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A indústria do tabaco e a teoria do abuso do direito

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Agenda 27/07/2010 às 08:15

6. A definição de abuso do direito e os seus critérios de aplicabilidade

O legislador não é um ente supremo, um super-humano, um ser onisciente incapaz de cometer erros. Ao revés, a imprecisão das legislações produzidas é deveras demasiada. É atividade mental meramente utópica imaginar que as leis ainda poderão sintetizar, de maneira absolutamente inequívoca, as diretrizes a serem seguidas no exercício dos direitos, não deixando margem a dúvidas ou lacunas. É também pueril crer na possibilidade de se solver os problemas surgidos no seio social pela mera aplicação das leis positivadas, restringindo-se o papel do juiz ao de um autômato, uma máquina destinada a vomitar palavras previamente estabelecidas pelo legislador, conforme outrora já se acreditou.

O poder de interpretação e aplicação da lei pelo juiz sempre existiu. As necessidades sociais, múltiplas e tortuosas, não se suprem na palavra fria e rígida da lei, fazendo-se mister a presença de um intermediário que tenha condições de adaptar a fórmula às situações concretas postas em julgamento. Ripert, com toda a razão, já disse que "o juiz é o legislador dos casos particulares" [21]. À legislação cabe o papel de apresentar os contornos gerais do desenho legal; ao juiz compete preenchê-lo, dar-lhe o colorido necessário à definição ideal do caso concreto.

A admissão da teoria do abuso do direito certamente leva em consideração tal realidade. Ademais, quase sempre não se mostra possível estabelecer os limites objetivos da norma positiva, de uma maneira hermética. Aliás, hoje, a tendência legislativa é a de se criarem normas abertas, passíveis de atualização no tempo e espaço, em conformidade com o período histórico vivenciado e em observância às situações concretas postas em julgamento. Logo, cabe ao Judiciário o ofício de definir quais atos excederam o exercício regular de um direito, circunstância cuja solução, evidentemente, transfere à doutrina e jurisprudência o trabalho de elaboração de bases firmes acerca do conceito de abuso do direito e dos critérios a serem adotados para a aplicação efetiva da teoria na realidade forense.

Evidente haver um direito de se impingirem lesões a outrem. Muitas vezes, essa lesão é inevitável e fortemente amparada por lei, a exemplo do que ocorre na execução civil, em que o devedor ou responsável, muito embora amparado pelos princípios da dignidade humana e da menor onerosidade possível, certamente se verá obrigado a suportar os transtornos ocasionados pelos atos executivos de sub-rogação e/ou de coerção destinados à satisfação do crédito exeqüendo. [22]

Assim, realmente direitos existem a permitir lesões na esfera jurídica alheia. Entretanto, se no exercício deles os seus limites objetivos forem transpostos, estará o agente sujeito a ser responsabilizado civilmente pela ação ou omissão geradora do seu exercício irregular. Mas como se definir até onde pode ir o agente no exercício de seu direito? Quais os critérios que deverão orientar o julgador no caminho a ser percorrido para concluir se houve ou não exercício irregular ou arbitrário de um direito?

A doutrina tradicional, basicamente, definiu três critérios válidos a serem utilizados para se responsabilizar alguém por abuso do direito: a) intenção de lesar outrem, ou seja, o exercício de um direito com o intuito exclusivo de prejudicar – circunstância que deverá ser provada por quem a alega; b) ausência de interesse sério e legítimo; c) exercício do direito fora de sua finalidade econômica e social [23].

A dificuldade de se estabelecer uma fórmula única para definir o abuso do direito acabou superada com a publicação do CC de 2002. O art. 187 desse Diploma Legal denota uma opção manifesta do legislador pelo último critério, esse oriundo de um movimento doutrinário surgido para expandir o seu conceito, antes meramente ligado à proibição do ato emulativo e responsável pela demasiada circunscrição da aplicação dessa interessante e polêmica teoria.

Destarte, mesmo no exercício daquelas prerrogativas que a lei confere às pessoas, suas ações podem ferir interesses, lesar terceiros, produzir desequilíbrio social. Esta lesão dos direitos de terceiros poderá gerar responsabilidade, quando o agente negligencia certos ditames fundamentais da polícia jurídica, ordenados pela própria natureza das instituições. O simples fato de alguém se proclamar titular de um direito, nos termos objetivos da norma positivada, não dispensa uma vontade honesta; a consciência moral não pode jamais ser posta à margem, haja vista o fato de que há deveres em relação a outrem que nenhum direito permite violar [24]. Se o direito é o justo poder de agir, observando na ação os limites fixados na lei ou na estipulação consentida, urge – afirma Chironi – que essa ação se conduza dentro da sua própria finalidade, da sua distinção econômica e social [25].

Aquele que age com submissão apenas aos limites objetivos da lei, mas que, no exercício do direito que lhe confere o preceito legal, ofende os princípios da finalidade econômica e social desse mesmo direito, e, por conseqüência, as diretrizes da boa-fé e bons costumes [26], dando origem ao desequilíbrio entre os interesses individuais e os da coletividade, abusa de seu direito, mesmo que não tenha tido a intenção de lesar – independente, pois, de dolo ou culpa.

O fundamento principal do abuso do direito – leciona Sérgio Cavalieri Filho e Carlos Alberto Menezes Direito – é impedir que o direito sirva à opressão, evitar que o seu titular utilize seu poder com finalidade distinta daquela a que ele se destina. O ato é formalmente legal, mas o titular do direito desvia-se de sua finalidade, transformando-o em ato substancialmente ilícito. A conduta encontra-se em harmonia com a letra da lei, mas em rota de colisão com os seus valores éticos, sociais e econômicos, enfim, em confronto com o conteúdo axiológico da norma legal. A letra da lei não pode estar distanciada dos valores presentes na sociedade a que se destina [27].

A teoria do abuso do direito – esclarece Rui Stoco – se apóia no princípio da convivência, sendo imperioso conciliar-se a utilização do direito respeitando-se, sempre, a esfera jurídica alheia, fixando-lhe, pois, um limite. Destarte, o indivíduo, para exercitar o direito que lhe foi outorgado ou posto à disposição, deve conter-se dentro de uma limitação ética, além da qual desborda do lícito para o ilícito e do exercício regular para o abusivo [28].

É o art. 187 [29] do CC de 2002 uma norma aberta. Afinal, seria impossível ao legislador cristalizar, de forma rígida, numa única fórmula, a finalidade social e econômica do exercício dos direitos. [30] Tal dispositivo indica moralização, uma evidência vivaz da relatividade dos direitos, apregoando a infalibilidade das idéias que pregavam direitos subjetivos absolutos, oriundas do fetichismo da lei, da já anunciada onisciência do legislador e da ausência de lacuna na lei, princípios insustentáveis e desmoralizados [31].


7. A caracterização do abuso do direito perpetrado pela indústria do tabaco

Realizada a leitura das linhas traçadas até aqui, são quase automáticas as seguintes indagações: quão diferente seria o mundo, se há 40 ou 50 anos, a indústria do tabaco tivesse revelado suas pesquisas e conhecimento ao público mundial, esclarecendo-o acerca das moléstias que o ato de fumar pode acarretar à saúde do consumidor e sobre a natureza viciante da nicotina? A pandemia gerada pelo tabagismo, responsável por 10 mil mortes diárias no mundo, teria tomado forma se a indústria do fumo agisse, naquele tempo, nos moldes impostos pelo princípio geral da boa-fé e bons costumes?

A teoria do abuso do direito traduz uma concepção relativista do direito subjetivo, limitando sua atuação pelo repúdio ao caráter individualista que já o consagrou como absoluto. É um movimento repressivo à ultrapassada idéia liberalista, que valorizava o interesse particular, egoisticamente praticado, em detrimento do próprio interesse da coletividade.

Consoante a bem posta lição de Fábio Pallaretti Calcini,

o direito subjetivo há de ser vislumbrado por sua missão social, não podendo ser empregado em qualquer direção, não sendo, portanto, um direito-poder, mas um direito-função, que tem o indivíduo para auferir as benesses legais, sem, entretanto, atuar em prejuízo do interesse social [32].

Estaria a indústria do tabaco imunizada diante dessa realidade? Obviamente não. Aliás, consoante se verá, a inevitável conclusão extraída de todo esse contexto que envolve a indústria do fumo e as estratégias adotadas para fomentar o sucesso de vendas de seus produtos, é a de que sua postura não estava – e ainda não está – escorada no dever de lealdade para com o parceiro contratual, inerente ao princípio da boa-fé, já vigente antes mesmo da publicação do CDC.

7.1. A incidência do dever de boa-fé entre os contratantes, mesmo antes da publicação do código de defesa do consumidor

Em brilhante parecer [33], a professora Cláudia Lima Marques analisou os parâmetros legais do dever de boa-fé contratual e extracontratual, nos últimos 40 anos no Brasil, e construiu a fundamentação jurídica necessária para evidenciar o dever de lealdade da indústria do fumo para com os seus consumidores, bem assim, a conseqüente responsabilidade civil da primeira em razão dos danos acarretados aos últimos, considerando a publicidade insidiosa que difundiu massivamente e a omissão intencional de informações importantes acerca dos males gerados pelo consumo de cigarros.

Tal parecer, encomendado pelo Dr. Miguel Wedy, advogado da família de Eduardo Francisco da Silva – fumante morto em razão do consumo inveterado de cigarros –, e responsável pelo ajuizamento de uma ação de reparação de danos contra a Souza Cruz S.A. e a Philip Morris do Brasil S.A., representa uma das bases centrais na estruturação e desenvolvimento das idéias aqui apresentadas.

Mister esclarecer que muito embora tal trabalho tenha sido encomendado especificamente para ser utilizado num dos inúmeros processos existentes contra a indústria do fumo, e se encontre registrado sob insígnia ‘parecer’, representa ele, verdadeiramente, um estudo de profundidade, imparcial e realístico, que aborda o tema em várias de suas polêmicas facetas. Nem de longe é exagerado afirmar – repita-se – que o aludido ‘parecer’, pelo peso que possui a sua autora na comunidade jurídico-científica, representa mais um marco na disputa judicial travada entre fumantes e a indústria do tabaco no Brasil, e serve de robusto elemento para contribuir com a reviravolta jurisprudencial – que não tardará a ocorrer, acredita-se – a beneficiar os hipossuficientes da relação de consumo que envolve a comercialização de cigarros.

A brilhante jurista assevera que o princípio da boa-fé amolda-se como o fundamento jurídico do dever de lealdade (conduta) na sociedade brasileira, isso já bem antes da publicação da Lei n. 8.078/90. Sua análise e conclusão são pautados no CC (1916), Código Comercial (1850) e na própria CF (1988) [34]. Importante enumerar alguns dos pontuais ensinamentos ministrados pela professora Cláudia Lima Marques:

1) É correto afirmar que o princípio da boa-fé encontra-se inserido no ordenamento brasileiro desde 1850, especialmente naquilo que se refere ao dever informativo do profissional/fabricante ao consumidor/leigo. O princípio da boa-fé, já a esta época, influenciava todo o direito das obrigações no Brasil [35].

2) A regra de conduta da sociedade brasileira, notadamente nas relações entre profissionais (fabricantes de cigarros) e leigos (consumidores-fumantes), sempre foi e deve ser a da boa-fé e lealdade informacional! [36]

3) O princípio da boa-fé já vigorava no ordenamento jurídico brasileiro, por influência direta dos ensinamentos do Direito Romano. "A atividade criadora dos magistrados romanos [...] – segundo o magistério de Clóvis Couto e Silva, em sua tese de 1964, intitulada ‘A obrigação como processo’ – valorizava grandemente o comportamento ético das partes, o que se expressava, sobretudo nas ‘actiones ex fide bona’, nas quais o arbítrio do ‘iudex’ se ampliava para que pudesse considerar, na sentença, a retidão e a lisura do procedimento dos litigantes, no momento da celebração do negócio jurídico [37].

4) Obviamente, uma sociedade não pode se organizar com base na má-fé, nem aceitá-la se subjetiva, seja no contrato, nos direitos reais seja, igualmente, na relação extracontratual (ou pré-contratual), donde a segurança e a confiança naquilo que foi afirmado deve ser a regra para evitar o dano futuro [38].

5) Desde Roma, a confiança despertada pelos atos e palavras daquele que age na sociedade, nutrindo expectativas nos outros, é juridicamente importante e valorada, levando à criação e à transformação das relações jurídicas. Cita ensinamentos de Amélia Castresana:

A fides supõe, pois, ‘fazer o que se afirmou’, ‘cumprir o que se afirma ou promete’, ‘ter palavra’, como uma certa condição que, mantida ou prolongada nas relações entre os homens, gera uma confiança, um estado de confiança’ em relação ao sujeito, titular da ‘fides’, e, por ele, ‘homem de palavra’, ‘cumpridor de seus compromissos’ [39].

6) Apesar de não haver menção expressa no CC de 1916, Clóvis Couto e Silva identificava a presença e incidência do princípio da boa-fé no ordenamento jurídico brasileiro, desde 1850, notadamente no Código Comercial, em seu art. 131, I [40]. A jurista destaca a importância desse ensinamento para o caso examinado no parecer por ela desenvolvido, haja vista que o Código Comercial de 1850 já vigorava à época em que o consumidor/vítima iniciou-se no tabagismo [41].

7) As normas de conduta aplicáveis às relações mistas, logo, aos atos mistos, como as relações entre comerciantes e civis, hoje denominadas de relações de consumo, encontravam-se inseridas no Código Comercial de 1850 e, subsidiariamente, no CC de 1916 [42].

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8) No tráfico jurídico, a boa-fé impõe uma conduta leal e cooperativa, em que a realização da liberdade negocial, ou verdadeira autonomia de vontade e de decisão de um leigo (no caso, consumidor), depende das informações, atos e omissões de um profissional (no caso, fabricante de cigarros), conduzindo-se lealmente. O grau de intensidade de tais deveres varia conforme o contato social (contrato, negócio jurídico etc.) e conforme os costumes morais da época; todavia, serão sempre os bons costumes e a lei o limite: nada pode ser de acordo com a boa-fé se é contrário aos bons costumes ou à atuação esperada de um homem médio diligente [43].

9) A boa-fé não é um paradigma apenas contratual, mas pré-contratual e extra contratual, e tem intensidades diferentes segundo o tipo de contato social (contrato, publicidade, embalagem, marca, delito, etc.) e também de acordo com os sujeitos da relação (profissionais, leigos, crianças, idosos, pessoa determinada, pessoa indeterminada, etc.). Quando se escolhe um parceiro contratual, deve-se com ele cooperar leal e fortemente. Quando se organiza e se veicula publicidade, sabe-se – num país como o Brasil – que ela será vista por pobres e ricos, letrados e iletrados, atingirá e criará, ou não, confiança em pessoas informadas e mediamente informadas. O contrato firmado com outro profissional, que é "expert" no produto comprado, não obriga o fornecedor a informar ou esclarecer todos os detalhes, mas, quando ele é feito com um leigo, informações e alertas simples podem ser importantes [44].

10) Ao citar Clóvis Couto e Silva, a professora leciona não bastar a mera informação, sendo imprescindível alertar e esclarecer, pois um é "expert"/profissional e detém a informação, o outro é leigo/consumidor e não a possui por inteiro [45].

11) Ainda com Clóvis Couto e Silva, assevera ela terem sido a boa-fé e os deveres de conduta por ela criados que diminuíram a importância da summa divisio entre responsabilidades contratual e extracontratual, impondo um paradigma de boa-fé a todos os contatos sociais [46].

12) Cita a posição de Jhering acerca da culpa in contrahendo, que lança luzes sobre a existência destes deveres de cooperação, de informação, de lealdade e de segurança, mesmo quando o contrato ou relação principal apresenta-se nulo ou já cumprido. A teoria da culpa in contrahendo – continua a jurista citando Johannes Koëndgen – impõe a necessidade de se considerar a existência de deveres da boa-fé nas aproximações negociais para vender (incluindo as práticas de publicidade e a informação prestada pelos representantes, fornecedores diretos), aceitar estes deveres acrescidos e o regime quase-contratual ou contratual deste momento pré-negocial e daí retirar a imposição de conduta leal (valorando a ação e omissão in contrahendo segundo a boa-fé). Se a boa-fé objetiva (conduta) ou subjetiva (conhecimento negado ao alter) não existir, configurar-se-á uma ‘valoração’ da culpa daquele que in contrahendo, direta ou indiretamente, omitiu-se e criou uma aparência que destoa da realidade – por ele conhecida – para assim vender e mais lucrar, despertando confiança e criando expectativas inexistentes [47].

13) Embora a indústria de fumo não contrate diretamente com o consumidor, a publicidade massiva por ela veiculada possui indiscutível potencial indutor, um quase-contrato, um ato unilateral voltado a realização do negócio, direcionado para vender uma imagem de saúde, liberdade e livre escolha que faz parte dos atos e omissões negociais daquele que fabrica cigarros [48].

De tais linhas, é de se perceber a incoerência da tese que pugna pela não incidência de um dever de informar antes da vigência do CDC, mormente porque tal obrigação junge-se ao princípio maior da boa-fé, de observação imprescindível, hoje e outrora, em especial nas aproximações negociais destinadas à venda e contratação de produtos e serviços – tidos por potencialmente perigosos.

Logo, aquele que se predispôs a exercer o papel de fornecedor e, intencionalmente, deixou de informar o parceiro contratual leigo acerca dos riscos a que ele estava sujeito ao consumir o produto que disponibilizara no mercado, agiu contrariamente aos ditames impostos pela boa-fé, já presentes no ordenamento jurídico, bem antes da publicação do CDC.

Igualmente censurável é a postura daquele que, mesmo compreendendo a natureza maléfica do produto que forneceu ao mercado, valeu-se de expedientes publicitários contrários a essa realidade, e sugeriu um contexto de idéias positivas em nada afeto ao verdadeiro resultado do seu consumo, o qual verdadeiramente se alinha à morbidade e mortalidade em massa de consumidores.

De tal panorama, já é possível vislumbrar a configuração do ilícito perpetrado pela indústria do fumo, fincado num evidente abuso do direito de desenvolver, fabricar e comercializar cigarros.

7.2. A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a comercialização de seus produtos: omissão intencional de informações

Não há – acredita-se – como negar ser a atividade desenvolvida pela indústria do tabaco lícita. O Estado, por mais incrível que possa parecer, conferiu às fornecedoras de cigarro uma verdadeira licença para matar. Só no Brasil, nada menos que 200 (duzentos) mil indivíduos vão a óbito, anualmente, por razões vinculadas ao fumo. Já se disse que a Organização Mundial da Saúde considera o tabagismo uma pandemia, pois, todo o ano, tira a vida de quase 5 milhões de indivíduos no mundo, [49] ou seja, o equivalente a mais de 10 mil mortes/dia. O tabagismo, hoje, mata mais que a soma das mortes por AIDS, cocaína, heroína, álcool, suicídios e acidentes de trânsito [50].

Conforme visto no tópico anterior, o fato de a indústria do tabaco ser detentora do direito de produzir, fabricar e comercializar cigarros, não a desobriga de fazê-lo em cumprimento a alguns deveres morais e jurídicos intransponíveis, a saber, informar o consumidor adequadamente acerca das características do cigarro e dos riscos aos quais está sujeito ao usar ou expor-se a esse produto. E isso, décadas e décadas antes da vigência do CDC.

Nessa linha de raciocínio, a observação de Chironi, citado por Alvino Lima, segundo a qual o "simples fato de nos proclamarmos titulares de um direito, nos termos objetivos da norma de direito positivo, não dispensa uma vontade honesta; a consciência moral não pode jamais ser posta à margem, visto como há deveres em relação a outrem que nenhum direito permite violar" [51]. Sem dúvida que o direito à vida deveria encabeçar esse rol de direitos invioláveis; contudo, o imenso poderio da indústria do tabaco permitiu a abertura de uma brecha na legislação constitucional, relativizando – pasme-se – o direito à própria vida e à dignidade da pessoa humana.

Mesmo diante dessa infeliz constatação, é inaceitável o argumento – não raro utilizado pelos órgãos do Judiciário Nacional – de que as empresas do tabaco, por realizarem atividade lícita, não poderãoser responsabilizadas por eventuais prejuízos sofridos em razão do consumo de seus produtos. Conhece-se a surrada tese adotada por essas empresas no sentido de que "agem no exercício regular de um direito". O raciocínio, data venia, é truncado, incapaz de resolver adequadamente questão tão complexa.

Em primeiro lugar porque, não obstante a atividade seja lícita, extrinsecamente a indústria do tabaco se porta, ainda presentemente, de modo inadequado, à margem da legalidade, já que mantém em seus produtos um gravíssimo vício de informação – como demonstrado em capítulo próprio. Afirmou-se que as atividades exercidas no mercado de consumo são, em regra, todas lícitas, de modo que a ilicitude não se concentra nas atividades em si, senão em características, intrínsecas ou extrínsecas, afetas ao próprio produto em circulação no mercado. No caso específico da indústria do tabaco, um dos cenários que identificam a ilicitude, plenamente capaz de responsabilizá-la pelos danos oriundos do consumo de seus produtos, situa-se justamente em sua postura, caracterizada pela sonegação de informações ao consumidor.

Em segundo lugar porque – e aqui se encaixa perfeitamente a teoria do abuso do direito –, embora a indústria do tabaco exerça atividade lícita, sempre agiu no exercício irregular de seu direito de produzir e comercializar produtos fumígenos, seguindo na contramão da finalidade desse mesmo direito, da sua destinação econômica e social. Por igual, insiste numa postura antiquada, se confrontada aos bons costumes e à boa-fé.

A história evidencia que a indústria do tabaco sempre operou egoisticamente, tendo por escopo maior seus interesses econômicos; desimportantes a ela, as conseqüências nefastas que o uso de seus produtos acarreta aos consumidores, sobretudo porque não só omitiu da sociedade – e isso no mundo todo – informes preciosos sobre os malefícios do cigarro, mas também se valeu de expedientes publicitários desleais, fazendo apologia do produto perigoso, com o intuito de confundir, seduzir e aliciar mais e mais adeptos ao fumo.

A literatura especializada assinala uma série de imposturas adotadas pela indústria do tabaco, intentadas exclusivamente em manter e fomentar o seu lucrativo negócio – anualmente em torno de 300 bilhões no mundo. No Brasil, a respeito disso, destaca-se a notável obra intitulada "O cigarro", de autoria do jornalista Mario Cesar Carvalho.

A hipocrisia perpetrada pelas fabricantes de cigarros tornou-se pública a começar de 1994, quando uma caixa com alguns milhares de páginas de documentos da Brown and Williamson Tobacco Corporation (B&W) acabou sendo enviada, anonimamente, ao escritório do professor Stanton Glantz, na Universidade da Califórnia, São Francisco.

A partir daí, uma radiografia da indústria do fumo foi produzida e a revelou por dentro, notadamente naquilo que diz respeito a sua contumaz estratégia de incitar controvérsia e dúvida para minimizar os efeitos deletérios do cigarro. Ressalte-se que esses documentos encontram-se, atualmente, à disposição do público para consulta, no site "http://www.library.ucsf.edu/tobacco", e na obra "The Cigarrette Papers" – ainda sem tradução no Brasil –, de autoria de Stanton A. Glantz, John Slade, Lisa A. Bero, Peter Hanauer e Deborah E. Barnes.

Diga-se, ademais, que o desmantelamento da arquitetônica e fraudulenta estratégia criada e efetivada pela indústria do tabaco teve também como colaboradores alguns dos funcionários atuantes nas empresas de fumo, nos Estados Unidos. Esses acabaram denunciando o que sabiam, incentivados pela verdadeira guerra travada contra o cigarro. O mais célebre deles foi o bioquímico da Brown Williamson, Jeffrey Wigand, cuja história tornou-se um filme de grande repercussão mundial – O Informante. Em função de revelações desse jaez, as fabricantes tiveram que capitular e pagar a todos os 50 estados americanos uma indenização no importe de 256 milhões de dólares, para compensar os gastos com a saúde pública [52].

Mario Cesar Carvalho esclarece que a sucessão de fraudes da indústria do cigarro teve início para combater um pesquisador que vinculou o consumo de cigarros ao câncer. Em 1953, o médico Ernst Wynder (1922-1999), um judeu alemão que fugira do nazismo e se estabelecera nos Estados Unidos, experimentou pincelar o dorso de 86 ratos de laboratório com uma substância obtida da condensação da fumaça do cigarro Lucky Strike [53]. Cada ratinho recebeu semanalmente, por dois anos, 40 gramas de alcatrão destilado, mais ou menos a mesma quantidade constante em um maço de cigarros. O resultado: dos 62 que chegaram ao final do experimento, 58% desenvolveram tumores cancerígenos. Nos 20 meses seguintes, 90% dos ratos haviam perecido. Num grupo de roedores que não tinham recebido a substância, 58% sobreviveram [54].

Por óbvio que as descobertas de Wynder não foram bem recebidas pela indústria do tabaco. Era a primeira vez que um estudo realizado, sob condições rigorosas, comprovava a relação umbilical entre o fumo e o câncer. Amplamente divulgada pela mídia na época, a descoberta foi responsável por uma queda de 10% no consumo de cigarros per capita nos Estados Unidos, entre 1953 e 1954 [55].

Acuadas – relata o jornalista Mario Cesar Carvalho –, as fabricantes de cigarros investiram pesado para garantirem a neutralização do ataque – e a força de seu poderio econômico surtiu efeitos quase imediatos [56].

Sua primeira providência foi contratar a Hill & Knowlton, uma das maiores empresas de relações públicas dos Estados Unidos. Num anúncio, publicado em nada menos que 448 jornais, em 1954, a indústria golpeou as descobertas do alemão, afirmando que ele não possuía evidências científicas. Categoricamente afirmava-se que não havia provas com o rigor da ciência de que o cigarro causasse câncer; os bioestatísticos poderiam apontar como causa qualquer outro fator ligado à vida moderna, como a poluição de carros e fábricas ou a alimentação industrializada. Dizia o texto, assinado pelo recém-criado Comitê de Pesquisas da Indústria do Tabaco (Tobacco Industry Research Committee) [57]: "Acreditamos que os nossos produtos não fazem mal à saúde ." Ao final do anúncio, o referido Comitê fazia uma promessa na qual a indústria aceitava como responsabilidade básica o interesse pela saúde das pessoas, acima de todas as outras considerações de seu negócio – e para provar que ela estava "interessada" em pesquisar o impacto do fumo sobre a saúde, estava lá o tal Comitê de Pesquisas, financiado pelas fabricantes de cigarros [58].

A ofensiva não parou por aí, vindo de muitos flancos: "cientistas", defensores da indústria tabagista, apareciam em programas de TV e escreviam artigos em jornais (muitos desses espaços descaradamente comprados) contestando as descobertas do alemão. Wynder, uma voz solitária que a todo o momento necessitava demonstrar a austeridade na execução de suas pesquisas, foi visto com desconfiança, até mesmo por alguns órgãos do governo americano [59].

Outra estratégia da qual se valeu a indústria de tabaco foi a criação maciça de novos tipos de cigarros, a exemplo daqueles com filtro, nos anos 50, e os low-tar (baixa concentração de alcatrão), a partir dos anos 60. Um dos memorandos, esse escrito por Ernest Pepples, vice-presidente e advogado geral da B&W, evidencia que a primeira reação da indústria do tabaco à crescente preocupação pública com os efeitos danosos do cigarro foi a de "produzir mais marcas com filtro e com baixos índices de alcatrão." Segundo Pepples, a fatia do mercado dos cigarros com filtro cresceu rapidamente durante os anos 50 e 60, e criou uma atmosfera de competição feroz que ficou conhecida como a "corrida do alcatrão" (empresas competindo para baixar o alcatrão dos cigarros). Os documentos secretos mostram, entretanto, que essas novas marcas não eram exatamente mais saudáveis que as antigas. Em verdade, foram desenvolvidas com propósitos de marketing, para que as empresas de tabaco pudessem declarar em seus anúncios que elas tinham "menos alcatrão" que as outras – o próprio Pepples assinala, no tal memorando citado supracitado, que os filtros não faziam os cigarros mais benéficos, apenas davam aos fumantes a ilusão de fumar um produto mais saudável. [60] A respeito disso, os cientistas da BAT fizeram uma distinção entre os cigarros "orientados para a saúde", que incorporavam avanços tecnológicos testados e com a redução dos riscos, e cigarros "de imagem saudável", que eram projetados para dar aos fumantes a ilusão de estarem consumindo um produto mais seguro [61].

Mas, em 12 de maio de 1994, a indústria sofreu um súbito e inesperado choque. Nessa data, em razão do surgimento dos documentos secretos da indústria do fumo [62], comprovou-se que o discurso por ela elaborado e difundido entre os anos 50 e 90 era absolutamente cínico e fraudulento. Referidos documentos, enviados anonimamente ao escritório do professor Stanton Glantz, na Universidade da Califórnia, combinados com outros obtidos da B&W, pela House of Representatives Subcomittee on Health and the Environment, e alguns papéis secretos de um ex-diretor de pesquisa da BAT, forneceram uma visão cândida e particular dos pensamentos e ações da indústria do tabaco, durante a última metade do século XX [63]. Isso por espelharem evidências de que a indústria conhecia os fatos de o cigarro provocar câncer e de a nicotina ser uma droga capaz de acarretar dependência, embora a imagem pública apresentada por ela, naquele tempo, sobre a praga marrom, fosse outra bem diferente [64].

É de se dizer que naquela data – em 12 de maio de 1994 –, Stanton A. Glantz, professor da Divisão de Cardiologia da Universidade da Califórnia, São Francisco, Estados Unidos, ativo militante contra o tabagismo, recebeu de um missivista, ocultado sob o pseudônimo Mr. Butts, aproximadamente 4 mil páginas de memorandos, relatórios, cartas, cópias de atas, que corresponderam a um período de 30 anos de atividade da BAT e de sua subsidiária nos Estados Unidos, a B&W. Ulteriormente, Merry Williams, ex-técnico da B&W, forneceu ao Prof. Glantz grande número de documentos referentes às atividades dessa companhia de cigarros. Os documentos foram repassados ao Subcomitê de Saúde e Ambiente do Congresso Norte-americano. Além de sua publicação em periódicos científicos, foram divulgados numa série de artigos do New York Times. Após vários recursos dos fabricantes de cigarros, por meio dos quais alegava interferência em sua privacidade, a Corte Superior do Estado da Califórnia reconheceu sua legitimidade, e decidiu que esses documentos deveriam ser do domínio público [65].

Em 8 de maio de 1998, as companhias de tabaco propuseram um acordo com o Estado do Minnesota, numa ação instaurada pelo Promotor Geral do Estado de Minnesota, Estados Unidos, e a Blue Cross Shield desse Estado. Nas cláusulas do acordo constou a obrigatoriedade de a indústria tabaqueira abrir ao público o acesso aos seus documentos internos constantes de atas, memoriais, cartas, relatórios, planos de administração e toda a correspondência referente às suas atividades técnicas, científicas e comerciais. Neles ainda constam pronunciamentos de técnicos, cientistas, consultantes, assessores e advogados.

Toda essa documentação refere-se a sete empresas fabricantes de cigarros e duas organizações a elas filiadas, em atividade nos Estados Unidos: Phillip Morris Incorporated, RJ Reynolds Tobacco Company, British American Tobacco, Brown and Williamson, Lorillard Tobacco Company, American Tobacco Company, Liggett Group, Tobacco Institute e o Center for Tobacco Research. Ao todo, são 5 milhões de documentos, com 40 milhões de páginas, que podem ser consultados pela internet, no arquivo oficial de Minnesota, e em Guilford Surrey nos arredores de Londres [66], ou no livro intitulado The Cigarette Papers.

Apenas para se ter uma idéia – já que não é o objetivo desse trabalho compilar todas as importantes informações colocadas sob domínio público, por intermédio do livro The Cigarette Papers e pela internet –, os aludidos documentos demonstraram que a nicotina era rotineiramente vista pela indústria do fumo como viciante e sempre tratada como o agente farmacologicamente ativo no tabaco. Evidenciaram, outrossim, que a professada busca da verdade pela indústria, acerca dos efeitos do fumo na saúde humana, foi, nada mais, que uma fraude. Sua pretensa vontade de se engajar e disseminar pesquisas relacionadas à saúde era, sempre, subserviente a considerações comerciais e litigiosas. Inicialmente, os pesquisadores das companhias tentaram descobrir os elementos tóxicos na fumaça do cigarro para que um cigarro "seguro", a conter apenas nicotina e não substâncias tóxicas, pudesse ser desenvolvido. Quando ficou provado que tal objetivo era inexeqüível, principalmente em razão do número de toxinas envolvidas, as decisões a respeito da saúde passaram exclusivamente para os advogados. Os documentos mostraram que os advogados da B&W e de outras companhias de tabaco desempenharam um papel central nas decisões relacionadas a essas pesquisas... [67].

O principal alvo deste esforço de pesquisa controlada por advogados não era melhorar o entendimento público ou científico existente sobre os efeitos do fumo na saúde, mas, sim, minimizar a exposição da indústria a litígios por responsabilidade e regulação adicional do governo [68]. Quando as metas de determinar e disseminar a verdade entravam em conflito com a meta de minimizar a responsabilidade da B&W, a última prevalecia consistentemente. Em particular, mesmo após a pesquisa da B&W ter mostrado que cigarros causam doenças e são viciantes, sob a direção de seus advogados, esta empresa pretendia evitar a geração de quaisquer outros novos resultados confirmando tais evidências. Ela também empreendeu esforços para impedir a disseminação ou revelação desses resultados, tanto judicialmente como em qualquer foro público – aparentemente a ponto de remover alguns documentos relevantes de seus arquivos e mandá-los para longe [69].

Muitos desses documentos consubstanciam-se em correspondências que retratam a comunicação entre advogados de companhias do tabaco. Esses profissionais pareciam ter aceitado as hipóteses de que o ato de fumar vicia e causa doenças. Os documentos dos anos 70 e 80, nos quais advogados especificaram aquilo que poderia ou não ser alegado nas relações públicas e anúncios da indústria do tabaco, mostram que alguns deles consideravam tais hipóteses tão bem estabelecidas que sequer tinham como ser negadas diretamente, sem o risco de responsabilidade [70].

A aludida documentação também revela que, nos anos 60, a indústria do tabaco em geral – a B&W e a BAT em particular – havia provado, em seus próprios laboratórios, que o alcatrão do cigarro causa câncer em animais [71]. Além disso, no início dessa década, os cientistas da BAT (e os advogados da B&W) já trabalhavam com a idéia de que a nicotina motiva a dependência. A BAT respondeu com a tentativa de criar secretamente um cigarro "seguro" que minimizaria os elementos perigosos existentes na sua fumaça. Entretanto, publicamente, essas empresas mantiveram a posição de que o cigarro não era prejudicial e muito menos viciante. A meta primária da indústria do tabaco era a de se manter como um grande nicho comercial, protegendo-se de processos judiciais e regulação dos governos. Até hoje, apesar de irrefutáveis evidências científicas e relatórios governamentais oficiais, algumas fabricantes de cigarros insistem em sustentar que os produtos do tabaco não viciam nem causam doenças; colocam-se por detrás de uma parede de negativas, construída com o fim único de criar controvérsias e dúvidas acerca daquilo que já se provou sobre os malefícios do tabagismo no curso dos anos [72] – basta, para constatar essa realidade, uma breve análise das defesas apresentadas pelas fabricantes de cigarros em ações judiciais que sofrem no Brasil.

Imprescindível, nesse ponto, a transcrição das importantes constatações anotadas pelo jornalista Mario Cesar Carvalho:

Os memorandos dos altos executivos são ainda mais reveladores, principalmente pelo teor de cinismo que carregam quando confrontados com o discurso público. Oficialmente, os fabricantes de cigarro rejeitam ferozmente que o produto que vendem seja classificado como droga. Na correspondência interna, a conversa é outra [73].

E continua:

Um desses documentos, de 1963, trata, numa só frase, dos dois maiores tabus para os fabricantes de cigarro – ele fala em droga e em dependência. "Nosso negócio é vender nicotina, uma droga viciante que é eficaz no relaxamento dos mecanismos do estresse", escreveu Addison Yeaman, presidente do conselho da Brown & Williamson.

Em 1961, a Ligget & Myers, uma fábrica dos EUA, encomendou uma pesquisa sobre os componentes da fumaça do cigarro. O texto com o resultado da pesquisa, desenvolvida pela empresa Arthur D. Little, começava assim: "Há materiais biológicos ativos na fumaça do tabaco do cigarro. Eles são: a) causadores de câncer; b) promotores de câncer; e) tóxicos; d) estimulantes e prazerosos" [74].

E conclui:

Outros textos menos contundentes mostravam que a indústria fazia campanhas publicitárias para atingir adolescentes e manipulava o nível de nicotina no cigarro. Um memorando de 1965, do pesquisador Ron Tamol, da Philip Morris, produtora do cigarro mais vendido no mundo, o Marlboro, trazia a seguinte anotação: "Determinar o mínimo de nicotina para manter o fumante normal ‘viciado’" [75].

José Rosemberg, referindo-se exclusivamente à nicotina, assevera que, com os documentos secretos da indústria do tabaco, revelou-se, em suma: a) as pesquisas conduzidas sobre a nicotina foram mais avançadas que as das comunidades médico-científicas; b) a indústria tabaqueira, de longa data, clara e comprovadamente, detém conhecimentos de que a nicotina é droga, causadora de dependência físico-química, e age de forma deletéria sobre os centros nervosos cerebrais; e c) as pesquisas foram conduzidas com o objetivo de melhor esclarecer a neuro farmacologia da nicotina, a sua natureza, suas formas de presença no tabaco, sua mais fácil liberação e maior ação sobre o cérebro, a elevação do seu teor no fumo e a intensificação da dependência [76].

Apesar das diversas e impressionantes informações [77] obtidas desses documentos secretos, não se pode negar que eles possuem certo grau de limitação – aliás, os próprios autores o livro The Cigarette Papers admitem isso. De qualquer modo, são eles suficientes para se concluir que a indústria do fumo agiu no exercício irregular de um direito e, assim, dele abusou, já que produziu e comercializou cigarros sem informar adequadamente o consumidor – apesar de deter informações de que o fumo é prejudicial à saúde – e, o que talvez seja pior, fazendo apologia do produto perigoso por meio de insidiosas publicidades [78].

7.3. A postura adotada pela indústria do fumo para garantir a comercialização de seus produtos: oferta publicitária insidiosa promovendo o consumo de cigarros

Num raciocínio embasado nas informações até aqui colocadas, não se mostra dificultosa a conclusão de que a indústria do fumo adotou estratégia destinada a desacreditar a ciência legítima, somando esforços para incitar controvérsias e dúvidas sobre estudos divulgados desde o início dos anos 50 [79], os quais vinculavam a prática do tabagismo aos prejuízos para a saúde humana. A publicidade massiva e insidiosa, veiculada pela indústria do fumo, é peça fundamental desse complexo quebra-cabeça.

Mesmo antes que as evidências científicas começassem a apontar a ligação entre o consumo de cigarros e diversas doenças, as companhias de tabaco, nos EUA, já promoviam anúncios publicitários os quais insinuavam que algumas marcas eram ‘mais saudáveis’ ou ‘menos irritantes’ que outras, consoante demonstra os documentos secretos da indústria do fumo.

Um dos documentos simplesmente lista os slogans de publicidades de várias marcas de cigarro dos anos 20 até os 50, incluindo Kool, Camel, Lucky Strike, Old Gold e Viceroy. [80] Vejam-se algumas dessas ofertas publicitárias:

a) "É torrado. Sem irritação da garganta – sem tosse." (Lucky Strike, em 1928).

b) "20.679 médicos confirmaram o fato de que Lucky Strike é menos irritante à garganta que outros cigarros." (Lucky Strike, em 1929).

c) "Pelo bem de sua garganta, mude dos ‘Quentes’ para Kools." (Kools, nos anos 30 e 40).

d) "O novo filtro guarda-saúde faz Viceroy melhor para a sua saúde do que qualquer outro cigarro líder!" (Viceroy, nos anos 50, quando o público se encontrava mais apreensivo em razão dos informes divulgados na imprensa, de que o tabagismo causaria riscos à saúde. Em tal época, a indústria promoveu maciçamente os cigarros com filtro e fez anúncios de menos alcatrão).

e) "Apesar de muitos filtros ajudarem a remover os teores do tabaco, análises de laboratório provaram que a fumaça de outros cigarros com filtro líderes contêm até 110,5% mais nicotina do que Viceroy." (Viceroy, em 1952).

f) "Por que os homens e mulheres das faculdades fumam mais Viceroy que qualquer outro cigarro? Porque só Viceroy dá a você 20.000 proteções de filtro em cada um deles, feitas de uma substância natural pura – a celulose – encontrada em deliciosas frutas e outros alimentos! Além de não ser mineral e atóxico, esse filtro de acetato de celulose nunca quebra ou deforma." (Viceroy, em 1955).

g) "Não há outro filtro como Viceroy! Sem algodão! Sem papel! Sem asbestos! Sem carvão mineral! Sem nenhum tipo de substância estranha!" (Viceroy, em 1955, numa publicidade divulgada em revista) [81].

Estudiosos dos documentos secretos da indústria do fumo esclarecem que esses "slogans", juntamente com o memorando escrito por Ernest Pepples,referindo-se à ‘corrida do alcatrão’, indicam que as fabricantes de tabaco começaram a promover os cigarros de filtro e de baixos teores durante os anos 50, sobretudo para acalmar a animosidade pública, surgida em razão de estudos que vinculavam o cigarro a várias doenças. Embora os anúncios da época sugerissem que os novos cigarros eram ‘mais saudáveis’, não havia nenhum indício real de que isso revelava uma verdade. Depois de vinte anos, em 1977, evidências surgiram, mas para indicar a diminuição de teores e a utilização de filtros tinham apenas um efeito modesto na redução do risco enorme representado pelo consumo de cigarros [82].

Hoje, o discurso de muitas fabricantes de fumo mudou. Segundo elas, a comercialização de cigarros de filtros e ‘low-tar’ mantêm-se por causa da demanda do público, e não porque se acredita que esses produtos são mais seguros. Ressalte-se, contudo, que foram as próprias empresas de tabaco, por meio de massiva campanha publicitária, as formadoras da ilusão de que esses produtos seriam menos perigosos [...] [83].

Com o passar dos anos, a publicidade ofertada pela indústria tabagista foi-se tornando mais e mais sofisticada e incisiva, fosse para garantir uma gorda fatia do competitivo mercado, fosse ainda para incitar controvérsias e dúvidas nos estudos que vinham se assomando com maior freqüência, a fim de provar uma ligação direta do consumo de cigarros a varias enfermidades.

No próximo capítulo se verá que a publicidade de cigarros jamais teve cunho informativo e esclarecedor. Sempre foi promovida com o objetivo de criar uma necessidade artificial de consumo e manter na sociedade uma ambientação constante do produto nocivo. A motivação do consumidor era buscada mediante a aproximação de modos de ser e viver ao produto anunciado. Assim, relacionavam-se os cigarros a atividades esportivas, à sociabilidade, à saúde, ao requinte, ao sucesso profissional, à sensualidade, etc. Refletia-se a idéia de que fumar era algo prazeroso, "hábito" de pessoas inteligentes, produtivas e livres. Tal estratégia publicitária, hoje proibida no Brasil, objetivava primordialmente a persuasão, pois tinha por matéria prima sons e imagens sedutores, voltados a incitar a prática do tabagismo, tática bastante eficiente, principalmente quando endereçada a crianças e adolescentes [84], pessoas naturalmente imaturas, ou inseridas num contexto de mudanças psicológicas e hormonais próprias.

Essa, a linha de raciocínio de Cláudia Lima Marques, ao lecionar que

[...] não somente as empresas [do tabaco] desinformaram voluntariamente seus milhares de consumidores, como enviaram mensagens que – para estes leigos – eram aceitáveis e acreditáveis. Em outras palavras, a informação publicitária (imagens, induções, sons, risos, frases, personagens, situações de esporte, lazer, prazer, etc.) é recebida e processada por um leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita, de forma totalmente escusável!

Para que se evitem argumentos repetitivos a respeito do ilegítimo estratagema publicitário, do qual se valeu a indústria do tabaco décadas e décadas no Brasil – argumentos esses já abordados e a serem traçados com mais profundidade no próximo capítulo deste trabalho –, apenas se fará referência a uma importante prova técnica responsável pela comprovação do potencial lesivo de um material publicitário veiculado pela empresa Souza Cruz S.A – as frases e conclusões transcritas a seguir foram retiradas do aludido trabalho técnico, o qual não foi objeto de publicação.

No ano de 2000, atendendo à requisição do Promotor de Justiça, Dr. Guilherme Fernandes Neto, da Quarta Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Consumidor do Distrito Federal, o Instituto de Medicina Legal da Coordenação de Polícia Técnica da Polícia Civil do Distrito Federal, nas pessoas dos psicólogos Patrícia de Oliveira, Rita Elizabeth da Mota Britto Rocha, Álvaro Pereira da Silva Júnior, realizou a análise psicológica da publicidade de cigarro "Free", intitulada "Artista Plástico II", elaborada pela Agência de Publicidade Standart Ogilvy & Mater.

Abaixo, o monólogo do citado material publicitário, pronunciado por pessoa do sexo masculino, passando a idéia de um jovem multifacetário, do ponto de vista intelecto-profissional:

Meu nome é Daniel Zanage. Eu trabalho com luz, computador, arte, filmes, sombra, letras, imagens, pessoas.

Vejo as coisas assim: certo ou errado, só vou

Saber depois que eu fiz.

Eu não vou passar pela vida sem um arranhão.

Eu vou deixar minha marca.

Segundo os três psicólogos responsáveis pelo laudo técnico, algumas frases possuem uma entonação incisiva e irresponsável, na medida em que o interlocutor deixa clara sua vontade de agir impulsivamente diante de conflitos: "Vejo as coisas assim: certo ou errado, só vou saber depois que fiz". Além disso, afirmam que parece não haver preocupação com as conseqüências de sua decisão: "Eu não vou passar pela vida sem nem um arranhão". Apontam, também, sinais de postura individualista, com conotação de "status" e poder: "Eu vou deixar a minha marca".

Nas palavras dos profissionais:

O comportamento e a linguagem utilizada pelo protagonista da publicidade atingem em cheio as dificuldades vivenciadas por pré-adolescentes e adolescentes e, considerando este aspecto, são grandes as chances de haver um processo de identificação entre o público pertencente às referidas faixas etárias e o padrão verbal e comportamental utilizado no monólogo, o que, associado a outras variáveis, pode compor um quadro facilitador de acesso ao produto veiculado, especialmente para o público citado acima.

Entretanto, não só isso. Concluíram os psicólogos que o material apresentado contém recursos considerados como subliminares, ou seja, atingem o cérebro do público-alvo abaixo do limite de sua percepção (consciência), no entanto são plenamente capazes de influenciar comportamentos. Salientam que todas as imagens com poder de penetração subliminar (com o tempo de exposição em centésimos de segundos) são dotadas ou de conteúdos influenciadores, ou de algum tipo de estímulo que provoca alterações do psiquismo, em especial a senso-percepção. Com efeito, tal publicidade – ainda segundo relato dos profissionais – é potencialmente capaz de influenciar condutas futuras, sobretudo em crianças e adolescentes, além de ser suscetível de imprimir em seus telespectadores a sensação de alterações psíquicas (ilusão, hiperestesia com aumento da intensidade numérica das sensações, alucinações visuais, etc).

Aponta o laudo que, teoricamente, o adulto possui condições de captar e avaliar os riscos e benefícios das situações apresentadas pela publicidade. Já o adolescente percebe mas, ao dimensionar as conseqüências do seu ato, o sentimento de onipotência prevalece, o que é comum nessa fase do desenvolvimento. Tal sentimento é caracterizado pela crença de que vale a pena correr riscos; afinal, nada irá reverter contra ele. O personagem central desse material publicitário sugere, por meio da palavra, padrões de comportamentos que podem servir como modelo de identificação a ser seguido.

A conclusão final entabulada no laudo psicológico foi a de que, em tal publicidade, houve a utilização de técnica específica para transmitir mensagens com estimulação subliminar a qual, somada ao tempo de exposição, distribuição cromática e espacial de escala, impossibilitaria uma leitura consciente por parte do receptor. Quando isso ocorre, as inserções de imagens, palavras ou idéias não podem ser percebidas pelo consumidor em um nível normal de consciência; portanto, não lhe é dada a opção de aceitar ou rejeitar a mensagem.

Ao responderem os quesitos formulados pelo representante do Ministério Público, os psicólogos foram taxativos em responder:

a) existem, na publicidade, frases que estimulam o comportamento inconseqüente da criança e/ou do adolescente, o qual poderá ser, direta ou indiretamente, prejudicial à saúde de alguma forma;

b) as imagens da publicidade podem levar uma criança e/ou adolescente a associar o fumo com o sucesso, circunstância que, por conseqüência, também poderá levar ao consumo de cigarros;

c) os estímulos visuais e sonoros utilizados na publicidade podem despertar o interesse de crianças e adolescentes pelo produto veiculado.

O brilhante trabalho capitaneado pelo promotor Dr. Guilherme Fernandes Neto teve resultado positivo para os consumidores: a Souza Cruz S.A. aceitou retirar do ar a publicidade do cigarro Free, de modo que foram canceladas 240 veiculações do comercial.

Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. A indústria do tabaco e a teoria do abuso do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2582, 27 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17059. Acesso em: 5 nov. 2024.

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