1. EMENTA
Álbum de Fotografias – Investigação Criminal – Inteligência Policial – Inquérito Policial – Provas no Processo Penal – Reconhecimento fotográfico - Direitos e garantias fundamentais – Limitação de direitos e garantias fundamentais.
2. RELATÓRIO
Trata-se de consulta formulada pelo Excelentíssimo Senhor Doutor (_), Delegado de Polícia Titular da Delegacia de Polícia (_).
O objeto da consulta versa sobre a legalidade da criação e manutenção de álbuns de fotografia para fins de investigação criminal no âmbito das unidades da Polícia Civil do Estado de São Paulo na cidade de Mauá.
Indaga se a medida importa na violação de direitos e garantias fundamentais de pessoas fotografadas nas dependências de unidade policial, inclusive no que se refere a pessoas apresentadas à Autoridade Policial para fins de averiguação e adolescentes infratores.
3. O RECONHECIMENTO FOTOGRÁFICO ENQUANTO MEIO DE PROVA
Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha (1994, p. 181) refuta o reconhecimento fotográfico como meio de prova. Para tanto, afirma que a lei processual penal brasileira menciona expressamente que o reconhecimento se dá pela via presencial e não por meios de reprodução.
Ressalta, contudo, que seu posicionamento é isolado, sendo o reconhecimento fotográfico amplamente aceito pela jurisprudência, variando somente quanto ao seu critério valorativo[2].
O Código de Processo Penal relaciona os meios de prova admitidos pelo direito brasileiro nos artigos 158 a 250. São eles: (i) o exame pericial; (ii) o interrogatório; (iii) a confissão; (iv) o reconhecimento de pessoas e coisas; (v) as declarações do ofendido; (vi) a inquirição de testemunhas; (vii) os documentos e (ix) os indícios.
De fato, não há menção ao reconhecimento fotográfico, contudo, entende a doutrina e a jurisprudência de que o rol do CPP não é taxativo. Isso porque outros meios de prova são considerados legítimos, na medida em que encontram fundamento a partir da interpretação sistemática do direito, sobretudo no que se refere à Constituição Federal de 1988.
O reconhecimento fotográfico, portanto, insere-se no contexto das chamadas provas inominadas[3].
4. A MANUTENÇÃO E ACERVO FOTOGRÁFICO CRIMINAL FRENTE AOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
A CF de 1988 representa a ruptura com a ordem constitucional autoritária instituída pela CF de 1967, alterada pela Emenda Constitucional n.º 01/69.
Entende a doutrina a CF de 1988 ser o grande marco jurídico da promoção dos direitos e garantias fundamentais em solo pátrio, inclusive com previsão daqueles antes mesmo da própria organização do Estado.
O modelo adotado é o do Estado Democrático de Direito que, no entendimento de Paulo Bonavides (2010, p. 380) constitui a terceira revolução do Estado social. O Estado Democrático de Direito incorpora as liberdades públicas, assim entendidas como o conjunto de prerrogativas do indivíduo em relação aos poderes constituídos. Ademais, pressupõe a atuação do Estado na promoção da isonomia, tanto sob o aspecto formal quanto material.
Todavia, como afirma Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 126) a expansão da proteção dos direitos fundamentais importa na necessidade de se adotar soluções no sentido de restringir aqueles em situações específicas, sobretudo quando da colisão de outros interesses.
Destacam-se as teorias interna e externa, bem como a regra da proporcionalidade, esta entendida como a forma mais utilizada de controle às restrições de direitos e garantias fundamentais.
A teoria interna, em síntese, aceita que os direitos fundamentais possuem estrutura de regras e não princípios. Sendo assim, não podem ser objeto de sopesamento e produzem efeitos tão somente nas hipóteses que se encaixem no conteúdo descrito pelo legislador. É feliz a afirmação de Virgílio Afonso da Silva, com fundamento em Planiol e Ripert (2011, p. 128) de que a teoria interna poderia se resumir à ideia de que o direito cessa onde o abuso começa.
Assim, os direitos fundamentais encontram limites na própria constituição, não se tratando, propriamente de restrição àqueles, mas, sim, de situações de não proteção.
Diferentemente da teoria interna, a teoria externa entende os direitos fundamentais como princípios. Em síntese, a mais ajustada doutrina conceitua princípios como normas jurídicas dotadas de generalidade, abstração e elevada carga axiológica.
Ao contrário da teoria interna que prevê hipóteses de não proteção, a teoria externa entende que há restrição a direitos fundamentais por meio de proibições contidas em regras ou outros princípios. No caso das regras, as restrições encontram-se na legislação infraconstitucional. Por outro lado, em relação aos princípios, a restrição se dá em razão da atividade judiciária, tendo em vista se tratar de situação não prevista pelo legislador.
Por último, temos a regra da proporcionalidade, que tem sua origem na teoria externa. Conclui-se que entende os direitos fundamentais como princípios e não regras. Todavia, diferentemente da teoria externa, a restrição se dá pela aplicação de três elementos, a saber: (i) a adequação; (ii) a necessidade e (iii) a proporcionalidade em sentido estrito.
De acordo com Virgílio Afonso da Silva (2011, p. 169), a adequação pressupõe a análise se a intervenção estatal no escopo de proteção a um direito fundamental tem como objetivo um fim constitucionalmente legítimo.
Por sua vez, a necessidade demanda um juízo valorativo para determinar-se a intervenção estatal ser necessária. Trata-se, assim, de uma verificação de conveniência e oportunidade de restrição a direitos fundamentais.
Finalmente, a proporcionalidade em sentido estrito informa que a restrição deve se dar na exata medida para a realização de um objetivo admitido pela constituição. Em outras palavras, o direito fundamental deve ser restringido sem atingir o seu conteúdo essencial, tornando a medida legítima perante a constituição.
A investigação criminal, enquanto uma fase da persecução penal, trata-se de atividade estatal que importa na intervenção na esfera de direitos fundamentais do indivíduo. Portanto, a criação e manutenção de álbuns fotográficos para fins de investigação deve se dar em consonância com técnicas reconhecidas de limitação daqueles.
5. SOBRE A LEI N.º 12.037/09
A Lei n.º 12.037/09 regulamenta o inciso LVIII, do artigo 5.º da CF de 88 e dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado.
Como dito, a persecução penal importa na restrição de direitos individuais. Assim, o legislador elencou hipóteses taxativas em que o civilmente identificado seja submetido à identificação criminal, composta pelo processo datiloscópico e fotográfico, nos termos do artigo 5.º daquele diploma legal.
A doutrina costuma remeter a criação e manutenção de álbuns fotográficos em unidades de polícia judiciária à Lei n.º 12.037/09[4].
6. CONCLUSÕES
Feitas as considerações preliminares sobre o tema, passo a opinar sobre o objeto da consulta.
6.1. LEGALIDADE DA CRIAÇÃO E MANUTENÇÃO DE ÁLBUNS FOTOGRÁFICOS PARA FINS DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
O reconhecimento fotográfico é meio de prova amplamente aceito pela jurisprudência, inclusive pelos tribunais superiores, com a ressalva de que deve estar acompanhado de outros elementos de prova para ensejar na condenação do acusado. Nessa toada, o reconhecimento fotográfico faz parte dos meios de prova inominados, igualmente reconhecidos, desde que sua finalidade esteja de acordo com o ordenamento jurídico.
Sendo assim, a criação e manutenção de álbuns fotográficos no âmbito de atividade de polícia judiciária é medida discricionária da Autoridade Policial. Como leciona Hely Lopes Meirelles (2011, p. 123), a discricionariedade importa em liberdade de ação administrativa, dentro dos limites da lei, diante da impossibilidade do legislador prever todos os atos que a prática administrativa exige.
Com efeito, a medida se reveste de conveniência e oportunidade. Inclusive, parcela da doutrina que refuta o reconhecimento fotográfico como meio de prova admite a criação de álbuns de fotografia criminais como providência preliminar para a prática de outros atos de polícia judiciária[5].
O fundamento legal da criação e manutenção de álbuns de fotografia criminais encontra-se na leitura sistemática do ordenamento jurídico, sobretudo no que se refere à CF de 88. Assim, o argumento de que a medida encontra respaldo na Lei n.º 12.037/09 não convence, pois o objeto desta é a identificação criminal do civilmente identificado e não a produção de prova para fins de investigação.
6.2. SOBRE A COLISÃO COM DIREITOS E GARANTIAS DO INVESTIGADO
Como foi dito, nenhum direito fundamental é absoluto, e comporta limitações em hipóteses específicas. Nesse sentido, a regra da proporcionalidade é a mais utilizada naquele processo.
Assim, deverá a Autoridade Policial realizar um juízo de valor acerca da adequação, isto é, se a criação de álbum fotográfico é medida legítima em relação à Constituição. A resposta será sempre positiva se a finalidade relacionar-se aos fins institucionais de polícia judiciária, enquanto atividade estatal de salvaguarda de bens jurídicos fundamentais contra agressões previstas na lei penal.
Em seguida, a Autoridade Policial deverá avaliar a necessidade da medida ao fim que se almeja, isto é, a produção de prova para fins de investigação criminal.
Por fim, deverá ser observada a proporcionalidade em sentido estrito, de modo a não esvaziar os direitos do investigado. Com efeito, o investigado conserva todos os seus direitos, de modo que a Autoridade Policial deverá tomar as providências necessárias para evitar o constrangimento do investigado.
Portanto, o processo de fotografar o investigado em nenhuma hipótese deverá se dar mediante violência ou coação física ou moral. Igualmente, como medida imprescindível à salvaguarda de direitos do investigado, o acervo fotográfico, para fins de investigação criminal, deverá ter caráter sigiloso, salvo em casos específicos quando a sua divulgação for necessária para a instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal.
Como já foi dito, a criação e manutenção de álbuns fotográficos criminais trata-se de medida discricionária da Autoridade Policial. Desta forma, obedecidos os preceitos acima mencionados, entre outros de acordo com o caso, não se sujeita ao controle do Poder Judiciário nem do Ministério Público, pois tratar-se-ia de controle sobre a conveniência e oportunidade da providência[6].
6.3. PESSOAS APRESENTADAS À AUTORIDADE POLICIAL PARA FINS DE AVERIGUAÇÃO
À Autoridade Policial incumbe prender em flagrante delito nas hipóteses admitidas pela lei. Não raro, à Autoridade Policial são apresentadas pessoas sobre as quais recaem fundada suspeita de estarem praticando crimes, sem que estejam em flagrante delito. Mais uma vez, cabe à Autoridade Policial realizar juízo de conveniência e oportunidade no sentido de fotografar pessoas averiguadas, devendo-se, para tanto, adotar todas as providências para não constranger aquelas.
Fotografar o preso em flagrante delito e não fotografar o averiguado por não estar em situação de flagrância trata-se de criar distinções não permitidas pela lei, em afronta ao princípio da isonomia[7]. Com efeito, o preso conserva todos os direitos que lhe são inerentes, salvo aqueles incompatíveis com a sua condição.
Ademais, se fotografar o averiguado constituir constrangimento, em realidade, aquele ato ocorreu no momento em que o averiguado foi conduzido ao Distrito Policial sem que houvesse fundada razão para tanto.
6.4. ADOLESCENTES INFRATORES
A Lei n.º 8.069/90 instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata-se de lei inovadora que disciplina a matéria, na medida em que alçou a tutela dos direitos da criança e do adolescente um interesse de natureza difusa.
Leva-se em consideração a condição peculiar da criança e do adolescente enquanto pessoa em desenvolvimento.
No caso de álbum de fotografias de adolescentes infratores, as providências a serem adotadas pela Autoridade Policial deverão ser idênticas àquelas tomadas nos demais casos, de modo a assegurar que o adolescente infrator não seja submetido a constrangimento não permitido pela lei durante o processo. Ressalte-se que, contudo, como forma de preservar a imagem do adolescente infrator, o álbum deverá se revestir de sigilo absoluto, sendo acessível à vítima somente quando houver fundada suspeita da prática de ato infracional.
Ao não se fotografar adolescentes para fins de investigação de atos infracionais por aqueles praticados, sob o argumento de que são pessoas em desenvolvimento, coloca-se em risco outros bens jurídicos relevantes. Igualmente, se a medida fosse vexatória para o adolescente infrator, o mesmo aplicar-se-ia em outros atos, como o próprio reconhecimento pessoal.
7. BIBLIOGRAFIA
ARANHA, Adalberto José Queiroz Telles de Camargo. Da Prova no Processo Penal – 3.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1994.
BONAVIDES, Paulo. Teoria Geral do Estado – 8.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais – 14.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.
LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal – 13.ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2016.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro – 37.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade – 3.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.
MÜLLER, Friedrich. O Novo Paradigma do Direito – Introdução à Teoria e Metódica Estruturantes – 3.ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
SILVA, Virgílio Afonso. Direitos Fundamentais – Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia – 2.ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011.
Notas
[2] STJ - HABEAS CORPUS HC 229908 RJ 2011/0312654-7 (STJ)
Data de publicação: 17/02/2014
Ementa: HABEAS CORPUS. MALFERIMENTO AO ART. 226 DO CPP. INOCORRÊNCIA. RECONHECIMENTO DO ACUSADO FEITO NA FASEINQUISITORIAL POR MEIO DE FOTOGRAFIA. CONFIRMAÇÃO EM JUÍZO. POSSIBILIDADE. VIA INDEVIDAMENTE UTILIZADA EM SUBSTITUIÇÃO A RECURSO ESPECIAL. FLAGRANTE ILEGALIDADE INEXISTENTE. WRIT NÃO CONHECIDO. 1. É imperiosa a necessidade de racionalização do emprego do habeas corpus, em prestígio ao âmbito de cognição da garantia constitucional, e, em louvor à lógica do sistema recursal. In casu, foi impetrada indevidamente a ordem como substitutiva de recurso especial. 2. Este Superior Tribunal sufragou entendimento "no sentido de que o reconhecimento fotográfico, como meio de prova, é plenamente apto para a identificação do réu e fixação da autoria delituosa, desde que corroborado por outros elementos idôneos de convicção" (HC 22.907/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJ 04/08/2003), assim como ocorreu in casu, onde o reconhecimento por fotografia feito na fase inquisitiva foi confirmado em juízo, pelas declarações do ofendido, as quais ganharam ainda mais credibilidade na medida em que uma testemunha afirmou ter presenciado o reconhecimento feito em sede policial. 3. Habeas corpus não conhecido.
[3] Aqui emprega-se as expressões “prova” e “meios de prova” como sinônimas, pois o CPP não fala em meios de prova, mas sim, em provas. Para Adalberto José Queiroz Telles de Camargo (1994, p. 217), prova constitui qualquer elemento tendente à existência ou não de fato para levar o conhecimento da verdade ao juiz. Por outro lado, meio de prova corresponde ao modo como uma prova se materializa no processo.
[4] De acordo com Aury Lopes Júnior (2016, p. 509): “Quanto à identificação civil, é importante a leitura da Lei n.º 12.037/2009, que prevê a identificação datiloscópica e fotográfica daqueles agentes que não comprovem identificação civil (carteira de identidade), ou ainda nos demais casos previstos na referida Lei n.º 12.037. Com base nesse diploma legal (e mais alguma dose de manipulação na interpretação de seus dispositivos), acabaram sendo ressuscitados os ‘álbuns de identificação’ nas delegacias policiais.”.
[5] Leia-se Adalberto José Queiroz Telles Camargo Aranha (1994, p. 183): “Os chamados ‘álbuns policiais de criminosos’ ou ‘galeria de retratos de delinquentes’ no nosso modesto entender somente serviriam como ponto de partida para uma investigação policial, como marco inicial tal qual o retrato falado, e nunca como prova.”. Leia-se também Aury Lopes Júnior (2016, p. 508): “O reconhecimento fotográfico pode ser utilizado como ato preparatório do reconhecimento pessoal, nos termos do art. 226, inciso I, do CPP, nunca como substitutivo àquele ou como uma prova inominada.”.
[6] Segundo Hely Lopes Meirelles (2011, p. 124): “O que o Judiciário não pode é, no ato discricionário, substituir o discricionarismo do administrador pelo do juiz. Não pode, assim, ‘invalidar opções administrativas ou substituir critérios por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois essa valoração’ é privativa da Administração. Mas pode sempre proclamar as nulidades e coibir os abusos da Administração.”.
[7] De acordo com a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 18): “Com efeito, por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas. Para atingir este bem, este valor absorvido pelo Direito, o quanto possível, tais resultados, posto que, exigindo igualdade, assegura que os preceitos genéricos, os abstratos e atos concretos colham a todos sem especificações arbitrárias, assim proveitosas que detrimentosas para os atingidos.”.