9. Conclusões
Sérgio Cavalieri Filho e Carlos Alberto Menezes Direito invocam os jurisconsultos romanos os quais defendiam que quem exerce um direito não comete falta, logo não está sujeito a nenhuma responsabilidade (neminem laedit qui jure suo utitur). Ainda que aparentemente correta, essa concepção constitui uma contraverdade.
Os direitos são concedidos para serem exercidos de maneira justa, social e legítima, e não para que seu uso seja feito discricionariamente. Só pelo fato de ser titular de um direito, uma pessoa não pode exercitá-lo de forma absoluta, sem se preocupar com os outros [103].
Conquanto as fabricantes de cigarro defendam serem detentoras de uma proteção quase mágica – já que jurídica ela não é –, como se alheias estivessem às normas jurídicas e morais impostas a todos os humanos, sua postura harmoniza-se com a definição de abuso do direito, revelando o ilícito necessário a sua responsabilização civil pelos danos que seus produtos acarretam aos consumidores de cigarros. É de se lembrar sempre que "não há liberdade sem responsabilidade e a liberdade comercial não pode ser maior do que a garantia de saúde e qualidade de vida de uma nação" [104].
Notas
- Embora se entenda aplicável o Código de Defesa do Consumidor, nada impede a utilização de outras legislações para fundamentar pretensões indenizatórias, servindo elas como complemento aos dispositivos contidos na Lei consumerista, argumento esse que se aplica, obviamente, também ao Código Civil de 2002. Para melhor compreender a relação entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, é de imprescindível leitura o brilhante trabalho de Cláudia Lima Marques, intitulado "Superação das antinomias pelo diálogo das fontes: o modelo brasileiro de coexistência entre o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002", publicado na Revista de Direito do Consumidor n.º 51, São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.].
- Para nós, o Código de Defesa do Consumidor tem aplicação imediata em ações ajuizadas por fumantes (passivos ou ativos) – ou seus familiares ou entidades legitimadas – contra a indústria do tabaco, objetivando, justamente, o ressarcimento civil pelas lesões advindas do consumo de produtos fumígenos. Pouco importa, nessa ótica, que a Lei n.º 8.078/90 tenha sido publicada tempos depois de o vício pelo fumo ter se instalado no organismo do fumante – o que realmente se mostra relevante é o fato de a doença associada ao tabaco ter sido descoberta após a publicação da Lei consumerista.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 207.
- JOSSERAND, Louis. De l’esprit des droits et de leur relativité: théorie dite de l’abus des droits. Paris: Dalloz, 1927.
- CORRÊA, Alexandre Augusto de Castro. Abuso de direito (direito Romano). In: Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. v. 2.
- MATTIETTO, Leonardo. Do abuso de direito: perfil histórico da teoria. Disponível em <http://www2.eu rj.br/~direito/publicacoes/mais_artigos/do_abuso_de_direito.html>. Acessado em 22/03/2005.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 210.
- Ibid., p. 211.
- Ibid., p. 211.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 212.
- AZI, Camila Lemos. A lesão como forma de abuso de direito. Revista dos Tribunais n. 826. São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.]. 205. (p. 39-57). p. 42.
- STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 68.
- AZI, op. cit., p. 42.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 225.
- Ibid., p. 225.
- MENDONÇA, op. cit., 1956. p. 438.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 216.
- DINIZ, op. cit., 1992. p. 394.
- AZI, op. cit., [s.d.]. p. 44.
- O mestre Ruy Rosado de Aguiar Júnior, em trabalho sobre do projeto que deu origem ao novo Código Civil, teceu os seguintes comentários acerca da cláusula que dera origem ao art. 187: "Essa talvez seja, do ponto de vista do Direito Obrigacional, a cláusula mais rica do Projeto. Reúne, em um único dispositivo, os quatro princípios básicos que presidem o sistema: o abuso do direito, o fim social, a boa-fé e os bons costumes. Bastaria acrescentar a ordem pública para tê-los todos à vista." (AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do código civil – as obrigações e os contratos. Revista dos Tribunais, 775. São Paulo: Revista dos Tribunais, [s.d.]. p. 23).
- LIMA, op. cit., 1999. p. 235.
- Cite-se um outro exemplo – agora se pautando no direito material – de que a lesão ao direito alheio nem sempre conduz à responsabilidade. Ênio Santarelli Zuliani, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, em brilhante ensaio científico, relata que, numa palestra, o expositor, Juiz da Vara Federal para o Estado de Maryland, Peter J. Messitte, afirmou que no "ano de 1962, a Suprema Corte decidiu o caso New York Times vs. Sullivan, com base na Primeira Emenda Constitucional, e, imediatamente, se tornou obrigatória a todas as demais cortes federais ou estaduais. O tribunal decidiu que, quando está envolvida uma figura pública, a mídia não será responsável por danos civis, mesmo por publicação de informações falsas, desde que a informação não tenha sido veiculada com o conhecimento de sua falsidade, ou com grosseiro desconhecimento da verdade. É o conhecido padrão do actual malice, i.e., efetiva má-fé. Por um princípio constitucional, não há responsabilidade civil se a mídia foi simplesmente negligente nas informações que publicou sobre figuras públicas". Conquanto a questão seja controvertida, esclarece o Desembargador Ênio Santarelli Zuliani – com toda a razão, acredita-se – que o sistema jurídico brasileiro segue as mesmas diretrizes. Ou seja, "haverá sempre a supremacia do direito de informação, desde que a divulgação seja do interesse da preservação da estrutura do poder democrático". O jurista vai além, defendendo a possibilidade de divulgação de informações obtidas por meio de provas ilícitas (escuta telefônica e escuta ambiental), quando necessárias ao esclarecimento coletivo de situações que envolvam pessoas públicas em escândalos ou situações de improbidade; há, aí, um interesse social relevante, a saber, o de comunicar à sociedade fatos comprometedores da ética e da malversação de receitas públicas, embora descobertos por intermédio de provas clandestinas. Em tais casos, o dano à personalidade pública se justificaria, mesmo que a mídia se valha de informações colhidas ilicitamente. Conclui o jurista: "A gravação ambiental não é ilícita. A interceptação telefônica não autorizada, embora ilícita e inservível para um processo justo, é uma fonte da qual a imprensa poderá se valer para denunciar a corrupção e atos de improbidades de agentes públicos, respondendo pelos excessos que derivarem de sua má utilização. O Judiciário não é censor prévio do exercício dessa atividade; atua para reparar as conseqüências de excesso, dolo ou má-fé da utilização de fontes clandestinas. Liminares restritivas impediriam reformas sociais conquistadas devido à publicidade de esquemas sigilosos indignos de uma sociedade democrática. A causa-fim do direito de comunicação prepondera para justificativa dos meios empregados." (ZULIANI, Ênio Santarelli. A questão da liberdade da imprensa de veicular matéria jornalística obtida de forma ilícita. COAD. Advocacia Dinâmica. Informativo. Ano 25, Boletim Semanal n.º 07. p. 116, 2005).
- DINIZ, op. cit., 1992. p. 396.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 205.
- Ibid., p. 205.
- É de se dizer que toda a finalidade, seja econômica ou social, de um direito deve necessariamente resultar também de um respeito às diretrizes da boa-fé e bons costumes. Defender um direito cujo escopo foge a tais diretrizes parece pouco indicado.
- DIREITO, Carlos Alberto Menezes; Cavalieri FILHO, Sérgio. Comentários ao novo código civil. Da responsabilidade civil. Das preferências e privilégios creditórios. Arts. 927 a 965. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. XIII, p.127.
- STOCO, op. cit., 2002. p. 58-59.
- Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery lecionam que essa regra teve como fonte direta o Código Civil português (art. 334), do qual é praticamente cópia ippsis litteris. A norma portuguesa, por sua vez, tivera como inspiração o Código Civil grego (art. 281). (NERY JUNIOR; NERY, op. cit., 2003. p. 255).
- Não se deslembre, ainda, da importante lição de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao esclarecerem que, para o reconhecimento da ilicitude do ato do titular de direito, que o exerce ultrapassando a fronteira prescrita no art. 187 do CC de 2002, devem também ser observadas duas regras basilares: a) a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (CC, art. 421); b) os contratantes são obrigados a observar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. (CC, art. 422). (NERY JUNIOR; NERY, op. cit., 2003. p.255).
- LIMA, op. cit., 1999. p. 217.
- CALCINI, Fábio Pallaretti. Abuso de direito e o novo código civil. Revista dos Tribunais, 830. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 30.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 74-133.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 80.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 82.
- Ibid., p. 81.
- Ibid., p. 81.
- Ibid., p. 81.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 81.
- "Art. 131. Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: I - A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras."
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 81-82.
- Ibid., p. 82.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 83.
- Ibid., p. 83.
- Ibid., p. 84.
- Ibid., p. 84.
- MARQUES, op. cit., 2005. p. 85-86.
- Ibid., p. 85.
- Tabagismo & Saúde nos Países em Desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento – Fevereiro/2003. Tradução realizada pelo Instituto Nacional de Câncer e Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em: <www.inca.gov.br>.
- SILVA; GOLDFARB; CAVALCANTE; FEITOSA; MEIRELLES, op. cit., 1998. p.13.
- LIMA, op. cit., 1999. p. 205.
- SARMATZ, Leandro. Ernst Wynder. Super Interessante, Abril, ed. 174, p. 23, mar. 2002.
- CARVALHO, op. cit., 2001. p. 14.
- SARMATZ, op. cit., p. 23.
- SARMATZ, op. cit., p. 23.
- CARVALHO, op. cit., 2001. p. 15.
- O Tobacco Industry Research Committee surgiu como parte da reação da indústria às evidências ligando o fumo a várias doenças. A indústria do tabaco argumentou que o TIRC, como era conhecido o Comitê, representava uma organização independente, criada para determinar a verdade sobre os efeitos do cigarro na saúde humana. Entretanto, os documentos secretos mostram que o TIRC foi originalmente criado para propósitos de relações públicas, para convencer o público de que havia uma "controvérsia" sobre o fumo ser perigoso ou não. (GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 26).
- CARVALHO, op. cit., 2001. p. 15.
- SARMATZ, op. cit., p. 23. O artigo publicado na Revista Super Interessante informa ainda: "Apesar de ter suas investigações no laboratório enxovalhadas diante de milhões de americanos, de ser ridicularizado por fumantes e ver sua seriedade posta em dúvida, Wynder não se abalou. Sua "luta solitária" (como certa vez resumiu um colega de laboratório) culminou com a fundação, em 1969, da American Health Foundation, instituição que, entre outras coisas, é um bastião na pesquisa sobre os males do cigarro e que provou, além de qualquer dúvida, que as conclusões de Wynder estavam corretas. Apenas um dos legados do pioneiro da luta antitabagista".
- Em tradução livre, esses os dizeres do memorando: "As novas marcas com filtro visando a um pedaço do mercado crescente fizeram anúncios extraordinários. Havia um esforço urgente para destacar e diferenciar uma marca das outras já no mercado. Era importante ter mais filtros. Alguns anunciaram ter as menores taxas de alcatrão. Em muitos casos, porém, o fumante de um cigarro com filtro estava consumindo tanto alcatrão e nicotina quanto estaria se fumasse um cigarro comum." No original: "The new filter brands vying for a piece of the growing filter market made extraordinary claims. There was an urgente effort to highlight and differentiate one brand from the others already on the market. It was important to have the most filter traps. Some claimed to possess the least tars. In most cases, however, the smoker of a filter cigarette was getting as much or more nicotine and tar as be would have gotten from a regular cigarette. He had abandoned the regular cigarette, however, on the ground of reduced risk to health [emphasis added]. {2205.0I, p.2}." (GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 27).
- GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 26.
- Esses documentos consistem primariamente em memorandos internos, cartas e relatórios de pesquisas relacionados à B&W e à BAT. Muitos deles trazem a marca de "confidencial" ou "produto do trabalho de advogados", a sugerir que os autores nunca esperarvam que eles fossem mostrados fora da companhia, nem mesmo para procedimentos legais. Esses documentos demonstram que a indústria do tabaco, em geral, e a Brown & Williamson, em particular, estiveram empenhadas em enganar o público, pelo menos, 30 anos. (Ibid., p. 3).
- Ibid., p. 2.
- Veja-se, nesse sentido, esclarecedor trecho da monumental obra de José Rosemberg: "Desde os idos de 1950 a indústria tabaqueira vem desenvolvendo pesquisas que lhe fornecem a certeza de que a nicotina é geradora de dependência físico-química, assim como estudos para sua maior liberação e absorção pelo organismo e inclusive estudos genéticos objetivando desenvolver planta de tabaco hipernicotinado. A indústria tabaqueira, ciente das propriedades psico-ativas da nicotina geradora de dependência, sempre negou a existência dessas qualidades farmacológicas. É edificante o episódio ocorrido no início de 1980, quando a Phillip Morris obrigou seu cientista Vitor de Noble a retirar o artigo que havia entregado para publicação no Journal of Psychopharmacology, no qual relatava suas investigações comprovadoras de que ratos recebendo nicotina desenvolviam dependência físico-química. Isso tudo veio a lume com os documentos secretos que se tornaram públicos. Entretanto, a indústria tabaqueira continuamente pronunciou-se com ênfase, negando essas propriedades da nicotina." (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42). E mais: "Não obstante a exaustiva documentação acumulada de que a nicotina é droga geradora de dependência químico-física e da existência de fatores genéticos que ditam a reação orgânica com vasto polimorfismo (...), é de interesse ressaltar o fato histórico de que a ciência oficial demorou muito para se convencer dessa certeza, enquanto a indústria tabaqueira já tinha disso conhecimento de longa data. É também fato histórico edificante, como as multinacionais do tabaco esconderam por tanto tempo a certeza que tinham de a nicotina ser droga psicoativa, promovendo vasta propaganda enganosa, afirmando que ela não causa dependência, enquanto secretamente trabalharam para a obtenção de cigarros com teores mais altos de nicotina para tornar os fumantes mais escravizados ao seu consumo. É impressionante que em 1979 o relatório oficial do Departamento de Educação, Saúde e Assistência Social, dos Estados Unidos, abordando a temática da nicotina, não se pronunciou sobre a sua característica de gerar dependência. Mais inexplicável é que, ainda em 1964, o Comitê Consultivo do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, com o endosso do Surgeon General, tenha declarado que "a nicotina causa apenas hábito, não sendo droga que desenvolve dependência". Entretanto, a indústria tabaqueira, que vinha, desde 1950, promovendo pesquisas sofisticadas sobre a farmacodinâmica da nicotina, havia chegado à conclusão de que ela era droga geradora de dependência orgânica. Assim em março de 1963, um ano antes do acima citado relatório do órgão oficial da saúde pública dos Estados Unidos, negando que a nicotina causa dependência, a Brown and Williamson, na reunião de seus dirigentes face às pesquisas de seus técnicos concluiu pela propriedade da nicotina causar dependência. A companhia tabaqueira Brown and Williamson, sediada nos Estados Unidos, é subsidiária da British American Tobacco (BAT) assim como a Souza Cruz do Brasil. Nessa reunião, o vice-presidente, Addison Yeaman, afirmou: "além do mais, a nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, num negócio de vender nicotina que é uma droga que causa dependência, eficaz para anular os mecanismos de estresse." Aliás, desde a década dos anos 1950, a indústria tabaqueira já tinha a convicção da ação psico-ativa da nicotina, conforme se depreende do pronunciamento de H.R. Hammer, diretor de pesquisa da British American Tobacco, como consta da ata da reunião de 14 de outubro de 1955: "Pode-se remover toda a nicotina do tabaco, mas a experiência mostra que esses cigarros e charutos ficam emasculados e ninguém tem satisfação de fumá-los". Em 1962, em outra reunião da Britixh American Tobacco, o executivo Charles Ellis afirmou: "fumar é conseqüência da dependência [...]. Nicotina é droga de excelente qualidade". (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42-43).
- Ibid., p. 43.
- ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 43.
- GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 3.
- Interessante reportagem fora publicada no Jornal Folha de São Paulo acerca do assunto: "Em 15 de dezembro de 1953, os presidentes de várias das maiores empresas de cigarro dos EUA se reuniram no Hotel Plaza, em Nova York, num encontro incomum. A questão em pauta eram as crescentes preocupações médicas com os riscos do cigarro à saúde. Cinco estudos já haviam sugerido a existência de vínculos entre o cigarro e o câncer – e a imprensa estava tomando nota do assunto.
- GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 4.
- Ibid., p. 4.
- Vejam-se, a respeito, as informações de Mario Cesar Carvalho: "Há dois gêneros de documentos: os científicos e os memorandos do alto escalão da indústria. O mais antigo dos textos científicos revelados é de fevereiro de 1953, oito meses antes de a pesquisa com os ratos pintados com nicotina ter sido apresentada pela primeira vez. Assinado por Claude Teague, um pesquisador da R.J. Reynolds, o texto associa com câncer o uso de cigarros por períodos longos: "Estudos de dados clínicos tendem a confirmar a relação entre o uso prolongado de tabaco e a incidência de câncer no pulmão." Logo em seguida, o pesquisador descreve quais são os agentes cancerígenos do cigarro: "compostos aromáticos plinucleares ocorrem nos produtos pirológicos [ou seja, que queimam] do tabaco. Benzopireno e N-benzopireno, ambos cancerígenos, foram identificados". (CARVALHO, op. cit., 2001. p. 16-17).
- GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 4-5.
- CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18.
- Ibid., p. 18.
- CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18. Mario Cesar Carvalho informa que a manipulação do nível de nicotina era tema proibido. Se essa prática fosse provada, demonstrar-se-ia que a indústria alterava os ingredientes de seu produto como se este fosse uma droga – e aí a venda de cigarros poderia sofrer limitações. Complementa o jornalista: "O governo dos EUA encontrou a prova da manipulação num texto escrito em português, descoberto por uma bibliotecária da Food and Drugs Administration (FKA, a agência que controla remédios e comida). O texto era um pedido de patente da Brown & Williamson, empresa irmã da Souza Cruz, para "uma variedade de fumo geneticamente estável". O pedido era de 1992. Mesmo sem saber português, a bibliotecária, Carol Knoth, reparou num número: 6%. E uma dúvida persistia: por que o texto fora escrito em português?
Numa das salas de reuniões do hotel, os presidentes da American Tobacco, da Benson & Hedges, da Philip Morris e da US Tobacco deram o primeiro passo para criar o que viria a tornar-se uma estratégia unificada para passar ao público a mensagem tranqüilizadora de que não havia evidências de que o cigarro fizesse mal à saúde.
Ao longo dos 50 anos seguintes, as empresas de cigarro americanas iriam conspirar para fraudar os consumidores, negando os perigos do fumo e da fumaça inalada por não fumantes. Iriam financiar cientistas solidários com elas para que conduzissem pesquisas que semeassem a confusão em torno da questão. Iriam manipular os níveis de nicotina para criar dependência entre os fumantes e iriam propositalmente difundir o cigarro entre os jovens. Porém, em boa parte desse tempo, elas sabiam que existia um vínculo causal entre o cigarro e a doença.
Isso tudo, ao menos, é o que o Departamento de Justiça americano tentará provar, numa ação que começará a ser julgada no próximo dia 21. Os depoimentos das primeiras testemunhas do governo deverão ser divulgados nesta segunda-feira. A ação talvez se torne o maior ataque na Justiça já lançado por um governo contra uma indústria legal. O argumento essencial é similar ao das ações movidas por Estados americanos e das movidas por fumantes. Mas o julgamento em questão será diferente de tudo já visto nas cortes do Mississippi ou do Alabama.
De um lado, está o Departamento de Justiça, que, usando documentos incriminadores vazados desde o interior das empresas ou descobertos em processos anteriores ou ainda por meio de suas próprias investigações, passou cinco anos montando os mais abrangentes argumentos já preparados no combate à indústria do tabaco. De outro lado, estão os recursos somados das maiores empresas do ramo e suas fileiras de advogados de primeira linha.
governo dos EUA afirma que os réus devem restituir US$ 280 bilhões em "lucros indevidos" – um valor mais do que suficiente para levar as empresas à falência. Para conseguir isso, porém, terá de provar – não a um júri, mas a uma juíza única – que as empresas de cigarros foram culpadas de fraude no passado e que existe a probabilidade de que continuem a fazê-lo no futuro. Não será um empreendimento fácil. O governo também terá de justificar sua exigência de US$ 280 bilhões.
A razão é que não se trata de um processo de indenização por falha de um produto, alegando que os artigos feitos pela indústria prejudicaram um fumante ou grupo de fumantes específicos, como os que o setor dos cigarros já está acostumado a combater. Em lugar disso, a ação é movida sob a Lei de Organizações Corruptas e Influenciadas por Fraudadores (Rico), de 1970, promulgada para combater o crime organizado.
"O argumento principal do governo é que a indústria americana do cigarro foi um empreendimento ilegal, como a máfia", diz Marin Feldman, analista da Merill Lynch para o setor do tabaco.
A indústria nega ter cometido fraudes no passado e afirma achar que o governo não conseguirá convencer a juíza Gladys Kessler, que presidirá o processo, de que há a probabilidade de que as empresas violem a Rico no futuro.
Ademais, diz o setor, as restrições à propaganda de cigarros que o governo está pedindo, ao lado da restituição de US$ 280 bilhões, em grande medida duplicam as que já estão em vigor com o acordo de 1998 conhecido como Master Settlement Agreement. Foi o acordo pelo qual as empresas de cigarros concordaram em pagar US$ 246 bilhões a 50 Estados americanos ao longo de 25 anos. Isso pôs fim aos processos litigiosos movidos pelos Estados e inspirou o governo federal a iniciar sua própria investida legal.
"Quando a ação do governo foi aberta, em 1999, dissemos achar que ela estava equivocada com base na lei, nos fatos e na política. Nada mudou desde então", diz William Ohlemeyer, um dos advogados da Philip Morris, a maior fabricante de cigarros dos EUA.
A Philip Morris é uma das seis rés. As outras são a RJ Reynolds, segunda maior empresa de tabaco nos EUA; a Brown & Williams, terceira maior; a Lorillard; a Liggett; e a filial local da British American Tobacco. Também são rés no processo duas associações do setor que já deixaram de existir.
As alegações contidas nas últimas constatações de fatos, divulgadas em julho, são extremamente graves: "As empresas de cigarros vêm praticando e executando há 50 anos – e continuam a praticar e executar – um esquema maciço de fraude do público.
Trabalhando com as duas organizações do setor, o Instituto do Tabaco e o Conselho de Pesquisas do Tabaco, elas teriam feito uma campanha de relações públicas para desmentir os males causados pelo cigarro e gerar controvérsias em torno das pesquisas científicas. A campanha teria começado pouco após a reunião no Hotel Plaza, com a Declaração Franca aos Fumantes, um anúncio assinado de página inteira publicado pelas empresas em 448 jornais dos EUA. "Acreditamos que os produtos que fabricamos não são nocivos à saúde", afirmou a declaração que, porém, prometia que seriam conduzidas pesquisas para descobrir a verdade.
A indústria do cigarro rejeita todas as acusações, dizendo que não houve fraude. Um dos argumentos centrais da defesa será que, desde 1966, dois anos após um relatório do diretor nacional de saúde dos EUA ter afirmado inequivocamente que o cigarro causa câncer, os maços de cigarros trazem um aviso de saúde, obrigatório por medida federal, informando que o produto pode fazer mal à saúde. Então, como as empresas poderiam ter enganado alguém?
"Quando foi constatado o vínculo entre cigarros e câncer, o Congresso precisou decidir se proibia os cigarros ou se fornecia avisos e informações para que as pessoas pudessem tomar uma decisão com base em informações corretas", afirma o advogado William Ohlemeyer. "A decisão tomada foi não proibir o cigarro mas fornecer avisos, completou.
Para as empresas, não houve conspiração. A reunião no hotel que teria dado origem ao plano todo nem sequer foi secreta: o Departamento de Justiça foi avisado com antecedência, para que as empresas pudessem evitar o perigo de violar um decreto antitruste que proibia reuniões entre as empresas, e a reunião foi noticiada em diversos jornais. A subseqüente Declaração Franca aos Fumantes teria refletido o consenso científico vigente na época.
A composição do setor do cigarro também mudou radicalmente nos últimos 50 anos, algo que, segundo as empresas, reflete a existência de uma concorrência dinâmica que não condiz com a idéia de conspiração. A indústria de cigarros poderá ainda partir para a ofensiva, destacando os vínculos de longa data entre o Estado americano e as empresas – sem falar nos bilhões de dólares que os governos ganham em impostos sobre produtos à base de tabaco.
Os fabricantes de cigarro estão confiantes nas chances de vitória de sua defesa, que já foi burilada em dezenas de outras ações.
Dick Daynar, adversário de longa data do setor e presidente do Projeto de Responsabilidade dos Produtos à Base de Tabaco da Universidade Northeastern, que incentiva a abertura de processos contra empresas de cigarro, argumenta, porém, que os júris decidiram, em alguns casos, que as indústrias do setor haviam cometido atos ilegais, mas que não podiam ser responsabilizadas pela decisão de fumar tomada por um indivíduo. Só que desta vez, afirma, não será preciso encontrar nenhum vínculo desse tipo, já que o argumento legal só diz respeito à conduta das empresas. E ainda os documentos mais condenatórios serão apresentados à corte.
governo terá também de convencer a juíza de que as empresas continuarão a cometer fraudes. A indústria do cigarro argumenta que as restrições implantadas pelo acordo de 1998 já praticamente impossibilitam qualquer violação futura. Daynard discorda disso.
maior desafio do governo, no entanto, talvez seja convencer o tribunal de que apenas o pagamento da restituição no valor de US$ 280 bilhões impedirá o setor de voltar a cometer violações." (BUCKLEY, Neil. Tradução de Clara Allain. Folha de São Paulo, Especial, A6, Para EUA, setor do cigarro age com máfia. Sábado, 18 de setembro de 2004).
Primeiro, a FDA descobriu que o número referia-se ao percentual de nicotina produzido pela planta transgênica. Era praticamente o dobro dos níveis de nicotina encontrados no fumo, sem manipulação genética, que variam de 2,5% a 3,5%. O porquê de o texto ter sido escrito em português seria revelado com a ajuda de Janis Bravo, uma funcionária da DNA Plant Technology, empresa que produzira a planta geneticamente modificada (com o nome futurista de U1). Janis contou que tinham sido enviadas ao Brasil sementes suficientes para produzir mil toneladas de fumo. Uma pesquisa nos arquivos alfandegários nos EUA revelou que a Brown & Williamson despachara 1 milhão de quilos de sementes do fumo geneticamente modificado Y1 para a Souza Cruz Overseas. O roteiro das sementes era o mesmo dos negócios escusos: iam para as ilhas Cayman e depois para o Brasil.
Brasil fora escolhido porque a indústria fez nos EUA um acordo de cavalheiros para não elevar os níveis de nicotina. Do contrário, haveria uma espécie de jogo sujo que viciaria de tal forma o consumidor que isso praticamente eliminaria a concorrência entre marcas. Cultivando o Y1 no Brasil, onde as sementes foram plantadas no Rio Grande do Sul, a Brown & Williamson, segundo sua visão particular de ética, não estava violando o acordo. Um empregado da Brown & Williamson também decidiu abrir a boca. Contou à FDA que a empresa estocara nos EUA entre 125 e 250 toneladas de fumo Y1.
Por causa do processo aberto nos EUA contra a Brown &Williamson, a Souza Cruz interrompeu a produção do Y1 no Brasil.
A engenharia genética era a forma mais sofisticada de alterar o nível de nicotina do cigarro, mas não era a única. Um manual de mistura de fumos da Brown & Williamson ensinava outro método – a adição de amônia. "Um cigarro que incorpore a tecnologia da amônia vai distribuir mais compostos de sabor na fumaça, inclusive nicotina, do que um sem nada." A técnica é simples: a amônia reage com os sais da nicotina e eleva o nível de liberação da mesma nicotina. As fábricas brasileiras também recorreram ao método da amônia, segundo o Instituto Nacional do Câncer.
É mais um ingrediente para engrossar a lista de cerca de 600 compostos que são adicionados ao cigarro, conforme a própria indústria." (CARVALHO, Op.cit., 2001. p. 18-20).
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"Apelação cível. Responsabilidade civil. Danos materiais e morais. Tabagismo. Ação de indenização ajuizada pela família. Resultado danoso atribuído a empresas fumageiras em virtude da colocação no mercado de produto sabidamente nocivo, instigando e propiciando seu consumo, por meio de propaganda enganosa. Ilegitimidade passiva, no caso concreto, de uma das co-rés. Caracterização do nexo causal quanto à outra co-demandada. Culpa. Responsabilidade civil subjetiva decorrente de omissão e negligência, caracterizando-se a omissão na ação. Aplicação, também, do cdc, caracterizando-se, ainda, a responsabilidade objetiva. Indenização devida. A prova dos autos revela que a vítima falecida teria fumado durante 40 anos, cerca de 40 cigarros por dia, tendo adquirido enfisema e câncer pulmonar que lhe acarretaram a morte. Não havendo comprovação de que o de cujus consumisse os cigarros fabricados pela co-ré Souza Cruz, impõe-se, no caso concreto, reconhecer ilegitimidade passiva desta. É fato notório, cientificamente demonstrado, inclusive reconhecido de forma oficial pelo próprio Governo Federal, que o fumo traz inúmeros malefícios à saúde, tanto à do fumante como à do não-fumante, sendo, por tais razões, de ordem médico-científica, inegável que a nicotina vicia, por isso que gera dependência química e psíquica, e causa câncer de pulmão, enfisema pulmonar, infarto do coração entre outras doenças igualmente graves e fatais. A indústria de tabaco, em todo o mundo, desde a década de 1950, já conhecia os males que o consumo do fumo causa aos seres humanos, de modo que, nessas circunstâncias, a conduta das empresas em omitir a informação é evidentemente dolosa, como bem demonstram os arquivos secretos dessas empresas, revelados nos Estados Unidos em ação judicial movida por estados norte-americanos contra grandes empresas transnacionais de tabaco, arquivos esses que se contrapõem e desmentem o posicionamento público das empresas – revelando-o falso e doloso, pois divulgado apenas para enganar o público – e demonstrando a real orientação das empresas, adotada internamente, no sentido de que sempre tiveram pleno conhecimento e consciência de todos os males causados pelo fumo. E tal posicionamento público, falso e doloso, sempre foi historicamente sustentado por maciça propaganda enganosa, que reiteradamente associou o fumo a imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder, riqueza e inteligência, omitindo, reiteradamente, ciência aos usuários dos malefícios do uso, sem tomar qualquer atitude para minimizar tais malefícios e, pelo contrário, trabalhando no sentido da desinformação, aliciando, em particular os jovens, em estratégia dolosa para com o público, consumidor ou não. O nexo de causalidade restou comprovado nos autos, inclusive pelo julgamento dos embargos infringentes anteriormente manejados, em que se entendeu pela desnecessidade de outras provas, porquanto fato notório que a nicotina causa dependência química e psicológica e que o hábito de fumar provoca diversos danos à saúde, entre os quais o câncer e o enfisema pulmonar, males de que foi acometido o falecido, não comprovando, a ré, qualquer fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito dos autores (art. 333, II, do CPC). O agir culposo da demandada evidencia-se na omissão e na negligência, caracterizando-se a omissão na ação. O art. 159 do CCB/1916 já previa o ressarcimento dos prejuízos causados a outrem, decorrentes de omissão e negligência, sendo que o criador de um risco tem o dever de evitar o resultado, exatamente porque, não o fazendo, comete a omissão caracterizadora da culpa, a chamada omissão na ação conceituada na doutrina do preclaro Cunha Gonçalves, a qual é convergente com as lições de Sergio Cavalieri Filho e Pontes de Miranda, sendo a conduta da demandada violadora dos deveres consubstanciados nos brocardos latinos do neminem laeder, suum cuique tribuere e no próprio princípio da boa-fé objetiva existente desde sempre no Direito Brasileiro. A conduta anterior criadora do risco enseja o dever, decorrente dos princípios gerais de direito, de evitar o dano, o qual, se não evitado, caracteriza a culpa por omissão. Como acentua a doutrina, esse dever pode nascer de uma conduta anterior e dos princípios gerais de direito, não sendo necessário que esteja concretamente previsto em lei, bastando apenas que contrarie o seu espírito. Não obstante ser lícita a atividade da indústria fumageira, a par de altamente lucrativa, esta mesma indústria, desde o princípio, sempre teve ciência e consciência de que o cigarro vicia e causa câncer, estando cientificamente comprovado que o fumo causa dependência química e psíquica, câncer, enfisema pulmonar, além de outros males, de forma que a omissão da indústria beira as fronteiras do dolo. A ocultação dos fatos, mascarada por publicidade enganosa, massificante, cooptante e aliciante, além da dependência química e psíquica, não permitia e não permite ao indivíduo a faculdade da livre opção, pois sempre houve publicidade apelativa, sobretudo em relação aos jovens, sendo necessário um verdadeiro clamor público mundial para frear a ganância da indústria e obrigar o Poder Público à adoção de medidas de prevenção a partir de determinações emanadas de órgãos governamentais. Ainda que se considere que a propaganda e a dependência não anulem a vontade, o fato é que a voluntariedade no uso e a licitude da atividade da indústria não afastam o dever de indenizar. Desimporta a licitude da atividade perante as leis do Estado e é irrelevante a dependência ou voluntariedade no uso ou consumo para afastar a responsabilidade. E assim é porque simplesmente o ordenamento jurídico não convive com a iniqüidade e não permite que alguém cause doença ou mate seu semelhante sem que por isso tenha responsabilidade. A licitude da atividade e o uso ou consumo voluntário não podem levar à impunidade do fabricante ou comerciante de produto que causa malefícios às pessoas, inclusive a morte. Sempre que um produto ou bem – seja alimentício, seja medicamento, seja agrotóxico, seja à base de álcool, seja transgênico, seja o próprio cigarro – acarrete mal às pessoas, quem o fabricou ou colocou no mercado responde pelos prejuízos decorrentes. Ante as conseqüências desastrosas do produto, como é o caso dos autos, que levam, mais tragicamente, à morte, não pode o fabricante esquivar-se de arcar com as indenizações correspondentes. Mesmo que seja lícita a atividade, não pode aquele que a exerce, cometendo abuso de seu direito, por omissão, ocultar as conseqüências do uso do produto e safar-se da responsabilidade de indenizar, especialmente se, entre essas conseqüências, estão a causação de dependência e de câncer, que levaram a vítima à morte. E também não pode esquivar-se da responsabilidade porque sempre promoveu propaganda ligando o uso do produto a situações de sucesso, riqueza, bem estar, vida saudável, entre outras, situações exatamente contrárias àquelas que decorrem e que são conseqüências do uso de um produto como o cigarro. Ademais, aplica-se também ao caso dos autos o Código de Defesa do Consumidor, porquanto a ocorrência do resultado danoso se deu em plena vigência do Regramento Consumerista, que é norma de ordem pública e de interesse social (art. 1º do CDC), e por isso de aplicação imediata. O cigarro é produto altamente perigoso, não só aos fumantes como também aos não-fumantes (fumantes passivos ou bystanders), caracterizando-se como defeituoso, uma vez que não oferece a segurança que dele se pode esperar, considerando-se a apresentação, o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam (art. 12, § 1º, do CDC), situação que importa na responsabilidade objetiva do fabricante, que apenas se exime provando que não colocou o produto no mercado, ou que, embora o haja colocado, o defeito inexiste ou que o mal não foi causado, ou, por fim, que a culpa é exclusiva do consumidor ou de terceiro, o que aqui não se caracteriza porque o ato voluntário do uso ou consumo não induz culpa e, na verdade, no caso, sequer há opção livre de fumar ou não fumar, em decorrência da dependência química e psíquica e diante da propaganda massiva e aliciante, que sempre ocultou os malefícios do cigarro, o que afasta em definitivo qualquer alegação de culpa concorrente ou exclusiva da vítima. A indenização pelos danos materiais deverá ressarcir a venda de imóvel e de bovinos, despesas médicas e hospitalares comprovadas, hospedagem de acompanhantes durante a internação e gastos com o funeral. Também são indenizáveis os prejuízos decorrentes do fechamento do mini-mercado da vítima, desde a época da constatação da doença até a data em que o falecido completaria 70 anos de idade, conforme a expectativa de vida dos gaúchos, valor a ser apurado de acordo com a média de lucro dos últimos 12 meses de funcionamento anteriores à constatação da doença. As demais pretensões indenizatórias impõem-se indeferidas, porquanto não comprovados os prejuízos (art. 333, I, do CPC). A título de danos morais, tem-se como razoável, prudente e suficiente a fixação da quantia de 600 salários mínimos nacionais para a esposa, de 500 para cada um dos quatro filhos e de 300 para cada um dos genros, totalizando, a indenização a esse título, 3.200 salários mínimos nacionais, diante das peculiaridades do caso e da necessidade de atender o caráter sancionatório-punitivo e a finalidade reparatório-compensatória da verba, sem implicar enriquecimento indevido dos demandantes. Apelação parcialmente provida por maioria." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n. 7000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, apelação provida por maioria, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em <www.tjrs.gov.br>).