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A indústria do tabaco e a teoria do abuso do direito

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27/07/2010 às 08:15
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8. Ainda sobre a caracterização do abuso do direito perpetrado pela indústria do tabaco

O Estado edita legislações no afã de evitar as incompatibilidades que, volta e meia, surgem no seio social, e isso em razão dos ilimitados anseios, necessidades e imperfeições dos homens. Logo, uma de suas finalidades é assegurar o bem comum.

Parece correto afirmar que as leis são responsáveis pelo desenho do círculo dentro do qual as pessoas podem agir livremente, articulando-se e concretizando as mais diversas relações jurídicas que a sua criatividade permitir. Não raro, porém, esse espaço reservado à vontade tem seus limites ultrapassados, ainda que não traçados expressamente pelo ordenamento jurídico, atingindo interesses alheios [85]. Então – leciona Rosalice Fidalgo Pinheiro –, o próprio direito parte na busca da estipulação de limites aos poderes que concedeu ao sujeito, e surge, daí, a figura do abuso do direito como mecanismo para a limitação da liberdade, [86] a restringir o exercício dos direitos subjetivos, relativizando-os, de maneira que garanta o respeito aos valores sociais, morais e éticos sagrados pelo ordenamento jurídico. Nas palavras de Voltaire:"Un droit porté trop loin devient une injustice" [87].

E a indústria do tabaco literalmente atropelou de forma maquiavélica os limites estabelecidos pelo direito, no que tange ao exercício de sua autonomia de vontade, valendo-se de estratégias tão ardilosas quanto hediondas, para garantir o sucesso de vendas dos produtos que fabrica. E tamanho foi seu êxito que, no início da década de 90, cerca de 1,1 bilhão de indivíduos usavam o tabaco no mundo; em 1998, esse número já atingia a cifra de 1,25 bilhão [88].

Contudo, esse triunfo teve um preço avassalador: segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a cada ano morrem cerca de 5 milhões de pessoas em todo o mundo em decorrência do consumo de tabaco; no Brasil, estimam-se mais de 200 mil mortes/ano decorrentes do tabagismo [89].

Mas onde exatamente se situaria o limite ultrapassado pela indústria do fumo, para abalizar a conclusão de que agiu ela no exercício abusivo de seu direito? A resposta atualmente é de fácil solução, mormente em razão do que se descobriu com a publicação de milhões de páginas de documentos de circulação interna apontados alhures, como resultado de um acordo judicial firmado entre estados americanos e a indústria do tabaco.

A análise de tal documentação propicia um entendimento translúcido sobre o pensamento estratégico da indústria do fumo, visando difundir seus produtos no mercado de consumo mundial. Se hoje a nicotina é a segunda droga mais usada entre os jovens, e isso no Brasil como em todo o globo, tal se deve provavelmente à forma pela qual o seu consumo foi historicamente inserido na sociedade [90]. Fatores que facilitam a obtenção de cigarros, como o baixo custo, somados a atividades de promoção e publicidade, associadas a imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder, inteligência e outros atributos desejados especialmente pelos jovens, criaram, durante anos, uma aura de aceitação social e de imagem positiva do comportamento de fumar – a glória dessas estratégias pode ser traduzida no fato de que 90% dos fumantes principiam-se no fumo antes de alcançar os 19 anos de idade [91].

É fato que as ações propostas para o controle do tabagismo, ao longo dos anos, têm surtido efeito positivo, de modo que, na maioria dos países desenvolvidos, o consumo de cigarros diminuiu razoavelmente.

Numa análise global, porém, a situação é bem outra. O tabagismo vem crescendo dia a dia, e isso, tanto em decorrência do reflexo das estratégias arquitetadas pela indústria do fumo para direcionar o mercado de cigarros aos países em desenvolvimento, como por outros estratagemas, voltados ao estímulo do consumo, especialmente dirigidos a seguimentos sociais mais vulneráveis, como o das crianças e adolescentes. E é aqui, na sede de tais estratégias arquitetadas pela indústria do tabaco, que se encontra sustentáculo jurídico para abrigar a incidência da teoria do abuso do direito.

Em trabalho de peso, produzido e editado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde, intitulado "Ação global para o controle do tabaco – 1º Tratado Internacional de Saúde Pública", acessível a todos pela internet, no site <http://www.inca.gov.br>, vários documentos internos da indústria do fumo são analisados, de sorte que evidenciam, com lucidez, parte do pensamento e das táticas já adotadas pela indústria do tabaco. Veja-se a transcrição de alguns deles, quando comparados ao posicionamento da indústria do tabaco perante o público:

1) Posicionamento da indústria perante o público:

"A propaganda não é dirigida aos jovens".

O que os documentos mostram:

"Eles representam o negócio de cigarros do amanhã. À medida que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos" (J.W. Hind, R.J. Reynolds Tobacco, internal memorandum, January 23, 1975).

2) Posicionamento da indústria perante o público:

"A pressão dos amigos é o fator mais importante para o tabagismo infantil."

"A propaganda de cigarros afeta meramente a demanda dentro da categoria de produtos, através do fortalecimento da lealdade à marca ou criando mudanças de marca, mas não é dirigida para aumentar o consumo total às custas de não fumantes."

O que os documentos mostram:

"Atingir o jovem pode ser mais eficiente mesmo que o custo para atingi-los seja maior, porque eles estão desejando experimentar, eles têm mais influência sobre os outros da sua idade do que eles terão mais tarde, e porque eles são muito mais leais a sua primeira marca." (Escrito por um executivo da Philip Morris em 1957).

3) Posicionamento da indústria perante o público:

"A Souza Cruz fabrica cigarros para o consumo exclusivo de adultos, baseada nos melhores mecanismos e meios de produção." (<www.souzacruz.com.br/2002>).

O que os documentos mostram:

"[...] um cigarro para o iniciante é um ato simbólico. Eu não sou mais a criança da minha mãe, eu sou forte, eu sou um aventureiro, eu não sou quadrado [...]. À medida em que a força do simbolismo psicológico diminui, o efeito farmacológico assume o papel de manter o hábito." (Rascunho de relatório do Quadro de Diretores da Philip Morris, 1969).

"É importante saber tanto quanto possível sobre os padrões de tabagismo dos adolescentes. Os adolescentes de hoje são os potenciais consumidores regulares de amanhã, e a grande maioria dos fumantes começa a fumar na sua adolescência [...]. Devido ao grande espaço que ocupa no mercado entre os fumantes mais jovens, a Philip Morris sofrerá mais do que qualquer outra companhia com o declínio do número de adolescentes fumantes" (Memorando enviado por um pesquisador da Philip Morris, Myron E. Johnston para Robert B. Seligman, Vice Presidente de pesquisa e desenvolvimento da Philip Morris, 1981).

4) Posicionamento público:

"Nicotina é importante para dar sabor ou aroma – não para a dependência."

"Aqueles que definem fumar como uma dependência, o fazem por razões ideológicas e não científicas". (Posição da Philip Morris em 1996).

"Em 1994, durante uma audiência no Congresso Americano sete altos executivos de escritórios de companhias de tabaco americanas deram testemunhos de que a nicotina não causa dependência: Nós não ocultamos antes, nem ocultamos agora, nem nunca ocultaremos [...] nós não temos nenhuma pesquisa interna que prove que fumar [...] é aditivo." (Martin Broughton, Chief Executive BAT).

"Entrevista para uma revista – John Carlisle da Tobacco Marketing Associaton (UK, 1998): Pergunta – A nicotina causa dependência? Carlisle – "A definição de dependência é ampla e variada. Pessoas são dependentes de Internet. Outras são dependentes de shopping, sexo, chá e café. A linha que eu consideraria é a de que o tabaco não causa dependência e sim de que é formador de hábito."

"Posicionamento sobre dependência de nicotina, homepage da Souza Cruz, 2002: "A nicotina é um componente natural do fumo e apresenta propriedades farmacológicas que contribuem para o prazer. Mesmo sendo uma parte importante da experiência de fumar, a nicotina não é a única razão para fumar. Aspectos culturais e sociais, entre outros, estão envolvidos no ato de fumar, que é uma escolha da caráter puramente individual. Certamente é difícil deixar de fumar para alguns fumantes, mas não existe nada em nossos produtos que retire do fumante a sua capacidade de parar de fumar." (<www.souzacruz.com.br>).

O que os documentos mostram:

"Nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, no ramo de vender nicotina, uma droga que causa dependência." (Addison Yeaman from Brown and Williamson B&W, 1963).

"A nicotina tem a propriedade de uma droga de abuso. Ela tem propriedade de droga de adição... Estes (os resultados) são completamente contraditórios com a posição da indústria de que a nicotina está nos cigarros para dar sabor. Nós sabemos que eles (os camundongos) pressionavam a alavanca devido aos efeitos da droga nos cérebros dos animais. Nós também sabemos, a partir de estudos, que se a droga fosse cocaína ou morfina ou álcool os camundongos continuariam a pressionar a alavanca. Nós encontramos o mesmo com a nicotina." (Informações do cientista Victor DeNoble da Philip Morris sobre experimentos em camundongos nos quais injetou nicotina diretamente no coração – Philip Morris, quoted on Dispatches, Channel 4, 1996).

"A BAT deveria aprender a se ver mais como uma companhia de droga do que como uma companhia de tabaco." (Memorando escrito por cientistas da BAT, 1980).

"Nós também achamos que se deve considerar a hipótese de que os altos lucros adicionais associados com a indústria do tabaco estão diretamente relacionados ao fato do consumidor ser dependente do produto... Olhando de outra forma, não procede que o produto X, enquanto alternativa futura, mantenha um nível de lucro acima da maioria das outras atividades do ramo de produtos, a não ser que, como o tabaco, seja associado à dependência." (BAT, 1979).

"Tem sido sugerido que a fumaça do cigarro é a droga mais aditiva. Certamente, um grande número de pessoas continuará a fumar porque eles não conseguem deixar. Se eles pudessem, eles o fariam. Não se pode mais dizer que eles fizeram uma escolha adulta." (Dr. Green, funcionário da BAT, 1980).

5) Posicionamento público:

"Posicionamento sobre riscos do consumo de tabaco, homepage da Souza Cruz, 2002: Importante destacar, entretanto, que a ciência ainda não é capaz de explicar os mecanismos causais entre o ato de fumar e doenças, nem qual a probabilidade de um determinado fumante desenvolver ou não uma doença relacionada ao ato de fumar. Os riscos variam de uma doença para outra, de uma população para outra e com o número de cigarros fumados, e as doenças associadas têm natureza multifatorial." (<www.souzacruz.com.br/frame_left.asp?n=posicionamentos, 2002>).

O que os documentos mostram:

"Quanto aos carcinógenos da fumaça do tabaco, esta contém não apenas um carcinógeno mas uma galáxia deles... A eliminação do carcinógeno não parece factível [...]. Do meu ponto de vista, portanto, é pouco provável que dentro do escopo da criação de cigarros aceitáveis se torne possível reduzir substancialmente o risco de doenças associadas ao tabagismo no futuro." (BAT, 1986 – extraído da análise documental apresentada por Stella Aguinaga, no Fórum sobre Mídia em Tabaco, 2000).

"Nunca foi possível que as pesquisas que permitiram a produção de um cigarro não cancerígeno também produzissem um cigarro que atendesse ao gosto dos consumidores e ao mesmo tempo fosse livre dos riscos para a saúde, particularmente os relacionados a doenças cardiovasculares e a doenças pulmonares obstrutivas crônicas." (BAT, 1993 – extraído da análise documental apresentada por Stela Aguinaga, no Fórum sobre Mídia em Tabaco, 2000).

6) Posicionamento público:

"Muitas pessoas têm sido levadas a crer que a fumaça ambiental do cigarro (FAC) é fato de risco ou causa de doenças em não-fumantes. As pesquisas científicas analisadas, em conjunto, não são suficientes e conclusivas para afirmar que a FAC esteja associada a uma maior incidência de doenças respiratórias e cardíacas ou câncer de pulmão." (<http://www.souzacruz.com.br>).

"O estudo sobre câncer de pulmão em fumantes passivos não encontrou nenhum aumento estatístico significativo em termos de riscos [...]. Vamos comparar isso com resultados recentes do Instituto do Câncer dos Estados Unidos. Investigando fatores de riscos da dieta alimentar, eles encontraram casos em que os riscos de câncer de pulmão aumentam mais do que no caso de fumo no ambiente. Por exemplo, em frituras de carnes há um aumento de 57% no risco. Para produtos de laticínio é muito maior [...]. Lamentavelmente, concluo que ainda não sabemos, com exatidão, qual o nível da exposição à fumaça dos cigarros que aumenta os riscos de doenças coronarianas, ou se essa exposição realmente apresenta riscos." (Christopher Proctor – director da Science & Regulation BAT, Reino Unido – em apresentação no Brasil – Anais do Seminário Internacional sobre Fraudes no setor de cigarros – agosto 2001).

O que os documentos mostram:

"Uma outra questão importante que afeta a aceitação (de fumar) é o tabagismo passivo. Nossa atual iniciativa é desafiar toda a área com o "baixo risco epidemiológico". Existem experts externos de reputação que acreditam que essa é uma ciência altamente imprecisa e nós estamos encontrando meios de exprimir essas preocupações." (BAT, 1986).

"Objetivos da campanha da Philip Morris dirigida a pesquisadores, à mídia e ao governo para se contrapor ao estudo do International Agency on Research on Cancer (IARC) sobre os riscos do tabagismo passivo. Objetivos: Retardar o progresso e/ou a liberação do estudo; interferir nas suas conclusões e declarações oficiais de seus resultados; neutralizar possíveis resultados negativos do estudo, particularmente o seu uso como um instrumento regulatório; contrapor-se ao potencial impacto do estudo na política governamental, opinião pública e ações por empregados e patrões." (Philip Morris, 1993).

7) Posicionamento público:

"O contrabando prejudica nossos negócios. Faríamos mais dinheiro a longo prazo se ele pudesse ser eliminado. Gostaríamos que todos os mercados estivessem totalmente livres do contrabando." (Resposta da Souza Cruz à matéria do Jornal Valor Econômico, 09/05/2002).

O que os documentos mostram:

"Como se sabe, os cigarros contrabandeados (devido aos exorbitantes níveis tributários) representam quase 30% do total das vendas no Canadá, e este nível segue aumentando. Ainda que tenham acordado em apoiar o Governo Federal, para reduzir o contrabando, limitando nossas exportações aos EUA, nossos competidores não o fizeram. Por isso, decidimos eliminar os limites às exportações, para recuperar a nossa participação entre os fumantes canadenses. Fazer o contrário colocaria em perigo o bem-estar, no longo prazo, de nossas marcas registradas no mercado nacional. Até que se resolva a questão do contrabando, será exportado um volume cada vez maior de produtos do Canadá, que depois entrarão novamente por contrabando para a venda." (BAT, 1993).

8) Posicionamento público:

"A SOUZA Cruz fabrica cigarros para o consumo exclusivo de adultos." (<http://www.souzacruz.com.br>).

"A companhia contribui de forma significativa para combater o fumo antes da idade adulta." (Souza Cruz, ofício enviado ao INCA, novembro de 2001).

"A empresa vende e divulga seus produtos de uma maneira responsável, incluindo todos os recursos e materiais usados na publicidade e nas operações de venda e distribuição." (Souza Cruz, ofício enviado ao INCA, novembro de 2001).

O que os documentos mostram:

"Nosso objetivo é comunicar que a indústria do tabaco não está interessada em que os jovens fumem e posicionar a indústria como uma "corporação cidadã responsável", num esforço para repelir novos ataques pelo movimento anti-tabaco." (Philip Morris – América Latina: Campanha dirigida ao Jovem da América Latina, 1993).

"O programa juvenil e suas partes individuais apóiam o objetivo do Instituto de Tabaco de dissuadir as restrições injustas e contraproducentes, nos níveis federal, estadual e local, contra a publicidade de cigarros através das seguintes medidas: reforçar a crença de que a pressão dos pares e não a publicidade é o fator causal para os jovens fumarem; atingir o centro político e pressionar a um extremo os que estão contra o tabaco.

A estratégia é bastante simples: fomentar intensamente a oposição da indústria em relação ao tabagismo entre jovens; alinhar a indústria com uma visão mais ampla e sofisticada do programa, ou seja, com a incapacidade paterna de se contrapor à pressão dos colegas dos seus filhos; colaborar com profissionais e educadores de boa reputação e que lidam com o bem estar infantil, para abordar o "problema"; provocar as forças contra o tabaco para que critiquem os esforços da indústria. Concentrar a atenção em extremismos das posturas contra o tabaco. Adiantar-se para abrandar os pontos mais fortes dos oponentes; estabelecer a idéia de um programa bem recebido, em crescimento, alimentando-o com uma proliferação de projetos pequenos locais e parcerias com outros aliados. Evitar depender de uma única organização [...]" (Tobacco Institute, 1991).

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O mesmo trabalho identifica o pensamento expansionista do mercado de cigarros, direcionado aos países em desenvolvimento, bem assim noticia como a indústria do tabaco tem-se organizado para minar as políticas de controle do tabagismo no mundo inteiro e para contra-atacar e desacreditar órgãos envolvidos no controle deste. A estratégia de "lobby" e aliança que envolve diferentes setores sociais, como agricultura, mídia, governos e congressos nacionais dos países, também se encontra explicitamente mencionada nos documentos internos da indústria do fumo. Veja-se:

1) "O consumo de tabaco nas nações desenvolvidas seguirá uma tendência de redução até o final do século, ao passo que nos países em desenvolvimento o consumo poderia aumentar em cerca de 3% ao ano! Um quadro verdadeiramente promissor! Não haverá uma sociedade sem fumantes, e sim um crescimento mantido para a indústria do tabaco." (Tobacco Reporter, 1989).

2) "Temos que encontrar uma maneira de alimentar os monstros que foram citados. Praticamente, a única que restou, foi procurar aumentar as vendas em países em desenvolvimento." (Tobacco Reporter, 1991).

3) Não deveríamos estar deprimidos só porque o mercado total do mundo livre parece diminuir. Dentro do mercado total, existem áreas de sólido crescimento, particularmente na Ásia e na África; se abrem novos mercados às nossas exportações, tais como nos países da Indo-China e do Comecon; e existem grandes oportunidades de aumentar nossa participação no mercado de algumas regiões da Europa [...]. Esta indústria é sistematicamente rentável. E existem oportunidades de aumentar ainda mais essa rentabilidade." (BAT, 1990).

4) Este é um mercado com um enorme potencial. O índice de crescimento demográfico é 2,2% ao ano e 40% da população é menor de 18 anos." (Philip Morris Turquia, 1997),

5) Pensar nas estatísticas de consumo de cigarros na China é como pensar nos limites do espaço." (Rothmans, 1992).

6) "O mercado de cigarros chinês é três vezes maior que o mercado nos Estados Unidos e representa mais de 30% das 5,4 bilhões de unidades consumidas no mundo. Como o segmento internacional total aumenta a menos de 1% deste enorme mercado, temos um lugar amplo para um crescimento extraordinário." (Philip Morris, 1993).

7) "Não é prudente pressupor um crescimento substancial considerável nos países em desenvolvimento, em vista da rápida intensificação das pressões internacionais que as organizações contra o tabaco exercem sobre os governos e sobre os consumidores [...]. Para podermos maximizar o crescimento, no longo prazo, nos países em desenvolvimento, devemos procurar neutralizar a pressão contra o tabaco dando a impressão de que: atuamos de forma responsável, tendo em vista a quantidade de opiniões acerca dos efeitos de fumar sobre a saúde. Preparamos nossos métodos de comercialização para demonstrar esta responsabilidade; somos um hóspede aceitável no país anfitrião, onde nossa presença gera benefícios econômicos consideráveis; somos contribuintes, e não exploradores." (BAT, 1980).

8) "Diretriz estratégica global da Philip Morris Latin América Inc.: Dar suporte às nossas subsidiárias através de programas que procurem obter/manter a liberdade de preço e uma taxação justa, e ao mesmo tempo promover uma maior sensibilidade e tolerância por parte dos governos e do público, no que se refere ao tabagismo e a sua publicidade. Obter apoio da comunidade de mídia e de publicidade para oposição às restrições. Promover/fortalecer alianças com a comunidade de publicidade para oposição ao banimento da propaganda (em andamento). Organizar uma série de simpósios para promover a liberdade de discurso comercial e aumentar o apoio contra a restrição (em andamento)." (Philip Morris – Plano Estratégico 1994-1996).

9) "Dar assistência as suas afiliadas para evitar a aprovação da legislação para banir ou restringir o tabagismo em ambientes públicos e privados." (Philip Morris, Objetivos para a América Latina 1993).

10) "A Philip Morris assumiu um papel de liderança na Câmara de Comércio Filipina. Prestamos assistência na visita altamente produtiva da presidenta Aquino aos Estados Unidos. O pessoal da Philip Morris Internacional ocupa atualmente postos chave em uma ampla variedade de organizações internacionais, o que pode nos ajudar nos próximos anos." (Philip Morris, 1986).

11) "Os aliados: seguiremos formando nossos executivos como porta-vozes públicos eficazes, e buscaremos as oportunidades para que possam difundir nossas mensagens. Recrutaremos e ativaremos outras ‘vozes/aliados’ com quem possamos contar para divulgar nossas opiniões de forma criativa." (Philip Morris, 1989).

12) "Identificar aqueles membros dentro do Congresso que, devido a sua antiguidade, cargo de liderança etc., tenham uma maior chance de vir a ser parte da próxima geração de líderes do Congresso... Deveríamos refinar os programas atuais para ampliar nossa presença ante estes membros, como reuniões, jantares e eventos para arrecadar fundos, além das necessidades de financiamento especiais destes membros." (Tobacco Institute, 1982).

13) "Devemos desacreditar o grupo dos "anti"... Temos sido advertidos para adotar uma mentalidade de sítio. E temos ouvido alguns comentários interessantes que questionam se é correto, como se diz no exército, disparar em tudo que se move. Porém, ao desenvolver contra-medidas, creio que não devemos duvidar de que há um estado de guerra." (Tobacco Institute, 1979).

14) "Devemos tratar de deter os programas voltados para obter um compromisso do Terceiro Mundo contra o tabaco. Devemos tratar de conseguir que todos ou pelo menos uma grande parte dos países do Terceiro Mundo se comprometam com a nossa causa. Devemos tratar de influenciar a política oficial da FAO e da UNCTAD,para que adotem uma postura a favor do tabaco. Devemos tratar de mitigar o impacto da OMS, forçando-a a adotar uma postura mais objetiva e neutra." (BAT, 1979).

15) "Nosso objetivo continua sendo desenvolver e mobilizar os recursos necessários – aliados internos da Philip Morris, entidades e consultores externos, as associações de comercialização nacionais da indústria e todos os aliados possíveis – para combater as iniciativas sociais e legislativas contra o tabaco [...]. Especificaremos cuidadosamente nossos oponentes. Identificaremos, vigiaremos, isolaremos e responderemos cuidadosamente a indivíduos e organizações chave." (Philip Morris, 1989).

16) "RJ Reynolds está planejando se contrapor ao crescente número de cruzadas nacionais lançando sua própria campanha "direitos dos fumantes". (Tobacco Repórter, 1976).

17) "Atacar a OMS e dividir a FAO/OMS: criticar o manejo dos recursos financeiros, abordar as prioridades da saúde, expor a chantagem dos recursos, ressaltar as falhas regionais, atacar o "conducionismo". Refutar em matéria de assuntos públicos, desacreditar as credenciais dos ativistas, fazer uma guerra de estatísticas, inverter as relações de imprensa, demonstrar o impacto dessas organizações "pouco convencionais". (INFOTAB, 1989).

18) "[...] empreender uma iniciativa de longo prazo para se contrapor à agressiva campanha global contra o tabaco, desenvolvida pela OMS, e introduzir um debate público a respeito de uma redefinição do mandato da OMS." (BAT, 1989).

19) "Adjunto a este memorial uma cópia de uma fatura de meus honorários mensais de consultor de 01 de junho de 1992 até 30 de setembro de 1992 [...]. Meu trabalho no Conselho da Organização Panamericana de Saúde continua através de meus esforços de reordenar suas prioridades para o controle de enfermidades em lugar de controle de estilos de vida." (Memo BAT, 1992 – escrito por Paul Dietrich, consultor da BAT que também fazia parte da Comissão sobre Desenvolvimento da Organização Panamericana de Saúde).

20) "Paul (Dietrich) conseguiu persuadir a OPS a remover o tabaco de sua lista de prioridades este ano." (Memo BAT, 1991 – escrito por Sharon Boyse da BAT).

É conveniente transcrever, ainda, o conteúdo de mais alguns documentos, também registrados no trabalho ‘Ação global para o controle do tabaco – 1º Tratado Internacional de Saúde Pública’, apontando outras vertentes do pensamento manipulador da indústria do fumo:

1) "Aumentar a incidência de tabagismo entre mulheres jovens servirá para manter a incidência de iniciação... As taxas de cessação de fumar não aumentarão, uma vez que a manutenção dos fumantes existentes será garantida pelo crescimento das marcas de baixos teores de alcatrão." (BAT, 1979 "Year 2000").

2) "Naturalmente nos interessa mais saber como captar as fumantes adultas jovens emergentes do que as fumantes mais velhas." (Philip Morris, 1989).

3) "As mulheres apresentam uma probabilidade de aumentar a percentagem total. As mulheres estão adotando papéis mais dominantes na sociedade; elas têm aumentado o poder de consumo; elas vivem mais do que os homens. E de acordo com o que um recente relatório oficial mostrou, elas parecem ser menos influenciadas por campanhas contra o tabagismo do que os homens. Tudo isso faz das mulheres um alvo de primeira. Dessa forma, apesar das dúvidas anteriores, nós podemos deixar de considerar agora um ataque mais definido sobre esse importante segmento de mercado representado por fumantes do sexo feminino?" (Tobacco Reporte, 1982).

4) "[...] a forma de fumar dos seres humanos é diferente da forma simulada pelas máquinas de fumar quanto à freqüência das tragadas, a intensidade das baforadas, e isto varia de pessoa a pessoa." (Canadian Tobacco Industry, 1969) In: <http://www. ash.org.uk/>.

5) "Quaisquer que sejam as características dos cigarros determinadas por máquinas de fumar, o fumante ajusta seu padrão para atender às suas próprias necessidades de nicotina." (British American Tobacco – subsidiária alemã – Research Conference, 1974). In: <http://www.ash.org.uk/>.

6) "Algumas observações não são esperadas no que se refere ao comportamento do fumante e o alcatrão e a nicotina. Geralmente as pessoas fumam de tal forma que obtêm mais do que o previsto pelas máquinas de fumar. Isso é especialmente verdadeiro para a diluição dos cigarros (isto é, baixo nível de alcatrão e baixo nível de nicotina) [...]. O teste padronizado pelo FTC – Federal Trade Commission – deve ser mantido: ele fornece níveis baixos." (Philip Morris, docs. internos, 1974). In: <http://www.ash.org.uk/>.

7) "Dados sobre o perfil do fumante relatados anteriormente indicam que os cigarros "Marlboro lights" não são fumados como os "Marlboro regulares". De fato, 875 fumantes de "Marlboro" deste estudo não conseguiram qualquer redução na inalação da fumaça ao fumar um cigarro "Marlboro lights". (Philip Morris, doc. interno assinado por L. Meyer, 1975). In: <http://www.ash.org.uk/>.

8) "[...] é difícil ignorar as advertências das autoridades de saúde que advertem aos fumantes para deixarem de fumar ou mudarem para uma marca de baixo teor. Mas existem, atualmente, evidências suficientes para questionar essa advertência de mudar para uma marca de baixo teor, pelo menos no curto prazo. Em geral, a maioria dos fumantes habituais compensa a alteração dos teores, se eles mudam para uma marca de teor mais baixo." (Creighton, D.E. Compensation for changed delivery. British American Tobacco Company. June 27, 1978. Minnesota Trial Exhibit 11.089, citado por Kozlowski, 2001).

9) "Sem dúvida, é possível que o efeito de mudar para cigarros com baixos teores de alcatrão seja o de aumentar e não diminuir os riscos de se fumar." (Tobacco Advisory Council, 1979). In: <http://www.ash.org.uk/>.

10 "Devido à grande variedade de carcinógenos produzidos durante o processo de pirólise (reação química produzida pela queima de matérias orgânicas) é pouco provável que se possa chegar a uma forma completamente segura de fumar tabaco." (BAT, sem data). In: <http://www.ash.org.uk/>.

11) "Todo trabalho nessa área (comunicação) deveria ser em direção a tranqüilizar o consumidor acerca dos cigarros e do hábito de fumar [...] através da divulgação dos baixos teores, estimulando a percepção de baixas emissões e de "suavidade". Além do mais, a propaganda dos baixos teores ou das marcas tradicionais deveria ser construída de forma a não provocar ansiedade a respeito de questões de saúde, mas para aliviá-la e permitir que o fumante sinta-se tranqüilo a respeito do seu hábito e confiante em mantê-lo durante algum tempo." (Short, P. L. Smoking & Health item 7: The effect on marketing. British American Tobacco Co., Ltd., April 14, 1977 [030, Minnesota Litigation] citado por Pollay & Dewhirst, 2001).

12) "Os fumantes necessitavam de marcas light por razões tangíveis, práticas e lógicas [...]. É útil considerar os "light" como uma terceira alternativa à cessação de fumar e à redução do consumo – uma hibridização do produto com as tentativas infrutíferas dos fumantes para modificar seus hábitos por eles mesmos." (BAT, Research & development/marketing conference. Circa 1985. [081,PSC 60] citado por Pollay & Dewhirst, 2001).

13) "Salem criou um completo e novo sentido para o mentol. A partir da herança que o mentol traz como solução para os problemas negativos do fumar, o mentol quase que instantaneamente tornou-se uma sensação positiva para o fumar. O mentol na forma de filtro na propaganda do Salem foi uma experiência de sabor "refrescante". Ele pode ser visto como uma forte estratégia tranqüilizadora para as preocupações pessoais. Indubitavelmente, a conotação medicinal do mentol trouxe o aspecto terapêutico, mas como um benefício de sabor positivo." (Cunningham and Walsh. [Advertising] Kool: 1993-1980. A retrospective view of Kool).

14) "Psicologicamente a maioria dos fumantes se sente aprisionada. Eles estão preocupados a respeito da saúde e da dependência. Os fumantes se preocupam com o que os comerciais dizem a respeito deles. A propaganda pode ajudar a reduzir a ansiedade e a culpa [...]. A imagem do usuário da marca pode ser crítica para influenciar a mudança de lealdade de marca." (Oxtoby-Smith, Inc. A psychological map of cigarette worl. Prepared for the Ted Bates advertising agency and Brown & Williamson, August, 1967. [005,K0107] citado por Pollay & Dewhirst, 2001).

15) "[…] qualquer cigarro saudável deve estabelecer um compromisso entre implicações para a saúde por um lado e sabor e nicotina por outro... sabor e nicotina são ambos necessários para vender um cigarro. Um cigarro que não fornece nicotina não pode satisfazer o fumante dependente e não pode levar à dependência e certamente falharia." (Johnston, M. E. Market potential of a healt cigarette. Special Report n.º 248 Philip Morris, June 1966. [004, K0126] citado por Pollay & Dewhirst, 2001).

16) "A mobilização do setor agrícola da indústria do tabaco, especialmente em países em desenvolvimento, é um dos pontos de pressão mais viáveis para responder à Organização Mundial de Saúde." (RJ. Reynolds, 1981).

17) "[...] comunicar de forma indireta aos dirigentes da Organização Mundial da Saúde (OMS) dos países do Terceiro Mundo para sugerir que uma posição extrema contra o tabaco por parte da OMS poderia ser prejudicial para o bem estar econômico de seus países." (Internacional Council on Smoking Issues, ICOSI, 1979).

18) "[...] recrutaremos e capacitaremos um Gerente de Assuntos Corporativos. Esta pessoa se concentrará inicialmente em identificar e desenvolver relações com os líderes – desde a semente até o mercado – da indústria do tabaco turca, conhecer o processo de tomada de decisões do governo, fomentar as relações com os responsáveis pela tomada de decisões e buscar oportunidades para cultivar discretamente uma imagem corporativa da Philip Morris. Prestará particularmente a atenção no fomento das relações com líderes dos fumicultores." (Philip Morris na Turquia, 1987).

Crê-se que a leitura desses documentos se mostra suficiente para assegurar uma idéia bastante nítida acerca do comportamento adotado pela indústria do fumo, desde que os cigarros foram inseridos no mercado mundial. Comportamento esse voltado a exclusivamente a garantir o sucesso de vendas de seus produtos, não importando as conseqüências dele advindas. Tanto quanto lastimável, é também atemorizador perceber como o poder de manipulação, de persuasão pode ser utilizado em favor daqueles abastados, que agem egoisticamente, menos preocupados com o bem-estar dos indivíduos – e, portanto, desinteressados de garantir a lealdade negocial –, do que com a glória e conseqüente rentabilidade de seu negócio.

Já se disse que a teoria do abuso do direito representa um instrumento garantidor da limitação da liberdade, e evidencia a não-existência de direitos absolutos e, por resultado, restringe o exercício dos direitos subjetivos, relativizando-os, de sorte que garanta o respeito aos valores sociais, morais e éticos sagrados pelo ordenamento jurídico. De forma sintética, caracteriza-se abusivo o exercício anormal do direito, sempre que sua finalidade social e econômica for contrariada, o que certamente abrange o respeito aos limites impostos pela boa-fé (objetiva) e bons costumes.

8.1. O desrespeito pela indústria do tabaco dos valores da boa-fé e dos bons costumes

Inicie-se o raciocínio pela boa-fé e bons costumes. A civilista Judith Martins-Costa, com sua costumeira clareza, esclarece que ao conceito de boa-fé objetiva encontram-se subjacentes as idéias e ideais que animam a boa-fé germânica, a saber, a boa-fé como regra de conduta, fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do ‘alter’, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Qualifica-se a boa-fé objetiva como uma norma de comportamento. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, nos demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional [92]. Ínsito no conceito de boa-fé objetiva, que se reveste de feições diversas, encontra-se também a idéia de bons costumes [93].

Quem, em juízo perfeito, diria que os aliciadores de crianças e adolescentes, com a finalidade de garantir, agora e futuramente, o consumo de seus produtos mortíferos e viciantes ("Eles representam o negócio de amanhã"), valendo-se, para tanto, de expedientes publicitários insidiosos, voltados a estabelecer uma quase inquebrantável aura artificial do produto, vinculada a estilos de vida, esportes, lazer, sociabilidade, sedução, requinte, saúde, etc., estariam agindo em conformidade com as diretrizes da boa-fé e bons costumes? Apresenta-se em harmonia com tais valores a postura daqueles que, apesar de deter conhecimento sólido sobre a natureza psicotrópica de um dos componentes de seus produtos, não se limitam apenas a omitir tal informação aos consumidores, mas também negam e questionam, dissimuladamente, dados científicos que apontam em tal rumo, tudo para garantir o maior número possível de dependentes de nicotina e, por resultado, de consumidores de cigarros? Agem de acordo com os parâmetros da boa-fé objetiva aqueles que astuciosamente obram, criando controvérsias sobre o potencial mórbido e mortífero de seus produtos, mesmo já estando familiarizados com o fato de que a fumaça do tabaco contém não apenas um carcinógeno, mas uma galáxia deles? É aceitável, jurídica e moralmente, o direcionamento da expansão do mercado de produtos fumígenos aos países em desenvolvimento, haja vista a maior facilidade encontrada ali para garantir o sucesso desse objetivo (menos – ou nenhuma – legislações antitabagistas e um maior contingente de consumidores desinformados, notadamente pela carência educacional)? Será honesta e leal a postura daqueles que auferem lucros com a doença alheia (o tabagismo), sem sequer esclarecer adequadamente sobre os malefícios que certamente sofrerão os consumidores de tabaco?

Conquanto a nicotina seja considerada uma droga pelo Ministério da Saúde, bem assim pela própria Organização Mundial de Saúde, e por todos aqueles estudiosos que examinaram com seriedade o assunto, a indústria de fumo, não raras vezes, ainda insiste na tese contrária, negando essa qualificação a tal substância. Para se ter uma idéia lúcida a respeito disso, ressalte-se que a Philip Morris Marketing S/A., ao apresentar sua defesa numa ação coletiva de responsabilidade por danos individuais homogêneos, ajuizada pela Associação de Defesa da Saúde dos Fumantes (ADESF), negou a capacidade psicotrópica da nicotina, refutando todas as evidências nacionais e internacionais que seguem rumo diametralmente oposto (Processo n.º 95.523167-9, ajuizado na Comarca de São Paulo no ano de 1995). Essa negativa resultou numa discussão judicial – que acabou desembocando no Superior Tribunal de Justiça (REsp n.º 140097) – voltada ao estabelecimento do ônus da prova, para definir quem realmente estaria obrigado a demonstrar que a nicotina possui a capacidade de causar dependência, se a autora ou a ré. Ora, atualmente – e isso já foi esclarecido – o tabagismo tem sido tratado como verdadeira doença crônica, justamente pela dificuldade que os fumantes, em sua grande maioria, possuem de abandonar o vício pela nicotina. Ademais, a própria Philip Morris, décadas antes do ajuizamento dessa ação coletiva, já detinha conhecimento sólido sobre a capacidade viciante da nicotina, consoante demonstram os documentos secretos da indústria do fumo (<http://www.library.ucsf.edu/tobacco>). Esse comportamento, engajado numa estratégia de sempre criar contradições e dúvidas [94], mesmo defronte a discussões judiciais, alinha-se às diretrizes da boa-fé e bons costumes?

Se é correta a premissa de que "um direito levado longe demais pode acarretar a uma injustiça", certamente a resposta a esses questionamentos – e a outros tantos que podem ser formulados por um mero resvalo de olhar nos documentos transcritos alhures –, é única: a indústria do tabaco transpassou o limite que lhe foi outorgado para produzir e comercializar seus produtos, indo na contramão do que reza a boa-fé objetiva e os bons costumes, abusando conscientemente de seu direito, sendo ela responsável por uma pandemia, que embora lhe traga benefícios financeiros, lesa maciçamente parcela considerável da população mundial.

8.2. O desacato da indústria do tabaco à finalidade econômica do seu direito de produzir e comercializar cigarros

Noutro foco, sabe-se que o consumo de produtos derivados de tabaco, além de abrolhar diversos malefícios à saúde humana e ao meio ambiente, causa grandes perdas para a economia dos países [95]. O Banco Mundial estima que o consumo de produtos do tabaco gera, no mundo, uma perda bruta de U$ 200 bilhões por ano, estando a metade dessa perda concentrada nos países em desenvolvimento [96]. Tal constatação fez o Banco Mundial concluir que, do ponto de vista econômico, não faz sentido financiar projetos da área de tabaco [97].

Para a avaliação dos custos relacionados ao tabagismo, devem ser considerados todos os custos para a sociedade, e não apenas aqueles relacionados ao tratamento de pacientes acometidos por doenças tabaco-relacionadas. Incluam-se, aí, por exemplo, os custos incorridos no sistema previdenciário (aposentadoria por invalidez, auxílio-doença e pensões por viuvez), a perda de produção (em termos de força de trabalho) devido à morte e ao adoecimento, perdas econômicas atribuídas à poluição, à degradação ambiental, aos incêndios e aos acidentes [98]. Vejam-se, a esse respeito, algumas das conclusões obtidas pelo Banco Mundial, devidamente registradas na obra ‘Ação global para o controle do tabaco’ [99]:

1) Nos países de alta renda, calcula-se que o gasto anual com assistência à saúde, devido às doenças causadas pelo tabagismo, varia de 6% a 15% do seu custo total. Nos países de baixa e média renda, o custo anual da atenção à saúde com doenças decorrentes do fumo é inferior, conforme indicam estudos do Banco. Em parte, isto se deve ao fato de que, nesses países, essas doenças ainda não atingiram os patamares observados atualmente em países desenvolvidos, onde o consumo de tabaco tem mais tempo de evolução. Também contribuem para esse quadro outros fatores, tais como, as dificuldades na identificação da prevalência de doenças relacionadas ao tabagismo nos países em desenvolvimento.

2) Do ponto de vista da produtividade, o Banco Mundial estima que, num ambiente de trabalho, um fumante custa mais caro para os empregadores. Estes custos incluem: maior índice de absenteísmo, redução da produtividade, aposentadoria precoce devido aos problemas de saúde e gastos anuais mais elevados com ela e com seguro-saúde, maiores despesas com manutenção e limpeza, maiores riscos de incêndio e prêmios de seguro contra os mais elevados. No Canadá, um estudo mostrou que, para o empregador, o custo anual de um fumante é da ordem de US$ 3.022,00. Outro estudo sobre o tabagismo em ambientes de trabalho, na Escócia, mostrou que o país perde U$ 60 milhões com absenteísmo, US$ 675 milhões com perda de produtividade e US$ 6 milhões com incêndios.

É de se ver, pois, que também por um viés voltado exclusivamente à finalidade econômica, não se mostra razoável defender a prática do exercício regular de um direito pela indústria do fumo.

8.3. O desrespeito pela indústria do tabaco à finalidade social do seu direito de produzir e comercializar cigarros

Restringindo-se a uma interpretação puramente fincada na finalidade social do direito de a indústria do fumo produzir e comercializar produtos derivados do tabaco, seria crível advogar a tese de que ela exerceria um papel social importante na sociedade? Esse papel seria suficientemente imponente, a ponto de conduzir à ilação de que a indústria do tabaco efetivamente agiu no exercício regular de seu direito?

De início, aponte-se que falar em finalidade social de empresas que matam grande parte daqueles que consomem diretamente seus produtos, é algo que soa curioso e insustentável, data maxima venia. Ocorre que, atualmente, um amplo mutirão social mobiliza o setor fumageiro e promove avanços nas áreas de saúde, educação, bem-estar social, meio ambiente, entre outros setores. Contudo, até para os mais despercebidos, não deixa de ser curioso o fato de uma indústria, que diretamente contribui para a morbidade e mortalidade de milhares de pessoas anualmente, e responsável por uma verdadeira pandemia mundial, articule-se para desenvolver uma gama de programas a fim de tornar a vida mais saudável. Deveras, não se pode acusar de incrédulo aquele que, estudioso dos documentos secretos da indústria do tabaco, não se regozije com a notícia e reflita uma desconfiança perfeitamente defensável, a qual segue rumo à conclusão de que essa mesma indústria, em verdade, descobriu uma nova estratégia de divulgar seus produtos e mantê-los no mercado, garantindo, por conseqüência, seus vultosos lucros, mesmo diante da onda antitabagista que atinge o setor.

Embora a indústria do tabaco, hodiernamente, garanta o sustento de inúmeros trabalhadores e venha manifestando uma novel preocupação em se envolver com projetos sociais, isso não lhe outorga a chancela referendada àquelas empresas cujos compromissos são legitimamente sociais. Não seria exagerado afirmar que nunca existiu uma finalidade social naquele direito conferido à indústria do tabaco de produzir e comercializar produtos fumígenos, bastando para sacramentar essa assertiva uma breve análise nos registros da Organização Mundial da Saúde, os quais apontam para evidentes prejuízos sociais, econômicos e ambientais causados pelo consumo de cigarros.

O que se conclui é que a indústria do tabaco, efetivamente, fraudou a saúde pública, enganou, dissimuladamente, a sociedade, e isso pelo uso de artifícios contrários à finalidade econômica e social do direito que lhe fora conferido – bem assim, transpassando os limites impostos pela boa-fé objetiva e bons costumes –, sendo responsável por uma verdadeira tragédia mundial, representada pela morte de aproximadamente 5 milhões de pessoas por ano (uma pandemia para muitos); tudo com o objetivo único de ampliar seus lucros. Ao longo de várias décadas, a indústria do fumo, titular do direito de produzir e comercializar produtos fumígenos, exerceu-o de maneira abusiva, atuando em desconformidade com a lealdade e confiança desejáveis.

Agiu assim pois sabia que tais expedientes ilegítimos atrairiam uma gama imensa de consumidores inclinados a utilizar seus produtos, sendo absolutamente despicientes argumentações no sentido de que a sociedade sempre revelou um conhecimento firme sobre a natureza maléfica dos cigarros, como se houvesse uma notoriedade quanto aos riscos de se fumar.

Nesse sentido, também é precisa a lição de Cláudia Lima Marques, pontuando que o leigo-consumidor, quando começou a fumar, há 40 anos [...] podia até ter alguma desconfiança natural sobre se determinado produto fazia mal à saúde ou mesmo viciava, mas são considerações do campo das suposições, ao que se acrescenta uma série de outras informações (publicidade massiva, na televisão, cinema, outdoors, nos esportes, etc.) contraditórias, organizadas pelo fabricante, de forma a nunca realmente permitir que o consumidor detenha esta informação. Importante ressaltar, que em 1954, nos Estados Unidos da América, o diretor da Philip Morris, George Weissman, desmentia que estas informações eram notórias e afirmava, frente à Pioneer Press, que ele mesmo não sabia destes riscos e se soubesse, que sairia da indústria do tabaco se existisse qualquer prova ou mesmo indício que provasse que o tabaco fazia mal à saúde! Outros fabricantes de tabaco, na investigação realizada pelo Congresso norte-americano, já em 1964, repetiram estas afirmações e voltaram a repeti-las até 1986! Também no setor público e governamental (nos Estados Unidos e no Brasil) estas informações eram desconhecidas (ou negadas veementemente, o que é o contrário da notoriedade ou conhecimento público!), pois como comprovam Jacobson e Wasserman, com o aumento da popularidade do fumar depois da Segunda Guerra Mundial e dos indícios médicos ligando o cigarro ao câncer desde a década de 40 e especialmente de 50, foi somente em 1964, que o primeiro estudo médico oficial e completo (Surgen General’s Report Smoking and Health) concluiu que fumar causava câncer de pulmão, bronquite crônica e aumentava os riscos de morte por enfisema e doenças coronárias e, como resposta, somente em 1965, o congresso norte-americano criou a lei sobre informação nas embalagens de cigarro e na publicidade (1965 Cigarette Labeling and Advertising Act) e, em 1969, proibiu a publicidade de cigarros na televisão e rádio (1969 Public Health Cigarette Smoking Act) [100].

O exercício abusivo aqui retratado fica ainda mais patente com o novo discurso, construído e difundido pela indústria do tabaco, que atualmente vem se engajando numa caríssima estratégia de relações públicas, isso para se mostrar como uma indústria renovada, preocupada com o social. Tal postura apenas evidencia o seu erro, o transpasse dos limites do direito que lhe foi outorgado, de produzir e comercializar produtos derivados do tabaco. É de se citar que o Comitê de Saúde da Casa dos Comuns da Inglaterra, depois de analisar as novas posturas assumidas pelas principais multinacionais do tabaco, manifestou a seguinte conclusão:

Para nós, parece que as companhias procuravam esconder o consenso científico até que, de repente, tal posição pareceu ridícula. Então, as companhias agora geralmente aceitam que fumar é perigoso (mas colocam a seguir argumentos para sugerir que a epidemiologia não é uma ciência exata, e que os números de mortes por tabagismo podem ser exagerados); são ambíguas sobre a dependência da nicotina; e são ainda tentadas a esconder os argumentos de que o fumo passivo é perigoso [101].

Saliente-se que a tese do abuso do direito foi utilizada em recente acórdão, como uma das bases para a condenação de uma grande empresa do fumo. Em substancioso voto, o Desembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, com pena de ouro, deixou assentado para os anais da história os seguintes dizeres:

Assim, mesmo que seja lícita a atividade, não pode aquele que a exerce, abusando de seu direito, por omissão, ocultar as conseqüências do uso do produto, como a causação de dependência e de câncer, e, ao contrário, promover propaganda ligando o uso do produto a situações de sucesso, riqueza, bem-estar, vida saudável, etc., situações exatamente contrárias àquelas que decorrem e são conseqüências do uso do produto.

Evidentemente, se uma empresa fabrica e comercializa um produto que, além de viciar, ainda mata por câncer e enfisema pulmonar, desimporta se sua atividade é lícita. Ao colocar tal produto no mercado, com tamanho potencial de malefício e destruição, não há como negar que tal empresa é responsável pelo risco e pelo perigo que criou. E se não impede as conseqüências desastrosas do uso de tal produto – ainda que o uso fosse completamente voluntário, e não houvesse dependência e ardiloso apelo publicitário – sendo uma dessas conseqüências, certamente a mais trágica, a morte, não pode restar dúvida sobre a evidente responsabilidade do fabricante em arcar com a indenização correspondente.

Por tudo o que foi exposto, tenho que, definitivamente, não é pelo fato de uma atividade ou produto serem considerados lícitos pelas leis do Estado, que os cidadãos-consumidores, que forem vítimas de malefícios ou prejuízos causados por tal atividade ou produto, devam ficar, esses cidadãos, desamparados juridicamente, e nem tampouco esse fato, da licitude da atividade ou do produto, torna, os promotores da atividade ou produtores do bem, isentos de qualquer responsabilidade.

É verdade que, se se entender que a ordem jurídica permite que alguém fabrique e coloque no mercado um produto que mata, e que esse alguém não tem nenhuma responsabilidade pela morte ou outros males causados às pessoas, então a conclusão há de ser a de que a demandada não deve ser condenada no caso destes autos’ [102].

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Sobre o autor
Lúcio Delfino

advogado e consultor jurídico em Uberaba (MG), doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UNIUBE/MG, membro do Conselho Fiscal (suplente) do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON), membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil, diretor da Revista Brasileira de Direito Processual

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELFINO, Lúcio. A indústria do tabaco e a teoria do abuso do direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2582, 27 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17059. Acesso em: 28 mar. 2024.

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