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Os guardiões das constituições lusófonas

uma breve análise acerca da defesa da legalidade institucional e da legitimidade democrática

Os guardiões das constituições lusófonas: uma breve análise acerca da defesa da legalidade institucional e da legitimidade democrática

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Fazemos um panorama das instituições que devem proteger as constituições dos nove países lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste) e como o respectivo texto constitucional disciplina o exercício dessa missão.

Porque não houve obra de Deus, depois do princípio e criação do Mundo, que mais assombrasse e fizesse pasmar aos homens que o descobrimento do mesmo Mundo que tantos mil anos tinha estado incógnito e ignorado; nem que maior nem mais justo temor deva causar aos que bem ponderarem esta obra, que a consideração dos ocultos juízos de Deus, com que por tantos séculos permitiu que tão grande parte do Mundo, tantas gentes e tantas almas vivessem nas trevas da infidelidade, sem lhes amanhecerem as luzes da Fé, tão breve noite para os corpos e tão comprida noite para as almas. Mas no meio desses compridíssimos anos, diz o Profeta que faria Deus que se descobrisse e conhecesse o que até então estava oculto.

(Pe. Antônio Vieira, História do Futuro)

RESUMO: Neste texto será feita uma breve análise de quais órgãos e instituições devem proteger, velar, defender e guardar as Constituições dos nove países lusófonos (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e do Timor-Leste) e como o respectivo texto constitucional disciplina o eventual exercício dessa missão. Analisaremos os tipos de guarda e defesa da legalidade institucional e da legitimidade democrática, e como as controvérsias jurídicas ou os conflitos políticos são solucionados. A solução pode ocorrer dentro dos marcos da normalidade ou fora deles, como sucede, por exemplo nas tentativas de “golpes de Estado”, “quarteladas militares”, “revoluções populares” ou quaisquer outras ações fora dos lindes da legalidade institucional com ameaças à legitimidade democrática.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Guardião da Constituição. Legalidade institucional. Legitimidade democrática. Estados lusófonos.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Os guardiões de Portugal; 3. Os guardiões de Angola; 4. Os guardiões de Cabo Verde; 5. Os guardiões da Guiné-Bissau; 6. Os guardiões da Guiné Equatorial; 7. Os guardiões de Moçambique; 8. Os guardiões de São Tomé e Príncipe; 9. Os guardiões do Timor-Leste; 10. Os guardiões do Brasil; 11. Considerações finais.


1 INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objeto analisar quais órgãos e instituições devem guardar, proteger, velar e defender a legalidade institucional e a legitimidade democrática nos referidos países lusófonos[1], segundo o disciplinado nas respectivas Constituições.  Esta abordagem sobre o constitucionalismo lusófono não é nova e se justifica pela indiscutível proximidade histórica, cultural, política e jurídica desses países herdeiros das aventuras lusitanas.

Na experiência constitucional desses países há uma longa tradição de autoritarismo político com o desrespeito à legitimidade democrática e com a ruptura da legalidade institucional, na qual, não raras vezes, os detentores dos fatores reais de poder, no sentido lassalleano[2], sobrepuseram os seus interesses e desejos aos seus deveres e direitos, ou seja, à normatividade constitucional.[3] Com exceção de Portugal, que nas últimas décadas avançou na qualidade de vida das pessoas e na respeitabilidade institucional, os indicadores econômicos e sociais dos países lusófonos, em cotejo com os respectivos mandamentos jurídicos, revelam um divórcio entre as promessas e a realidade. Cuide-se, a bem da verdade, que os demais países lusófonos também melhoraram os seus respectivos índices civilizatórios, mas, infelizmente, ainda há um fosso abissal entre o texto constitucional e a realidade social, ou seja, entre a prescrição (o dever-ser) e o fato (o ser).[4]

Tenha-se que é aturado o debate acerca da supremacia da Constituição e da manutenção da legalidade institucional, mormente na eventual ameaça de ruptura desses marcos normativos. Do ponto de vista doutrinário, recordemos as clássicas contribuições de Hans Kelsen[5] e de Carl Schmitt[6] sobre o “guardião” da Constituição. Resumidamente, segundo Kelsen, a competência para defender a legalidade constitucional é da jurisdição, a ser exercida por uma Corte com magistrados imparciais e independentes, que devem se pautar pelos critérios de “legalidade ou de juridicidade”. Já para Schmitt, a competência é do comandante das forças armadas, haja vista o fato de que a Constituição resultar de uma decisão política soberana e os seus conflitos são de caráter político e devem ser politicamente solucionados, segundo os critérios de “possibilidade conveniente”.

Da leitura dos textos constitucionais é possível perceber que nas situações de normalidade institucional, as controvérsias constitucionais podem ser de natureza jurisdicional, e aí se resolveriam por decisão da Corte, ou de natureza política, como sucede, por exemplo, com a decretação do estado exceção constitucional. Tenha-se, no entanto, que podem surgir conflitos político-constitucionais reflexos de situações de anormalidade institucional, e para essas excepcionais situações, a solução será extrajurídica (ou política ou de força), como uma eventual tentativa de “golpe de Estado” ou de “quartelada militar”, quiçá de “revolução popular”, pouco, ou quase nada, restando para a função jurisdicional[7].

Além do aludido magistério de Kelsen e de Schmitt, também recordemos as contribuições de Bruce Ackerman[8] [9], mormente no tocante à cidadania constitucional na defesa dos direitos fundamentais, especialmente naquelas situações nas quais uma determinada maioria passe a tomar decisões amesquinhadoras dos direitos e dos interesses legítimos das minorias. Na verdade, o grande drama dos sistemas democráticos, nos quais as decisões das maiorias devem ser acatadas, consiste nas situações nas quais essas escolhas majoritárias prejudicam sobremaneira os lícitos direitos e os legítimos interesses das minorias políticas ou sociais.

Como devem se comportar as minorias injustamente prejudicadas? Devem resignar-se ou rebelar-se? Devem pacientemente suportar as injustas agressões e esperar as mudanças dentro da institucionalidade ou devem procurar resistir e mudar a situação, ainda que fora da institucionalidade normativa? A desobediência civil, pacífica ou violenta, é justificável diante de regimes políticos abusivos (tirania, oligarquia ou demagogia)? Estão os indivíduos autorizados a resistir ao eventual abuso do governante ou do legislador ou do julgador? E como deve ser essa resistência? Toda e qualquer decisão da instância legítima deve ser acolhida e obedecida? Decisões injustas e ilegítimas, ainda que institucionalmente lícitas, devem ser cumpridas? Se adotarmos o critério socrático[10], a decisão lícita, ainda que injusta, deve ser cumprida. Esse seria o melhor critério?

Pois bem, a possibilidade de defesa cidadã da Constituição já tinha sido considerada por Pontes de Miranda[11], para quem essa hipótese pressupõe a contínua vigilância de todos e uma forte convicção cívica. Esse autor também assinalou que a “minoria” pode guardar a Constituição, por meio das aristocracias. E, ainda segundo ele, a guarda também poderia ser entregue ao Legislativo ou ao Judiciário ou ao Executivo, sem que houvesse pura exclusividade dessa função, mas um sistema misto de defesa constitucional.

Segundo o historiador Políbio[12], a melhor forma de governo é aquela que adota a Constituição mista ao invés da Constituição simples. Esta pode ter uma forma de governo reta ou corrompida. As retas (ou puras) eram a monarquia, a aristocracia e a democracia. As corrompidas (ou impuras) eram a tirania, a oligarquia e a demagogia. Portanto, a melhor Constituição seria a mista, na medida em que nela estivessem presentes os elementos retos (ou puros) da monarquia, da aristocracia e da democracia que garantiriam, a seu juízo, o necessário equilíbrio e mútuo controle das forças políticas e sociais, de sorte a garantir e viabilizar a paz e a justiça.

Nas modernas Constituições políticas estão presentes essa forma mista de governo. E da leitura dos textos constitucionais lusófonos, vê-se o elemento monárquico (ou imperial) no poder executivo, o aristocrático no poder judiciário e o democrático no poder legislativo.

De fato, o presidente da República é um “rei” eleito para exercer imperialmente o poder executivo, ele pode ser um “monarca” ou um “tirano”. Será um “monarca” se governar com respeito às leis, às instituições e às tradições. Se agir de modo contrário, será um “tirano”.  O poder judiciário (e todo o “ecossistema da justiça” composto pelos advogados, promotores, defensores, procuradores, consultores, juristas etc.) é formado por uma casta extraída dos bacharéis em Direito, e como tal pode se comportar ou como “elite aristocrática” ou como “oligarquia odiosa”. Se os magistrados julgarem as causas obedecendo às leis, às instituições e às tradições, serão “aristocratas”, mas se agirem de modo contrário serão “oligarcas”.  E, por fim, o poder legislativo, que é formado por qualquer um do povo-cidadão, sem prévias qualificações distintivas, cujos membros podem agir como “democratas republicanos” ou como “demagogos populistas”. Serão “democratas republicanos” se legislarem em sintonia com a realidade, com as necessidades e possibilidades do povo, mas se agirem de modo irresponsável e com desprezo a esses elementos serão “demagogos populistas”.

Será a prática do exercício do poder e os indicadores econômicos e sociais que revelarão se estamos diante de um sistema político “simbiótico” (monarquia, aristocracia e democracia) ou “parasitário” (tirania, oligarquia e demagogia). [13] A nossa hipótese é a de que a teoria da separação dos poderes é decorrência da aludida tese polibiana do constitucionalismo misto.[14]  Ante esse magistério doutrinário, adotaremos as seguintes premissas: a guarda da Constituição deve ser mista, ou seja, deve ser compartilhada por várias pessoas ou órgãos ou instituições; a cidadania é guardiã primaz da Constituição, o Legislativo é o guardião democrático, o Executivo é o guardião imperial e o Judiciário é o guardião aristocrático. E, nas hipóteses de ameaça à legalidade institucional ou à legitimidade democrática, em face da insuficiência ou incapacidade dos outros guardiões, restam as Forças Armadas, como guardiãs definitivas, ante as ameaças reais à estabilidade política e à paz social.

Com efeito, será “guardião” o detentor de poder, ou seja, da capacidade de impor suas decisões e suas vontades, e de modo legítimo e lícito capaz de obrigar e constranger os demais a fazer ou deixar de fazer em virtude dessa decisão. Nesse sentido, a cidadania é detentora do poder soberano político, visto que nos regimes democráticos, o poder reside e se fundamenta no povo e se manifesta ou por meio de votações (eleições, plebiscitos e referendos etc.) ou por meio de legítimas, lícitas e pacíficas manifestações populares em defesa de seus direitos e interesses. Tenha-se que nada obstante tenha o povo a faculdade soberana de mudar de Constituição, por meio do poder constituinte originário, não está o povo autorizado descumprir a sua Constituição. Ou seja, o povo soberano se autoriza a mudar de Constituição ou de ordenamento jurídico, mas não está autorizado a desrespeitar nem a Constituição nem o seu ordenamento jurídico. Esse é um limite à soberania popular, pois nem mesmo esse povo soberano pode tudo, conquanto possa muito.

Já o poder executivo, que é um dos poderes constituídos, tem a prerrogativa de governar e administrar com lastro no ordenamento jurídico e político. O poder legislativo tem a prerrogativa de inovar o ordenamento jurídico e político. O poder judiciário tem a prerrogativa de solucionar os conflitos normativos com lastro no ordenamento jurídico. E, por fim, as forças armadas, justamente por portarem as armas, possuem a força (poder) para a defesa da pátria e garantia da ordem. Tenha-se que todos esses guardiões da Constituição estão por ela limitados e somente podem agir segundo as autorizações constitucionais e legais, e devem prestar vassalagem ao povo suserano.

Pois bem, será objeto de nossa análise como cada respectiva Constituição lusófona disciplina o seu modelo de guarda da supremacia normativa e de garantia de legalidade democrática institucional. Começaremos pelos guardiões do texto constitucional de Portugal, seja pelo aspecto histórico, uma vez ser o ponto de partida da epopeia lusitana, seja pelo fato de que as subsequentes Constituições e respectivos guardiões foram influenciados pelo modelo português. Depois visitaremos os textos de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e finalizaremos com a do Brasil.


2 OS GUARDIÕES DE PORTUGAL[15]

No preâmbulo da Constituição portuguesa está enunciado que a 25 de abril de 1974, o movimento das forças armadas, coroando a longa resistência do povo português e interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista. Não restam dúvidas, portanto, de que segundo esse texto, as forças armadas se revelam uma “guardiã” da legalidade constitucional e da legitimidade democrática.

Nesse texto constitucional está prescrito que a República é soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Que a República portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia econômica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. A soberania é una e indivisível e reside no povo, que a exerce segundo a Constituição, e que o Estado se subordina a ela (Constituição) e se funda na legalidade democrática. E que a validade jurídica das normas depende de sua conformidade com a Constituição. Também está enunciado que Portugal mantém laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa.

A Constituição preceitua que o povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, direto, secreto e periódico, do referendo e de outras formas constitucionalmente estabelecidas. Também está preceituado que somente nas situações excepcionais de decretação de estado de sítio de ou emergência constitucional, em face de graves ameaças à normalidade constitucional, que podem ser suspensas os direitos, liberdades e garantias constitucionais. É o que se denomina de “ditadura constitucional”, uma situação paradoxal. Ou seja, a própria Constituição, para salvar a si própria e para garantir a normalidade institucional, autoriza medidas de exceção. Cuide-se que a Constituição reconhece o direito de resistência que qualquer pessoa tem em face de ordem que ofenda seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade competente.

A Constituição instituiu a figura do Provedor de Justiça, que é uma autoridade escolhida pelo Parlamento, para receber representações e queixas dos cidadãos em face de ações ou omissões dos poderes públicos, e poderá recomendar às órgãos e autoridades competentes a adoção de medidas necessárias para evitar ou reparar as injustiças (ilegalidades ou abusividades). Também reconhece ao cidadão o direito de petição e de ação popular para a defesa de seus interesses e direitos.

No concernente aos poderes, instituições e autoridades do Estado, a Constituição preceitua que são órgãos da soberania o presidente da República, a Assembleia da República, o Governo e os Tribunais. O presidente, eleito pelos cidadãos portugueses, representa a República, garante a independência nacional, a unidade do Estado, o regular funcionamento das instituições democráticas e é o comandante supremo das Forças Armadas. O presidente da República responde, por seus crimes praticados no exercício de suas funções, perante o Supremo Tribunal de Justiça, se houver autorização de dois terços dos deputados da Assembleia da República. Crimes estranhos ao exercício das funções presidenciais somente serão processados após findo o mandato e perante a jurisdição comum.

No exercício da função de “guardião”, o presidente da República jura, por sua honra, desempenhar fielmente as funções de que fica investido e de defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição. Dentre seus poderes, está o de declarar a guerra, o estado de sítio ou de emergência, requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das leis, dos decretos-leis e das convenções internacionais e a declaração de inconstitucionalidade de normas jurídicas, bem como a verificação de inconstitucionalidade por omissão. A Constituição concede ao presidente o direito de veto aos provimentos da Assembleia da República (Parlamento) ou do Tribunal Constitucional (Judiciário), solicitando, justificadamente, nova apreciação do diploma vetado. O presidente está autorizado a dissolver a Assembleia ou o Governo.

A Assembleia da República exerce o poder legislativo e representa os cidadãos portugueses. Dentre suas atribuições de guardiã da Constituição, está a de vigiar o seu cumprimento e fiscalizar o poder executivo, promover os votos de confiança ou as moções de censura ao Governo, e de promover alterações no texto constitucional, bem como de confirmar as declarações dos estados de exceção constitucional (guerra, sítio e emergência). A Assembleia não pode ser dissolvida na vigência de exceção constitucional.

De efeito, a Assembleia pode rever a Constituição decorridos cinco ano sobre a data da publicação da última lei de revisão ordinária. Porém, se houver maioria de quatro quintos, os deputados poderão proceder a revisão extraordinária do texto. As alterações da Constituição requerem a aprovação de dois terços dos deputados. Tenha-se que há limites materiais à revisão constitucional, como a independência nacional e a unidade do Estado, a forma republicana, a separação das Igrejas do Estado, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos etc. E não pode haver revisão na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência.

O Governo é o órgão de condução da política geral de Portugal e o órgão superior da administração pública. É constituído pelo primeiro-ministro, vice-primeiro-ministro, pelos ministros, secretários e subsecretários de Estado. O primeiro-ministro e os ministros formam o Conselho de Ministros. O primeiro-ministro e os ministros são nomeados e exonerados pelo presidente da República. Nada obstante, os membros do Governo (Conselho de Ministros) também guardam a Constituição, na medida que eventualmente referendem ou deixem de referendar atos do presidente da República e  se pronunciam sobre os estados de exceção constitucional, e emitam os provimentos normativos e administrativos de sua competência, como os decretos-leis.

Os tribunais portugueses não estão autorizados a aplicar as normas que infrinjam o disposto na Constituição. Para solucionar os conflitos jurídicos constitucionais foi instituído o Tribunal Constitucional, composto por 13 juízes, com mandatos de nove anos, sem renovação, mas que gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade, além de outras imunidades relativas à magistratura ordinária. No exercício da função de guardião da Constituição, compete ao Tribunal verificar, prévia ou repressivamente, a constitucionalidade de provimentos normativos, inclusive de tratados internacionais.

Está prescrito que são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados. Também está prescrito que a inconstitucionalidade de tratados internacionais regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da outra parte, exceto se tal inconstitucionalidade resultar de violação de uma disposição fundamental.  Também podem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional as decisões dos tribunais que suscitem conflitos constitucionais.

As decisões do Tribunal Constitucional possuem força obrigatória geral. O Tribunal está autorizado a manipular os efeitos temporais de suas decisões, desde que haja fundados motivos para essa manipulação. Tenha-se que na Constituição há uma parte que versa sobre a sua “garantia e revisão”, disciplinando o processo de fiscalização da constitucionalidade, inclusive os legitimados para provocar o Tribunal Constitucional a exercer suas atribuições de guardião.

Por fim, está prescrito que é obrigação do Estado assegurar a defesa nacional, que tem por objetivos garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externas. A defesa militar da República incumbe às Forças Armadas, que são obedientes, nos termos da Constituição e da lei, aos órgãos de soberania. Elas – Forças Armadas – estão a serviço do povo português e são rigorosamente apartidárias, e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política. Cuide-se que a defesa da Pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses, seja mediante o serviço militar, seja mediante o serviço cívico.

Em suma, esses são os principais aspectos normativos referentes à guarda da legalidade constitucional e à defesa da legitimidade democrática do sistema português.


3 OS GUARDIÕES DE ANGOLA[16]

Na Constituição angolana o seu preâmbulo enuncia que a conquista da cidadania e da independência se insere na longa tradição de luta do povo e de sacrifícios coletivos que corajosamente preservaram essas conquistas e que esse povo anseia estabilidade, dignidade, liberdade, desenvolvimento, modernidade, prosperidade, democracia e que seja socialmente justo, para as presentes e futuras gerações.  Ou seja, o cidadão angolano é o principal interessado pela efetividade social e eficácia normativa de sua Constituição, por isso, é o seu guardião primaz.

Nesse texto constitucional, está disposto que a soberania popular é fundamento do Estado e que a soberania estatal pertence ao povo, que a exerce nos termos da Constituição. O poder político pressupõe a legitimidade popular e que são ilegítimas e criminosas a tomada do poder fora dos limites da legalidade constitucional. Prescreve a Constituição ser ela a lei suprema da República, e que o Estado angolano subordina-se a ela (Constituição) e funda-se na legalidade, devendo respeitar e fazer respeitar as leis. Dispõe que as leis, os tratados e os demais atos do Estado, dos órgãos do poder local e dos entes públicos em geral só são válidos se forem conformes à Constituição, e que se reconhece a validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana.

Se vislumbrarmos os partidos políticos como associações políticas de cidadãos, segundo a Constituição angolana, essas associações devem contribuir para a consolidação da nação e da independência nacional, a salvaguarda da integridade territorial, o reforço da unidade nacional, a defesa da soberania e da democracia, a proteção das liberdades fundamentais e dos direitos da pessoa humana e a defesa da forma republicana de governo e do caráter laico do Estado.  No plano da cidadania, prescreve a Constituição angolana que eles têm deveres para com a família, com a sociedade e com o Estado, e que ninguém será prejudicado ou privilegiado por força de suas características naturais ou condição cultural.

No tocante aos órgãos e poderes do Estado, a Constituição prescreve que o presidente da República, dentre outras atribuições, deve respeitá-la e defendê-la. E pode promover, junto ao Tribunal Constitucional, a fiscalização preventiva e sucessiva de constitucionalidade de atos normativos e tratados internacionais, bem como de omissões inconstitucionais. Como chefe de Estado, o presidente é o comandante das Forças Armadas, e ouvido o Parlamento, pode declarar os estados de guerra ou de sítio ou de emergência. O presidente pode ser destituído por crime de violação da Constituição.

O parlamento angolano, intitulado Assembleia Nacional, está autorizado a mudar (revisar) a Constituição e velar por sua aplicação, bem como pela boa execução das leis. A Constituição, para ser alterada, requer a aprovação de dois terços dos Deputados, e são vedados referendos sobre matéria constitucional. Para a decretação dos estados de exceção constitucional (guerra, sítio e emergência), o Parlamento deve se pronunciar.

Quanto ao Judiciário, está prescrito que no exercício da função jurisdicional os tribunais são independentes e imparciais, estando apenas sujeitos à Constituição e à lei, e que devem garantir e assegurar a observância delas. Há o Tribunal Constitucional cuja principal missão é apreciar a constitucionalidade de quaisquer normas, atos e leis, inclusive preventivamente, segundo as garantias de Constituição e do controle de constitucionalidade. Os magistrados do Tribunal Constitucional, em número de 11, são designados para um mandato de sete anos, não renovável, sendo 4 indicados pelo presidente da República, 4 escolhidos pelo Parlamento, 2 escolhidos pelo Conselho Superior da Magistratura e 1 selecionado por concurso público curricular.

Há no texto constitucional um capítulo específico para disciplinar as garantias da Constituição e o controle de constitucionalidade, mormente a fiscalização de constitucionalidade, cometendo ao Tribunal Constitucional a competência para essa atividade, bem como o rol de legitimados para provocar esse Tribunal, cujas decisões possuem força obrigatória e geral. A Constituição autoriza o Tribunal a manipular os efeitos de suas decisões se houver justos motivos.

Ainda na seara jurídica, tem-se o Ministério Público que dentre suas atribuições compete a defesa da legalidade democrática. Também há a figura do Provedor de Justiça, uma entidade pública independente que tem como objeto a defesa dos direitos, liberdade e garantias dos cidadãos. Também há o reconhecimento da Advocacia e da Defesa Pública, esta para as pessoas carentes de recursos financeiros.

As forças armadas são uma instituição militar, regular e apartidária, incumbida da defesa militar do país, obedientes aos órgãos de soberania competentes, sob a autoridade suprema do presidente da República, nos termos da Constituição, das leis e das convenções internacionais. A defesa da Pátria e dos direitos dos cidadãos, prescreve a Constituição, é direito e dever fundamental de todos os angolanos.  A Constituição disciplina a garantia da ordem e os seus objetivos de segurança e tranquilidade públicas, e a proteção das instituições, dos cidadãos, de seus bens, direitos e liberdades fundamentais contra a criminalidade violenta ou organizada, tendo a Polícia Nacional como a instituição vocacionada para essa missão. Cuide-se que nela há a disciplina para a preservação da segurança do Estado visando a salvaguarda do Estado democrático de direito, mediante as instituições de órgãos de inteligência e de segurança do Estado.

Em suma, esses os órgãos e instituições que a Constituição angola elegeu para a guarda de sua supremacia normativa e para a defesa da legalidade democrática do país.


4 OS GUARDIÕES DE CABO VERDE[17]

Na última asserção do preâmbulo da Constituição de Cabo Verde está enunciado que ela formalmente corporifica as profundas mudanças políticas operadas no país e propicia as condições institucionais para o exercício do poder e da cidadania num clima de liberdade, de paz e de justiça, fundamentos de todo o desenvolvimento econômico, social e cultura do país.  Nessa, em linha similar às Constituições de Portugal e de Angola, está preceituado que a soberania pertence ao povo, que o Estado subordina-se à Constituição e às leis e que os atos governamentais somente serão válidos se estivem em conformidade com a Constituição.

Dentre as tarefas do Estado está a de garantira a sua independência e unidade, bem como a democracia política e a participação democrática dos cidadão na organização do poder e demais aspectos da vida política e social. Também está prescrito que as normas constitucionais relativas aos direitos, liberdade e garantias vinculam todas as entidades públicas e privadas e são diretamente aplicáveis. E reconhecido a todo cidadão o direito de não obedecer a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão ilícita, quando não seja possível recorrer à autoridade pública. Tenha-se que os direitos, liberdades e garantias só poderão ser suspensos em casos de declaração do estado de sítio ou de emergência.

Segundo a Constituição, são órgãos de soberania o presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais.  O presidente é o garante da unidade da Nação e do Estado, da integridade do território, da independência nacional, vigia e garante o cumprimento da Constituição e dos tratados internacionais, e é o comandante supremo das Forças Armadas. Dentre suas atribuições, está a de dissolver a Assembleia Nacional, nomear o primeiro-ministro, de requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação da constitucionalidade das leis, dos tratados internacionais e dos referendos, de vetar os projetos de lei, de decretar o estado de sítio e de emergência, e de declarar a guerra ou celebrar a paz.

O Governo é composto pelo primeiro-ministro, pelos ministros e pelos secretários de Estado. O Conselho de Ministros é constituído pelos ministros. O Governo é órgão que define, dirige e executa a política interna e externa do país, e é politicamente responsável perante a Assembleia Nacional. Compete ao Governo o exercício de atividades políticas e a condução da administração superior do país.

A Assembleia Nacional é o órgão que representa todos os cidadãos caboverdianos. É formada pelos deputados eleitos, e pode ser dissolvida, na mesma legislatura, se rejeitar duas moções de confiança ao Governo ou se aprovar quatro moções de censura ao Governo. Porém não pode ser dissolvida na vigência dos estados de exceção (sítio ou emergência), nem nos doze meses posteriores a sua eleição nem nos doze meses anteriores ao término do mandato do presidente da República, sendo juridicamente inexistente o ato de dissolução praticado fora das autorizações constitucionais. A Constituição garante o direito de oposição para os deputados cujos partidos não participam do Governo.

Dentre as atribuições de guarda da Constituição, está a de fiscalizar o Governo, de autorizar a declaração de guerra, do estado de sítio e do estado de emergência. Além, obviamente, de alterar a Constituição, se houver aprovação de dois terços dos deputados. A revisão da Constituição só pode ocorrer após decorridos cinco anos da publicação da última lei de revisão constitucional. Excepcionalmente, se houver a concordância de quatro quintos dos deputados, a Assembleia pode revisar a Constituição fora desses prazos. A Constituição não pode ser revisada na vigência do estado de exceção constitucional e há limites materiais para essa revisão, como independência nacional, a forma republicana, a separação dos órgãos de soberania, a independência judicial, os direitos, liberdades e garantias constitucionais etc.

No tocante ao poder judiciário, está prescrito que a administração da Justiça tem por objeto dirimir conflitos de interesses públicos e privados, reprimir a violação democrática e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, e que os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à Constituição e à lei, e não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consignados. Assim como nas Constituições já ventiladas, há um capítulo apenas para cuidar do Tribunal Constitucional e da “guarda e defesa” da Constituição.

Ao Tribunal Constitucional compete a matéria jurídico-constitucional. Os seus magistrados exercerão a função por um período de nove anos e possuem as prerrogativas e proibições inerentes aos demais magistrados. As decisões do Tribunal, nos processos de fiscalização de constitucionalidade ou de legalidade, possuem força obrigatória geral. Os efeitos das decisões, no concernente aos prazos, podem ser manipuladas, a fim de preservar a segurança jurídica e a estabilidade das situações normativas.

A defesa nacional é a disposição, integração e ação coordenadas de todas as energias e forças morais e materiais da Nação, face a qualquer forma de ameaça ou agressão, a integridade territorial e a independência de Cabo Verde, a liberdade e a segurança da sua população, bem como o ordenamento constitucional democraticamente estabelecido. As forças armadas estão subordinadas e obedecem aos competentes órgãos constitucionais e legais de soberania e não podem ter qualquer atuação político-partidária, e devem defender as instituições democráticas e o ordenamento constitucional.

Esses são os principais aspectos do modelo constitucional caboverdiano de defesa da legitimidade democrática e de guarda da legalidade constitucional.


5 OS GUARDIÕES DA GUINÉ-BISSAU[18]

Segundo a Constituição, a Guiné-Bissau é uma república soberana, democrática, laica e unitária, cuja soberania reside no povo, que exerce o poder político diretamente ou através dos órgãos eleitos democraticamente, com efetiva participação popular orientada para a construção de uma sociedade livre e justa. Na Constituição há a proclamação de gratidão eterna ao combatente que voluntariamente se sacrificou para garantir a libertação da pátria, demonstrando que a conquista da liberdade foi mediante intensa participação e insurreição popular em face do domínio colonial português nas lutas de libertação no século passado.

Prescreve a Constituição que a República da Guiné-Bissau defende o direito dos povos à autodeterminação e à independência, que apoia a luta dos povos contra o colonialismo, o imperialismo, o racismo e todas as demais formas de opressão e exploração. E que é dever fundamental do Estado salvaguardar, por todas as formas, as conquistas do povo e, em particular, a ordem democrática constitucionalmente instituída, e que a defesa da Nação deve organizar-se com base na participação ativa e na adesão consciente das populações. Também prescreve que as Forças Armadas são instrumento nacional ao serviço do povo e instituição primordial de defesa da Nação, com a incumbência de defender a independência, a soberania e a integridade territorial. As forças armadas devem obedecer aos órgãos de soberania, são apartidárias e seus elementos não podem exercer qualquer atividade política. E, segundo a Constituição, as forças de segurança têm por função defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos, e também são apartidárias e seus elementos proibidos de qualquer atividade política.

Dispõe a Constituição que são órgãos de soberania o presidente da República, a Assembleia Nacional Popular, o governo e os tribunais, e que a organização do poder político está baseada na separação e independência dos órgãos de soberania e na subordinação de todos eles à Constituição.  Está prescrito que o presidente da República é o chefe de Estado, símbolo da unidade, garante da independência nacional e da Constituição e comandante supremos das forças armadas. Jura o presidente defender a Constituição, as leis, a independência e unidade nacionais. Para essas missões, a Constituição autoriza o presidente a promulgar, ou a vetar as leis, declarar os estados de guerra, de sítio ou de emergência (emergência constitucional), de dissolver ou o Parlamento ou de demitir o Governo.

O Parlamento (a Assembleia Nacional Popular) é o supremo órgão legislativo e de fiscalização política representativa dos cidadãos guineenses, e também tem competência para defender e zelar pela Constituição, seja mediante a sua reforma ou requerendo a dissolução do Governo ou requerendo o processamento em face de eventuais crimes do presidente da República. A decretação dos estados de emergência constitucional deve ser apreciada pelo Parlamento.

No tocante ao poder judiciário, está prescrito que os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, são independentes e apenas sujeitos á lei, que os magistrados devem exercer as suas funções com total fidelidade aos princípios fundamentais e aos objetivos da Constituição e que devem obediência apenas à lei e à sal consciência. O Supremo Tribunal de Justiça é a instância judicial suprema da República.

No processo de fiscalização da constitucionalidade das leis, está prescrito que os tribunais não podem aplicar normas que infrinjam a Constituição. E que admitida a questão da inconstitucionalidade, o incidente será apreciado pelo Supremo Tribunal de Justiça, cujas decisões terão força obrigatória e geral. No tocante à revisão ou reforma da Constituição, a proposta deve ser aprovada por pelo menos dois terços dos parlamentares, e não podem afetar uma série de temas, como a unidade e a república, a laicidade e a integridade do Estado, os direitos e liberdades fundamentais etc. Em suma, são esses os guardiões da Constituição da Guiné-Bissau.


6 OS GUARDIÕES DA GUINÉ EQUATORIAL[19]

A Lei Fundamental da Guiné Equatorial é uma Constituição semântica, no sentido atribuído por Karl Loewenstein, ou seja, um texto normativo que disfarça e justifica o abuso de poder governamental, ao invés de limitar esse poder. Nada obstante, mesmo os regimes autoritários evocam a democracia e o povo como fundamentos de seu poder, e prescrevem que a soberania popular como fonte do poder governamental. Nada obstante o caráter semântico dessa Constituição, está nela prescrito que nenhuma fração do povo ou um indivíduo pode atribuir-se o exercício da soberana nacional. E que todos cidadãos têm o dever de honrar a pátria, defender a sua soberania, a integridade territorial e a unidade nacional. O Estado, dispõe a Lei Fundamental, exerce a sua soberania através dos seguintes poderes: executivo, legislativo e judiciário.

O presidente da República é o chefe de Estado e de Governo, encarna a unidade nacional, define a política da nação, vela pelo respeito à Lei Fundamental. O presidente governa por meio do Conselho de Ministros. Na Guiné Equatorial, os poderes legislativo e judiciário estão à mercê dos interesses governamentais do poder executivo. Nominalmente está prescrito que o poder de legislar reside no povo, que lho delega ao Parlamento. Este pode ser dissolvido pelo presidente da República.

Ainda, nominalmente, está prescrito que o poder judiciário é independente e que está submetido à lei. Há um Tribunal Constitucional competente para conhecer das controvérsias constitucionais. As Forças Armadas possuem a missão de garantir a independência nacional e a integridade territorial, defender a soberania nacional, salvaguardar os valores supremos da pátria, a segurança do Estado, a ordem pública e o normal funcionamento dos poderes públicos.

A reforma da Constituição requer a aprovação de três quartos dos parlamentares. E são vedadas reformas constitucionais que versem sobre o regime republicano e democrático, sobre a unidade nacional e sobre a integridade territorial. Sem embargo das promessas constitucionais, a realidade política, social e jurídica da Guiné Equatorial revela uma nação onde infelizmente vige um regime político autoritário, no qual a Constituição não passa de uma “simples folha de papel” sem força normativa alguma, pelo menos na proteção dos direitos humanos fundamentais e na limitação real aos eventuais abusos do poder governamental.


7 OS GUARDIÕES DE MOÇAMBIQUE[20]

No preâmbulo da vigente Constituição moçambicana há remissão à luta armada de libertação nacional que aglutinou todas as camadas patrióticas dessa sociedade e que essa Constituição continua a tradição iniciada com os textos de 1975 e de 1990 de instauração do Estado de Direito, da democracia e da consolidação dos direitos e liberdades fundamentais. E no texto está prescrito que a República valoriza a luta heróica e a resistência secular do povo moçambicano contra a dominação estrangeira. É de ver, portanto, que o povo pegou em armas para libertar-se e para garantir a sua  soberania, inclusive com especial tratamento às pessoas que ficaram com deficiências por força dos conflitos armados.

Na esteira do discurso democrático, prescreve que a soberania reside no povo e que o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade e que as normas constitucionais prevalecem sobre todas as restantes normas do ordenamento jurídico. E que todos os cidadãos têm o dever de respeitar a ordem constitucional e que os atos contrários à Constituição são sujeitos às sanções legais. Na obstante, a está garantido o direito do cidadão de impugnar os atos que violem os seus direitos constitucionais e legais e de recorrer aos tribunais contra essas violações.

No concernente aos poderes políticos, está prescrito que são órgãos da soberania o presidente da República, a Assembleia da República, o Governo, os tribunais e o Conselho Constitucional. Também está enunciado que os órgãos de soberania assentam-se nos princípios da separação e interdependência dos poderes e devem obediência à Constituição e às leis. Quanto ao presidente da República, está disposto que ele é o Chefe do Estado, símbolo da unidade nacional, representante da Nação no plano interno e internacional e zela pelo funcionamento corre dos órgãos do Estado, que é o garante da Constituição e o comandante-chefe das forças de defesa e segurança. Dentre suas atribuições como defensor constitucional da legalidade institucional e da legitimidade democrática está a de decretar os estados de exceção constitucional e de vetar as leis.

O poder legislativo é exercido pela Assembleia da República. Dentre as suas atribuições como guarda da Constituição estão a de apreciar e deliberar sobre os estados de exceção constitucional, ratificar os decretos-leis e os tratados internacionais, fiscalizar as ações governamentais e presidenciais, bem como alterar os dispositivos da Constituição, por dois terços de seus membros, respeitando os limites a essa revisão, como a independência, a soberania e a unidade do Estado, a laicidade do Estado, o sufrágio universal, a separação dos poderes etc.

O poder judiciário é exercido pelos tribunais, que não devem aplicar leis ou princípios que ofendam a Constituição. Esta criou o Conselho Constitucional, que é o órgão de soberania ao qual compete especialmente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional. Os membros do Conselho Constitucional possuem as mesmas prerrogativas e vedações dos demais magistrados do poder judiciário. O Conselho tem a competência para apreciar a validade constitucional tanto das leis em vigor quanto dos projetos de lei. As decisões do Conselho possuem força obrigatória geral, não são passíveis de recursos e prevalecem sobre outras decisões.

Por fim, as forças de defesa e segurança visam defender a independência nacional, preservar a soberania e integridade do país e garantir o funcionamento normal das instituições e a segurança dos cidadãos contra qualquer agressão armada e devem fidelidade à Constituição e à Nação, e devem ser apartidárias, mas devem especial obediência ao presidente da República.

Eis o modelo constitucional de defesa da legalidade institucional e da legitimidade democrática moçambicana.


8 OS GUARDIÕES DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE[21]

No preâmbulo da Constituição está enunciado que durante cinco séculos o povo são-tomense travou contra a dominação colonial um combate difícil e heroico pela libertação de sua Pátria ocupada, pela conquista da soberania e independência nacional, pela restauração dos seus direitos usurpados e pela reafirmação da sua dignidade humana e personalidade africana. Essa luta centenária resultou, em 12 de julho de 1975, na independência de São Tomé e Príncipe em face do domínio português. Lê-se que foi a luta popular que viabilizou a independência e a soberania nacional. Nada obstante esteja preceituado na Constituição que a defesa nacional é assegurada pelo Estado e tem como objetivos essenciais garantir a independência nacional, a integridade territorial e o respeito das instituições democráticas, está disposto também que é honra e dever supremo do cidadão participar na defesa da soberania, independência e integridade territorial, com  a obrigação de serviço militar obrigatório e que a traição à Pátria é crime punível com as sanções mais graves.

Nessa Constituição está prescrito que o país é um Estado de direito democrático baseado nos direitos fundamentais da pessoa humana e salvaguarda a justiça e a legalidade como valores fundamentais da vida coletiva e que o poder político pertence ao povo, que o exerce através de sufrágio universal, igual, direto e secreto. Também prescreve que o exercício dos direitos fundamentais só pode ser restringido nos casos constitucionalmente previstos e suspensos na vigência de estado de sítio ou de emergência, e que nenhuma restrição ou suspensão de direitos pode ser estabelecida além do estritamente necessário, assim como todo cidadão tem o direito de recorrer aos tribunais contra atos que violem seus direitos institucionalmente reconhecidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios econômicos. Dispõe a Constituição que o cidadão tem deveres para com a sociedade e o Estado, não podendo exercer os seus direitos com violação dos direitos dos outros cidadão e desrespeito das justas exigências da moral, da ordem pública e da independência nacional, assim como todos têm o dever de contribuir para as despesas públicas.

No tocante à organização dos poderes políticos, está prescrito que os órgãos de soberania são o presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais. E que esses órgãos devem observar os princípios da separação e interdependência, e que não pode haver delegação de seus poderes. Também prescreve que os titulares dos órgãos de soberania devem jurar cumprir a Constituição, as leis e defender a independência nacional.

No concernente ao poder executivo, está enunciado que o presidente da República é o chefe de Estado e o comandante supremo das forças armadas, representante da República, garante da independência e da unidade nacional e assegurador do regular funcionamento das instituições nacionais. Dentre suas atribuições como defensor da Constituição e da institucionalidade democrática estão a de declarar o estado de sítio e o de emergência, ouvido o Governo e autorizado pelo Parlamento, requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade ou legalidade dos diplomas normativos e dos tratados internacionais, dissolver a Assembleia Nacional e demitir o Governo, declarar a guerra e celebrar a paz e vetar os diplomas aprovados pela Assembleia. O presidente da República será julgado pelo Supremo Tribunal de Justiça se houver autorização de pelo menos dois terços dos membros da Assembleia Nacional.

Ainda no plano executivo, o Governo é o órgão ao qual cabe compete conduzir a política geral do país, composto pelo primeiro-ministro, pelos ministros e secretários de Estado. O primeiro-ministro é o chefe do Governo, competindo-lhe dirigir e coordenar a sua ação e assegurar a execução das leis, é responsável perante o presidente da República e perante a Assembleia Nacional. Esta é o mais alto órgão representativo e legislativo do Estado, composta por deputados eleitos e que representam todo o povo. Para o exercício de suas atribuições, os deputados possuem uma série de imunidades e prerrogativas. Dentre as competências de guardiã da Constituição estão a de revisar o texto constitucional, autorizar o presidente da República a declarar os estados de exceção constitucional e anular provimentos legislativos e normativos que contrariem a Constituição.

A Assembleia Nacional pode ser dissolvida em caso de crise institucional grave que impeça o seu normal funcionamento, quando tal se torne necessário para o regular funcionamento das instituições democráticas, devendo o ato sob pena de inexistência jurídica, ser precedida de parecer favorável do Conselho de Estado.

No plano jurisdicional, os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo e devem assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, dirimir os conflitos de interesse públicos e privados e reprimir a violação das leis. Suas decisões devem ser fundamentadas e são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. Os magistrados possuem uma série de prerrogativas para que possam bem desempenhar suas funções, como a de que não podem ser removidos e que não serão responsabilizados por suas decisões, salvo as exceções legalmente estipuladas.

No tocante à fiscalização de constitucionalidade, está disposto que nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou nos princípios nela consignados. A questão da inconstitucionalidade pode ser levantada pelo próprio tribunal, pelo ministério público ou por qualquer das partes. Uma vez admitida a questão da inconstitucionalidade, o incidente sob em separado para o Tribunal Constitucional, que decidirá e suas decisões terão força obrigatória geral. Com efeito, o Tribunal Constitucional tem a competência específica para administrar a justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, como a apreciação preventiva da constitucionalidade requerida pelo presidente da República de acordo ou tratado internacional. O Tribunal, a requerimento do presidente da República ou do primeiro-ministro ou de um quinto dos deputados, pode apreciar previamente a constitucionalidade de qualquer diploma sujeito à apreciação presidencial.

A decisão do Tribunal que inquinar de inconstitucional uma norma deverá ser vetada pelo presidente da República e devolvido ao órgão que o tiver aprovado. Se o Tribunal se pronunciar pela inconstitucionalidade de acordo ou de tratado internacional, este só poderá ser ratificado se a Assembleia Nacional vier a aprovar por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absolutas dos deputados em efetividade de funções. O Tribunal aprecia e declara com força obrigatória geral a inconstitucionalidade de quaisquer normas. Podem requerer ao Tribunal a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória o presidente da República, o presidente da Assembleia Nacional, o primeiro-ministro, o procurador-geral da República, um décimo dos deputados da Assembleia Nacional, a Assembleia Legislativa Regional e o presidente do Governo Regional do Príncipe.  A Constituição autoriza o Tribunal a manipular os efeitos das suas decisões por razões de segurança jurídica, de equidade ou interesse público de excepcional relevo.

No concernente à revisão constitucional, a competência é da Assembleia Nacional que pode revê-la decorridos cinco anos sobre a data da publicação da última lei de revisão. Excepcionalmente, se três quartos dos deputados assim entenderem, a Assembleia Nacional poderá assumir os poderes de revisão constitucional. As alterações constitucionais devem ser aprovadas por maioria de dois terços dos deputados. A Constituição não pode ser revisada na vigência do estado de sítio ou de emergência. E não podem ser objeto de revisão constitucional a independência, a integridade nacional e a unidade do Estado, a laicidade estatal, a forma republicana, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, o sufrágio universal, direto, secreto e periódico,  a separação e interdependência dos órgãos de soberania, a autonomia dos poderes regional e local, a independência dos tribunais e o pluralismo político democrático.

Essa é a disciplina normativa relativa aos guardiões da legalidade constitucional e da legitimidade democrática de São Tomé e Príncipe.


9 OS GUARDIÕES DO TIMOR-LESTE[22]

No preâmbulo da Constituição do Timor-Leste está enunciado que a resistência ao domínio estrangeiro desdobrou-se em três frentes: a militar, protagonizada pelas forças armadas, a clandestina, protagonizada por homens e mulheres civis, e a diplomática, que envolveu múltiplos setores da sociedade mundial, mormente a Igreja Católica, de sorte que muitos foram os mártires que viabilizaram a independência e a liberdade do Timor-Leste e que tornaram possível a promulgação de sua Constituição.

Nessa Constituição, está prescrito que a República Democrática do Timor-Leste é um Estado de direito democrático, soberano, independente e unitário, baseado na vontade popular e no respeito pela dignidade da pessoa humana. Também está enunciada que a soberania reside no povo, que a exerce nos termos da Constituição, que o Estado subordina-se à Constituição e às leis, e que estas e os demais atos do Estado e do poder local só são válidos se forem conformes à Constituição e que o Estado reconhece e valoriza as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate especialmente do direito costumeiro.

Dentre os objetivos fundamentais do Estado timorense está o de defender e garantir a soberania do país, garantir e promover os direitos e liberdades dos cidadãos e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático e defender a garantir a democracia política e a participação popular na resolução dos problemas nacionais. A Constituição assegura o acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e que a justiça não pode ser denegada por insuficiência de meios econômicos. Também é instituída a figura do Provedor de Direitos Humanos e Justiça como órgão independente que tem por função apreciar e procurar satisfazer as queixas dos cidadãos contra os poderes públicos, podendo verificar a conformidade dos atos com a lei, bem como prevenir e iniciar todo o processo para a reparação das injustiças. É, também, assegurado a todos o direito de não acatar e de resistir às ordens ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias fundamentais, assim como o direito de legítima defesa.

Assegura-se o direito de participação política, o direito de votar e ser de ser votado e o caráter cívico do direito ao sufrágio, bem como que todo cidadão tem o direito de apresentar petições, queixas e reclamações, individual ou coletivamente, perante os órgãos de soberania ou quaisquer autoridades, para defesa dos seus direitos, da Constituição, das leis ou do interesse geral. Todo o cidadão tem o direito e o dever de contribuir para a defesa da independência, soberania e integridade territorial do país, inclusive mediante o serviço militar.

No concernente à organização do poder político, está prescrito que ele se radica no povo. E que são órgãos da soberania o presidente da República, o Parlamento Nacional, o Governo e os Tribunais, que devem respeitar, nas suas relações recíprocas e no exercício de suas funções, o princípio da separação e interdependência dos poderes constitucionalmente estabelecidos. Prescreve que o Presidente da República é o chefe do Estado, símbolo e garante da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, bem como é comandante supremo das forças armadas.

Dentre as competências presidenciais, na qualidade de defensor da Constituição, que deve jurar defender no ato de sua posse, está a de promulgar ou de exercer o direito de veto sobre os diplomas legislativos, requerer a apreciação preventiva e a fiscalização abstrata da constitucionalidade das normas, bem como a verificação da inconstitucionalidade por omissão, declarar os estados de sítio ou de emergência, mediante autorização do Parlamento, declarar a guerra e fazer a paz.

O Governo é o órgão de soberania responsável pela condução e execução da política geral do país e o órgão superior da administração pública. É constituído pelo primeiro-ministro, pelos ministros e secretários de Estado. O primeiro-ministro é indicado pelo partido político mais votado ou pela aliança de partidos com maioria parlamentar e nomeado pelo presidente da República. O Governo responde perante o presidente da República e perante o Parlamento nacional. Dentre suas atribuições, como guardião da Constituição, está a de garantir o gozo dos direitos e liberdades fundamentais aos cidadãos, bem como subsidiar o presidente da República no exercício de suas atribuições constitucionais.

No tocante ao poder legislativo, está prescrito que o Parlamento Nacional é o órgão de soberania da República Democrática de Timor-Leste, representativo de todos os cidadãos timorenses com poderes legislativos, de fiscalização e de decisão política. Os deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções. Dentre suas atribuições como guardião da Constituição, compete legislar sobre cidadania, direitos, liberdades e garantias, a suspensão das garantias constitucionais e a declaração do estado de sítio e do estado de emergência e política de defesa e segurança.

Quanto ao poder judiciário e à magistratura, está enunciado que os tribunais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, e que as suas decisões são de cumprimento obrigatório e prevalecem sobre todas as decisões de quaisquer autoridades, assim como os são independentes e apenas sujeitos à Constituição e à lei, e que não podem aplicar normas contrárias à Constituição ou aos princípios nela consagrados. Aos juízes, no exercício de suas funções, garante-se a independência e devem apenas obediência à Constituição, à lei e à sua consciência. Dentre os órgãos jurisdicionais, compete ao Supremo Tribunal de Justiça administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional.

Segundo a Constituição, na qualidade de seu guardião, cabe ao Supremo Tribunal de Justiça apreciar e declarar a inconstitucionalidade e ilegalidade dos atos legislativos e normativos dos órgãos do Estado, verificar previamente a constitucionalidade e a legalidade dos diplomas legislativos e referendos, verificar a inconstitucionalidade por omissão e decidir, em sede recursal, sobre a não aplicação de normas consideradas inconstitucionais pelos tribunais inferiores.

No processo de garantia e revisão da Constituição, está disposto que podem requerer ao Supremo Tribunal de Justiça a declaração de inconstitucionalidade o presidente da República, o presidente do Parlamento, o procurador-geral da República, o primeiro-ministro, um quinto dos deputados e provedor de direitos humanos e justiça. E que cabe recurso ao Supremo das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que apliquem normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. As decisões do Supremo não são passíveis de recurso e possuem força geral e obrigatória em matéria constitucional.

Já a revisão da Constituição compete ao Parlamento decorrido seis anos sobre a data da publicação da última lei de revisão constitucional. Nada obstante, se quatro quintos dos deputados decidirem, a qualquer momento pode o Parlamento revisar a Constituição. As alterações constitucionais exigem aprovação de pelo menos dois terços dos parlamentares. A Constituição não pode ocorrer na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência. E a revisão deve respeitar, dentre outras limitações materiais, a independência nacional e a unidade do Estado, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a forma republicana, a separação dos poderes, a independência dos tribunais, o multipartidarismo e o direito de oposição democrática e o sufrágio.

Por fim, quanto à defesa e segurança nacionais, as forças armadas garantem a independência nacional, a integridade territorial e a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa e o respeito pela ordem constitucional. Elas são apartidárias e devem obediência aos órgãos de soberania, sendo-lhes vedada qualquer intervenção política. A polícia defende a legalidade democrática e garante a segurança interna dos cidadãos, sendo rigorosamente apartidária e a prevenção criminal deve fazer-se com respeito aos direitos humanos.

Essa é a disciplina normativa relativa aos guardiões da legalidade constitucional e da legitimidade democrática do Timor-Leste.


10 OS GUARDIÕES DO BRASIL[23]

A Constituição brasileira, promulgada em 1988, nasceu de um amplo acordo político decorrente de um sólido consenso social que resultou na restauração da democracia republicana, que foi parcialmente suspensa com o movimento cívico-militar de 1964. Nada obstante a guerrilha armada e o autoritarismo político-militar, a redemocratização e o restabelecimento das franquias cívicas foram pacificamente conquistados e institucionalmente garantidos, graças à habilidade das forças políticas nacionais, que souberam construir uma solução responsável e adequada para o nosso contexto histórico. Assim, diferentemente das demais Constituições lusófonas africanas que resultaram de guerras civis de libertação, a brasileira foi pacificamente construída, mas com ampla participação popular, de sorte que os “gabinetes do poder” foram pressionados pelo “pulsar das ruas”.

Nessa perspectiva, a Constituição reafirma o mantra democrático segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos constitucionalmente estabelecidos. Dentre os direitos constitucionalmente assegurados aos indivíduos está o de petição aos poderes públicos em defesa de seus direitos ou contra ilegalidades ou abusos de poder. Assegura a Constituição que o exercício da soberania popular será por sufrágio universal e voto direto e secreto, com igual valor para todos. O alistamento eleitoral e o voto são deveres cívicos obrigatórios para os maiores de 18 anos de idade, e facultativo para os maiores de 70 anos e para os menores de 18 e maiores de 16 anos.

Está prescrito que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público. É de ver a aplicação medular da “guarda constitucional mista”. Ou seja, praticamente todas as autoridades e agentes públicos devem ser guardiões da Constituição. E como o poder emana do povo, este também deve ser seu guardião, assim como todo e qualquer cidadão brasileiro.

No tocante à organização dos poderes, a Constituição brasileira adotou explicitamente o federalismo tridimensional com as autonomias governamentais federal, estaduais e municipais, e com a figura do Distrito Federal que é a um só tempo Estado e Município. Além do federalismo, a Constituição adotou a separação dos Poderes com a repartição de competências entre os poderes legislativo, executivo e judiciário, que devem ser independentes e harmônicos entre si.

No plano federal, o poder legislativo é exercido pelo Congresso Nacional que se compõe de duas Casas Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. Este composto por representantes dos Estados, enquanto aquela composta por representantes do povo. No exercício de suas atribuições de guarda constitucional, ao Congresso Nacional compete autorizar o presidente da República a declarar a guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, aprovar o estado de defesa e a intervenção federal e autorizar o estado de sítio ou suspender qualquer  uma dessas medidas excepcionais do estado de exceção constitucional, e sustar os atos normativos do poder executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.

Também compete ao Congresso Nacional julgar o presidente da República por crimes de responsabilidade (crimes políticos), sendo que a instauração desse processo de impedimento (impeachment) compete  à Câmara dos Deputados, por dois terços de seus membros, e o processo e o julgamento compete ao Senado Federal, que eventualmente condenará por dois terços de seus membros. Para bem desempenharem essas funções, os parlamentares são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, e somente podem ser processados e julgados perante o Supremo Tribunal Federal. Ainda no exercício de guarda da Constituição, o Parlamento está autorizado a fiscalizar os atos governamentais do poder executivo e a de investigar fatos relevantes.

Quanto à reforma da Constituição, o Congresso Nacional pode executá-la se três quintos dos membros de cada uma de suas Casas aprovar, em dois turnos de votação. Somente um terço, no mínimo, dos membros de cada uma das Casas legislativas, ou o presidente da República ou mais da metade das Assembleias Legislativas dos Estados federados poderão propor emenda à Constituição. Durante a vigência dos estados de exceção constitucional não pode haver mudança constitucional. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a forma federativa, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

Já o poder executivo é exercido pelo presidente da República com o auxílio dos ministros de Estado. No Brasil, diversamente do que sucede nos outros países lusófonos, vige o sistema presidencialista, no qual o presidente da República acumula a chefia de Estado, de Governo e da administração federal. O presidente é eleito junto com o seu vice-presidente e ambos tomam posse conjuntamente e se comprometem a manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil.  Dentre as atribuições do presidente da República como guardião da Constituição estão a de sancionar ou vetar os projetos de lei, por motivos de inconstitucionalidade ou de interesse público, decretar o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal, e exercer o comando supremo das forças armadas.

O poder judiciário é exercido por juízes e tribunais, sendo o órgão de cúpula o Supremo Tribunal Federal que tem como função precípua a guarda da Constituição e competência para apreciar a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de preceito fundamental, no concernente ao controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, e de julgar outros feitos, ações e recursos no controle de casos concretos, mormente de decisões de instâncias judiciais inferiores que contrariem dispositivos constitucionais, que declarem a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal, ou que julguem válidas leis ou atos de governo local contestados em face da Constituição.

Está preceituado que as decisões definitivas de mérito do Supremo Tribunal Federal, no controle concentrado e abstrato, bem como as suas “súmulas vinculantes”, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do poder judiciário e à administração pública. Podem propor, perante o Tribunal, as ações de controle concentrado e abstrato, o presidente da República, a mesa do Senado Federal, a mesa da Câmara dos Deputados, a mesa do poder legislativo do Estado federado ou do Distrito Federal, o governador de Estado ou do Distrito Federal, o procurador-geral da República, o conselho federal da Ordem dos Advogados, o partido político com representação no Congresso Nacional, e a confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. 

Por fim, como últimos guardiões da legalidade institucional e da legitimidade democrática, na eventual hipótese de falência ou insuficiências das instituições normais para essa finalidade, restam as forças armadas, que são as instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República e destinadas à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, por iniciativa de qualquer dos poderes. Ao militar, dentre várias vedações, está de sindicalizar-se ou de fazer greve, bem como de filiação e de atividades político-partidárias. O serviço militar é obrigatório para os homens. Mulheres e eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempos de paz.

Em suma, esse é o desenho normativo dos órgãos responsáveis pela legalidade constitucional e pela legitimidade democrática no Brasil.


11 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conquanto haja uma similitude constitucional no concernente aos guardiões da respectiva legalidade institucional e legitimidade democrática, sobretudo entre Portugal, os países africanos e o Timor-Leste, com diferenças mais acentuadas se comparadas com o modelo brasileiro, somente a prática e a realidade revelarão se essa arquitetura normativa é consistente para garantir a supremacia normativa da Constituição, obviamente.

Nada obstante, pelo que ficou demonstrado, vimos que os textos normativos plasmam a experiência de seus próprios povos e as de outras nações, de sorte que os instrumentos institucionais de defesa, guarda e proteção da Constituição e da legitimidade democrática estão bem posicionados e podem ser eficientemente acionados na eventual hipótese de ameaças que visem a romper com a estabilidade política, com a paz social e com o equilíbrio harmônico da sociedade.

Uma adequada compreensão de cada modelo constitucional lusófono exigirá a leitura do respectivo texto e o cotejo com a sua realidade subjacente, a fim de verificar se estamos diante de um sistema político “parasitário” ou “simbiótico”, ou seja, se as promessas e expectativas (o dever-ser) se convolaram em  realidade fática (o ser), de modo a sermos felizes herdeiros da exuberante epopeia portuguesa que amalgamou, a ferro e fogo, com lágrimas, sangue e suor,  tantas nações e culturas, de sorte que todo esforço, que todo sofrimento, assim como toda alegria e felicidade, ao fim e ao cabo, valeram e valerão a pena, por todas as nossas almas.


[1] Em 20 de julho de 2010, a Guiné Equatorial adotou a língua portuguesa como um dos seus idiomas oficiais e, em 23 de julho de 2014, foi admitida como membro integrante da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (www.cplp.org).

[2] LASSALLE,  Ferdinand. A essência da Constituição. Prefácio de Aurélio Wander Bastos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

[3] Melhores informações podem ser acessadas diretamente dos sites do Banco Mundial (www.worldbank.org), da Trading Economics (www.tradingeconomics.com), da ONU (www.nacoesunidas.org), da OMC (www.wto.org), da CPLP (www.cplp.org) e outras entidades internacionais.

[4] ALVES JR., Luís Carlos Martins Alves. O sistema constitucional dos países lusófonos – um breve passeio no modelo jurídico-político de Angola, do Brasil, de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste, à luz das concepções de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Karl Loewenstein. Revista da Faculdade de Direito, UFMG, Belo Horizonte, n. 59, pp. 193 a 240, jul./dez. 2011.

[5] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Tradução de Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

[6] SCHMITT, Carl. O Guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: DelRey, 2007.

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de segurança n. 3.557. Plenário. Relator ministro Hahnemann Guimarães. Rio de Janeiro, 1955 (www.stf.jus.br).

[8] ACKERMAN, Bruce. Nós, o povo soberano – fundamentos do direito constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: DelRey, 2006.

[9] ACKERMAN, Bruce. Transformação do direito constitucional - nós, o povo soberano – fundamentos do direito constitucional. Tradução de Mauro Raposo de Mello. Belo Horizonte: DelRey, 2009.

[10] PLATÃO. Apologia de Sócrates. Tradução de Maria Lacerta de Souza. Domínio Público (www.dominiopublio.gov.br).

[11] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Defesa, guarda e rigidez das Constituições. Rio de Janeiro: Revista de Direito Administrativo, vs. 4 e 5, ano 1946 (www.bibliotecadigital.fgv.br).

[12] POLÍBIO. História. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1985.

[13] ALTHUSIUS, Johannes. Política – uma tradução reduzida de política metodicamente apresentada e ilustrada com exemplos sagrados e profanos. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

[14] BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 2001.

[15] Constituição da República Portuguesa, de 1976 (www.parlamento.pt).

[16] Constituição da República de Angola, de 2010 (www.governo.gov.ao).

[17] Constituição da República de Cabo Verde, de 1992 (www.governo.cv).

[18] Constituição da República da Guiné-Bissau, de 1996 (www.parlamento.gw).

[19] Lei Fundamental da República da Guiné Equatorial, de 2012 (www.guineacuatorialpress.com).

[20] Constituição da República de Moçambique, de 2004 (www.portaldogoverno.gov.mz).

[21] Constituição da República Democrática de São Tomé e Príncipe, de 2003 (www.parlamento.st).

[22] Constituição da República Democrática de Timor-Leste, de 2002 (www.timor-leste.gov.tl).

[23] Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (www.planalto.gov.br).


Autor

  • Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Luís Carlos Martins Alves Jr.

    Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

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ALVES JR., Luís Carlos Martins. Os guardiões das constituições lusófonas: uma breve análise acerca da defesa da legalidade institucional e da legitimidade democrática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6299, 29 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85637. Acesso em: 16 abr. 2024.