Sumário: 1 Introdução; 2 A controvérsia de Valladolid; 2.1 A conquista espanhola; 2.2 O debate; 2.3 Síntese dos argumentos; 2.4 A decisão; 3 Conclusão; Referências
1 INTRODUÇÃO
Passados mais de 500 anos do descobrimento da América, ainda são gritantes as diferenças econômicas e sociais entre as ex-colônias e os países colonizadores europeus. Tais diferenças são o reflexo direto do modelo exploratório a que tais colônias foram submetidas.
Contudo, a fome, a má distribuição de renda, problemas no sistema educacional e de saúde, destruição ambiental, violência urbana entre outros são comumente apontados pelos países conquistadores como mazelas endêmicas desses povos. A Europa Ocidental parece não se lembrar da sua responsabilidade na construção de uma América Latina em que não se respeitam direitos fundamentais mínimos do ser humano. Ao invés, ao lado dos Estados Unidos, a Europa se erige à condição de defensora dos direitos humanos, sem discutir o seu papel na violação de tais direitos ao longo do tempo na América Latina, e que teve início, já nas primeiras décadas da conquista, com o genocídio dos índios americanos.
Os invasores espanhóis, sob a justificativa de levar costumes mais civilizados e a fé cristã àqueles povos pagãos, usaram a força para escravizar e se apropriar das terras e riquezas dos nativos. Tamanhas foram as crueldades cometidas contra os índios que algumas vozes não puderam ser caladas, levantando a discussão acerca do domínio espanhol sobre aquelas terras e povos.
Tornou-se imperativo responder à seguinte questão: é justa a guerra movida contra o índio a fim de torná-lo cristão? Para que essa questão fosse respondida necessário se fez o enfrentamento de várias outras, ainda mais polêmicas, notadamente: se era legítima a conquista espanhola do Novo Mundo; e se os índios eram seres humanos ou uma espécie inferior de Homem que precisava ser tutelada por outros de costumes mais civilizados, isto é, pelo conquistador espanhol.
O objetivo deste estudo é apresentar a profunda reflexão teológico-jurídica que ocorreu na segunda metade do século XVI acerca da conquista espanhola do Novo Mundo, chamada de a Controvérsia de Valladolid, e que trouxe como conseqüência o reconhecimento do outro como sujeito de direitos.
2 A CONTROVÉRSIA DE VALLADOLID
2.1 A conquista espanhola
No ano de 1550, o Imperador espanhol Carlos V convocou uma junta de quatorze notáveis teólogos, que se reuniu na cidade espanhola de Valladolid, nos anos 1550 e 1551, com o encargo de decidir se era justa a conquista espanhola do Novo Mundo.
Neste debate foi colocada em pauta a própria política colonial espanhola, iniciada com os reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão, que objetivavam expandir as fronteiras de seu império e as da Igreja Católica.
Os Reis espanhóis haviam recebido do então Papa Alexandre VI, através da Bula Inter Coetera a posse das novas terras. Em troca, levariam a fé cristã aos povos recém descobertos. Com esse título, a Coroa espanhola justificou seu domínio sobre as Índias ante os demais Estados Europeus, não encontrando oposição durante as primeiras décadas da conquista.
Nos primórdios da invasão, a Rainha Isabel proibiu a escravização dos nativos. Contudo, os primeiros conquistadores submeteram os índios a trabalhos forçados e a tratamento cruel e degradante. Diversos foram os relatos que chegaram à Corte sobre os maus tratos infligidos aos nativos:
Os espanhóis, com seus cavalos, suas espadas e lanças começaram a praticar crueldades estranhas; entravam nas vilas, burgos e aldeias, não poupando nem as crianças e os homens velhos, nem as mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e as faziam em pedaços como se estivessem golpeando cordeiros fechados em seu redil. Faziam apostas sobre quem, de um só golpe de espada, fenderia e abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente e mais destramente, de um só golpe lhe cortaria a cabeça, ou ainda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de um só golpe. (CASAS, 1984, p.33).
Incomodada com a situação de seus novos súditos, notadamente com sua evangelização, a Rainha instaurou o sistema de encomienda. Tal sistema consistia em entregar um lote de índios ao colonizador, o encomiendero, para que este cuidasse de sua evangelização. Em contrapartida, o índio deveria trabalhar para o encomiendero, mediante remuneração. Embora a intenção da Rainha fosse facilitar a conversão dos índios ao cristianismo, permitindo uma proximidade maior entre os cristãos espanhóis e os nativos pagãos, recomendando ou encomendando os aborígines aos colonizadores, na prática, esse sistema significou a escravização dos indígenas.
A partir de 1504, com a morte de Isabel, teve início o período mais cruel da colonização. Se externamente a política colonial espanhola não encontrava oposição, diferente situação ocorria internamente. Diante do quadro de atrocidades cometidas pelo invasor contra o nativo, a consciência espanhola foi despertada, em 1510, com a chegada à América dos primeiros missionários dominicanos, notadamente do Frei Antonio de Montesinos, que deixou os encomienderos atônitos com seu célebre sermão:
Esta voz está bradando: vocês estão todos em pecado mortal, nele vivem e morrem, pela crueldade e tirania que praticam contra este povo inocente.
Digam: com que direito e com que justiça vocês mantêm estes índios em tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade vocês têm feito guerras tão detestáveis contra esta gente, que estava tranqüila e pacífica em suas terras, onde a multidões incontáveis delas, com mortes e danos nunca ouvidos, vocês exterminaram?
Como vocês os mantêm na opressão e na fadiga, sem dar-lhes de comer e curar-lhes as enfermidades que contraem em razão dos excessivos trabalhos que vocês lhes impõem? Eles chegaram a morrer, ou, para melhor dizer, vocês os matam para arrancar e adquirir ouro cada dia.
Que cuidado vocês têm de que alguém lhes ensine a doutrina e de que conheçam a seu Deus e Criador, sejam batizados, ouçam a missa, guardem as festas e os domingos?
Estes não são homens? Não têm almas racionais?
Não estão vocês obrigados a amá-los como a vocês mesmos?
Isto vocês não entendem? Não sentem? Como estão mergulhados em sono tão letárgico?
Estejam certos: no pecado em que estão, vocês não poderão salvar-se mais do que os mouros ou turcos que recusam a fé em Jesus Cristo. (CASAS, apud JOSAPHAT, 2000, p.52-53).
Pela primeira vez questionou-se a política colonial e, também, o domínio espanhol sobre as novas terras. Tal questionamento chegou aos ouvidos do Rei Fernando, que interveio na discussão elaborando um conjunto de medidas protetivas aos índios, as Leis de Burgos, dentre elas a proibição de sua escravização.
Os dominicanos, no entanto, experimentaram apenas uma aparente vitória, pois, na prática, não foi modificado o tratamento dispensado ao índio. Para tanto, seria necessário o fim do sistema de encomienda, o que não ocorreu. No ano seguinte, em 1513, os dominicanos viram a aprovação de um novo documento, o Requerimiento, que agravava a situação dos índios. Esse documento, segundo Gomes (2006), era uma verdadeira intimação ao povo indígena para que se sujeitasse à autoridade do Imperador Espanhol e do Papa. De acordo com o Requerimiento, se os índios aceitassem tal autoridade, tornar-se-iam servos da Coroa, caso contrário, os espanhóis poderiam usar a força e submetê-los à escravidão, aplicando-lhes a teoria da guerra justa.
A disputa entre missionários e encomienderos ganhou novos contornos a partir da entrada em cena do jovem clérigo Bartolomeu de Las Casas, que ao ouvir o Sermão de Montesinos sensibilizou-se com a situação do indígena e iniciou a luta, junto com os dominicanos, pelo fim do sistema de encomiendas e do uso da força como meio de evangelização.
Em 1547, Las Casas deixou definitivamente a América, onde vivera por mais de 30 anos, retornando definitivamente à Corte Espanhola. Nesse ano, tomou conhecimento de um livro, Demócrates Segundo ou das Justas Causas da Guerra contra os Índios, escrito por Juan Ginés de Sepúlveda, historiador da Corte, que defendia a aplicação da teoria aristotélica da escravidão natural ao índio americano. Com essa teoria, Sepúlveda justificava o uso da força contra o indígena e sua escravização.
Las Casas entrou em confronto direto com Sepúlveda ao conseguir a proibição da publicação de sua obra em toda a Europa. O conflito entre esses dois notáveis homens ultrapassou a esfera pessoal, envolvendo os maiores teólogos e juristas da época em um grande debate: a Junta de Valladolid.
2.2 O debate
O histórico debate de Valladolid nasceu da necessidade de pôr um fim às discussões e conflitos travados entre os conquistadores e os missionários defensores dos indígenas acerca da justiça da conquista espanhola do Novo Mundo.
O debate foi realizado em duas sessões: a primeira em agosto de 1550 e a segunda em maio de 1551. A Junta foi presidida pelo dominicano Domingo de Soto e teve como debatedores Juan Ginés de Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas.
Sepúlveda defendeu a aplicação aos índios da Teoria da Escravidão Natural. Segundo tal teoria, era justo declarar guerra contra aqueles que, por uma condição natural, deviam obediência a outros, que nasceram para comandar, mas que se recusavam a obedecer. Conforme esclarece Hoffner (1977), para os partidários da escravidão, os índios eram incapazes de levar uma vida racional e moralmente independente e pessoas com tais características eram destinadas pela própria natureza a servir aos homens mais sábios e prudentes, seus superiores naturais.
De acordo com Rodrigo Gutierréz:
Podería-se dizer que o que aconteceu em Valladolid foi a culminação de um processo intelectual mediante o qual pretendeu-se classificar os índios como bárbaros, carentes de razão e com um tipo inferior de humanidade. Tudo isto com a finalidade de aplicar-lhes a doutrina da barbárie, que muitos séculos antes tinha sido anunciada por Aristóteles, e que tinha como conclusão que os bárbaros eram naturalmente escravos. Então, só restava mostrar que os índios eram bárbaros. Com isso, pretendia-se justificar ideologicamente a escravidão dos índios. (GUTIERRÉZ, 1990, p. 09)
A Teoria da Escravidão Natural, assim como o conjunto da obra aristotélica, ficara esquecida durante séculos. Nem mesmo com a redescoberta da Política, no séc. XIII, ela assumiu alguma importância, só o fazendo quando da conquista do Novo Mundo, surgindo como a principal justificativa para o domínio espanhol sobre os povos e territórios recém descobertos.
Sepúlveda era um profundo conhecedor da filosofia aristotélica, que estudou por mais de 20 anos, recebendo, inclusive, do Papa Clemente VII o encargo de Tradutor Oficial de Aristóteles. Conforme ressalta Hanke (1958), ele estava completamente embriagado da filosofia de Aristóteles quando começou a escrever sobre os índios americanos, encontrando neles a descrição feita pelo estagirita do "homem escravo por natureza".
Foi na polêmica obra Demócrates Segundo ou das Justas causas da guerra contra os índios que Sepúlveda elaborou os argumentos necessários para demonstrar o que defendeu perante a Junta dos Quatorze.
Naquele livro, escrito em forma de diálogo entre os personagens Leopoldo, alemão luterano que considera a guerra injusta, e o filósofo Demócrates, que representa as idéias de Sepúlveda, Demócrates tenta convencer seu interlocutor de que a guerra movida pelos espanhóis contra os índios era lícita e permitida aos cristãos. Lança mão da teoria agostiniana sobre a guerra justa, segundo a qual é lícito fazer a guerra como meio de buscar a paz. Demócrates explica, dando voz a Sepúlveda (1941), que a guerra será permitida aos cristãos quando: for justa, isto é, for o último recurso para alcançar a paz. Deve, ainda, apresentar as seguintes características: uma causa justa; ser declarada pela autoridade legítima; haver um bom propósito em quem a declara; e ser desenvolvida com retidão.
Ao final da explicação Leopoldo é convencido de que existem guerras justas, mas perquire Demócrates sobre a guerra movida pelos espanhóis contra os índios, que, segundo ele, eram vítimas inocentes, que nenhum mal fizeram aos espanhóis, não havendo como identificar, neste caso, um justo motivo. Democrátes acrescenta, então, à teoria da guerra justa mais quatro circunstâncias que tornam a guerra permitida ao povo cristão, que são:
a) os índios se encontram em um estado tal de barbárie que se torna imperioso dominá-los pela força para libertá-los de tal estado;
b) a guerra aos índios se justifica como castigo pelos crimes que eles cometem contra a lei natural com sua idolatria e sacrifício de vítimas humanas aos deuses;
c) a guerra movida em desfavor dos índios se justifica como meio de defender as vítimas inocentes dos sacrifícios humanos e evitar outros atos contra a natureza;
d) é justa a guerra contra os índios para preparar o caminho para a propagação da religião cristã e para facilitar o trabalho dos evangelizadores.
Estas quatro circunstâncias foram defendidas por Sepúlveda em Valladolid [01] como justos motivos para a guerra movida contra os índios.
Las Casas iniciou sua participação no debate com uma longa leitura de sua obra Apologia, que durou quatro dias, na qual refutava os argumentos de Sepúlveda. Após, para facilitar os trabalhos, a Junta elaborou um resumo dos textos lidos, entregando uma cópia para cada debatedor. A partir desse resumo, Sepúlveda elaborou doze objeções a Las Casas e este doze réplicas a Sepúlveda.
Infelizmente,
Ao fim do debate, lamentavelmente, os assistentes optaram pela neutralidade. Não tomaram uma posição definitiva sobre a discussão, deixando apenas a promessa de responder por escrito, o que não foi feito. Diante do silêncio, Las Casas e Sepúlveda se declararam ambos vencedores. (GOMES, 2006, p. 35)
2.3 Síntese dos argumentos
2.3.1 Primeiro argumento de Sepúlveda: Os índios se encontram em um estado tal de barbárie que se torna imperioso dominá-los pela força para libertá-los de tal estado.
Este foi o argumento de maior relevo apresentado no debate, pois significava a aplicação da teoria aristotélica da escravidão natural aos índios. Ressalte-se que tal teoria não foi colocada em dúvida pelos teólogos e filósofos da época, devido à autoridade de Aristóteles. Dessa forma, bastava a Sepúlveda comprovar que os índios eram o que o Estagirita chamava de homens inferiores, que nasceram para obedecer, para comprovar que eram escravos por natureza. Por conseguinte, deveriam submeter-se ao povo espanhol, sendo justo declarar-lhes guerra para que aceitassem tal domínio.
Logo no início do debate, Sepúlveda, sempre alicerçado em Aristóteles, explica a diferença entre escravidão legal e natural, com o intuito de esclarecer que a violência não era o fundamento da escravização dos índios, mas sim uma condição nata deste povo. A legal é aquela decorrente de dívidas, quando alguém se vende em troca de um preço, podendo, também, decorrer do direito de guerra, isto é, aquele que sai perdedor em uma guerra, torna-se servo do vencedor. Nestes casos, o escravo perde sua liberdade e bens para o senhor.
Já a escravidão natural tem um fundamento muito mais complexo [02].
Esclarece Sepúlveda, através da leitura do resumo da obra Demócrates Segundo, que existem pessoas que desde o nascimento são destinadas a obedecer e outras a comandar e que "os filósofos chamam de escravidão à torpeza de entendimento e aos costumes inumanos e bárbaros." (Sepúlveda, 1941, p.81, tradução nossa). Prossegue descrevendo outras características identificadas por Aristóteles como peculiares aos homens que são escravos por natureza, quais sejam: os seres naturalmente escravos são aqueles que são objeto de propriedade de um senhor e instrumento de produção; são, também, indivíduos que se "diferem dos demais como a alma difere do corpo e o ser humano do animal, ou seja, é escravo o indivíduo que é inferior aos outros homens da mesma forma que o corpo é inferior à alma, e o animal ao ser humano" (GOMES, 2006, p. 42). E, por fim, são naturalmente escravos os indivíduos que podem perceber, mas não possuir a razão.
Após expor a doutrina da escravidão natural, Sepúlveda inicia a descrição do nativo, utilizando o relato de exploradores que, como ele, viam o índio como um ser entre o homem e o animal. Ressalte-se que Sepúlveda nunca esteve na América para comprovar a verdade sobre o povo a que chamava de bárbaro. Baseado principalmente em Fernando Oviedo, diz que:
Pois ainda que alguns deles demonstrem certa habilidade para algumas obras de artifício, isso não é argumento de prudência humana, já que vemos as bestas, as aves e as aranhas fazer certas obras que nenhuma indústria humana pode imitar completamente. [...] Porque ter casa e algum modo racional de viver e algum tipo de comércio são coisas que a necessidade natural induz, e somente serve para provar que não são ursos ou macacos, e que não carecem totalmente de razão. (SEPÚLVEDA, 1941, p. 109, tradução nossa).
Prossegue lendo outros relatos sobre a inferioridade do índio, seus costumes rudes e torpeza de entendimento. Após, ressalta a superioridade do povo espanhol, suas virtudes humanas, cristãs e militares para então concluir que diante essa situação,
[...] nada de melhor pode acontecer ao índio do que se submeter aos espanhóis, pois dessa forma podem sair do estado de barbárie em que se encontram, tornando-se seres mais civilizados. Caso se recusem a aceitar o domínio espanhol, podem ser forçados pelas armas a fazê-lo, e esta guerra será justa por lei da natureza, que manda que o ser inferior se submeta àquele que lhe for superior. (GOMES, 2006, p.62)
2.3.1.2 Resposta de Las Casas ao primeiro argumento: não se pode aplicar a doutrina da escravidão natural aos índios sem antes definir o conceito de barbárie e as diferentes classes de bárbaros.
Las Casas faz um profundo estudo sobre a barbárie, caracterizando os diferentes tipos de bárbaros, para verificar qual deles correspondia à descrição de Aristóteles do bárbaro escravo por natureza e, também, se os índios pertenciam a tal classe.
Tem-se quatro categorias de bárbaros:
a) Bárbaros em sentido impróprio: todo indivíduo cruel, feroz e violento e avesso à razão humana por impulso, ira ou pela natureza. Para Las Casas, Aristóteles se refere a esse tipo de bárbaro quando descreve o escravo por natureza. Contudo, tais características, ressalta o debatedor, não podem ser atribuídas a um povo inteiro, mas apenas a indivíduos, de qualquer povo, inclusive entre os espanhóis.
b) Bárbaros em sentido acidental: estão nesta classe aqueles que não podem expressar o que pensam por não possuírem uma língua própria. Também são acidentalmente bárbaros os que não compreendem a língua do outro com quem fala. Não se pode admitir que estes sejam os bárbaros a que se refere o Estagirita, pois seria forçoso concluir que todos os povos são bárbaros em relação a algum outro povo cuja língua lhe é desconhecida.
c) Bárbaros propriamente ditos: de acordo com Las Casas, a esta classe pertencem os homens de péssimo caráter, cruéis, ferozes, alheios à razão e que não possuem um governo de acordo com a lei e o direito, nem uma organização política. Esta última característica os diferencia dos homens classificadas como bárbaros em sentido impróprio, que, apesar de viverem em uma sociedade política, não se submetem a suas leis. Las Casas diz que Aristóteles se refere aos bárbaros propriamente ditos quando defende que existem homens que desde o nascimento são escravos.
Entretanto, Las Casas nega que os índios se enquadrem nessa classificação, alegando que é raríssimo encontrar bárbaros dessa categoria, pois, conforme o próprio Aristóteles, a natureza sempre produz a mais perfeita obra, sendo improvável a existência de um povo inteiro com as características atribuídas aos bárbaros em sentido estrito. Ademais,
Como Deus criou o ser humano e o dotou de uma natureza racional que o torna a mais perfeita de suas criaturas, é impossível que a providência divina permita encontrar nessa mesma criatura racional esse pecado contra a natureza que é a falta de razão, salvo raríssimas exceções. (GOMES, 2006, p. 71)
Las Casas conclui afirmando que o argumento apresentado por Sepúlveda não pode ser aceito, pois significaria uma grande calúnia à perfeição da obra divina e à perfeição do universo.
O dominicano acrescenta ao seu argumento que mesmo que os índios fossem os bárbaros descritos por Aristóteles, não seria justo declarar-lhes guerra para obrigá-los a aceitar costumes mais civilizados. Las Casas defende, veementemente, e por toda a sua vida, que os bárbaros deveriam ser tratados como irmãos, pois eram, como os espanhóis, filhos de Deus. Logo, deveriam ser mansa e pacificamente levados a participar da vida cristã, nunca obrigados pela força.
Para concluir sua refutação, Las Casas cita vários exemplos do bom caráter e da organização política e social dos índios, observados pessoalmente por ele durante as décadas em que viveu entre os povos americanos, afastando a tese da inferioridade cultural dos indígenas.
d)Bárbaros que não conhecem a mensagem cristã: para Las Casas, os homens que não conhecem a mensagem cristã podem ser chamados de bárbaros. Contudo, estes não podem ser os bárbaros a que Aristóteles se refere, pois o Cristianismo lhe é muito posterior.
Las Casas chega à conclusão de que apenas os indivíduos da terceira classe - bárbaros propriamente ditos -, podem ser chamados de bárbaros e que o índio não pertence a tal categoria. Nas demais classes estão aqueles indivíduos que apenas circunstancialmente são bárbaros.
2.3.2 Segundo argumento de Sepúlveda: a guerra contra os índios é justa porque eles devem ser castigados pelos crimes que cometem contra a lei natural com sua idolatria e sacrifício de vítimas humanas aos deuses.
Mais uma vez Sepúlveda recorre ao argumento de inferioridade cultural da civilização indígena para justificar a guerra de conquista. Afirma que a guerra contra os índios é justa porque a Igreja, através de seus reis e príncipes cristãos, é obrigada a combater os pecados contra a lei natural, principalmente a idolatria e a infidelidade de um povo, inclusive com uso da força.
2.3.2.1 Resposta de Las Casas ao segundo argumento: Nem a Igreja, nem os príncipes e reis cristãos têm jurisdição para castigar os índios por seus crimes.
Conforme Las Casas, um povo - e a Igreja - somente possui jurisdição sobre outro se este for seu súdito, situação que pode ocorrer por quatro diferentes causas: em razão do domicílio, isto é, aquele que habita terras cristãs é súdito da Igreja; por origem, pois filho de súdito, súdito é; por vassalagem, quando os indivíduos juram fidelidade ao senhor das terras; e, por fim, em razão de delito cometido, ou seja, o não súdito que cometer delito contra o príncipe, suas coisas, ou contra os súditos deste, tornar-se-á súdito desse príncipe. Como os índios não conhecem o cristianismo, nem habitam terras cristãs, nem cometeram crimes contra a Igreja ou seus representantes, não podem ser castigados pelos cristãos.
2.3.3.Terceiro argumento de Sepúlveda: é justa a guerra contra os índios para evitar o sacrifício de pessoas inocentes para oferecê-las aos deuses ou para o consumo de sua
carne.De acordo com Sepúlveda, é um dever de todo cristão defender o seu próximo e também impedir que crimes tão graves contra a lei natural sejam cometidos. Portanto, a guerra é justa como forma de castigar os índios por seus atos e também para salvar as inocentes vítimas.
2.3.3.1 Resposta de Las Casas ao terceiro argumento: os inocentes a que Sepúlveda se refere pertencem potencialmente à Igreja, que deve protegê-los, cuidando para que obtenham a salvação. Contudo, esta somente será possível se os inocentes antes não forem mortos sem conhecer a palavra de Cristo.
Para Las Casas a guerra é um mal maior do que o costume de sacrificar pessoas aos deuses ou o canibalismo, e por tal motivo deve ser evitada, pois faria muito mais vítimas. Ademais, esse costume é praticado apenas por uma minoria dos povos indígenas.
Las Casas apresenta um amplo estudo sobre o canibalismo e os sacrifícios humanos aos deuses, para demonstrar que há escusas suficientes para a prática desses atos pelos índios, notadamente o fato de que para eles essa conduta é a correta, pois desejada pelos deuses. Além disso, relembra que a Igreja não possui jurisdição sobre tais povos, portanto não pode puni-los.
2.3.4.Quarto argumento de Sepúlveda: a guerra contra os índios é necessária para facilitar a tarefa dos evangelizadores e a propagação da fé cristã.
De acordo com Sepúlveda, é dever de todo cristão mostrar aos infiéis a religião de Cristo, para que possam obter a salvação divina. Para tanto, defende o uso da força como método de evangelização.
2.3.4.1 Resposta de Las Casas ao quarto argumento: utilizar a força como método de evangelização é ato contrário à doutrina evangélica e à prática da Igreja.
Las Casas condenava todo e qualquer uso da força para obrigar os infiéis a crer em Cristo. Defendeu em sua obra Único modo de atrair todos os povos à verdadeira religião que o único método de evangelização ensinado por Cristo para todo o mundo em todos os tempos foi: "com razões persuadir o entendimento e com suavidade atrair e exortar a vontade" (CASAS, 2005, p. 59)
2.4 A decisão
Os juízes de Valladolid infelizmente suspenderam o debate sem uma decisão definitiva acerca da situação indígena, sob o argumento de que era necessário realizar novas investigações sobre a questão. Prometeram, no entanto, apresentar uma resposta por escrito, o que nunca foi cumprido. Diante do silêncio, Las Casas e Sepúlveda se declararam vencedores.
A favor da vitória de Las Casas podemos citar o fato de que a Coroa espanhola adotou a doutrina da persuasão racional e pacífica dos índios como método de evangelização e aprovou a Lei Básica de 1573, que incorporou importantes idéias do dominicano, como a proibição da escravidão e do uso da violência contra os aborígines.
Contudo, não se pode deixar de observar que alguns argumentos de Sepúlveda também foram aceitos pela Coroa. No próprio texto da Lei de 1573 percebe-se que a colonização continuava a ser vista como algo benéfico aos índios e como obrigação dos espanhóis e da Igreja para ensinar-lhes costumes mais civilizados e a religião Cristã. Ademais, abria exceções à proibição do uso da força contra os índios: caso esses povos opusessem resistência à colonização; e na hipótese de esgotamento das tentativas de pregação pacífica do Evangelho, seria permitido o uso da força.