Resposta aos quesitos
- Ao primeiro:
“Tem o paciente direito constitucional de recusar transfusão de sangue?”
Sim.
Tem o doente a liberdade de aceitar ou recusar um tratamento qualquer, inclusive transfusão de sangue. Isto reflete o direito seu, fundamental, à liberdade, consagrado pela Constituição Brasileira no art. 5º, caput, inclusive nas projeções de liberdade religiosa (inciso VI) e direito à privacidade (inciso X).
É o que decorre do exposto nas considerações gerais. Vale acentuar, reiterando o exposto no item 30, que a fundamentabilidade de determinados direitos não se reduz ao aspecto formal de que assim são reconhecidos ou declarados pelas normas jurídicas de valor supremo. Ela, materialmente, resulta de serem eles essenciais para cada ser humano, sob pena de sofrer este, no caso de sua perda ou restrição injustificada, uma descaracterização da própria natureza, uma desumanização.
Esta posição coincide com o que registra Tribe a propósito da jurisprudência mais recente dos tribunais norte-americanos.
Aponta ele, de fato, que esses tribunais são receptivos ao argumento de que
“adultos conscientes têm o direito de recusar qualquer espécie de tratamento médico, mesmo se esse tratamento levaria a um prolongamento significativo da duração da vida” (ob. cit., p. 1363).
Cumpre observar que, do ângulo do constitucionalismo, essas decisões se arrimam no “direito à privacidade” (“right of privacy”).
Este — relembre-se o Juiz Stevens no caso Whalen v. Roe — abrange o “interesse individual de evitar a exposição de assuntos pessoais”, bem como o de “independência na tomada de certas espécies de decisões importantes”. E conclui ser a privacidade tão necessária para “relações fundamentais ... respeito, amor, amizade e confiança” como “oxigênio para a combustão” (Tribe, ob. cit., p. 1302).
O direito à recusa se reforça quando se considera o aspecto religioso eventualmente envolvido.
Realmente, neste caso, no mesmo sentido militam a liberdade em geral e a liberdade religiosa em particular. De fato, esta importa no direito de seguir na própria conduta todos os preceitos da religião, consequentemente no de recusar tudo aquilo que os fere ou macula.
Na verdade, o Judiciário brasileiro já se torna receptivo a essas verdades. Assim — registre-se — a sentença do MM. Juíza de Direito, Dra. Matilde Chabar Maia, em ação cautelar inominada movida pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre contra Rubilar Cougo Goulart.
- Ao segundo:
“Como se relacionam as doutrinas da autodeterminação pessoal, privacidade e liberdade de religião nesse aspecto?”
Na verdade, as três confluem para o mesmo resultado, como se viu na resposta ao quesito anterior.
Basta a invocação do direito fundamental à liberdade — que é o direito à autodeterminação pessoal — para justificar a recusa de qualquer tratamento, inclusive da transfusão de sangue. Mas, ela ganha força especial quando apoiada pela liberdade religiosa. E, ainda, se fortalece com a invocação da privacidade, segundo o exemplo norte-americano. Note- se que o direito à privacidade é reconhecido pela Constituição Brasileira em vigor (art. 5º, X).
- Ao terceiro:
“Como conciliar o entendimento do dever do médico de prover tratamento médico com o direito do paciente ao consentimento informado?”
Em primeiro lugar, deve-se registrar uma hierarquia. O dever médico é de fonte legal, o direito do paciente de aceitar, ou não, um tratamento, ou um ato médico, é expressão de sua liberdade — direito seu de ordem fundamental, declarado e garantido pela Constituição.
Em segundo lugar, a indagação já indica a resposta. O médico satisfaz seus deveres informando o paciente do juízo que faz a propósito da necessidade ou conveniência desse ato ou tratamento, e das conseqüências prováveis de uma recusa.
Nesse sentido, o Código de Ética Médica aprovado pelo Conselho Federal de Medicina em 1988 dá um grande passo adiante. Ele reconhece que o paciente tem direito a decidir em última instância sobre sua própria pessoa:
Leia-se o art. 48 que veda ao médico:
“Exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem estar.”
E, inclusive, tem o paciente o direito de recusar tratamento para atender às suas convicções.
É o que se depreende do seu art.51, onde o médico é proibido de:
“Alimentar compulsoriamente qualquer pessoa em greve de fome que for considerada capaz, física e mentalmente, de fazer juízo perfeito das possíveis conseqüências de sua atitude. Em tais casos, deve o médico fazê-la ciente das prováveis complicações do jejum prolongado e, na hipótese de perigo de vida iminente, tratá- la.”
A parte final deste parece destoar do princípio. Entretanto, cumpre registrar que a hipótese não é do tratamento de uma doença, mas sim do jejum voluntário, que levado às últimas conseqüências equivaleria a um suicídio.
É verdade que o art. 46 parece permitir ao médico desobedecer à vontade do paciente ou de seu representante legal, quando ocorrer “perigo de vida”. Nele, é vedado ao médico
“Efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida.”
Assim, numa interpretação literal, havendo perigo de vida — apreciação subjetiva do médico —, este poderia fazer com o paciente e para o paciente o que bem lhe parecesse. O que equivaleria a dizer que, em face do perigo de vida, o paciente perde o direito fundamental à liberdade, seja na projeção do direito à intimidade, seja na projeção da liberdade religiosa, para se tornar um escravo do médico.
Evidentemente, essa interpretação literal é absurda. E juridicamente é inconstitucional o preceito que a enuncia, na medida em que contraria os direitos fundamentais consagrados pela Carta de 1988 no art. 5º, caput, e incisos VI e X. Portanto, é ele nulo e de nenhum valor.
Na verdade, as Cortes americanas, mais atentas para esse problema, têm, como já se viu, reiteradamente consagrado a idéia de que os indivíduos “têm o direito de recusar qualquer espécie de tratamento médico” (Tribe, ob. cit., p. 1363). E, inclusive, quando ele teria por efeito prolongar significativamente a vida do paciente.
- Ao quarto:
“As Testemunhas de Jeová fornecem aos médicos um “Termo de Isenção de Responsabilidade” por ocasião de seu internamento hospitalar. Portam, também, um cartão de identificação, um documento pessoal, expressando sua recusa ao uso do sangue, especialmente para alertar sua posição em casos emergenciais, denominado ‘Instrução/Isenção Preventiva para a Equipe Médica’. Alguns têm expresso de que tais documentos não têm valor legal e, portanto, a escolha do paciente não teria validade, em caso de iminente perigo de vida.
Pergunta-se: Tem validade legal a manifestação de vontade expressa em tais documentos, tanto para isentar médicos como para proteger o paciente, a fim de que sua escolha seja respeitada? Que dizer da situação em que o paciente se encontra inconsciente, mas que previamente assinou um ‘Termo de Isenção de Responsabilidade’ ou que seja portador do cartão ‘Instrução/Isenção Preventiva para a Equipe Médica’?”
Todo ser humano tem o direito fundamental de aceitar ou não um tratamento ou ato médico. É o que longamente já se demonstrou.
Essa manifestação de vontade pode ter lugar no momento em que o ato ou tratamento lhe é receitado, ou previamente por meio de documento que preencha os requisitos da lei civil para a validade dos atos jurídicos em geral.
Em decorrência do Código Civil, art. 82, para a validade de um ato como os que aponta a pergunta, basta que a manifestação que ele traduz seja assumida por agente capaz, já que para eles inexiste forma prescrita, ou defesa pela lei. Assim, para a validade do referido Termo ou Cartão basta a assinatura do interessado.
Sem que isto seja exigência essencial, conviria ser essa manifestação de vontade subscrita por duas testemunhas que corroborariam a livre escolha da parte.
- Ao quinto:
“Como devem ser encaradas as liminares satisfativas frente aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa?”
As liminares satisfativas são condenadas pela doutrina e pela jurisprudência, ainda mais em questões como as debatidas neste parecer.
Manda a prudência — que é a virtude por excelência do jurista — que em casos que envolvem a liberdade, a liberdade religiosa e a privacidade, todos direitos constitucionalmente reconhecidos como fundamentais, não sejam deferidas tais liminares.
- Ao sexto:
“A classe médica entende que será processada por colegas, pelo Conselho Regional de Medicina ou pelo Ministério Público, à luz de seu entendimento sobre o Código de Ética Médica e do art. 135 do Código Penal. Tem tal temor fundamento legal?”
Não.
Com efeito, do ângulo penal, inexiste crime sem culpa. Ora, na hipótese de recusa do tratamento, não haverá culpa por parte do médico em não ser este prestado. Não terá havido omissão de responsabilidade do médico, mas recusa de tratamento específico por parte do paciente.
Igualmente, não haverá nesse caso responsabilidade do médico por falta ética. Falta que ele, aliás, não cometeu, porque se o tratamento, ou a transfusão, não foram ministrados, isto se deu pela recusa por parte do paciente.
- Ao sétimo:
“Como se pode encarar o aspecto da criança e do adolescente diante do preceito legal da responsabilidade parental?”
Não se pode esquecer que a criança e o adolescente gozam, como é óbvio, dos mesmos direitos fundamentais que o adulto. Assim, da liberdade, da liberdade religiosa e da privacidade.
O chamado Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, reconhece-o expressamente na primeira parte de seu art. 3º.
Mas, não tendo a maioridade, a vontade da criança e do adolescente não basta para a determinação de sua própria conduta.
Sempre foi reconhecido que, entre os poderes dos pais ou representantes legais do menor, se inscreve a matéria religiosa, como também a eles cabe a responsabilidade por sua saúde, etc.
Assim, em princípio, é aos pais ou representantes legais do menor que cabe a decisão a respeito da assistência médica que deve ou não ser a eles dada.
Corrobora essa tese o fato de que, nos preceitos constitucionais sobre a prestação de assistência religiosa, com a redação anterior a esta Constituição, era expresso que sobre isto se deveria atender à vontade dos representantes legais do menor. E, na verdade, se a redação ora vigente assim não o diz, essa mesma solução resulta do sistema.
Deve-se, todavia, levar em conta, em caso concreto, se o jovem já está em condições de emitir vontade consciente, caso em que deverá ser ouvido. E a fortiori se for apenas relativamente incapaz. Essa vontade consciente deverá ser respeitada. Isto porque os conceitos de maioridade e de menoridade hoje se acham turvos, dado o absurdo de o direito pátrio reconhecer como maior para fins políticos o jovem de dezesseis anos, para fins penais o de dezoito, e somente aos vinte e um para outros fins.
Cumpre apontar que, nos Estados Unidos, se desenvolveu, na Common Law, a tese “do menor amadurecido” que exige o consentimento deste para tratamentos médicos. Ou seja, quando o menor demonstra maturidade e capacidade decisória, deve ser chamado a manifestar sua vontade sobre tratamento médico proposto, podendo, evidentemente, recusá- lo.
- Ao último em que se pergunta:
“Qual a responsabilidade do médico, se é que há, ante o óbito de um paciente Testemunha de Jeová que tenha sofrido uma cirurgia, por exemplo, e manifestado previamente sua recusa conscientizada à transfusão de sangue?”
Nenhuma, em face do que se expôs acima.
É o meu parecer.
São Paulo, 24 de outubro de 1994
Manoel Gonçalves Ferreira F.º