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União estável de idoso(a) e o regime de separação obrigatória de bens: possibilidades e incongruências

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Agenda 29/12/2010 às 10:15

Defende-se a permanência do regime de separação legal de bens tanto no casamento quanto na união estável de idoso, desde que se rediscuta seu enunciado e minimize suas incongruências.

RESUMO

Esta pesquisa discute o regime da separação legal de bens na união estável de idoso (a), abordando possibilidades e incongruências sob duas perspectivas doutrinárias a respeito da questão – contrária e favorável – e tem como ponto de referência a interpretação e aplicação da norma no casamento de idoso (a). A partir da realidade demográfica que se descortina na sociedade hodierna, com incremento do segmento idoso e elevação de relacionamentos afetivos constituídos nessa faixa etária, busca-se ampliar o debate sob o enfoque da psicologia e gerontologia, a fim de identificar reflexos jurídicos, ou seja, a regra de regime de bens na união estável. Malgrado este estudo não seja conclusivo, entende-se pela permanência do regime de separação legal de bens tanto no casamento quanto na união estável de idoso (a), desde que se rediscuta seu enunciado e minimize suas incongruências.

Palavras-chave: família, união estável, casamento, regime de separação legal de bens, idoso.


INTRODUÇÃO

O instituto da união estável tem sido objeto de diversas discussões pela doutrina quando comparado com o casamento, ora apresentando menos direitos ou até mesmo mais que este. Por isso mesmo, o instituto se mostra controvertido e exige a todo o momento ampliação de debates a fim de se minimizar as contradições verificadas nos casos concretos não abrangidos pelas hipóteses legais, bem como a tentativa de evitar discriminações que são condenadas pela própria Constituição Federal, que contemplou entre as modalidades de entidade familiar a união estável.

Nesta pesquisa, a discussão gravita em torno do contido no artigo 1.641, inciso II, CC, que estabelece como obrigatório o regime da separação de bens no casamento constituído por pessoa sexagenária, só que problematizando a concepção e aplicação do dispositivo no âmbito da união estável de idoso (a), de forma a pontuar as possibilidades e incongruências a partir da doutrina e de casos específicos identificados na jurisprudência. Neste caso, é utilizada a metodologia da dogmática instrumental conjugada com a sócio-jurídica, em que se debruça no enunciado legal – artigo em comento – a partir de perspectivas doutrinárias contra e a favor, observando-se julgados recentes de tribunais nas duas hipóteses e a situação social do idoso.

O tema se mostra instigante e relevante no atual contexto, onde se verifica um crescimento significativo do segmento idoso no Brasil decorrente, em certa medida, de maior expectativa de vida. Em função dessa nova configuração demográfica, tem sido cada vez mais freqüente o estabelecimento de mais de um relacionamento afetivo, quer na modalidade de casamento, quer na de união estável, principalmente por parte da população situada na fase da vida denominada de velhice.

Dessa forma, no capítulo primeiro são abordados pontos cruciais para melhor entendimento desse fenômeno demográfico, configurado pela elevação da população acima dos 60 anos, tais como as diferenças conceituais e principais características entre o processo de envelhecimento, a velhice e o idoso em si. Além disso, busca-se diagnosticar em linhas gerais a situação e condição da pessoa idosa na sociedade hodierna, bem como é apresentada uma breve análise dos impactos do aumento da longevidade no Direito de Família. Nessa primeira parte, dada a natureza do tema, recorreu-se a teóricos da Psicologia e Gerontologia, de modo a traçar os seus contornos com maior amplitude e clareza.

No capítulo segundo, são apresentados o conceito, as características e princípios da família. Em seguida, são elencadas as principais semelhanças e diferenças entre as entidades familiares do concubinato, união estável e casamento. Ainda nesse capítulo, são discutidos os regimes de bens vigentes nas sociedades conjugais, dando-se maior foco para o regime da separação obrigatória de bens, que é o ponto de partida na problematização desta pesquisa.

No capítulo terceiro, realiza-se análise a partir de duas vertentes doutrinárias predominantes na interpretação e aplicação do art. 1.641, II, CC, inclusive com apresentação de julgados recentes, sendo uma contrária ao dispositivo por entendê-lo inconstitucional – por ferir a dignidade, a autonomia e a liberdade da pessoa – e outra favorável, por considerá-lo um mecanismo de proteção ao idoso e de seus familiares de sangue. O debate proposto consiste em elucidar melhor as próprias divergências que eclodem sobre a existência e aplicabilidade do referido dispositivo no âmbito da união estável e do próprio casamento de idosos e respectivos fundamentos jurídicos.

Finalmente, no capítulo quarto são discutidas as possibilidades e as incongruências da aplicação e interpretação do art. 1.641, II, CC, a partir das ponderações defendidas pelas duas vertentes doutrinárias – contrária e favorável ao dispositivo – dando-se ênfase para os pontos plausíveis, factíveis, críticos, os aspectos controvertidos, as limitações contidas no enunciado do dispositivo e as fragilidades que envolvem a temática.


1A PESSOA IDOSA

1.1Envelhecimento, velhice e idoso: definições e características

Considerando que o presente trabalho tem como escopo discutir o regime de bens na união estável, em cuja formação conta com pelo menos uma pessoa idosa, é necessário abordar, antes mesmo das análises jurídicas sobre o tema, as diferenças conceituais entre envelhecimento, velhice, idoso ou velho, embora sem o propósito de esgotar as várias nuanças que essas definições envolvem. Da mesma forma, cabe contextualizar a situação e condições da pessoa idosa na sociedade hodierna, especificamente, no Brasil, de modo a se buscar identificar na concretude o ser existencial de quem se fala.

Assim, o envelhecimento é caracterizado pelo processo ou transformação do indivíduo nas dimensões biológica, social, psicológica e cultural durante sua existência. No âmbito da psicologia, a discussão atual não reconhece oposição entre o processo de envelhecimento e desenvolvimento, descartando a visão excludente de referidos processos, conforme se verifica na afirmação abaixo de Neri:

Até os anos 70, a psicologia e a gerontologia consideravam o desenvolvimento e o envelhecimento processos opostos e trajetórias inconciliáveis. Hoje, um conceito alternativo amplamente aceito na psicologia da vida adulta e da velhice é que tanto o desenvolvimento quanto o envelhecimento são processos adaptativos. Contrariando a concepção clássica, considera-se que ambos estão presentes ao longo de todo o curso de vida e comportam uma tensão constante entre ganhos e perdas. [01]

Concepção semelhante pode ser encontrada em Pérola Melissa V. Braga, segundo a qual o envelhecimento não consiste somente num processo de definhamento do homem, mas num contínuo devir, que pode ser designada como aperfeiçoamento, senão vejamos:

Não podemos pensar que o envelhecimento é apenas um processo degenerativo do organismo humano. Ao contrário, devemos acreditar que é um processo contínuo de transformação do ser humano, que pode ser caracterizado também pelo aprimoramento [...] Falar de envelhecimento é falar da vida, do natural processo de viver, iniciado com o nascer biológico, a partir do qual nos tornamos todos envelhecentes. Esse é o curso natural da existência humana [...]. [02]

Em que pese à relação entre os processos de desenvolvimento e envelhecimento, conforme discutido anteriormente, implicando ganhos e perdas, admite Neri mais adiante que este último atinge um limite inerente ao próprio organismo e à própria existência de cada indivíduo, in verbis:

O envelhecimento é o processo de mudanças universais pautado geneticamente para a espécie e para cada indivíduo, que se traduz em diminuição da plasticidade comportamental, em aumento da vulnerabilidade, em acumulação de perdas evolutivas e no aumento da probabilidade de morte. O ritmo, a duração e os efeitos desse processo comportam diferenças individuais e de grupos etários, dependentes de eventos de natureza genético-biológica, sócio-histórica e psicológica [...]. [03]

Segundo Elvira C. Abreu e Mello Wagner, o envelhecimento do ser humano pode ser analisado sob várias perspectivas, a saber: a idade cronológica, a biológica, a social e a psicológica. Dentro desse raciocínio, a idade biológica consiste na herança genética e nas influências do ambiente, estando relacionada às alterações de ordem fisiológicas, anatômicas, hormonais e bioquímicas do organismo. [04]

A idade social refere-se às normas, crenças, estereótipos e eventos sociais que sinalizam por meio do critério de idade a performance dos idosos. Segundo os referidos autores, as normas plasmam o que se denomina de relógio social, o qual indica como as pessoas em dada época histórica, sociedade e cultural devem ou não realizar, de acordo com a idade em que se encontram. Nesse sentido, pode-se citar, prosseguem os autores, a idade certa de ir para a escola, de escolher uma profissão, de ter filhos, de usar determinado vestuário etc. Em geral, as pessoas tendem a seguir esse "relógio social", mas existem "pioneiros" que saem desse padrão e adotam comportamentos e estilos de vida típicos de outra faixa etária, a exemplo de pessoas consideradas idosas que voltam a estudar, iniciar nova profissão etc. [05]

Para Anita Liberalesso Neri, que utiliza expressão equivalente para abordar a temática, o tempo social indica não apenas os papéis desempenhados pelos componentes de dada sociedade, mas, também, a expectativa que se tem a respeito dos comportamentos dos indivíduos, in verbis:

O conceito de tempo social refere-se primariamente aos comportamentos associados aos papéis etários que uma dada sociedade prescreve para seus membros. A idade social diz respeito à avaliação do grau de adequação de um indivíduo ao desempenho dos papéis e dos comportamentos esperados para as pessoas de sua idade, num dado momento da história de cada sociedade [...]. [06]

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A idade psicológica, que é muito ampla, de acordo com Elvira C. Abreu e Mello Wagner, contempla as alterações de comportamento causadas pelas transformações biológicas do envelhecimento e recebe influências das normas e expectativas sociais, bem como dos componentes de personalidade, motivo pelo qual ocorre de forma individualizada ou diferenciada. Dessa forma, as mudanças no transcorrer da existência se manifestam nos relacionamentos interpessoais, nas atitudes, sentimentos e no autoconceito que cada idoso tem de si próprio. [07]

Quanto à idade cronológica, conforme Mascaro, apesar de ser um indicador impreciso para delimitar o envelhecimento – haja vista que este consiste também num processo biológico, social e psicológico – a contagem dos aniversários da pessoa continua sendo o principal critério para situar as faixas etárias. Segundo a autora, firmada em Paulo Murad Saad, amiúde a sociedade entende como idosa a pessoa que se aposenta. Por outro lado, verifica-se que a saúde física e mental, bem como a dependência de outros para realização de suas necessidades ou afazeres cotidianos, seriam sinalizadores de que a pessoa está ingressando na fase de velhice. [08]

De acordo com a Organização das Nações Unidas (1985), que utiliza estudos populacionais e políticas sociais, é considerada idosa a pessoa com idade acima de 60 anos. Mascaro pondera que esse critério cronológico decorre do fato de que a partir dos 60 anos as transformações biológicas são mais drásticas, caracterizando a terceira fase da vida. Nesse instante também ocorre, normalmente, o desligamento do contexto laboral, ou seja, aposentadoria, até mesmo certa desvinculação com alguns papéis tradicionais da fase adulta, ocasionados pela emancipação dos filhos. [09]

A idade cronológica enquanto ponto demarcativo de uma etapa remete à definição de velhice, que é a situação ou condição de quem é considerado idoso ou velho, representando, portando, um ciclo ou estágio da existência humana e não significa nenhum tipo de patologia. Afora o aspecto biológico, a classificação de velhice decorre de aspectos sociais e culturais, como se pôde depreender das considerações até aqui apresentadas. É oportuno evocar a conceituação de Pérola Melissa V. Braga, in verbis:

No sentido literal, velhice significa condição ou estado de velho, mas infelizmente, é tida como um sinônimo de doença. É claro que o sistema do corpo humano tem um ciclo biológico natural, mas é errôneo associar diretamente o processo de envelhecimento à morte. [10]

Se o envelhecimento consiste no processo de envelhecer e a velhice é o estágio da existência do indivíduo, o idoso ou velho é a própria pessoa em que ficam patentes em dada cultura e sociedade tais indicativos. No direito é utilizado, essencialmente, o termo idoso para designar as pessoas com idade igual ou acima de 60 anos, conforme disposto no art. 1.641, II do Código Civil, e art. 1º do Estatuto do Idoso.

Destaque-se que o critério cronológico para situar pessoas em determinado ciclo de vida, no caso em tela, a velhice, acaba por eclipsar diferenças facilmente constatadas no segmento de pessoas consideradas idosas, haja vista que o processo de envelhecimento ocorre em função de diversas variáveis, tais como estilo e qualidade de vida, condição sócio-econômica, cultura etc. Para Elida Séguin não há um segmento de idosos, mas pluralidade de pessoas idosas em condições heterogêneas, conforme se constata a seguir:

Os idosos compõem uma pluralidade que tem como semelhança apenas estarem na mesma faixa etária. Constituem um grupo diversificado onde alguns levam vidas ativas e sadias, enquanto outros optam pela baixa qualidade, em especial os psicologicamente velhos. Cada pessoa envelhece à sua maneira, dependendo de grande variedade de aspectos como sexo, origem étnica e cultural e o fato de viverem em países industrializados ou em desenvolvimento, em centros urbanos ou áreas rurais. Além das idiossincrasias pessoais, o clima, a localização geográfica, o tamanho da família, as aptidões para a vida e a experiência são vetores que tornam as pessoas cada vez menos iguais à medida que avançam em anos. Fatores ligados ao estilo de vida, como fumar, consumir álcool em excesso, falta de exercícios, nutrição inadequada ou obesidade, agravam doenças, deficiências e aumenta a pluralidade [...]. [11]

Sob o enfoque do art. 1.641, II, CC, o aspecto que mais aproxima as pessoas idosas é o fato de possuírem idade igual ou superior a 60 anos, como se verificou acima, não estando segmentados aí os indivíduos situados nas faixas etárias de 60, 70, 80, 90 ou acima de 100 anos, os quais são diferentes por inúmeras razões da própria existência particular, como ponderou Séguin. A contradição de utilizar o critério cronológico e a necessidade de analisar o processo de envelhecimento de forma particularizada fica evidente em Pérola Melissa, que afirma:

Cada existência humana é única, cada homem envelhece de uma maneira particular. Uns saudáveis, outros não. Não há velhice e sim velhices. O envelhecimento deve ser considerado um processo tipicamente individual, existencial e subjetivo, cujas conseqüências ocorrem de forma diversa em cada sujeito. Cada indivíduo tem um tempo próprio para se sentir velho. [12]

Firmando-se em Norberto Bobbio, Braga continua a discussão sobre a temática a partir de três perspectivas de velhice: cronológica, burocrática e psicológica ou subjetiva, in verbis:

A velhice cronológica é meramente formal. Estipula-se um patamar (uma idade) e todos que o alcançarem são considerados idosos, independentemente de suas características pessoais. A velhice burocrática corresponde àquela idade que gera direitos a benefícios, como a aposentadoria por idade ou passe livre em ônibus urbanos. A velhice psicológica, ou subjetiva, é a mais complexa já que não pressupõe parâmetros objetivos. Depende do tempo que cada indivíduo leva para sentir-se velho. [13]

Para Schirrmacher, baseando-se em análises estatísticas apresentadas por James Vaupel, ao discorrer sobre o momento da aposentadoria da pessoa verifica que o marco de se retirar do trabalho varia bastante, apresentando tendência de prolongamento na atividade laboral dos indivíduos. Dessa forma, continua o autor, definir o envelhecimento torna-se algo crucial, não sendo possível estabelecer uma definição do envelhecimento por lei ou de maneira normativa para todas as pessoas, "[...] Pois a novidade de nossa situação será que muitas pessoas velhas se sentirão muito mais jovens do que a idade que têm [...]". [14]

Por ora, cabe assinalar que o critério cronológico presente no ordenamento brasileiro para tratar das questões de idosos (as) apresenta limitações e incongruências, na medida em que para um segmento heterogêneo as previsões legais são homogêneas, e.g., o art. 1.641, II, do Código Civil, que é objeto de discussão deste trabalho. Mais uma vez cabe evocar Braga:

[...] O grande problema do critério cronológico (para situar uma pessoa idosa – acréscimo nosso) é de não considerar as diferenças pessoais e a larga faixa etária que está abrangida pelo conceito, principalmente, se levarmos em conta que, atualmente, são cada vez mais numerosas as pessoas centenárias. Pode haver enorme diferença no estado de saúde (física e mental), entre duas pessoas sexagenárias, uma delas pode ser doente e debilitada, enquanto a outra se encontra em pleno vigor, sendo perfeitamente lúcida. Certamente há enorme diferença entre um idoso (pelo critério da Lei 8.842/94 e do Estatuto do Idoso, acrescentamos) de 60 anos e um outro de 100 anos de idade, por isso se torna difícil a aceitação de um mesmo tratamento a ambos. [15]

Malgrado a limitação do parâmetro cronológico para abarcar um segmento que dentro de si apresenta diferenciações, inclusive no que tange às faixas etárias contidas no termo idoso segundo o conceito da própria lei, como se viu acima, persiste a dificuldade de se utilizar outro critério sob o enfoque jurídico que seja ao mesmo tempo generalizador e permita captar especificidades.

1.2A situação e condição da pessoa idosa na sociedade hodierna

De acordo com Schirrmacher, estribando-se em estudos estatísticos de Y. Zeng & L. George, a maioria da população num futuro próximo será composta por pessoas idosas em todas as partes do planeta, inclusive em 2.050 haverá na China a quantidade de idosos acima de 65 anos que atualmente vive em todo o mundo. Trata-se do fenômeno de envelhecimento global e irreversível, em que se visualizarão dois segmentos distintos na sociedade: dos poucos jovens e dos idosos. [16]

Para Schirrmacher o que subjaz a essa nova lógica demográfica é o aumento da expectativa de vida conjugada com a redução da natalidade, de modo que a dinâmica dos povos será marcada pela morte e não mais pelo nascimento. A situação é considerada crítica e nas palavras do renomado antropólogo Claude Levi-Strauss, citado pelo autor, "em comparação com a catástrofe demográfica, o colapso do comunismo é insignificante". Um dos problemas a serem enfrentados com o processo de envelhecimento da população, prossegue o autor, é o custo para atender às necessidades do grande número de pessoas consideradas idosas. Nesse ponto, cabe aqui evocar uma afirmação de Schirrmacher, que, embora revestida de certo exagero, não deixa de ter aderência ao referido fenômeno, in verbis:

[...] Cada vida chegará, assim, a um ponto em que não será mais definida a partir de nosso dia de nascimento, mas da data fictícia em que morreremos. O que vai interessar, então, serão só os custos que as massas em envelhecimento irão gerar. [17]

Dentro dessa discussão, Schirrmacher destaca a importância do tema expectativa de vida na sociedade hodierna, não só pelo fato de indicar o tempo de probabilidade de vida das pessoas como também por sinalizar que a maioria dos seres humanos que estão vivos atualmente terá uma longevidade significativamente superior a quem viveu antes. Nesse sentido, prossegue o autor, a tendência é de se expandir, cada vez mais, a barreira dos 80, 90 e 100 anos de idade e, nas palavras do autor, "não sabemos mais se há um limite de tempo para a vida humana". [18]

Ainda, segundo Schirrmacher, o conhecimento a respeito de juventude é amplo, mesmo porque todos nós já passamos por essa fase, mas poucos conheceram a velhice com as características que são manifestadas atualmente e nas suas palavras "A velhice é na história das culturas e da evolução de nossa sociedade algo muito novo: sempre foi até hoje muito pouco explorada". [19] Com esse mesmo enfoque interpreta Tom Kirkwood, citado pelo autor, in verbis:

As pessoas idosas de hoje são a vanguarda de uma incrível revolução de nossa longevidade, elas estão anunciando uma transformação de toda a estrutura social e fazendo com que a vida e a morte apareçam sob uma nova luz. [20]

Para Mascaro, alguns aspectos têm exercido forte influência sobre o processo de envelhecimento da população, como o aumento da longevidade, o progresso social e científico, as transformações na estrutura familiar, a modernização dos costumes, os quais geraram mudanças significativas na sociedade e no comportamento das pessoas. Conforme a autora, à proporção que eleva a longevidade, mais etapas na vida poderão ser vivenciadas. [21]

Verifica-se que houve elevação da expectativa de vida dos brasileiros, passando de cerca de 50 anos em 1950 para 67 anos atualmente, sendo que esse patamar deve atingir a faixa dos 72 anos até 2020. Em função disso, o início da "idade da velhice" está se retardando, o que possibilita a realização de novos projetos por parte das pessoas consideradas idosas e o prolongamento de seu envolvimento nas atividades sociais, arremata Mascaro. [22]

De forma semelhante, Fernando Coruja Agustini entende que a conjugação das baixas taxas de fecundidade, o aumento da longevidade e a urbanização em grande velocidade provocaram mudanças significativas na composição etária da população brasileira, de modo que dobrou a quantidade de pessoas com mais de 65 anos entre 1940 e 2000 (dados do IBGE). Ressalta, ainda, Coruja, firmando-se em estudos estatísticos feitos por Ana Amélia Camarano (dados do IPEA), que se projeta para o ano de 2020 um incremento significativo de pessoas com mais de 65 anos de idade, que corresponderá a 15% do total da população. [23]

Segundo Mascaro, baseando-se em Elza Berquó, a população idosa atualmente é composta, em sua maioria, por mulheres e a tendência indica a permanência deste quadro no futuro. Há algumas explicações para esta situação, prossegue Mascaro, cabendo destacar: a redução da mortalidade materna, resultado das melhores condições de saúde e da queda da fecundidade; a mortalidade diferencial por sexo, com uma diferença entre sete e nove anos em favor das mulheres no que tange à expectativa de vida. [24]

Ainda nessa linha de raciocínio, conforme Mascaro, que se estriba em Renato P. Veras, outras hipóteses que explicam a predominância feminina na faixa etária dos idosos, seria a menor exposição das mulheres a riscos de acidentes de trabalho; o menor consumo de tabaco e álcool; a maior atenção e informação sobre os sintomas de doenças, bem como a maior constância na procura dos serviços de saúde. [25]

Com o aumento de expectativa de vida, já sinalizando um ponto que será abordado posteriormente, suspeita-se que as pessoas podem estabelecer mais de um relacionamento afetivo, moldar uma nova forma de vida, desenvolver novas atividades, a partir de determinada idade. Daí a importância de se aprofundar os estudos sobre o comportamento de idosos no Brasil, especialmente no que tange à constituição de relações afetivas, quer na forma de casamento ou união estável. De qualquer modo, Braga admite com muita admiração o crescimento demográfico do segmento idoso, in verbis:

De fato, a redução dos nascimentos e o aumento espantoso da expectativa de vida média, fizeram com que a idade média da população brasileira desse um grande salto, a ponto de se poder apontar, como fez Wladimir Martinez, que ‘o fato de as pessoas estarem vivendo mais é o dado demográfico e sociológico mais importante do final do século XX. [26]

No Brasil, a partir da análise de dados estatísticos mais recentes apresentados num quadro comparativo (IPEA), constatou-se que em 1940 havia 1,6 milhões de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, enquanto em 1970 o número subiu para 4,7 milhões. Já em 2000, constatou-se que a quantidade de idosos havia atingido 14,5 milhões, o que passou a representar 8,5% do total da população. Em projeções para o ano de 2040 estimam-se 55 milhões de pessoas idosas, que corresponderão, aproximadamente, a 26,8% da população total. [27]

Um fato curioso é que a população com idade igual ou acima de 80 anos está em elevação e tende a manter esse ritmo de crescimento nos próximos anos, de modo que entre 1970 e 2000 este segmento aumentou de 485,4 mil (0,5% do total da população) para 1,8 milhão, o que corresponde a 1,07% do total. Para o ano de 2040, projetam-se 13 milhões de pessoas com 80 anos ou mais, o que significará 6,3% da população total brasileira. [28]

Na mesma fonte de informações indicada logo acima, constata-se que há uma diferença entre homens e mulheres no ciclo de vida da velhice no que se ao estado civil, de forma que os dados do ano de 2000 mostram que 77,3% dos homens idosos eram casados contra 40,8% das mulheres na mesma situação. Segundo as estudiosas do assunto, Batista et. al., tal sinalização "sugere uma tendência mais forte a sucessivos casamentos para o caso dos homens". Também se conclui que há um índice mais elevado de mulheres solteiras, separadas, desquitadas e/ou divorciadas, em relação à situação dos homens. [29]

Nas análises estatísticas realizadas por Batista et. al., não fica claro quanto à amplitude ou significado jurídico da expressão "sucessivos casamentos" utilizada para designar que 77,3% dos homens idosos constituem mais de um relacionamento afetivo, ou seja, não se sabe quantos realmente se casam e quantos formam união estável.

De qualquer modo, num levantamento recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicado na Revista Veja, verifica-se a elevação do número de casamentos em que um dos cônjuges já ultrapassou a faixa etária de 60 anos, o que em percentual seria de 44% entre 2003 e 2008, enquanto o casamento da população brasileira fora desse segmento cresceu somente 28% no mesmo período. Na reportagem, as explicações para esse fenômeno seria a manutenção da renda das pessoas acima dos 60 anos, o que lhes dá independência financeira para arriscar novos relacionamentos, bem como o aumento da expectativa de vida aliada com uma melhor forma de envelhecimento, a qual pressupõe alimentação saudável, exercícios físicos, existência regrada sem fumo, álcool, etc. [30]

1.3Impactos do aumento da longevidade no Direito de Família

Com o aumento de expectativa de vida e a conseqüente elevação do índice de pessoas idosas que são independentes física e economicamente, com boa qualidade de vida e que iniciam novos projetos existenciais, certamente é possível que elas busquem estabelecer mais de um relacionamento afetivo, em caso de viuvez, separação judicial ou divórcio, quer na forma de casamento ou de união estável. Ocorre que a sociedade brasileira, em particular, parece que ainda não visualizou a dimensão que vem operando lenta e irreversivelmente na composição dos seus próprios membros, em que o segmento idoso vem se tornando representativo, o que causa impactos no trabalho, na política, na cultura, na economia e, especificamente, no direito. Nesse sentido, é oportuno evocar Braga, que afirma:

O grande problema é que não estava o Brasil preparado para as conseqüências desse súbito aumento nas expectativas de vida, que fez surgir uma geração de pessoas velhas, ainda aptas a trabalhar, em uma idade na qual, até então, normalmente se esperava que já estivessem mortas ou sem qualquer condição para o trabalho [...]. [31]

Dessa forma, no âmbito do direito, os arranjos familiares que contemplem pessoas idosas requerem discussão aprofundada sobre as possibilidades amparadas legalmente, quais sejam casamento e união estável, em especial esta última, que será objeto de discussão, a fim de que em eventual dissolução inter vivos da entidade familiar ou sua dissolução mortis causa haja um mínimo de equanimidade na partilha de bens. Logicamente, o novo ordenamento brasileiro se pauta essencialmente pela relação conjugal ou de companheirismo com base no princípio da afetividade ou personalismo (affectio maritalis) e não no patrimonialismo, como fora até então. No entanto, os arranjos familiares tendem a se tornar cada vez mais complexos e com desdobramentos na dimensão patrimonial, exigindo leitura jurídica sobre o tema com maior amplitude e criticidade, de forma a não se afastar quaisquer dimensões. Essas mudanças em curso da própria família são bem diagnosticadas por Myriam Moraes Lins de Barros quando afirma:

Muito se discute sobre a ‘crise’ da família, conseqüência da baixa taxa de fecundidade, do aumento da expectativa de vida e, conseqüentemente, da crescente proporção da população de mais de 60 anos, mas, também, do declínio da instituição do casamento e da espraiada aceitação social do divórcio. De fato, o que observamos não foi exatamente o enfraquecimento da instituição família, mas o surgimento de novos modelos familiares, derivados desses fenômenos sociais e, sobretudo, das transformações das relações de gênero [...]. [32]

Antes de se prosseguir na análise das implicações jurídicas do aumento da população idosa no Brasil, cabe assinalar que este vocábulo, como foi designado alhures, indica a pessoa humana que se encontra no ciclo existencial da velhice. No Direito, o termo idoso foi consagrado na Constituição Federal art. 230, caput e § 1º, cuja demarcação baseada no critério cronológico ficou evidenciada com a edição da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), que em seu art. 1º afirma: "É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos" [33].

Por outro lado, verifica-se aplicação de diferentes termos para designar a pessoa idosa, o que dificulta ainda mais um entendimento dos problemas desse segmento. Nesse sentido, Wladimir Novaes Martinez enumera vários nomes utilizados na sociedade brasileira, conforme abaixo:

Depois de certa hesitação e estabelecendo-se alguma confusão, consagra-se o vocábulo idoso em detrimento de velho. Mas são também usados meia-idade, idade provecta, idade avançada. Pouquíssimas vezes emprega-se decrépito, senil, macróbio, e, ainda, a senectude ou ancianidade. Algumas curiosidades estão presentes, como juvelhice, envelhecente, terceirista, mera tentativa de criar neologismo. [34]

Segundo Coruja, mais recentemente tem sido propagada a expressão "terceira idade" para representar as pessoas que se aposentam em faixa etária considerada jovem. Ainda para Coruja, firmando-se em Clarice Ehlers Peixoto, a expressão "terceira idade" desencadeia discriminação na medida em que tenta situar de um lado "jovens idosos", os quais desenvolvem atividades laborais e têm participação intensa na vida social, dos "velhos idosos", que se caracterizam pela incapacidade de desenvolver atividades físicas e estão excluídos das relações sociais e passam a ser consideradas como de quarta idade – pessoas com mais de 75 anos. [35]

De qualquer modo, no campo jurídico prevalece o critério cronológico para situar as pessoas consideradas idosas, o que acaba por abranger indivíduos em distintas faixas etárias (60, 70, 80, 90, 100) e em diferentes condições existenciais. Esta generalização da norma para lidar com as questões envolvendo um segmento heterogêneo certamente leva a incongruências, mas que não serão discutidas nesta pesquisa. Diante disso, doravante será utilizado termo idoso dentro da concepção delineada tanto na Constituição Federal, quanto no próprio Estatuto do Idoso, ou seja, para designar "as pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos".

Feito isso, fazendo coro com Séguin, entende-se que, apesar da existência de norma especial que trata de questões jurídicas envolvendo pessoas acima de 60 anos, na forma do Estatuto do Idoso, observa-se no Brasil que na prática, esse segmento nem sempre tem recebido a atenção na medida de sua importância no atual contexto, por exemplo, aprofundamento de debates jurídicos sobre problemas relacionados ao idoso. Sequer são propostas problematizações relevantes sob a perspectiva das pessoas que se encontram na fase de vida da velhice, o que torna oportuno evocar questões apresentadas por Séguin:

[...] Qual o tratamento jurídico que deve receber (o idoso): de proteção ou de restrição de direitos? Ela (a velhice) é determinada apenas pelo tempo ou entram outros componentes na sua definição? É atingida (a velhice) instantaneamente ao completar determinada idade, não importando as condições físicas (e psicológicas)? [...] Todos são considerados velhos tendo como parâmetro apenas o fator tempo? [...] [36]

Segundo a análise feita por Séguin, no ordenamento jurídico brasileiro a temática do idoso tem contemplado, historicamente, aspectos previdenciários ou regras do Código Civil com o propósito de proteger esse segmento, mas de fato, se reveste de uma restrição de direitos, in verbis:

No Brasil, a abordagem jurídica do velho tradicionalmente foi mais voltada para aspectos previdenciários ou dispositivos do Código Civil com o intuito de proteção, que na realidade traduzia uma restrição de direitos [...]. [37]

Numa reportagem recente veiculada no jornal Valor Econômico, foi abordado o crescimento de matrimônio entre as pessoas acima de 50 anos, a partir de Estatísticas do Registro Civil de 2008, divulgadas pelo IBGE. O enfoque dado na notícia era a preocupação das uniões de pessoas mais velhas, normalmente aposentadas, com as mulheres mais jovens, haja vista a pensão por morte dos esposos que estas tendem a receber bem mais cedo e que se estende por muitos anos. Em função desse fenômeno constatado, destaca a reportagem, alguns analistas identificam impactos representativos nas contas da Previdência Social (INSS), aumentando ainda mais o déficit. Os dados indicam também crescimento significativo na formação matrimonial entre os que estão na faixa entre 60 e 64 anos, bem como entre aqueles que estão acima dos 65 anos, cabendo citar:

Entre 2003 e 2008, o total de casamentos no Brasil aumentou 28,6%, ritmo superado de longe pela alta de 76% dos matrimônios de homens entre 50 e 54 anos e de 75,6% entre aqueles com 55 e 59 anos. As uniões envolvendo homens entre 60 e 64 anos, por sua vez, subiram 51,3%; e entre os com mais de 65 anos, 35%. Em termos relativos, os maiores aumentos ocorreram nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste [...]. [38]

O escopo da presente pesquisa não é exatamente analisar os impactos da constituição matrimonial de idosos com pessoas mais jovens na Previdência Social, mas a reportagem acima, com base em dados do IBGE, evidencia um fenômeno de relevância a ser discutido, qual seja, o aumento dos casamentos nesse segmento, que decorre de maior longevidade e melhor qualidade de vida das pessoas. Não foi abordada a situação de idosos que preferem constituir união estável, que de forma semelhante, será objeto essencial desta pesquisa. Também não ficou patente na referida reportagem se os matrimônios levantados no IBGE referem-se a novos arranjos familiares ou às primeiras relações afetivas formadas pelas pessoas idosas. Considerando outras análises estatísticas do IPEA (Tópico 1.2 abordado anteriormente) e as próprias faixas etárias desse segmento, infere-se que os referidos matrimônios já consistem em novas relações afetivas, que na realidade brasileira tem ocorrido tanto na modalidade de casamento quanto na de união estável.

Sobre o autor
Robson Gonçalves Dourado

Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Brasília; Pós-Graduado em Direito e Jurisdição pela Escola da Magistratura do Distrito Federal; Pós-Graduado em Direito e Prática Processual nos Tribunais pelo Uniceub; Bacharel em Direito pelo Uniceub-DF; MBA em Marketing pela FGV-DF; Licenciado em História pelo Uniceub-DF; Advogado; Colaborador na Defensoria Pública do DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOURADO, Robson Gonçalves. União estável de idoso(a) e o regime de separação obrigatória de bens: possibilidades e incongruências. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2737, 29 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18130. Acesso em: 26 dez. 2024.

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