Sabe-se que a ciência do direito divide as normas jurídicas quanto a sua classificação hierárquica em constitucionais, complementares, ordinárias, regulamentares e individualizadas. As normas guardam entre si uma hierarquia, uma ordem de subordinação entre as diversas categorias. No primeiro plano alinham-se as normas constitucionais – originais na Carta Magna ou decorrentes de emendas – que condicionam a validade de todas as outras normas e têm o poder de revoga-las. Assim, qualquer norma jurídica de categoria diversa, anterior ou posterior à constitucional, não terá validade caso contrarie as disposições desta. Na ordem jurídica brasileira há normas que se localizam em leis complementares à Constituição e se situam, hierarquicamente, entre as constitucionais e ordinárias.
O processo legislativo em relação as normas complementares é mais “rigoroso”, uma vez previsto no art. 69 da Constituição Federal sua aprovação se dá por maioria absoluta. Em plano inferior estão as normas ordinárias, que se localizam nas leis, medidas provisórias, leis delegadas.
Com efeito, as normas complementares, conforme sugere sua denominação, visam complementar, no sentido de regulamentar normas Constitucionais que têm sua eficácia limitada e necessitam de complementação. Em outras palavras, o direito material previsto na norma Constitucional poderá se posto no plano fático a partir da elaboração de uma lei especifica que assegure a concretização desse direito, seria o “como fazer” na realidade concreta.
Dessa forma, observa-se em relação as normas complementares um aspecto instrumental, diferente das leis ordinárias que inovam no plano do direito e trazem consigo normas de cunho material, sem necessariamente estar condicionada a uma material. Na verdade, a lei pode até prevê que sua regulamentação se dê por outro instrumento normativo, em geral, hierarquicamente inferior.
Em relação a aplicação da norma, a hermenêutica jurídica trabalha com métodos, e nesse texto cumpre destacar o método tradicional previsto em nossa lei de introdução as normas de direito brasileiro, na qual diante de um conflito de normas, prefere-se a aplicação da hierarquicamente superior e quando em igualdade de hierarquia a lei especial em detrimento da geral.
Com esse breve resumo sobre as normas e sua aplicação, passa-se a discutir a cobrança da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS) para sociedades civis de profissões regulamentares a partir da decisão do STF no julgamento do RE 419.629.
De início questiona-se qual seria a intenção do legislador ao estabelecer no art. 6.º, II da LC n. 70/91 a isenção da COFINS para sociedades civis prestadoras de serviços de profissão legalmente regulamentadas, já que a Constituição Federal determina que “a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”, além “do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada”.
Com efeito, o art. 56 da Lei n. 9.430/96 determinou que “as sociedades civis de prestação de serviço de profissão legalmente regulamentada passam a contribuir para a seguridade social com base na receita bruta da prestação de serviços, observadas as normas da Lei Complementar n. 70, de 30 de dezembro de 1991.” Ora, a publicação dessa lei revela clara antinomia ao interprete do direito, posto que, a princípio, existiriam duas leis, em sua essência diferentes, dispondo sobre o mesmo direito. Considerar-se-ia a revogação tácita do art. da Lei Complementar? Ora, nesse sentido, poderia uma lei hierarquicamente inferior revogar dispositivo de lei superior? Em miúdos, poderia a Lei Ordinária revogar a Lei Complementar?
Duas correntes doutrinárias surgiram: entendia-se que lei ordinária não poderia revogar artigo de lei complementar, tendo em vista o princípio da hierarquia entre essas leis e, ainda, o critério da impossibilidade de lei geral posterior revogar lei especial anterior. Entender de maneira diversa, implicaria em um péssimo precedente, com graves implicações na Teoria do Direito, com possibilidade de subversão as normas constitucionais.
Nessa linha de pensamento, várias decisões do STJ caminharam, tendo sido editada a sumula 276 que dispõe: “As sociedades civis de prestação de serviços profissionais são isentas da Cofins, irrelevante o regime tributário adotado”. Em relação aos princípios e garantias constitucionais de nossa ordem tributária a constitucionalidade dessa sumula é questionável, até porque não é razoável o argumento que autoriza esse tratamento desigual em detrimento a direitos sociais e fundamentais daí decorrentes.
Ocorre que o STF seguiu em interpretação diferente, sob a analise não propriamente da hierarquia, mas do conteúdo normativo que deve ser previsto nas normas complementares e ordinária, a substancia dessas normas, de direito material em menor ou maior grau.
No julgamento do RE 419.629 a 1ª Turma entendeu que não existe hierarquia entre LC e LO, mas, em realidade, âmbito material a ser regulamentado. Algumas matérias são regulamentadas por lei complementar. Assim, se uma lei ordinária trata desse assunto, ela seria inconstitucional por violar a própria regra de competência prevista na Constituição.
Dessa forma, em relação a COFINS o STF entendeu que a regulamentação das matérias previstas no art. 195 da CF, materializa-se por lei ordinária e no exercício da denominada competência discriminada da União, não se aplicando a regra do art. 146, III, a que reserve a lei complementar, tampouco a regra do art. 195, §4º que cuida de outras fontes de custeio da seguridade social.
Assim, a isenção conferida por lei complementar poderia ter sido estabelecida por lei ordinária, pois a Lei Complementar n. 70 tem forma de lei complementar, mas conteúdo, essência de lei ordinária. Logo, por estar em igualdade “ficta” em relação a outra lei ordinária, poderia ter seu dispositivo revogado por lei ordinária. Com essa interpretação, o STF estabelece, entendo eu, que a hierarquia das normas não se dá em relação ao seu procedimento, ao seu aspecto formal (somente), mas sim e em especial, ao seu aspecto material, a substancia do direito que se está dispondo.
De maneira diversa, entendeu o doutrinador Pedro Lenza em sua obra de direito constitucional, onde sobre o assunto conclui:
Em seu entendimento, consagrou o STF a tese de inexistência de hierarquia entre LC e LO. No fundo, o conflito supostamente existente será de competência constitucional. Eventual LO que trate de assunto reservado a LC será inconstitucional não por violar a LC em si, mas por violar a própria CF/88.
Por fim, cabe registrar que houve a revogação da súmula 276.