PROJETO DE LEI. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO LEGISLATIVA. CUSTEIO DE DESPESAS COM TRANSPORTE. PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO DE SERVIDOR. INCONSTITUCIONALIDADE. Em decorrência dos princípios da independência e harmonia entre os Poderes (art. 2º, da Constituição Federal; art. 5º, da Constituição do Estado de São Paulo, e art. 15, da Lei Orgânica Municipal), a regra geral é de que o Prefeito tem atribuições de executar a administração do Município independentemente de prévia autorização da Câmara, sendo esta autorização uma excepcionalidade, cujas hipóteses, necessariamente, estarão expressas e claramente previstas na Lei Orgânica local, caso contrário, deve ser objeto de implementação sob responsabilidade exclusiva do Chefe do Executivo, com observância da normatização administrativa geral e das formalidades indispensáveis para sua prática.
CONSULTA
Encaminha-nos Câmara Municipal, por intermédio de sua Procuradora Geral, solicitação de emissão de parecer jurídico acerca do seguinte:
“A Câmara Municipal recebeu o Projeto de Lei em anexo, que `Autoriza o Poder Executivo a custear o transporte dos servidores do Magistério público Municipal, participantes do Programa `A História na sala de Aula´ para visita técnica´. Referido projeto pleiteia autorização para que o Executivo custeie o transporte de servidores do Magistério Público Municipal para visita técnica à cidade de São Paulo, prevista em Programa do Curso de Formação oferecido pela Secretaria Municipal da Educação e Cultura. Feitas tais considerações, indaga-se: a) Há necessidade de autorização legislativa ? b) Em caso de haver necessidade autorização legislativa, o projeto está apto a ser votado, ou faltam informações ? c) Quais providências a Câmara Municipal de Descalvado deve adotar ?”
PARECER
A Constituição Federal estabelece alguns princípios, a serem obrigatoriamente observados, em seu Título I, dentre os quais cabe aqui destacar o da independência e harmonia entre os Poderes, expressamente previsto no:
“Art. 2º. São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”
Também o faz a Constituição do Estado de São Paulo, ao estabelecer que:
“Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
§ 2º - O cidadão, investido na função de um dos Poderes, não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas nesta Constituição.”
No mesmo sentido, a Lei Orgânica do Município consulente, dispõe que:
“Art. 15 - O Governo Municipal é exercido pela Câmara de Vereadores, detentora de funções legislativa e fiscalizadora, e pelo Prefeito Municipal, com funções executivas, ambos com poderes independentes e harmônicos entre si.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições que lhes compete com exclusividade, excetuando-se aquelas previstas em legislação própria.
§ 2º - O cidadão investido na função de um dos Poderes não poderá exercer a de outro, salvo as exceções previstas na Constituição Federal e nesta Lei Orgânica.“
Prosseguindo, ao fixar as competências do Chefe do Executivo, este mesmo diploma prevê:
“Art. 75 – Compete privativamente ao Prefeito, além de outras atribuições previstas nesta Lei Orgânica:
(...)
II – exercer, com o auxílio dos Secretários e Diretores, a direção superior da administração municipal;
III – iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Lei Orgânica;
IV – enviar à Câmara o projeto do Plano Plurianual, das Diretrizes Orçamentárias e do Orçamento Anual do Município, nos prazos previstos nesta Lei Orgânica;
(...)
XI – praticar os demais atos de administração, nos limites da competência do Executivo;
XII – delegar, por decreto, à autoridade do Executivo, funções administrativas que não sejam de sua exclusiva competência;”. (negritamos)
Por outro lado, ao cuidar das competências do Legislativo, a mesma normatização, fixa seus limites expressamente nos seguintes termos:
“Art. 17 - Cabe à Câmara Municipal, com a sanção do Prefeito Municipal, dispor sobre as matérias de competência do Município e suplementar a Legislação Federal e a Estadual, no que couber.
Parágrafo único – Cumpre à Câmara Municipal:
I - legislar sobre tributos municipais, bem como autorizar isenções e anistias fiscais e a remissão de dívidas;
II – Votar o Orçamento Anual, o Plano Plurianual, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, bem como autorizar a abertura de créditos suplementares e especiais;
III – deliberar sobre obtenção e concessão de empréstimos e operações de crédito a qualquer título pelo Poder Executivo, bem como a forma e os meios de pagamento;
IV – autorizar a concessão e permissão de serviços públicos municipais, na forma da lei;
V - criar, transformar e extinguir cargos públicos, empregos e funções na administração direta, autarquias e fundações públicas, assim como fixar os respectivos vencimentos.
VI – autorizar a concessão de direito e a de direito real de uso de bens municipais;
VII – autorizar a alienação, a permissão e a concessão de uso de bens imóveis, bem como sua afetação e desafetação;
VIII – autorizar a aquisição de bens imóveis, salvo quando se tratar de doação sem encargos ou desapropriação;
IX – dispor sobre a criação, organização e supressão de distritos habitacionais, observada a legislação estadual e mediante prévia consulta plebiscitária;
X – aprovar o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado e legislação urbanística;
XI – autorizar a concessão de auxílio e subvenções;
XII – dispor acerca da denominação de próprios, vias e logradouros públicos, vedada a atribuição de nomes de pessoas vivas.
XIII – delimitar o perímetro urbano e sua expansão, e dispor acerca de normas relativas a zoneamento e loteamento;”.
Em decorrência de tais disposições e parâmetros, situa-se dentro do elenco das atribuições do Chefe do Executivo, ou aos seus delegados, quando for legalmente viável, o exercício da gestão das atividades da Administração Municipal, cabendo-lhe, observados os critérios de conveniência e oportunidade, e independentemente de autorização do Poder Legislativo, a prática dos atos, ou determinações, destinadas à mais adequada realização ou concretização dos trabalhos de sua competência. Ou seja, para a administração do Município, o Prefeito não dependerá de autorizações do Legislativo local, exceto nos casos expressos em lei, sendo defeso a este imiscuir-se na prática dos atos de exclusiva competência do Executivo.
Neste sentido é a lição de Hely Lopes Meirelles:
“A Prefeitura é o órgão pelo qual se manifesta o Poder Executivo do Município. Órgão independente, composto, central e unipessoal. Independente por não hierarquizado a qualquer outro; composto porque integrado por outros órgãos inferiores; central porque nele se concentram todas as atribuições do Executivo, para serem distribuídas a seus órgãos subordinados; unipessoal, ou singular, porque atua e decide através de um único agente, que o chefia e representa: o prefeito.(...)
No sistema brasileiro o governo municipal é de funções divididas, cabendo as executivas à Prefeitura e as legislativas à Câmara de Vereadores. Esses dois Poderes, entrosando suas atividades específicas, realizam com independência e harmonia o governo local, nas condições expressas na lei orgânica do Município.
O sistema de separação de funções - executivas e legislativas - impede que o órgão de um Poder exerça atribuições do outro. Assim sendo, a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regras para a administração; a Prefeitura as executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local.”[1] (negritamos)
Portanto, o mandamento legal cuja atribuição é do Legislativo tem caráter genérico e abstrato (e não o caráter individual e concreto), sob pena de invadir a competência constitucionalmente atribuída a outro Poder, o Executivo, sendo que este também não pode delegar as atribuições que lhe são exclusivas.
Prosseguindo, Hely aborda os aspectos relacionados às atribuições do Prefeito:
“As atribuições do prefeito são de natureza governamental e administrativa: governamentais são todas aquelas de condução dos negócios públicos, de opções políticas de conveniência e oportunidade na sua realização - e, por isso mesmo, insuscetíveis de controle por qualquer outro agente, órgão ou Poder; administrativas são as que visam à concretização das atividades executivas do Município, por meio de atos jurídicos sempre controláveis pelo Poder Judiciário e, em certos casos, pelo Legislativo local. Claro está que o prefeito não realiza pessoalmente todas as funções do cargo, executando aquelas que lhe são privativas e indelegáveis e traspassando as demais aos seus auxiliares e técnicos da Prefeitura (secretários municipais, diretores de departamentos, chefes de serviços e outros subordinados). Mas todas as atividades do Executivo são de sua responsabilidade direta ou indireta, quer pela sua execução pessoal, quer pela sua direção ou supervisão hierárquica.
O prefeito atua sempre por meio de atos concretos e específicos, de governo (atos políticos) ou de administração (atos administrativos), ao passo que a Câmara desempenha suas atribuições típicas editando normas abstratas e gerais de conduta (leis). Nisso se distinguem fundamentalmente suas atividades. O ato executivo do prefeito é dirigido a um objetivo imediato, concreto e especial; o ato legislativo da Câmara é mediato, abstrato e genérico. Só excepcionalmente o prefeito edita normas através de decreto regulamentar e a Câmara pratica atos administrativos, de efeitos internos ou externos, consubstanciados em resolução ou em decreto legislativo. O prefeito provê in concreto, em razão do seu poder de administrar; a Câmara provê in abstracto, em virtude do seu poder de regular. Todo ato do prefeito que infringir prerrogativa da Câmara - como também deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do prefeito - é nulo, por ofensivo do princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art. 2º, c/c o art. 31), podendo ser invalidado pelo Judiciário.
(...)
O prefeito, como chefe do Executivo local, tem atribuições políticas e administrativas típicas e próprias do cargo. (...)
As atribuições administrativas concretizam-se na execução das leis em geral e na realização de atividades materiais locais, traduzidas em atos administrativos (despachos em geral) e em fatos administrativos (obras e serviços). Tais atribuições expressam-se em instrumentos formais, unilaterais ou bilaterais (atos e contratos), e em execução de projetos, devidamente aprovados pelos órgãos técnicos competentes. (...)
Em princípio, o prefeito pode praticar os atos de administração ordinária independentemente de autorização especial da Câmara. Por atos de administração ordinária entendem-se todos aqueles que visem à conservação, ampliação ou aperfeiçoamento dos bens, rendas ou serviços públicos. Para os atos de administração extraordinária - assim entendidos os de alienação e oneração de bens ou rendas (vendas, doação, permuta, vinculação), os de renúncia de direitos (perdão de dívidas, isenção de tributos etc.) e os que acarretem encargos, obrigações ou responsabilidades excepcionais para o Município (empréstimos, abertura de créditos, concessão de serviços de utilidade pública etc.) - o prefeito dependerá de prévia autorização da Câmara. Como tais atos constituem exceção à regra de livre administração do prefeito, as leis orgânicas devem enumerá-los. Todo ato que não constar dessa relação é de prática exclusiva pelo prefeito, e por ele pode ser realizado independentemente de assentimento da Câmara, desde que atenda às normas gerais da Administração e às formalidades próprias de sua prática.
Advirta-se, ainda, que para atividades próprias e privativas da função executiva, como realizar obras e serviços municipais, para prover cargos e movimentar o funcionalismo da Prefeitura e demais atribuições inerentes à chefia do governo local, não pode a Câmara condicioná-las à sua aprovação, nem estabelecer normas aniquiladoras dessa faculdade administrativa, sob pena de incidir em inconstitucionalidade, por ofensa a prerrogativa do prefeito.“[2] (sublinhados no original e negritos nossos)
Indiscutivelmente, o teor da propositura que foi submetida à análise bem evidencia o objetivo buscado na mesma:
“Art. 1º - Fica autorizado o Poder Executivo a custear o transporte de servidores do Magistério Público Municipal, participantes do Programa ‘A História na Sala de Aula’, para visita técnica prevista em programa de curso de formação oferecido pela Secretaria Municipal da Educação e Cultura – SEEC.” (negritamos)
Como evidenciado nas lições transcritas, a regra geral é de que o Prefeito tem atribuições de executar a administração do Município independentemente de prévia autorização da Câmara, sendo esta exigida somente em situações de excepcionalidade, cujas hipóteses necessariamente estarão expressa e claramente previstas na Lei Orgânica local, caso contrário, deve ser objeto de implementação sob responsabilidade exclusiva do Chefe do Executivo, com observância da normatização administrativa geral e das formalidades indispensáveis para sua prática.
Na Mensagem 98/2011, o Prefeito buscou justificar a pretensão submetida, sendo de se destacar o seguinte:
“Oportunamente esclarecemos que o Programa ‘A História na Sala de Aula’, instituído por ato do Decreto nº ...., desenvolvido no âmbito da Secretaria Municipal de Educação e Cultura - SEEC, reveste-se de fundamental importância para a capacitação dos profissionais da Educação Básica, valorizando-os e garantindo a qualidade da Educação que se promove em nosso município.” (negritamos)
Evidencia-se, com tal informação, que o programa, foi criado pelo Executivo, no pleno e regular exercício de sua competência, mediante um decreto, que “incumbiu à Administração Pública subsidiar o transporte, para viabilizar a concretização desse importante evento de formação de nossos docentes”, portanto, correta e independentemente de autorização da Câmara Municipal.
Mediante a propositura sob análise, objetiva o Executivo, para a execução de tal programa e atendimento daquela incumbência, consistente no custeio de transporte dos servidores municipais que dele participam, a autorização prévia do Legislativo.
Afigura-se inexistir embasamento legal para exigência desta autorização pelo Legislativo, até porque nenhuma daquelas atividades é dependente de lei específica, conforme evidenciado pelo exposto até aqui, em especial considerando a inexistência de previsão expressa, para tanto, do transcrito elenco constante do parágrafo único, do artigo 17, da Lei Orgânica Municipal.
Isto posto, respondendo objetivamente às questões formuladas:
“a) Há necessidade de autorização legislativa?”
No caso sob análise, em especial considerando que a Lei Orgânica Municipal não inclui expressamente a matéria no elenco dos atos de administração extraordinária cuja autorização legislativa prévia é requisito (art. 17, parágrafo único), e em face de sua evidente caracterização como ato de administração ordinária, portanto, de competência exclusiva do Poder Executivo, mais que a desnecessidade de autorização legislativa, tal regramento pelo Poder Legislativo configuraria ofensa aos princípios constitucionais da independência e harmonia entre os Poderes.
“b) Em caso de haver necessidade autorização legislativa, o projeto está apto a ser votado, ou faltam informações?”
Prejudicada.
“c) Quais providências a Câmara Municipal de Descalvado deve adotar?”
Em face da inconstitucionalidade da proposição, cabe à Câmara Municipal rejeitá-la, com observância das previsões regimentais locais vigentes.
É o parecer.
Notas
[1] Direito Municipal Brasileiro, 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 722/723.
[2] Idem, págs. 726/727 e 734/736