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Um diálogo possível? Contribuições da psicanálise e da criminologia crítica para a compreensão da questão criminal

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Conclusão: um diálogo possível?

O estudo de objetos do campo da criminologia evidencia uma das principais críticas que podem ser feitas à teoria psicanalítica, a saber, sua pretensão de ser uma teoria social universal, quando suas contribuições mais efetivas se limitam ao campo de estudos e intervenções a nível do sujeito, sobretudo no campo da clínica. Se na tentativa de articulação entre estes dois referenciais, logo de início esta primeira incompatibilidade epistemológica aparece, a incomensurabilidade entre as visões de sujeito em Freud e em Marx também possui papel central.

Valendo-se de um movimento dialético, podemos afirmar que três formulações foram discutidas ao longo do texto: 1ª tese: os pressupostos metodológicos e as concepções de sujeito da psicanálise e da criminologia crítica são incompatíveis; 2ª antítese: o sujeito da psicanálise e o da criminologia crítica não são incompatíveis, apesar das pretensões psicanalíticas; 3ª a psicanálise pode contribuir com a criminologia crítica, mas assumindo um papel limitado.

Vimos, com a teoria freudiana, que o sentimento de culpa inconsciente tem papel central na discussão criminológica, na medida em que o sujeito praticaria crimes movido pelo sentimento de culpa inconsciente que demandaria uma punição. Nesta perspectiva, não importaria tanto qual a conduta e qual o bem jurídico lesionado, mas sim o próprio fato de tal conduta ser considerada socialmente como crime e a expectativa inconsciente de que seu cometimento se desdobre em uma punição. As variações acerca das condutas praticadas ou das punições esperadas obedeceriam a aspectos da trajetória individual de cada sujeito.

Apesar de não negar a ocorrência de tais fenômenos, observáveis em casos clínicos, por exemplo, isto não é suficiente para compreender os fenômenos criminais de massa. Condutas criminosas associadas ao sentimento de culpa constituem casos específicos e seu modelo compreensivo não deve ser utilizado para uma análise criminológica mais abrangente, tampouco para o planejamento de intervenções em termos de política criminal. Pelo contrário, mesmo diante de seu poder explicativo sobre alguns casos, ele ainda deixa incólumes as questões da criminalização (sobre a qual nos advertem os teóricos do labeling approach 1) e do caráter de classe intrínseco às construções sobre o crime e o sistema de justiça criminal (como elucidam os criminólogos críticos).

Diferente da psicanálise, a criminologia crítica não trabalha com uma concepção ontológica de crime, mas verifica as variações históricas que ocorrem em torno da questão criminal, seja na definição de crime (a exemplo da proibição do uso da terra pelos camponeses na saída do feudalismo), na definição de criminoso (por exemplo, os excluídos da terra que, desempregados, passam a ser alvo do sistema punitivo) e na escolha das penas mais adequadas ao sistema produtivo vigente (pena de morte e castigos físicos, galés, pena de prisão), para chegar a um entendimento acerca da construção social do crime e das penas.

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Como se pode concluir, os discursos legitimantes das penas - tais como a necessidade de reduzir os perigos sociais e as violências, garantir o bem comum ou buscar a paz social, ou mesmo do caráter fundamental da punição para a existência da civilização, como teorizava Freud - jamais podem sem compreendidos como os objetivos que justificam a existência dos sistemas penais, quando se analisa seu percurso na realidade concreta. Pelo contrário, como nos adverte a criminologia crítica, deve-se estar informado acerca do caráter ideológico de tais discursos, na medida em que são ideias encobridoras da materialidade plenamente observável nas relações de opressão e controle necessárias à reprodução dos sistemas produtivos, à qual as punições servem e vêm servindo ao longo de toda a história que discutimos neste trabalho.

Diante do exposto resta evidenciada a posição desta autora de que a psicanálise é um campo de contribuições fundamentais para o campo da clínica, do tratamento do sofrimento psíquico dos sujeitos que sofrem as consequências da sociabilidade capitalista e para a criminologia, desde que o criminólogo crítico esteja atento aos limites desta teoria. É fundamental que se considere o sujeito da psicanálise como o sujeito da modernidade, marcado pelo capitalismo e suas determinações psíquicas e sociais. Cumpre ao criminólogo crítico não perder de vista, ainda, o caráter legitimante das penas que a psicanálise pode adotar, na medida em que o questionamento dos critérios para a criação e aplicação das mesmas não são alvo de suas discussões. A adição da crítica da economia política capitalista nas análises acerca do crime e suas determinações é uma primorosa lição deixada pelos criminólogos críticos, que conduz inevitavelmente à crítica dos discursos legitimantes da criminalização e das penas, dentre eles o da psicanálise. Assim, ainda que a psicanálise seja uma ferramenta importante para auxiliar a criminologia crítica, não deve ser o referencial adotado para se pensar a elaboração de política criminal, sendo esta última a única corrente criminológica capaz de fazê-lo com o rigor e o aprofundamento necessários.

A criminologia crítica é a única que se apresenta enquanto ferramenta capaz de auxiliar os criminólogos na compreensão do crime e de suas determinações. É apenas através de uma teoria que reconheça seus limites através de um recorte sócio-histórico e que considere a relação entre sistema social (de produção e de relação) e determinações do crime que uma compreensão criminal adequada pode ser alcançada e que o enfrentamento de políticas criminais deve ser realizado.


Referências

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MARX, K. O capital: crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo, 1867.

MASCARO, A. L. Estado e forma política. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2013.

MELOSSI, D.; PAVARINI, M. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan : Instituto Carioca de Criminologia, 2006. v. 11, .

PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo, SP: Boitempo, 2017.

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ZAFFARONI, E. R.; BATISTA, N.; ALAGIA, A.; SLOKAR, A. Direito penal brasileiro. 4a. Rio de Janeiro, RJ: Editora Revan, 2011.


Notas

  1. Labeling approach ou teoria do “etiquetamento”: corrente criminológica das décadas de 1950-60, que propõe a mudança de enfoque da figura do criminoso para as instâncias que definem o que é crime e executam os processos de criminalização. Propõe a noção de que os sujeitos que infringiam uma norma eram classificados como delinquentes, ou seja, recebiam um rótulo que os excluía para sempre da sociedade comum, correta, e passavam a integrar o grupo social dos criminosos, o que lhes trazia uma série de implicações simbólicas e concretas na vida social.

Sobre a autora
Thaíssa Fernanda Kratochwill de Oliveira

Psicanalista, doutoranda em saúde pública e pós graduanda em direito penal e criminologia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Thaíssa Fernanda Kratochwill. Um diálogo possível? Contribuições da psicanálise e da criminologia crítica para a compreensão da questão criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7146, 24 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/102164. Acesso em: 22 dez. 2024.

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