varias revisiones críticas en la noción misma de familia, básicamente aquella centrada en la familia matrimonial, heterosexual y principalmente centrada en la procreación, cuyo rol de cuidado debía quedar a cargo de las mujeres. Uno de los principios de derechos humanos que han promovido tal revisión ha sido el de igualdad y no-discriminación”.

E comentando a recente aprovação do casamento igualitário naquele país, a ilustre mestra assevera: “Precisamente, ha sido este principio básico en todo Estado Democrático de derecho el que auspició en la Argentina la sanción en fecha 15/07/2010 de la Ley 26.618, que extiende la institución del matrimonio civil a las parejas del mismo sexo, es decir, que habilita esta figura a todas las personas con total independencia de su orientación sexual, convirtiéndose así en el primer país de América latina que adopta una postura legislativa de este tenor”.[3]

2.9 A família pós-moderna do século XXI:

Além das formas tradicionais de famílias reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro e argentino, cabe destacar que novas formas vêm surgindo, alargando o conceito de família para albergar novas situações advindas da vida moderna.

Como preleciona a professora Luciana Scotti, “en la Sociedad internacional, globalizada, intercultural del Siglo XXI conviven diversas concepciones, nuevos paradigmas, múltiples modelos de familia: uniones de hecho, familias monoparentales, matrimonios heterosexuales con o sin hijos biológicos, matrimonios homosexuales, matrimonios o parejas con hijos adoptivos, matrimonios poligámicos, matrimonios islámicos, matrimonios “solo consensu”, familias formadas por diversos vínculos de parentesco, las denominadas “familias ensambladas”, entre otras.[4]

Partindo dessa premissa, e sem pretensão de esgotar o assunto, podemos identificar, para efeito do presente estudo, as seguintes formas de família.

  1. A família matrimonial ou legal: enquanto família legalmente constituída através do casamento civil ou religioso com efeitos civis (legal porque realizado nos moldes estabelecido em lei);
  2. A família convivencial ou informal: a família de fato, ou seja, aquela formada de maneira informal pela união estável entre homem e mulher;
  3. A família homoafetiva: aquela formada pela união de pessoas de mesmo sexo seja pela união estável ou pelo casamento;
  4. A família monoparental: aquela constituída por um dos genitores e sua prole (natural ou civil), podendo-se até incluir o padrasto que mora com o enteado cujos parentes faleceram.
  5. A família pluriparental: aquela formada por parentes, tais como os irmãos que moram sozinhos; ou do tio que mora com o sobrinho ou, até mesmo, de pessoas de parentesco distante que decidem morar juntas no mesmo lugar.
  6. A família reconstituída ou mosaica que os argentinos chamam de “ensambladas”: aquela formada por pessoas que tem filhos de uma relação anterior e se unem novamente a outra pessoa que também pode ter filhos. Assim, essa nova família será constituída pelo casal e os filhos que cada um (ou só de um deles) trouxe da relação anterior, mais os eventuais filhos do próprio casal (alguém já sintetizou esse tipo de família em: eu, você, os meus, os seus e os nossos filhos).

Nesse cenário, em que várias formas de famílias são admitidas e reconhecidas pelo direito, não se pode olvidar da importância de outras formas de gestação e procriação, possíveis hoje a partir da ciência, como forma de permitir que sejam as famílias constituídas, ampliadas e perpetuadas. 


3.  A gestação por substituição

Da mesma forma que o conceito de família mudou ao longo da história, especialmente após o século XX, o conceito e as formas de procriação também mudaram a partir de novas técnicas que permitem hoje seja um filho gerado não da forma tradicional.

Os avanços tecnológicos nos permitem hoje considerar a hipótese de um casal manter relações sexuais sem riscos de reprodução, assim como é perfeitamente possível haver procriação sem que haja o contato sexual.

Com as novas técnicas de reprodução assistida é possível ao casal desejar e ter um filho superando toda e qualquer impossibilidade física, tanto de fecundação quanto de reprodução.

Neste cenário não se pode olvidar de que a prole para um casal pode significar muito mais do que apenas o desejo de ter filhos. A procriação embora não tenha mais as mesmas características e funções que tinha no passado, ainda representa a possibilidade de continuidade da família de sorte a perguntar: ter um filho é um direito ou uma faculdade? 

Embora existam defensores das duas correntes, por obvio que seria uma incoerência garantir-se o direito à constituição da família e, ao mesmo tempo, não garantir a procriação como forma de continuidade da mesma. Por isso, entendemos que, mais que uma faculdade, procriar é um direito, independentemente de ser um ato que faz parte da própria natureza humana. 

Uma das formas de garantir ao casal o direito à procriação é a gestação por substituição, também chamada de gestação sub-rogada, locação de útero, cessão de útero, gestação por outrem ou, popularmente “barriga de aluguel”.

Conforme ensina a professora Luciana Scotti, “La maternidad subrogada es el compromiso entre una mujer, llamada “mujer gestante”, a través del cual ésta acepta someterse a técnicas de reproducción asistida para llevar a cabo la gestación en favor de una persona o pareja comitente, llamados él o los “subrogantes”, a quien o a quienes se compromete a entregar el niño o niños que pudieran nacer, sin que se produzca vínculo de filiación alguno con la mujer gestante, sino con él o los subrogantes”.[5]

Nesse cenário, é perfeitamente possível que uma mulher, por qualquer imperfeição físico-biológica não consiga desenvolver uma gestação com regularidade. Nessas circunstâncias, só resta ao casal concretizar o sonho de ter filhos através da gestação por substituição, utilizando-se para isso do útero de outra mulher na qual será inoculado o embrião constituído a partir do material genético do casal (fecundação artificial homóloga).

É também possível, com essa técnica, que o casal recorra a doador, seja de óvulos ou mesmo de sêmen, no caso de a mulher, ou mesmo o marido ou companheiro não serem férteis (fecundação artificial heteróloga).

No Brasil, ainda não há legislação regulando a matéria. O único dispositivo que trata da matéria, assim mesmo sob o aspecto ético, é a Resolução CFM nº 2.168/2017[6] do Conselho Federal de Medicina. Dentre outros aspectos, considera importante tratar da infertilidade humana como um problema de saúde, com implicações médicas e psicológicas e a legitimidade do anseio de superá-la; que o avanço do conhecimento científico permite solucionar vários dos casos de reprodução humana; que as técnicas de reprodução assistida têm possibilitado a procriação em diversas circunstâncias, o que não era possível pelos procedimentos tradicionais; a necessidade de harmonizar o uso dessas técnicas com os princípios da ética médica; editando ainda diversos preceitos para delimitar o exercício dessa técnica.

O capítulo VII da referida Resolução tratou, especificamente, sobre a gestação de substituição (doação temporária do útero), prescrevendo que as clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de reprodução assistida para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética. Preceitua, também, que as doadoras temporárias de útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o quarto grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. E, ainda, que a doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.

Ainda no tocante à matéria, há também uma regulamentação promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, dentre outras medidas, regula a questão do registro de nascimento das crianças geradas por reprodução assistida, o que se deu através do provimento nº 52, de 14 de março de 2016 (atualizado pelos Provimentos nº 63 de 14/11/2017 e nº 83 de 14/8/2019).[7]

Visando a suprir a inexistência de lei, há várias iniciativas legislativas no Congresso Nacional brasileiro, cabendo destacar Projeto de Lei do Senado de n° 90, de 1999, de autoria do senador Lúcio Alcântara, que regulamenta minuciosamente a matéria, inclusive criminalizando determinadas condutas, cabendo destacar o previsto no art. 7º: “Fica permitida a gestação de substituição em sua modalidade não remunerada conhecida como doação temporária do útero, nos casos em que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na usuária e desde que haja parentesco até o segundo grau entre ela e a mãe substituta ou doadora temporária do útero”. Prescreve, ainda, em seu parágrafo único: “A gestação de substituição não poderá ter caráter lucrativo ou comercial, ficando vedada sua modalidade remunerada conhecida como útero ou barriga de aluguel”.

O Projeto original do senador Lúcio Alcântara sofreu diversas alterações e gerou dois substitutivos: um de autoria do Senador Roberto Requião e outro do Senador Tião Viana, resultando em melhor elaboração, cujo texto foi enviado em junho de 2003, pelo Senador José Sarney, à Câmara dos Deputados e recebeu a identificação de PL nº 1.184/03.

O PL n° 1.184/03 encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados, estando a ele apensados os seguintes projetos:

  1. O Projeto de Lei n.º 2.855, de 1997, de autoria do Deputado Confúcio Moura, que dispõe sobre a utilização de técnicas de reprodução humana assistida e dá outras providências.
  2. Projeto de Lei n.º 4.665, de 2001, de autoria do Deputado Lamartine Posella, que dispõe sobre a autorização da fertilização humana "in vitro" para os casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização e dá outras providências. Permite a utilização das técnicas de fertilização “in vitro” apenas aos casais comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização‖ somente em clínicas autorizadas pelo Ministério da Saúde.
  3. Projeto de Lei n.º 120, de 2003, de autoria do Deputado Roberto Pessoa, que dispõe sobre a investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de reprodução assistida‖. Intenta modificar a Lei n.º. 8560, de 29 de dezembro de 1992, que regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, e dá outras providências‖. Propõe que os nascidos de técnicas de reprodução assistida tenham o direito de saber a identidade de seus pais biológicos, mas sem que isso lhes dê direitos sucessórios.
  4. Projeto de Lei n.º. 1.135, de 2003, de autoria do Deputado José Aristodemo Pinotti, que dispõe sobre a reprodução humana assistida‖.
  5. Projeto de Lei n.º. 2.061, de 2003, de autoria da Deputada Maninha, que disciplina o uso de técnicas de Reprodução Humana Assistida como um dos componentes auxiliares no processo de procriação, em serviços de saúde, estabelece penalidades e dá outras providências.[8]

Quer dizer, existem iniciativas legislativas no Brasil que buscam regulamentar a matéria, porém ainda nos encontramos longe de obter o consenso sobre a matéria de sorte que, enquanto isso, a única disposição sobre a qual se pode apoiar é a Resolução do Conselho Federal de Medicina, retromencionado, e na jurisprudência resultante dos casos já julgados pelos nossos Tribunais.

Na Argentina também há um vazio legislativo quanto à matéria. O tema poderia ter sido regulamentado quando da aprovação do novo Código Civil e Comercial, que previa expressamente a regulamentação da gestação por substituição, porém, o Parlamento Argentino optou por não aprovar as disposições atinentes à matéria, perdendo a oportunidade de fazer a Argentina ser o primeiro país da América Latina a regulamentar a gestação por substituição.

Tratando especialmente da gestação por substituição a professora Marisa Herrera, tendo participado da comissão que redigiu o projeto do novo Código Civil e Comercial argentino, assim se expressou: “Fue uno de los temas más difíciles dentro del derecho de família”. Diversos temas de direito de família foram polemizados, porém el de la gestación por sustitución fue el tema más complejo para los expertos, disse Marisa Herrera, sobre todo por las críticas, algunas muy valiosas, de feministas y otros colectivos que temen la "cosificación" de la mujer o el eventual lucro con su cuerpo, sobre todo entre las más pobres.[9]

Explicou, ainda, a ilustre doutrinadora, que os redatores do projeto do novo Código Civil e Comercial tinham duas opções: reconhecer a existência da prática e regulamentar, ou, simplesmente, ignorá-la. A opção da comissão foi pelo reconhecimento. Nesse sentido, explicita: “No sé si este método es ideal, pero existe. Se está haciendo mucho en el extranjero y no es una opción ignorarlo. Es mejor tener una ley que regule el proceso, lo controle y que proteja en primer lugar al niño, pero también a la gestante y a quienes quieren tener un hijo biológico por este método”.

O projeto de Código Civil argentino foi minudente ao tentar regulamentar a matéria, procurando disciplinar todo o procedimento, não deixando lacunas para interpretações. Quer dizer, se fosse aprovado conforme a redação da Comissão, não haveria margem para manobras, porque as regras teriam ficado claras.

“La regulación legal, en cambio, puede solucionar los eventuales conflictos que la práctica plantee. El sistema proyectado, que prevé la intervención judicial previa, intenta anticiparse a esos problemas, en tanto exige que lo convenido por todas las partes sea aprobado antes del implante del embrión. Eneste proceso judicial previo deben intervenir varios especialistas, demodo tal que el abordaje sea completo y acorde a la complejidad que lasituación plantea. La prohibición al médico de proceder a la transferencia in esa autorización incita al cumplimiento de los requisitoslegales. Como la intervención judicial es anterior a la implantación en la gestante, el certificado de nacimiento debería emitirse, directamente, con el nombre de comitentes, como sucede en California; de tal modo, la gestante no figura como madre. Es decir, no hay “traspaso”, sino queel o los comitentes son legalmente los padres. El sistema proyectado tiende, pues, a la seguridad jurídica en primer lugar, del niño nacido, yen segundo lugar de todos los intervinientes en el acuerdo originário”[10]

Nesse sentido, e explicando como seria a regulamentação, a professora Marisa Herrera resumiu os pontos mais importantes da seguinte forma:

  1. El proyecto establece que la gestación por sustitución debe ser aprobada por un juez antes de que sea implantado el embrión.
  2. El magistrado solicitará certificados médicos y psicológicos que acrediten la buena salud de la gestante y su consentimiento "libre, pleno e informado".
  3. Un equipo multidisciplinario del tribunal deberá asesorar a la gestante sobre los riesgos y las implicancias de someterse a la práctica.
  4. La mujer no podrá aportar sus óvulos y al menos uno de los padres deberá suministrar sus gametos (óvulos o semen). Todo, para asegurar que no haya disputa por la filiación.
  5. Las expertas consideran que para acceder a la práctica, "la pareja o la persona interesada debería demostrar incapacidad de concebir o de llevar a término el embarazo".
  6. También precisan que para evitar que sea "un trabajo impuesto por la pobreza y tolerado por el Estado", la gestante solo podrá someterse a esta práctica dos veces.
  7. También deberá tener ya al menos un hijo propio "para asegurarse que comprende la gravedad de su compromiso".
  8. El acuerdo debe ser gratuito. Los gastos médicos, de asistencia o alimentación que puedan brindarse no implican la pérdida del carácter altruista de la práctica. Y si existiera una retribución material, se anticipa, el límite al "comercio" se aseguraría con el tope de dos gestaciones.
  9. Los médicos no podrán iniciar el procedimiento sin autorización previa de la justicia en cada caso, se establece en el proyecto.[11]

O projeto de novo Código Civil argentino prestigiava a segurança jurídica de todas as partes envolvidas, pois não deixava margem a dúvidas quanto à filiação da criança por nascer, tendo em vista que pais legalmente seriam aqueles que o tribunal tenha, previamente, autorizado, e não aquela que tenha emprestado seu ventre para a gestação. Além disso, com todas as demais exigências que poderiam ter sido impostas pela lei, acreditamos que o tema estaria devidamente resguardado do ponto de vista legal.

Contudo, só nos resta lamentar que não tenha sido aprovada essa proposta revolucionária. Porém, fica a sugestão para que o legislador ordinário, não só da Argentina, mas também de outros países, possam retomar a questão.


4.  Conclusão

Conforme notas introdutórias, demonstramos que a família sofreu profundas alterações ao longo da história, especialmente depois do século XX. Se antes a família era vista enquanto núcleo familiar constituído pelo pai, mãe e sua prole, hoje esse conceito não mais subsistem tendo em vista as outras formas de família reconhecidas nos modernos ordenamentos jurídicos.

Se o direito existe para regular o fato social, é inegável que a gestação por substituição é um fato que as técnicas científicas nos permitem cogitar, logo urge que o legislador, tanto argentino quanto brasileiro, enfrente esta questão e a regulamente, para maior segurança jurídica da sociedade.

Não é possível admitir-se que nos dias atuais, enquanto a biotecnologia possa propiciar meios e oportunidades para que as pessoas estéreis possam ter filhos, não exista regulamentação legal para essa prática o que, a toda evidência, gera uma insegurança jurídica que inibe a utilização dessa prerrogativa em larga escala.

Independentemente das questões morais e religiosas que o tema suscita, urge, tanto no Brasil quanto na Argentina, regulamentar o instituto da gestação por substituição, como meio de permitir a casais que estejam impossibilitados de terem filhos de forma natural, bem como casais homoafetivos, ou mesmo pessoas solteiras, a possibilidade de optarem por essa forma de procriação, que lhes possam permitir constituir uma família na mais completa acepção da palavra.


5. Bibliografia

BIELSA, Rafael. Derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1959.

EKMEKDJIAN, Miguel Ángel. Tratado de derecho constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1994;

HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.

HERRERA, Marisa et all. Por qué sí a la regulación de la gestación por sustitución, a pesar de todo. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion, acesso em 23/03/2013.

MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Família e sucessões, 4ª ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018, v.5

SCOTTI, Luciana B. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas. Buenos Aires: Revista Pensar en Derecho, 2012, p. 268/289.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Conflito positivo de maternidade e a utilização de útero de substituição. Acesso em 15/03/2013. Disponível em: http://www.colegioregistralmg.org.br/Content/Images/artigoacademico/utero_por_substituicao.pdf,.

VALENTE, Marcela. Argentina legalizará la gestación por sustitución. Disponível em http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=, 102463 acesso em 23/03/2013.


Notas

[1] MELO, Nehemias Domingos de. Lições de direito civil – Família e sucessões, 4ª ed. São Paulo: Rumo Legal, 2018, v.5, pp. 3-7.

[2] O divórcio no direito argentino foi instituído pela Lei n º 23.515, de 12 de junho de 1987. O brasileiro com a Lei nº 6515 de 26 de dezembro de 1977.

[3] HERRERA, Marisa. Nuevas tendencias en el derecho de familia de hoy. Principios, bases y fundamentos. Primera parte. MJ-DOC-5595-AR | MJD5595, 7-nov-2011.

[4] SCOTTI, Luciana. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 268.

[5] SCOTTI, Luciana. El reconocimiento extraterritorial de la “maternidad subrogada”: una realidad colmada de interrogantes sin respuestas jurídicas, p. 9.

[6] Esta resolução veio na sequência de outras que trataram do mesmo tema. A primeira delas foi a de n° 1.358 de 1992, que foi reeditada em 2010 sob o n° 1.957 e depois revogada pela Resolução CFM nº 2.013/2013, ao depois revogada pela Resolução CFM nº 2.121/2015.

[7] Estes provimentos também tratam da questão da filiação sócioafetiva.

[8] Há outros projetos tratando do mesmo assunto tramitando nas duas casas legislativas como, por exemplo, o PL n° PL 4.889/2005 (sobre a utilização post mortem do sêmen do marido ou companheiro) e o PL n° 7.701/2010 (sobre o funcionamento das clínicas de reprodução) e o PL n° 3.977/2012 (sobre o acesso às técnicas de reprodução artificial aos pacientes em idade reprodutiva submetidos a tratamento de câncer).

[9] HERRERA, Marisa. Aula Magna proferida no curso de doutorado da Universidade de Buenos Aires (UBA) em janeiro de 2013.

[10] HERRERA, Marisa. Por qué sí a la regulación de la gestación por sustitución, a pesar de todo. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/109412311/Gestacion-por-sustitucion>, acesso em 23/03/2013.

[11] VALENTE, Marcela. Argentina legalizará la gestación por sustitución. Disponível em http://ipsnoticias.net/nota.asp?idnews=102463 acesso em 23/03/2013.


Autor

  • Nehemias Domingos de Melo

    Advogado em São Paulo, palestrante e conferencista. Professor de Direito Civil, Processual Civil e Direitos Difusos nos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito na Universidade Paulista (UNIP). Professor convidado nos cursos de Pós-Graduação em Direito na Universidade Metropolitanas Unidas (FMU), Escola Superior da Advocacia (ESA), Escola Paulista de Direito (EPD), Complexo Jurídico Damásio de Jesus, Faculdade de Direito de SBCampo, Instituo Jamil Sales (Belém) e de diversos outros cursos de Pós-Graduação. Cursou Doutorado em Direito Civil e Mestrado em Direitos Difusos e Coletivos, É Pós-Graduado em Direito Civil, Direito Processual Civil e Direitos do Consumidor. Tem atuação destacada na Ordem dos Advogados Seccional de São Paulo (OAB/SP) onde, além de palestrante, já ocupou os cargos membro da Comissão de Defesa do Consumidor; Assessor da Comissão de Seleção e Inscrição; Comissão da Criança e do Adolescente; e, Examinador da Comissão de Exame da Ordem. É membro do Conselho Editorial da Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil (Ed.IOB – São Paulo) e também foi do Conselho Editorial da extinta Revista Magister de Direito Empresarial, Concorrencial e do Consumidor (ed. Magister – Porto Alegre). Autor de 18 livros jurídicos publicados pelas Editoras Saraiva, Atlas, Juarez de Oliveira e Rumo Legal e, dentre os quais, cabe destacar que o seu livro “Dano moral – problemática: do cabimento à fixação do quantum”, foi adotada pela The University of Texas School of Law (Austin,Texas/USA) e encontra-se disponível na Tarlton Law Library, como referência bibliográfica indicada para o estudo do “dano moral” no Brasil.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Nehemias Domingos de. Gestação por substituição ou barriga de aluguel: Uma análise à luz do direito argentino e brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6205, 27 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83515. Acesso em: 20 abr. 2024.