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A suposta afirmação do sistema acusatório no processo penal com a Lei Anticrime n. 13.964/2019

A suposta afirmação do sistema acusatório no processo penal com a Lei Anticrime n. 13.964/2019

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A reforma parcial do CPP pela Lei Anticrime n° 13.964/2019 trouxe a suposta estrutura acusatória do sistema processual, todavia há um vício estrutural, pois os atores processuais estão patologicamente reféns das raízes inquisitivas.

Resumo: Atualmente, há uma grande tendência pelas reformas processuais penais na América Latina, a fim de que sejam olvidadas as bases de um processo penal de modelo inquisitivo, consagrando assim uma estrutura eminentemente acusatória. Nessa toada, o Brasil, recentemente, trouxe a previsão legal de uma suposta estrutura acusatória do Processo Penal com a reforma parcial introduzida pela Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime. Apesar de alguns avanços, o Código Processual Penal esta acometido de um vício estrutural, onde os atores processuais estão patologicamente reféns das raízes inquisitivas. Nesse sentido, utilizando-se da revisão bibliográfica, a presente pesquisa passa pela compreensão teórica das características dos sistemas processuais penais existentes e por uma análise pragmática da modificação proposta pela Lei Anticrime quanto à positivação da estrutura acusatória no Processo penal brasileiro, concluindo-se que, em que pese à necessária alteração legislativa, deve-se haver uma sólida transição cultural.

Palavras chaves: Sistemas Processuais. Lei Anticrime – n°13.964/2019. Processo Penal brasileiro. Estrutura acusatória.  

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 SISTEMA ACUSATÓRIO. 3 SISTEMA INQUISITIVO. 4 SISTEMA MISTO. 5 O CONTROVERSO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

Detentor e titular do ius puniendi, o Estado, por meio da pretensão punitiva, sujeita o autor de determinado delito à sanção penal prevista em lei, de modo a preservar a ordem social. No entanto, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem o devido processo legal, não podendo o Estado impor a sanção penal, bem como o infrator sujeitar-se à pena. Assim, o Estado se vale do Direito Processual Penal caracterizado pelo complexo de normas jurídicas que regula o modo, os meios e os órgãos incumbidos de exercer seu poder punitivo.

Historicamente identificam-se três sistemas processuais penais, a saber: I - acusatório: caracterizado por atribuir as funções de acusar e julgar a órgãos diversos, consagrando o efetivo direito ao contraditório; II - inquisitivo: onde há concentração dos poderes de acusar e de julgar nas mãos de uma única pessoa: o magistrado; e III – misto: que divide o processo em duas fases distintas: a de instrução preliminar ou prévia, de índole inquisitiva; e a de julgamento, com características preponderantes do sistema acusatório.

No Brasil, recentemente, a Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, trouxe em seu bojo a previsão legal de uma suposta estrutura acusatória do processo penal brasileiro: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

Na tentativa de colocar “panos quentes” na divergência doutrinária em classificar o processo penal pátrio, a tipificação do modelo de estrutura do processo penal num Código com base inquisitorial datado de 1941, desencadeou novas discussões sobre a efetividade do dispositivo legal, abrindo o questionamento se haverá de fato uma estrutura acusatória no processo penal brasileiro, ou será apenas mais um remendo na “colcha de retalhos” codificada, esperando dela resultados estratosféricos.

Assim, de maneira reflexiva e não exauriente, utilizando-se da revisão bibliográfica por meio do método dedutivo, justifica-se o presente artigo permeando-se os sistemas processuais penais e analisando se a modificação proposta no Pacote Anticrime consolida uma estrutura verdadeiramente acusatória no Processo penal brasileiro.


2 SISTEMA ACUSATÓRIO 

O sistema acusatório tem suas raízes no direito romano e grego, instalado com fundamento na acusação oficial, embora se permitisse, excepcionalmente, a iniciativa da vítima, de parentes próximos e até de qualquer do povo. (MIRABETE, 2006). Nesse sistema o acusado participa efetivamente do processo, exercendo seu pleno direito ao contraditório, ferramenta essencial para sua defesa.

[...] Caracteriza-se principalmente pela separação entre as funções da acusação e do julgamento. O procedimento, assim, costuma ser realizado em contraditório, permitindo-se o exercício de uma defesa ampla, já que a figura do julgador é imparcial, igualmente distante, em tese, de ambas as partes. As partes, em pé de igualdade (par conditio), têm garantido o direito à prova, cooperando, de modo efetivo, na busca da verdade real. A ação penal é de regra pública, e indispensável para a realização do processo. Costuma vigorar o princípio oral, imediato, concentrado e público de seus atos. (MOUGENOT, 2017, p.85).

Decorrente do princípio do contraditório, no processo de tipo acusatório, a regra da igualdade processual, segundo a qual as partes, acusadora e acusada, encontram-se no mesmo plano, com iguais direitos. (TOURINHO FILHO, 2018). Esse sistema consiste na separação orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador, se contrapondo ao sistema inquisitivo, em que as funções acusatórias e judicantes se encontram conglomeradas na mesma pessoa, o juiz-inquisidor.

[...] as tarefas de acusação, defesa e julgamento são perfeitamente distribuídas por diferentes sujeitos processuais. Cada um possui função exclusiva: o Ministério Público acusa; o advogado (público ou particular) elabora a defesa técnica; e o magistrado decide, julga, colocando fim ao conflito processual. (MARQUES, 2012, p.13-14).

Outro ponto relevante nesse sistema é a gestão da prova, haja vista que é atribuição das partes reunir material probatório, sempre a luz dos princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade e do dever de motivação das decisões judiciais. Por conseguinte, uma peculiaridade desse modelo, diferentemente do inquisitivo, é que o juiz não é, por excelência, o dirigente da prova.

Brasileiro Lima, (2020, p.44), traz a importância da atividade probatória dentro da relação processual acusatória, ante a preservação da imparcialidade do juiz:

Portanto, quanto à iniciativa probatória, o juiz não pode ser dotado do poder de determinar de ofício a produção de provas, já que estas devem ser fornecidas pelas partes, prevalecendo o exame direto das testemunhas e do acusado. Portanto, sob o ponto de vista probatório, aspira-se uma posição de passividade do juiz quanto à reconstrução dos fatos. A gestão das provas é, por­tanto, função das partes, cabendo ao juiz um papel de garante das regras do jogo, salvaguardando direitos e liberdades fundamentais.

Nota-se atualmente que o sistema acusatório, dentro do contexto de sua aplicabilidade, consagra a efetiva igualdade processual entre as partes, mas especificamente na “paridade de armas” entre acusação e acusado, de modo que a relação processual traz garantias para a efetiva busca à justiça.

Nestes termos, ensina Mirabete, (2006, p.40):

No direito moderno, tal sistema implica o estabelecimento de uma verdadeira relação processual com o actum trium personarum, estando em pé de igualdade o autor e o réu, sobrepondo-se a eles, como órgão imparcial de aplicação da lei, o juiz. No plano histórico das instituições processuais, apontam-se como traços profundamente marcantes do sistema acusatório: "a) o contraditório, como garantia político-jurídica do cidadão; b) as partes acusadora e acusada, em decorrência do contraditório, encontram-se no mesmo pé de igualdade; c) o processo é público, fiscalizável pelo olho do povo; excepcionalmente permite-se uma publicidade restrita ou especial; d) as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a pessoas distintas e, logicamente, não é dado ao juiz iniciar o processo (ne procedat judex ex officio); e) o processo pode ser oral ou escrito; f) existe, em decorrência do contraditório, igualdade de direitos e obrigações entre as partes, pois non debet licere actori, quod reo non permittitur; g) a iniciativa do processo cabe à parte acusadora, que poderá ser o ofendido ou seu representante legal, qualquer cidadão do povo ou um órgão do Estado". 

Por fim, o sistema acusatório vigorou durante quase toda a Antiguidade grega e romana, assim como na Idade Média, nos domínios do direito germano. Entretanto, a partir do século XIII, com o surgimento do Direito canônico, esse entra em declínio, emergindo então o sistema inquisitivo.


3 SISTEMA INQUISITIVO

Base do direito canônico, século XIII, o sistema inquisitorial difundiu-se por toda a Europa, sendo empregado inclusive pelos tribunais civis até o século XVIII.

No sistema inquisitivo buscava-se a autodefesa da administração da justiça, em vez de um genuíno processo na apuração da verdade. Suas raízes no Direito Romano, quando, por influência da organização política do Império, permitia-se ao juiz iniciar o processo de ofício. Ergueu-se na Idade Média diante da necessidade de afastar a repressão criminal dos hereges e alastrou-se por todo o continente europeu a partir do Século XV diante da influência do direito penal da Igreja, entrando em declínio somente no período Iluminista com a Revolução Francesa. (MIRABETE, 2006).

Sua principal particularidade se evidência pelo fato de as funções de acusar, defender e julgar encontrarem concentradas em uma única pessoa, que assume assim as vestes de um juiz inquisidor.

[...] É o processo em que se confundem as figuras do acusador e do julgador. Em verdade, não há acusador nem acusado, mas somente o juiz (o inquisidor), que investiga e julga, e o objeto de sua atividade (o inquirido). É considerado primitivo, já que o acusado é privado do contraditório, prejudicando-lhe o exercício da defesa. Aduz-se também, como característica desse sistema, o fato de inexistir liberdade de acusação, uma vez que o “juiz” se converte ao mesmo tempo em acusador, assumindo ambas as funções. Costuma vigorar no sistema inquisitório o modelo escrito, mediato, disperso e sigiloso de seus atos; (MOUGENOT, 2017, p.85).

Observa-se que quando o Juiz concentra em suas mãos os poderes de acusar e julgar haverá uma decisão, em tese, injusta, tendo vista que não há como esperar que um juiz-inquisidor ao instruir a acusação, dentro de seu livre convencimento, haja com imparcialidade ao decidir a demanda, de modo que sua decisão será contaminada pelos atos da acusação. Assim, “[...] é fácil verificar como o sistema inquisitivo não convém à distribuição da justiça, em virtude do comprometimento do magistrado com a acusação que ele mesmo formulou”. (GRECO FILHO, 2015, p.79).

Essa concentração de poderes nas mãos do juiz compromete, invariavelmente, sua imparcialidade. De fato, há uma nítida incompatibilidade entre as funções de acusar e julgar. Afinal, o juiz que atua como acusador fica ligado psicologicamente ao resultado da demanda, perdendo a objetividade e a imparcialidade no julgamento. Em virtude dessa concentração de poderes nas mãos do juiz, não há falar em contraditório, o qual nem sequer seria concebível em virtude da falta de contraposição entre acusação e defesa. Ademais, geralmente o acusado permanecia encarcerado preventivamente, sendo mantido incomunicável. (BRASILEIRO LIMA, 2020, p.42).

Nota-se que nesse sistema o acusado figura como mero espectador, haja vista sua forçosa inércia diante da acusação, frente a impossibilidade de se exercer o contraditório. Por outro lado, o juiz-inquisidor atua de oficio colhendo elementos suficientes para fundamentar sua decisão.

Nesse toada, esclarece Lopes Jr. (2014, p.73):

Frente a um fato típico, o julgador atua de ofício, sem necessidade de prévia invocação, e recolhe (também de ofício) o material que vai constituir seu convencimento. O processado é a melhor fonte de conhecimento e, como se fosse uma testemunha, é chamado a declarar a verdade sob pena de coação. O juiz é livre para intervir, recolher e selecionar o material necessário para julgar, de modo que não existem mais defeitos pela inatividade das partes e tampouco existe uma vinculação legal do juiz.

Numa hermenêutica mediana, o acusado não é considerado sujeito de direitos é sim mero objeto do processo. Na busca da verdade material, admitia-se que o acusado fosse torturado para que uma confissão fosse obtida, ficando evidente a incompatibilidade do processo inquisitório com os direitos e garantias individuais, sendo rechaçados os mais elementares princípios do processo penal. (BRASILEIRO LIMA, 2020).

[...] O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o início também como acusador. Confundem-se as atividades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto da investigação.  (LOPES JR., 2014, p.72).

Sendo assim, o sistema inquisitório predominou até finais do século XVIII, início do XIX, momento em que a Revolução Francesa inicia uma transição para o sistema misto, imergindo assim a valorização dos princípios inerentes a condição humana, princípios esses que repercutiram na persecução penal, passando o acusado a ser sujeito de direitos. 


4 SISTEMA MISTO 

Consolidado no Code d’Instruction Criminelle (Código de Processo Penal) francês, em 1808, constitui-se o sistema misto pela junção dos dois modelos anteriores, tornando-se, assim, eminentemente bifásico. Compõe-se primeiramente da fase inquisitiva, e em um segundo momento acusatória, instruída pelos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MOUGENOT, 2017).

O sistema misto, ou sistema acusatório formal, é constituído de uma instrução inquisitiva (de investigação preliminar e instrução preparatória) e de um posterior juízo contraditório (de julgamento). Embora as primeiras regras desse processo fossem introduzidas com as reformas da Ordenança Criminal de Luiz XIX (1670), a reforma radical foi operada com o Code D'Instruction Criminelle de 1808, na época de Napoleão, espalhando-se pela Europa Continental no século XIX. É ainda o sistema utilizado em vários países da Europa e até da América Latina (Venezuela). (MIRABETE, 2006, p.41).

Observa-se que a onda evolucionista francesa despertou vários anseios liberais no povo europeu, de modo que, após o período das trevas, marcado pela era inquisitiva, onde direitos e garantias não eram assegurados, começou a emergir com as correntes liberais, o desejo imediato pelos direitos inerentes à pessoa, em especial o aumento das garantias posto ao réu.

Esse sistema misto, que se espalhou por quase toda a Europa continental, no próprio século em que surgiu, começou a sofrer sérias modificações, dada a tendência liberal da época, exigindo fossem aumentadas as garantias do réu. E, realmente, na própria França, a Lei Constans, de 8-12-1897, assegurava ao acusado o direito de defesa no curso da instrução preparatória antes mesmo daquela lei francesa, outros Códigos europeus, como o austríaco, o alemão e o norueguês, já haviam sido atingidos pela corrente liberal. (TOURINHO FILHO, 2018, p.123).

Nota-se que o Sistema Francês ou Misto combina o caráter sigiloso e inquisitivo da investigação em uma fase preliminar do processo – dirigida em tese pela autoridade policial - com a publicidade e o contraditório somente em uma segunda fase, onde se verificaria a instrução definitiva e o julgamento. “[...] uniu as virtudes dos dois anteriores, caracterizando-se pela divisão do processo em duas grandes fases: a instrução preliminar, com os elementos do sistema inquisitivo, e a fase de julgamento com predominância do sistema acusatório” (NUCCI, 2017, p.121-122).

Nesse cerne, Brasileiro Lima (2020, p.45) explica detalhadamente ambas as fases que compõem tal sistema:

É [...] misto porquanto abrange duas fases processuais distintas: a primeira fase é tipicamente inquisitorial, destituída de publicidade e ampla defesa, com instrução escrita e secreta, sem acusação e, por isso, sem contraditório. Sob o comando do juiz, são realizadas uma investigação preliminar e uma instrução preparatória, objetivando-se apurar a materialidade e a autoria do fato delituoso. Na segunda fase, de caráter acusatório, o órgão acusador apresenta a acusação, o réu se defende e o juiz julga, vigorando, em regra, a publicidade, a oralidade, a iso­nomia processual e o direito de manifestar-se a defesa depois da acusação.

Não obstante, é comum na doutrina processual penal a classificação de “sistema misto”, com a afirmação de que os sistemas puros seriam modelos históricos sem correlação com os atuais. Ademais, a divisão do processo penal em duas fases (pré-processual e processual propriamente dita) possibilitaria o predomínio, em regra, da forma inquisitiva na fase preparatória e acusatória na fase processual, delineando assim o caráter “misto”. (LOPES JR., 2019).

No direito contemporâneo, o sistema misto combina elementos acusatórios e inquisitivos em maior ou menor medida, segundo o ordenamento processual local e se subdivide em duas orientações, segundo a predominância na segunda fase do procedimento escrito ou oral, o que, até hoje, é matéria de discussão. (MIRABETE, 2006, p.41).

Contudo, cumpre salientar que o sistema misto, traz um viés garantista ao acusado durante a instrução processual, todavia, na fase da investigação preliminar, aquele fica a mercê da própria sorte, figurando como mero espectador, haja vista a eminência do sistema inquisitorial.


5 O CONTROVERSO SISTEMA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO 

Não havia consenso na doutrina brasileira quanto ao enquadramento do processo penal brasileiro em um dos sistemas mencionados.

Para alguns estudiosos, a Constituição de 1988 recepcionou o sistema acusatório, haja vista o preceito constitucional do artigo 5º, inciso LV, que solidifica as garantias do contraditório e da ampla defesa no processo penal, e pela leitura do artigo 129, que confere exclusividade ao Ministério Público para iniciativa e promoção da ação penal pública, separando assim as atribuições de acusar, julgar e defender.

Outros defendiam que o processo brasileiro era eminentemente misto, tendo por base o inquérito como uma fase integrante do processo penal, dividindo o sistema pátrio em duas fases: a primeira composta pela investigação preliminar – predominantemente inquisitiva; e a segunda com início do oferecimento da denúncia ou queixa e a instauração do processo propriamente dito, esse com viés acusatório.

Imperioso ressaltar que antes da Constituição de 1988, o Código de processo penal tinha um viés misto, haja vista o caráter inquisitorial da fase inicial da persecução penal, entretanto iniciado o processo propriamente dito, consolidava-se a fase acusatória. Todavia, com a promulgação da “Magna Carta”, se estabeleceu a divisão das funções e atribuições de acusar, defender e julgar, bem como pôs o processo sob a égide dos princípios do contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, devido processo legal, etc.

Nota-se o entendimento de Brasileiro Lima (2020, p.45), quanto à transição do sistema processual nacional:

Quando o Código de Processo Penal entrou em vigor, prevalecia o entendimento de que o sistema nele previsto era misto. A fase inicial da persecução penal, caracterizada pelo inquérito policial, era inquisitorial. Porém, uma vez iniciado o processo, tínhamos uma fase acusatória. Porém, com o advento da Constituição Federal, que prevê de maneira expressa a separação das funções de acusar, defender e julgar, estando assegurado o contraditório e a ampla defesa, além do princípio da presunção de não culpabilidade, estamos diante de um sistema acusatório.

Aliás, em todo processo de tipo acusatório, vigora os princípios, segundo o qual o acusado, isto é, a pessoa em relação a quem se propõe a ação penal, goza do direito “primário e absoluto” da defesa. O réu deve conhecer a acusação que se lhe imputa para poder contrariá-la, evitando assim possa ser condenado sem ser ouvido. (TOURINHO FILHO, 2018).

Acontece que, algumas alterações no Código de Processo Penal no decorrer do tempo, foi suplementando o entendimento minoritário pelo Sistema misto, a Lei nº 11.690 de 2008 alterou alguns dispositivos relativos à prova, a inovação se deu no art. 156, I, ao qual facultava ao juiz de ofício ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes.

Em um sistema acusatório, cuja característica básica é a separação das funções de acusar, defender e julgar, não se pode permitir que o magistrado atue de ofício na fase de investigação. Essa concentração de poderes nas mãos de uma única pessoa, o juiz inquisidor, além de violar a imparcialidade e o devido processo legal, é absolutamente incompatível com o próprio Estado Democrático de Direito, assemelhando à reunião dos poderes de administrar, legislar e julgar em uma única pessoa, o ditador, nos regimes absolutistas. A tarefa de recolher elementos para a propositura da ação penal deve recair sobre a Polícia Judiciária e sobre o Ministério Público, preservando-se, assim, a imparcialidade do magistrado. (BRASILEIRO LIMA, 2015, p.64).

De mais a mais, findando a divergência acalorada, a Lei nº 13.964 de 24 de Dezembro de 2019, conhecida como Lei Anticrime, trouxe a previsão legal de uma estrutura acusatória do Processo Penal brasileiro, senão vejamos: “Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.”

Nesse sentido, no melhor entendimento, houve a revogação tácita da regra do art. 156, I do CPP, que facultava ao juiz, de ofício, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes. Quanto ao art. 156, II do CPP onde é facultado ao juiz, de ofício, determinar, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, a realização de diligência para dirimir dúvida sobre ponto relevante, em consonância com o art. 3-A, do CPP, somente admite-se essa inciativa em favor do réu, sendo que o juiz não substituirá a atuação probatória do órgão de acusação, devendo preservar, com afinco, sua imparcialidade.

De fato, houve a positivação do sistema acusatório com a reforma legislativa, todavia deve-se analisar, se a simples previsão legal concretiza a complexa estrutura acusatória desejada pelo legislador. Num olhar ideológico, o projeto do Pacote Anticrime tem um viés encrudescedor do sistema criminal, servindo como instrumento de repressão, e como já visto, trata-se de uma reforma parcial em um Código com base inquisitorial.

Por óbvio que algumas mudanças reafirmam o anseio pelo sistema acusatório, tais como: a implementação da figura do Juiz de garantias – art. 3°B - (Suspenso por prazo indeterminado pela decisão cautelar, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305, pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux); Arquivamento do inquérito policial pelo órgão de acusação – art. 28 (Também suspenso pelas AdIs anteriores); Acordo de Não persecução Penal – art. 28-A e a Manutenção da cadeia de custódia da prova penal – art. 158-A.

Contudo, não há um otimismo nas mudanças processuais, pois reformas pontuais não alteram toda a estrutura sistematizada, nas palavras Bruno Milanez, 2020:

[...] ainda que a reforma produzida pelo pacote anticrime fosse integralmente positiva – o que não é o caso –, seria necessário uma mudança de mentalidade, pois de nada adianta a modificação de leis sem a necessária modificação de práticas. Se seguirmos pensando os institutos processuais a partir de uma matriz inquisitorial, qualquer modificação legislativa que se promova será inserida na engrenagem autoritária e produzirá seus efeitos deletérios.

É nítido que a prática não acompanhará as mudanças processuais, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do HC. 583.995/MG entenderam ser possível a conversão da prisão em flagrante em medida cautelar pessoal, inclusive a prisão preventiva, mesmo sem pedido expresso do Ministério Público ou da autoridade policial, contrariando ao artigo 311 do (CPP), com a nova redação dada pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

E essa não é uma decisão isolada, como se observa nas jurisprudências:

PRISÃO PREVENTIVA – FLAGRANTE – CONVERSÃO DE OFÍCIO – ILEGALIDADE – AUSÊNCIA. Atendidos os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, a conversão de flagrante em preventiva independe de provocação do Estado-acusador ou da autoridade policial. PRISÃO PREVENTIVA – TRÁFICO DE DROGAS – GRADAÇÃO. A gradação do tráfico de drogas revela estar em jogo a preservação da ordem pública. (HC 174102, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 18/02/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 06-03-2020 PUBLIC 09-03-2020).

[...] 1. O Juiz, mesmo sem provocação da autoridade policial ou da acusação, ao receber o auto de prisão em flagrante, poderá, quando presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, converter a prisão em flagrante em preventiva, em cumprimento ao disposto no art. 310, II, do mesmo Código, não havendo falar em nulidade. (RHC 120.281/RO, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 15/05/2020).

Pois bem, não obstante a proclamada adoção de um processo penal com estrutura acusatória, a prática judiciária tem agasalhado diversas situações em que se realizam atividades jurisdicionais com viés inquisitorial, isso porque, nossa cultura é inquisitiva, o Brasil, após a sua independência, da qual resultou produção legislativa diversa da que regia Portugal, sempre tendeu por um maior ou menor inquisitorialismo na sua estrutura processual penal. Em seu pioneiro Código de Instrução Criminal do Império (1832), manteve as práticas inquisitoriais que nos colocavam mais próximos do sistema francês (modelo reformado ou misto) do que do modelo adversarial inglês, simbolizado pelo julgamento popular. SCHIETTI, 2020.

Abre-se um parêntese, diante desse cenário, para as mudanças na justiça penal experimentadas em alguns países da América Latina. Na vanguarda de uma consolidada estrutura acusatória, temos o Processo penal Chileno e o Uruguaio. Os Chilenos passaram de uma estrutura inquisitorial, e hoje têm um sistema acusatório materializado. Apesar de muita resistência souberam transpor os obstáculos, submeteram os juízes a reciclagens para que pudessem aprender as novas regras pertinentes aos princípios do Sistema Acusatório. (MOREIRA, 2020). No Uruguai o novo Código de Processo Penal modificou substancialmente o procedimento penal, passando do Sistema Inquisitório para o Sistema Acusatório, essencialmente oral e público. O Ministério Público (Fiscalía) passou a dirigir as investigações, há um Juiz de garantias na fase de Formalización e outro na etapa de Acusación no Juicio Oral definitivo, assegurou-se a imparcialidade dos juízes, consolidando a estrutura acusatória. (MOREIRA, 2017).

Assim, na contramão dos demais países da América latina, o sistema processual penal brasileiro necessita de severas mudanças para solidificar a então almejada estrutura Acusatória, mudanças essas que vão além da simples positivação da norma como estabelecido pela Lei Anticrime – Lei n° 13.964/2019, deve-se alcançar os paradigmas jurídico-culturais, para que cada ator processual entenda com clareza sua função na persecução penal almejada, nas palavras de Lenio Streck, 2009: “Discutir o “sistema acusatório” é discutir paradigmas. Mais do que isso, é tratar de rupturas paradigmáticas”.


CONSIDERAÇÕES FINAIS  

Observa-se que mesmo com a reforma legislativa proposta pela Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) afirmando a estrutura acusatória do nosso Processo Penal, conservamos os fortes ranços inquisitoriais, tanto em alguns dispositivos da legislação processual, quantos nas práticas forenses, especialmente no que diz respeito às iniciativas judiciais antes e durante a ação penal.

Essa falta de compreensão do nosso modelo processual causa um nefasto conflito normativo e funcional entre os atores processuais, quais sejam: os juízes, promotores, policiais e a defesa, com interferências recíprocas em atribuições e competências que deveriam possuir um contorno delimitado.

Não obstante, a mudança legislativa é necessária, mas é apenas um começo, e não o “Telos” da norma. Sem esse entendimento, torna-se inconcebível que os juízes, membros do Ministério Público e defensores ocupem as novas funções estabelecidas pela reforma legislativa, em outras palavras a principal mudança deve ser a jurídico-cultural.

Por fim, analisando as transformações processuais nos países Latinos Americanos, demonstrou-se a importância da capacitação dos profissionais, especialmente quanto aos procedimentos inovadores para conseguir a mudança cultural que é preciso para uma reforma substancial na estrutura Processual Penal, cuja origem é enraizada em bases inquisitoriais.


REFERÊNCIAS 

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em outubro de 2020.

______. Pacote Anticrime. Lei n° 13.964, de 24 de Dezembro de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em outubro de 2020.

BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. 8. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2020.

_____. Manual de Processo Penal. 3. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 11. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2015.

LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. – São Paulo : Saraiva, 2019.

______. Direito processual penal. 11. ed. – São Paulo : Saraiva, 2014.

MARQUES, Ivan Luís. Processo penal I: investigação preliminar, ação penal, ação civil “ex delicto. São Paulo : Saraiva, 2012.

MILANEZ, Bruno. Pacote Anticrime: agora o sistema é acusatório?. Disponivel em:https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/795451301/pacote-anticrime-agora-o-sistema-e-acusatorio. Acesso em outubro de 2020. 

MOREIRA, Rômulo de Andrade. O que temos que aprender com o Chile. Disponível em: https://romulomoreira.jusbrasil.com.br/artigos/357114615/o-que-temos-que-aprender-com-o-chile. Acesso em outubro de 2020.

______. O novo Código de Processo Penal do Uruguai. Enquanto isso, no Brasil.... Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5244, 9 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61724. Acesso em outubro de 2020.

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Autor

  • Ederson Luiz Reis dos Santos

    Mestrando em Ciências Criminológico-Forenses pela Universidade de La Empresa/Uruguai (2020). Pós-graduando em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (2020). Especialista em Direito aplicado pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná (2019). Membro do IBCCRIM. Atualmente é servidor público na Prefeitura Municipal de Londrina.

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Informações sobre o texto

Artigo publicado na Revista de Direito Público da Procuradoria –Geral do Município de Londrina/ Associação dos Procuradores do Município de Londrina – APROLON / Procuradoria –Geral do Município de Londrina, - v.9,n.1, (Dez, 2020) – Londrina, 2020. Anual ISSN: 2317-4188.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Ederson Luiz Reis dos. A suposta afirmação do sistema acusatório no processo penal com a Lei Anticrime n. 13.964/2019. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6434, 11 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88245. Acesso em: 30 abr. 2024.