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A Lei n. 14.230/2021 e a irretroatividade da prescrição intercorrente

A Lei n. 14.230/2021 e a irretroatividade da prescrição intercorrente

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A Lei 14.230/2021 inaugurou verdadeiro regime administrativo de irresponsabilidade e impunidade.

A Lei nº 14.230/2021, com vigência inciada em 25 de outubro de 2021 (data da sua publicação), promoveu importantes alterações na Lei nº 8.429/92, que dispõe sobre as sanções aplicáveis em razão da prática de atos de improbidade administrativa, tratados no artigo 37, § 4º, da Constituição Federal. As normas contidas na citada lei modificaram, de maneira quantitativa e qualitativa, o sistema jurídico de proteção da probidade administrativa então vigente, trazendo, em caráter muito excepcional, regras mais severas e, tantas outras ultra benevolentes aos agentes públicos ímprobos (que, conforme será frisado, são em sua maioria inconstitucionais).

Quanto às inovações legislativas que agravaram os preceitos primários e/ou secundários dos tipos ímprobos previstos nos artigos 9º, 10 e 11 da Lei nº 8.429/92, a irretroatividade é certa, devendo as disposições mais severas regularem apenas os casos ocorridos na sua vigência. O problema reside quanto à possibilidade ou não de retroatividade da norma sancionadora mais benéfica, como aquela prevista no artigo 23, § 5º, que introduziu o instituto da prescrição intercorrente no âmbito da Lei nº 8.429/92, especialmente diante da ausência de previsão legal expressa nesse sentido.

A resposta a essa questão precisa conjugar a verificação dos seguintes fatores: a) expressa previsão de retroatividade da norma sancionadora mais benéfica; b) a efetiva mudança do padrão axiológico da norma; e c) a suficiência de proteção à probidade administrativa, em razão do regime jurídico-constitucional instituído para a tutela desse bem jurídico.

Apesar da reforma da Lei de Improbidade trazer inovações de grande impacto para o sistema jurídico brasileiro, sendo, em grande e excessiva medida, todas as alterações desconformes com o regime jurídico-constitucional de probidade da gestão pública, o legislador ordinário deixou de estabelecer, de forma propositada, regra de transição, capaz de evitar dúvidas acerca da aplicação da norma no tempo.

Sobre o direito intertemporal, a Constituição Federal, em observância ao princípio da segurança jurídica estritamente ligado à ideia de tempus regit actum, resguarda o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, vedando-lhes qualquer prejuízo pela lei (art. 5º, XXXVI, CF). A partir dessa proibição constitucional (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada), é possível inferir que, no ordenamento jurídico nacional, a regra é a da irretroatividade da lei, impedindo que ela atinja situações de fato e de direito ocorridas anteriormente a sua vigência. A impossibilidade de retroatividade da norma resguarda não apenas o princípio da segurança jurídica, como também o da isonomia e o da proporcionalidade.

Justamente com base nesses valores, o texto constitucional excepciona a regra da irretroatividade, permitindo que a lei penal volte no tempo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF). Esta regra, contudo, submete-se a dois pressupostos: incide no Direito Penal, não admitindo aplicação analógica; e, para produzir efeitos no Direito Administrativo sancionador, exige, em caráter antecedente, expressa previsão legal de sua retroatividade e alteração axiológica do conteúdo do injusto.

Dessa forma, eventual pretensão do legislador infraconstitucional de retroatividade da norma deve estar expressamente consignada na novidade legal, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada [] mostrando-se inviável interpretar o sistema de modo a sancionar condutas que, antes, não admitiam determinadas sanções, eram lícitas ou não proibidas pela ordem jurídica[1]. Nesse sentido também é o artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 4.657/1942), que assim dispõe: A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Portanto, o ponto central da admissão da retroatividade do Direito Administrativo sancionador deve estear-se numa premissa fundamental: a submissão a expressa dicção legal. Assim, a lei nova deve, expressamente, prever sua aplicação retroativa, orientação esta que se lastreia no princípio da legalidade, viga mestra do Estado de Direito.

Conforme destacado, a Lei nº 14.230/2021 foi omissa quanto à sua incidência sobre condutas praticadas antes da sua entrada em vigor, o que desautoriza concluir pela simples retroatividade da norma, sem que seja aferido se a alteração legislativa esvaziou ou não o conteúdo da proibição. Isso porque, no caso de silêncio da lei, a solução para o problema da retroatividade da disposição legal mais benéfica precisa considerar se, mesmo com as inovações legais, houve a permanência da valoração negativa acerca da conduta típica, em indisfarçável continuidade de proteção do bem jurídico, o que impede sua retroação.

Ou seja, deve-se verificar se a nova intervenção legislativa, que se pretende aplicar retroativamente, alterou o conjunto de padrões valorativos da sociedade, a legitimar, ou não, sua aplicação para o passado. E é justamente com base na evolução dos padrões axiológicos que se deve resolver o problema da retroatividade da norma sancionadora extrapenal mais benéfica:

[] há que se atentar ao conteúdo das valorações subjacentes à norma jurídica inovadora e à norma substituída. Se há uma mudança radical de valores, se o legislador modifica uma orientação axiológica tida, em regra, como permanente, em face de critérios científicos ou de profundas alterações nos paradigmas sociais é possível cogitar de retroatividade das normas mais benéficas, sob influxo do princípio da igualdade, diante do silêncio da lei[2].

Dado seu maior dinamismo, a incidência do princípio da retroatividade da lei mais benéfica no Direito Administrativo sancionador pressupõe uma mudança profunda dos valores até então tutelados pela norma punitiva revogada, sendo incabível uma presunção absoluta da retroatividade[3]. No caso das alterações trazidas pela Lei nº 14.230/2021, a nova redação conferida ao art. 10 da Lei nº 8.429/92 é um ótimo exemplo de transformação radical do conteúdo da norma proibitiva, autorizando, sem objeção, a retroatividade da lei para extinguir procedimentos investigatórios e demandas que tenham como objeto/causa de pedir ação ou omissão culposa que gera prejuízo ao erário.

A profunda alteração valorativa promovida pelo legislador infraconstitucional, por intermédio da Lei nº 14.230/2021, é evidenciada não apenas pela exclusão da conduta culposa do caput do artigo 10 da Lei nº 8.429/92, mas também pela retirada da expressão negligentemente e inserção da palavra ilicitamente em uma das hipóteses previstas exemplificadamente como caracterizadora de ato ímprobo que causa lesão ao erário:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

[]

X agir ilicitamente na arrecadação de tributo ou renda, bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público.

Referida modificação refletiu mudança axiológica que vinha se consolidando quanto à lesão ao patrimônio público resultante de conduta culposa. A doutrina e a jurisprudência exigia, para a configuração da referida tipologia, que a conduta fosse praticada ao menos com culpa grave, requisito este que deveria ser utilizado como critério de dosimetria da sanção, não como requisito para a caracterização do tipo ímprobo (AgInt no AREsp 1123605/RJ, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/10/2020, DJe 25/11/2020). O STF, ao julgar o RE 852.475-RG, também demonstrou uma tendência de alteração axiológica sobre a figura culposa anteriormente prevista no art. 10, caput, da Lei nº 8.429/92, ao fixar a tese de que são imprescritíveis apenas ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa.

O legislador infraconstitucional, ao retirar a possibilidade de responsabilização do agente público por condutas culposas que causavam lesão ao erário, mudou os padrões valorativos da norma, justificando a retroatividade da lei para extinguir a punibilidade das ações ou omissão dessa natureza. A mesma transformação conteudística não ocorreu quanto aos atos de improbidade administrativa, o que deslegitima a aplicação retroativa de qualquer disposição que tenha essa característica, como a regra da prescrição intercorrente prevista no 23, § 5º, da Lei nº 8.429/92.

Assim, além da ausência de previsão expressa de retroatividade das alterações legislativas advindas da Lei n.º 14.230/21, a inexistência de evolução dos padrões axiológicos do povo brasileiro acerca da corrupção pública desautoriza presumir pela incidência da prescrição intercorrente sobre as condutas ímprobas praticadas antes da vigência da norma que introduziu referido instituto na Lei de Improbidade Administrativa. Ao contrário, para o povo brasileiro, verdadeiro titular do poder (art. 1º da CF), esses padrões estão a cada dia mais vivos, sendo os comportamentos ímprobos rechaçados em todos os rincões do país[4].

Não bastasse isso, o poder constituinte originário, ao acometer às pessoas jurídicas de direito público interno União, Estados, Municípios e Distrito Federal por meio de seus mandatários, o poder-dever de gestão da coisa pública com o propósito de satisfazer as prestações públicas fundamentais do homem, todas expressa ou implicitamente consagradas na Carta Política fundamental (v.g., promoção da dignidade da pessoa humana; erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; resguardo pela prevalência dos direitos humanos, nos termos dos arts. 1º, inciso I, art. 3º, inciso III art. 4º, inciso II, respectivamente, da CF) e indicar regras e princípios destinados à materialização dessas garantias (art. 5º, inciso LXXIII; art. 15, inciso V; art. 23, inciso I; art. 37, caput), consagrou, de forma clara e precisa, um regime jurídico-constitucional da probidade e honestidade da gestão pública.

Essa afirmação é reforçada pela previsão expressa, ainda que sem estabelecer os contornos jurídicos, do ato de improbidade administrativa, cominando-lhe, também em sede constitucional, as sanções graves de suspensão de direitos políticos e perda das funções públicas. Percebe-se que, muito embora não seja costumeira tarefa do legislador constituinte indicar as espécies de sanções aplicáveis a determinado tipo de injusto, a proeminência dos bens jurídicos resguardados motivaram sua predefinição.

Referido conjunto normativo de regras e princípios taxativamente albergados no texto constitucional é especialmente dotado de significado. Pode-se afirmar que há um direito fundamental à probidade administrativa resguardo pela Constituição Federal, constituindo um núcleo duro e inquebrantável de direitos e garantias que se interpenetram e conferem ao legislador fundamental critério de orientação e contenção.

São balizas materiais que limitam o poder constituinte derivado e, ao mesmo tempo, estabelecem claros e precisos comandos de atuação dos órgãos jurisdicionais, no exercício do controle concentrado ou difuso da constitucionalidade, destinado a cumprir a força normativa da Constituição Federal:

Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter-se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode-se afirmar que a Constituição converter-se-á em força ativa se fizerem-se presentes, na consciência geral particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional não só a vontade do poder, mas também a vontade de Constituição.[5]

Esses diques norteadores do texto constitucional, que exigem uma completa e eficaz tutela da probidade administrativa, também impedem a retroatividade da prescrição intercorrente, especialmente porque a Lei nº 14.230/2021, ao prever referido instituto, transpôs os limites materiais estabelecidos constitucionalmente, criando inovador e deslegitimador sistema de absoluta irresponsabilidade de agentes públicos e políticos ímprobos no país.

Eventual retroatividade do preceito legal descrito no art. 23, § 5º da Lei de Improbidade Administrativa (alterado pela Lei nº 14.230/2021) esvaziará por completo a finalidade da norma protetiva dos princípios regentes da administração pública, em especial por violação ao princípio constitucional da proporcionalidade que, como instrumento de hermenêutica constitucional, possui dentre suas principais finalidades a contenção do arbítrio estatal:

[] um ato estatal qualquer só será considerado compatível com o princípio da proporcionalidade se satisfazer, simultaneamente, aos três subprincípios, que devem ser empregados seguindo um percurso preestabelecido: primeiro, verifica-se se a medida satisfaz o subprincípio da adequação; se a resposta for positiva, passa-se eu subprincípio da necessidade; se, mais uma vez, o resultado for favorável à validade do ato, recorre-se ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito[6].

A referida violação da proporcionalidade pode verificar-se não só em determinada norma jurídica, como também na hipótese de norma jurídica compatível, em tese, com tal princípio, mas que, quando aplicada a um determinado caso concreto dotado de especificidades, produza solução desproporcional [7]. Nessa ordem de ideias, bem enfatiza Sarmento que o primeiro passo na identificação do subprincípio da adequação consiste na identificação da finalidade subjacente ao ato estatal examinado. Esta finalidade deve ser legítima, não podendo contrariar o sistema constitucional [8].

Pondera Sarmento, ainda na dimensão do subprincípio da adequação, que a persecução por meio da lei de objetivos ilegítimos pode também ser enquadrada como hipótese de desvio de poder legislativo. A categoria de desvio de poder legislativo, inspirada na doutrina francesa do détournement de pouvoir, tem uma das suas mais claras manifestações na hipótese em que o legislador se afasta de sua missão institucional de busca do bem comum para, de forma escamoteada, perseguir finalidades incompatíveis com os valores fundamentais da ordem jurídica. A finalidade aparente até pode ser lícita, mas a finalidade real se mostra não apenas ilícita, mas também, muitas vezes, ofensiva à moralidade pública[9].

As palavras de Sarmento adequam-se precisamente ao fato submetido à apreciação deste respeitável juízo. A finalidade legal, eivada de indisfarçável desvio de poder legislativo, certamente colide com o regime jurídico de proteção da probidade administrativa prevista no texto constitucional, ao instituir verdadeira hipótese legal de impunidade e generalizada prescrição das ações de improbidade em tramitação em todo o país. E, para além da tutela dos fins perseguidos, também se exige verificar concretamente se a intervenção legislativa favorece ou não seu alcance, o que não ocorreu na espécie; ao contrário, resta claro que a disposição legal da prescrição intercorrente desfavoreceu, e muito, o regime de proteção constitucional da probidade administrativa.

Por outro lado, o subprincípio da necessidade impõe que, dentre diversas medidas possíveis que promovam com a mesma intensidade uma determinada finalidade, o Estado opte sempre pela menos gravosa. Com base neste subprincípio, torna-se possível invalidar medidas estatais excessivas, que restrinjam em demasia algum direito ou interesse juridicamente protegido, sempre que se demonstrar que uma restrição menor atingiria o mesmo objetivo[10]. Também, na hipótese, o legislador ordinário violou a necessidade, ao prever um prazo de quatro anos que, previamente, já havia sido identificado pelo Conselho Nacional de Justiça como impossível de se cumprir, já que o prazo médio de todas as ações ultrapassavam, e muito, esse período de tempo.

Registre-se que não se defende, por óbvio, a imprescritibilidade infraconstitucional das sanções decorrentes do ato de improbidade administrativa. O que se reputa indispensável é que o prazo prescricional não possa viger para o passado, colhendo processos que já estariam prescritos ou muito próximos da prescrição, sobretudo diante da anterior sistemática que previa defesa preliminar como antecedente necessário ao recebimento da petição inicial.

Nesse sentido, é certo que a nova lei deveria prever prazos prescricionais compatíveis e verossímeis com a realidade brasileira acerca da tramitação e do tempo de duração do processo. A previsão de prazo desconforme com o cenário real nacional (v.g, quatro anos), em verdade, denota o verdadeiro propósito da nova legislação, no sentido de arrefecer o combate a corrupção pública, tornando os autores dos Atos de Improbidade Administrativa impunes e irresponsáveis pelo cometimento dos atos ilícitos em detrimento da Administração Pública.

Por derradeiro, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, ainda com Sarmento,

[] demanda que a restrição ao direito ou ao bem jurídico imposta pela medida estatal seja compensada pela promoção do interesse contraposto. Ele determina que se verifique se o grau de afetação a um direito ou interesse, decorrente da medida questionada, pode ou não ser justificado pelo nível de realização do bem jurídico cuja tutela é perseguida. Trata-se, em suma, de uma análise comparativa entre os custos e benefícios da medida examinada, - seus efeitos negativos e positivos- realizados não sobre uma perspectiva econômica, mas tendo como pauta o sistema constitucional de valores [11].

Tem-se como clarividente que as novas alterações da Lei de Improbidade Administrativa deveriam ter o condão de proteger, ainda mais, o sistema de comportamentos que possam violar o bem jurídico de probidade e moralidade resguarda na Constituição Federal. Todavia, a previsão da prescrição intercorrente, e de muitas outras que não são objeto dessa manifestação, são desproporcionais em sentido estrito, já que inexistirão benefícios para a tutela do patrimônio público, diante da sistema de impunidade que será inaugurado a partir da previsão de prazo temporal tão exíguo, quer se aplique a partir de sua vigência, quer, sobretudo, com efeito retroativo:

A operacionalização do princípio da proporcionalidade por proibição da proteção deficiente baseia-se nnos mesmos subprincípios acima descritos. Assim, quando o Estado se abstiver, total ou parcialmente, de agotar alguma medida que favoreceria a promoção ou a proteção de um determinado direito fundamental ou de envergadura constitucional, caberá indagar: se sua omissão ou atuação deficiente contribuiu para a promoção de algum objetivo legítimo (subprincípio da adequação); b) se não existia outro meio menos prejudicial àquele direito que favorecesse, em igual intensidade, o citado objetivo (subprincípio da necessidade); c) se a promoção de referido objetivo compensa, sob o ângulo constitucional, a deficiência na proteção ou promoção do direito em discussão (subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito)[12].

As alterações da Lei de Improbidade Administrativa, promovidas pela Lei nº 14.230/2021, certamente promoveram indisfarçável proteção deficiente do bem jurídico probidade e moralidade públicas, especialmente por meio da prescrição intercorrente. É fácil observar que a citada inovação legislativa, ao menoscabar e reduzir núcleos de comportamentos proibidos que, em tese, poderiam macular o regime jurídico-constitucional de probidade administrativa expressamente previstos na lei anterior, como também preceituar exíguo prazo de quatro anos de prescrição intercorrente, admitiu, na seara infraconstitucional, que grande parte das disposições contidas na Lei nº 14.230/2021 inaugurasse verdadeiro regime administrativo de irresponsabilidade e impunidade.

A disposição encartada no art. 23, § 5º da Lei nº 8.429/92 é absolutamente incompatível com a Constituição Federal, especialmente porque viola os princípios da probidade administrativa; da inafastabilidade da jurisdição; da proporcionalidade e, como decorrência, da proteção deficiente; da segurança jurídica e, consequentemente, do tempus regit actum; e da legalidade, razão pela qual se incumbe ao órgão jurisdicional dar prosseguimento às ações de improbidade em curso, por meio da não aplicação retroativa da disposição legal ora hostilizada.

A ausência de previsão expressa de retroatividade da Lei nº 14.230/2021; a permanência da valoração negativa e a necessidade cada vez mais premente de prevenção e punição da conduta ímproba; e a exigência de proteção integral e eficiente desse bem jurídico, decorrente da consagração de um regime jurídico-constitucional da probidade e honestidade administrativa impõe a aplicação da regra geral de direito intertemporal à prescrição intercorrente, no sentido de que a Lei é, em princípio irretroatividade, já que se aplica a partir dos fatos ocorridos no âmbito de sua vigência.


  1. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 275.
  2. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 277-278.
  3. OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 277.
  4. A título exemplificativo, a operação Lava Jato demonstrou, em várias oportunidades, incessantes manifestações populares, que se se seguiram de grandes protestos e críticas pelo país. Políticos responsáveis por desvios de dinheiro foram questionados ou mesmo confrontados em todo território nacional (v.g., políticos réus da lava jato, sendo hostilizados em restaurantes e locais públicos).
  5. HASSE, Konhad. A força normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes, Sérgio Antonio Fabris Editor: \Porto Alegre, 1991, p. 19.
  6. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 471.
  7. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 472.
  8. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 472.
  9. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 473.
  10. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 476.
  11. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 478.
  12. SARMENTO, Daniel. Cláudio Pereira de Souza. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 483.


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Renato de Lima; PRADO, Fernanda. A Lei n. 14.230/2021 e a irretroatividade da prescrição intercorrente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6718, 22 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94576. Acesso em: 20 abr. 2024.