2FAMÍLIA, ENTIDADES FAMILIARES E REGIMES DE BEM
2.1Família: conceito, características e princípios
A família brasileira passou por significativas mudanças de função, natureza, composição e, por conseguinte, de concepção, especialmente a partir do surgimento do Estado social durante o século XX. No caso da família patriarcal, perdurou desde a Colônia, passando pelo Império e boa parte do século XX, entrando em declínio com a Constituição de 1988. Dessa forma, segundo Paulo Lobo, os tipos de família atualmente observados estão firmados no princípio da afetividade, que implica união por laços de liberdade e responsabilidade, na colaboração e na comunhão de vida. As relações baseadas em affectio estão amparadas pelo Estado e são oponíveis contra o próprio Estado e à sociedade. [39]
De acordo com Paulo Lôbo, a família, no processo evolutivo, passou por diferentes funções, de acordo com o momento histórico, verificando-se perspectivas de cunho religioso, político, econômico ou procracional. De qualquer modo, prevalecia uma estrutura patriarcal calcada na prevalência do poder masculino sobre a mulher – poder marital e sobre os filhos – ou seja, o pátrio poder. Quanto à função religiosa e política, numa referência implícita aos estudos feitos por Fustel de Coulanges, o autor entende que atualmente já não se verifica os seus resquícios, haja vista que a rígida estrutura hierárquica foi substituída pela coordenação e comunhão de interesses de vida. [40]
Segundo Lôbo, a função econômica da família também já não apresenta aderência com a realidade – outrora requeria maior número de membros, especialmente filhos – visto que a família não é mais unidade produtiva nem garantia (sobrevivência) para a velhice, pois esta atribuição foi assumida pela previdência social. Nesse sentido, prossegue Lôbo, foi fator decisivo a progressiva independência econômica, social e jurídica feminina, bem como a redução da quantidade média de filhos das entidades familiares. [41]
De forma semelhante, conforme Lôbo, a função procracional, perdeu sentido na sociedade hodierna, mesmo porque muitos casais priorizam suas vidas profissionais em detrimento de filhos, ou mesmo em razão de infertilidade. De qualquer modo, o direito abrange esse tipo de união, destacando-se que um dos fundamentos da afetividade – princípio do atual modelo familiar – é a solidariedade consignada no art. 3º, inicio I, da Constituição Federal [42] e a procriação torna-se supérflua. [43]
Também de acordo com Lôbo, a Constituição de 1988 contemplou explicitamente três tipos de entidades familiares – matrimonializada, união estável e entidade monoparental – possibilitando, ainda, a interpretação extensiva, de forma a abranger outras entidades implícitas. Nesse sentido, o autor citando Caio Mário da Silva Pereira, apresenta algumas inovações de direito de família na Constituição:
a- proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições;
b- a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações;
c- os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses patrimonializantes;
d- reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de planejamento familiar, sem imposição estatal. [44]
Mas afinal, que é família? Segundo Paulo Nader, a despeito da complexidade da conceituação de família, torna-se necessário fazê-la, sob pena de dificultar a visualização do objeto de estudo, atentando-se para sua limitação espaço-temporal. Feita essa ressalva e não sendo também aqui o espaço para aprofundar esta questão, verifica-se em Nader o seguinte conceito, com qual compartilhamos:
[...] é uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra ou de um tronco comum [...]. [45]
Na concretude e nas próprias previsões legais do direito envolvendo questões familiares, reconhece Nader que a família se manifesta de forma multivariada, onde se verificam as formas constituídas pelo matrimônio, união estável, relação monoparental e relacionamentos afetivos não designados explicitamente na Constituição. Além disso, destaca Nader que a família é um fenômeno que antecede o Direito e se molda naturalmente e espontaneamente, conforme a cultura, daí a sua dinâmica e transformação ao longo do tempo. Logicamente, admite o autor, que há normas ou regras que regulam as relações afetivas constituídas. In verbis:
As relações familiares não são criadas pelo Direito de Família; este apenas dispõe sobre o fato natural, espontâneo, que é a formação da associação doméstica. Enquanto a família é um prius, o Direito que a disciplina é posterius [...] A constituição da família é de livre iniciativa dos indivíduos, mas os efeitos jurídicos são os previstos pelo ordenamento [...]. [46]
Seguindo linha de raciocínio similar, verifica-se em Semy Glanz detalhamento conceitual sobre a amplitude do referido termo, o que é oportuno para a presente discussão, a saber:
A família contemporânea pode ser conceituada como um conjunto, formado por um ou mais indivíduos, ligados por laços biológicos ou sociopsicológicos, em geral morando sob o mesmo teto, e mantendo ou não a mesma residência (família nuclear). Pode ser formada por duas pessoas, casadas ou em união livre, de sexo diverso ou não, com ou sem filho ou filhos; um dos pais com um ou mais filhos (família monoparental); uma só pessoa morando só, solteira, viúva, separada ou divorciada ou mesmo casada e com residência diversa daquela de seu cônjuge (família unipessoal); pessoas ligadas pela relação de parentesco ou afinidade [...]. [47]
Na época atual, a família caracteriza-se, segundo Paulo Lobo, pelo espaço de realização da afetividade humana, deslocando o foco da função econômica-política-religiosa-procracional para essa nova função. Com esse deslocamento, ocorre o fenômeno jurídico-social chamado de repersonalização das relações civis, que consiste numa maior valorização do interesse da pessoa humana do que de suas relações patrimoniais. Na discussão a respeito das influências do patrimonialismo ainda presente no Código Civil atual, não obstante os regramentos mais progressivos presentes na Constituição, o autor conceitua o termo repersonalização buscando destacar a maior amplitude ontológica do ser humano, que segundo ele, não tem relação com o retorno do individualismo liberal. [48] Cabe aqui citar o próprio autor:
O desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver a pessoa humana em toda a sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. A pessoa humana deve ser colocada como centro das destinações jurídicas, valorando-se o ser e não o ter, isto é, sendo fator de medida do patrimônio, que passa a ter função complementar [...] A restauração da primazia da pessoa, nas relações de família, na garantia da realização da afetividade, é a condição primeira de adequação do direito à realidade. [49]
Conforme Lobo, a família atual só é compreensível se considerada como espaço de realização pessoal afetiva, de forma que os interesses patrimoniais tenham um papel periférico. Na mesma linha de raciocínio, o autor assinala que a repersonalização das relações revitaliza as entidades familiares, nos mais diversos tipos ou arranjos, in verbis:
[...] A afetividade, assim, desponta, como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social. A afetividade é o triunfo da intimidade como valor, inclusive jurídico, da modernidade. [50]
É preciso antecipar algumas reflexões, cujos aprofundamentos estarão no tópico seguinte, quando se tratar do regime de bens: há, de fato, um dilema entre patrimonialismo (viés econômico) e o personalismo (afetividade, a pessoa humana) no que tange às relações de família? A prevalência de um dos aspectos em determinada situação e contexto não seria plausível e até mesmo oportuno (esperado) considerando a história de vida das pessoas envolvidas em dada entidade familiar? Entende-se que tanto o aspecto patrimonial quanto o afetivo sejam coexistentes e não mutuamente excludentes, bem como nenhum prepondera, a princípio, sobre o outro ou não há nenhum tipo de relação causal entre ambos. Nesse sentido, o próprio Lobo admite que a dimensão patrimonial seja inerente à relação familiar e nas suas palavras:
Evidentemente, as relações de família também têm natureza patrimonial; sempre terão. Todavia, quando passam a ser determinantes, desnaturam a função da família, como espaço de realização pessoal e afetiva de seus membros. [51]
Ora, sem querer adentrar em discussões complexas e infindáveis de interpretações do marxismo, porquanto não é escopo desta pesquisa, cabe parodiar aqui uma metáfora apresentada por Michael Löwy nas discussões sobre ideologias e Ciência Social, que coloca a seguinte questão: "o que acontece com uma pluma que flutua ao vento? Mais cedo ou mais tarde, a pluma termina por cair em algum lugar, porque existe a lei da gravidade". [52] Da mesma forma quando Lobo afirma alhures que a Constituição Federal inovou ao enfatizar "os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, em detrimento dos interesses patrimonializantes", na prática, tal assertiva não encontra ancoragem, pois cada indivíduo manifesta tais "interesses" em todas as dimensões existenciais (de classe social, de afetividade, de cunho patrimonial, de natureza sexual etc.), o que implica reconhecer que ninguém se relaciona estritamente por um motivo específico ou fica pairando por outras razões consideradas nobres ou de solidariedade, embora isso não seja totalmente descartado.
Em Paulo Nader, verifica-se também a leitura de uma realidade polissêmica na composição do elo familiar, que se manifesta por meio de interesses morais, afetivos e econômicos. Não haveria razão, então, para considerar uma dimensão menos significativa do que a outra, o que não afasta, no entanto, concretamente, a possibilidade de uma delas ser preponderante, e.g., a patrimonial, em determinada condição e situação específica e sem que isso descaracterize a definição de família nos moldes constitucionais. Assim, posiciona-se Nader:
Em sua estrutura e finalidade, a família é um grupo social sui generis, que encerra interesses morais, afetivos e econômicos. Antes de jurídica é uma instituição de conteúdo moral, sociológico e biológico, que centraliza interesses sociais da maior importância. O seu papel é relevante para a criação da prole, equilíbrio emocional de seus membros e para a formação da sociedade. [...] Além dos elos morais, a pequena sociedade visa a formar um patrimônio para a provisão das necessidades materiais de seus membros [...]. [53]
Ainda nessa perspectiva de análise, em Carlos Roberto Gonçalves, a formação de família gera conseqüências de três naturezas: a) pessoal; b) social; c) patrimonial. Os aspectos pessoais restringem-se, em geral, conforme o autor, aos cônjuges e filhos, sendo eminentemente de natureza ética e social. As conseqüências jurídicas desses aspectos contemplam os direitos e deveres dos cônjuges - união exclusiva e fidelidade recíproca - e dos pais em relação aos filhos. Quanto aos efeitos sociais, Gonçalves destaca as relações sexuais do casal dentro do matrimônio, em que o ordenamento proíbe a prática com outrem e define o debitum conjugale. Os aspectos sociais com implicações jurídicas envolvem a interferência do Estado na definição de regras da relação conjugal, das responsabilidades dos cônjuges, dos deveres e direitos. Em relação aos efeitos patrimoniais, pondera Gonçalves que este aspecto se manifesta no regime de bens, nas doações mútuas, na obrigação de sustento que um tem para com o outro e da prole, no usufruto dos bens dos filhos no transcorrer do poder familiar, no direito sucessório etc. [54]
Feito isso, Paulo Lobo identifica princípios que regulam as relações de família, sendo uns de caráter fundamental e outros de ordem geral, a saber: a) fundamentais: dignidade da pessoa humana e solidariedade; b) gerais: igualdade, liberdade e afetividade, entre outros. No que se refere ao princípio da dignidade da pessoa humana, o autor entende tratar-se de núcleo existencial inerente a todas as pessoas, o qual se impõe como um dever geral de respeito, proteção e intocabilidade. O autor evoca Kant, que tem a seguinte visão:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade. [55]
Antes de pontuar os princípios fundamentais identificados por Lobo, convém mencionar que para Washington de Barros Monteiro, no direito de família, há certamente um caráter pessoal inerente ao grupo familiar, de cunho moral. Por outro lado, prossegue Monteiro, firmando-se em Savigny, indiretamente há relações de perspectiva econômica, que trata dos bens da própria família. [56]
Segundo Lobo, firmando-se em Ingo Wolfgang Sarlet, o princípio da dignidade da pessoa humana é de caráter intersubjetivo e relacional, o que implica um dever de respeito mútuo dentro da comunidade. Nesse contexto, a família se mostra como espaço para realização de uma existência digna e de vida em comunhão com a alteridade. [57]
Já o princípio da solidariedade decorre, conforme Lobo, da superação do individualismo jurídico – este consistia no predomínio dos interesses particulares. Na verdade, como forma de minimizar a supremacia do individualismo, no processo histórico foram delineados os direitos sociais, os quais contemplam o direito de família e os direitos econômicos. Na sociedade contemporânea, o autor destaca como a solidariedade possibilita um equilíbrio entre privado e público, que pode ser depreendida de sua afirmação a seguir transcrita:
[...] No mundo contemporâneo, busca-se o equilíbrio entre os espaços privados e públicos e a interação necessária entre os sujeitos, despontando a solidariedade como elemento conformador dos direitos subjetivos. [58]
Com a introdução do princípio da igualdade pela Constituição de 1988, na concepção de Lobo, trouxe mudanças significativas no direito de família, na medida em que aboliu a questão da legitimidade e as discriminações daí decorrentes, a exemplo de filho legítimo e ilegítimo, família matrimonializada e demais uniões, direitos diferenciados entre os cônjuges. O princípio da igualdade não anula as diferenças de ordem natural ou cultural que há entre pessoas e entidades familiares, de modo que, prossegue o autor, homem e mulher são diferentes; a família matrimonial, a união estável, a família monoparental e as demais entidades familiares apresentam suas peculiaridades. [59]
Quanto ao princípio da liberdade na perspectiva do direito de família, segundo Lobo, está relacionado à faculdade de escolha ou autonomia de constituição, realização e extinção de entidade familiar, isento de quaisquer intervenções ou restrições provenientes de parentes, da sociedade ou do legislador. Naturalmente o exercício de tal liberdade ocorre observando regras presentes no ordenamento jurídico, especificamente no Direito de Família. Nesse sentido, o autor apresenta as seguintes idéias:
Na Constituição brasileira e nas leis atuais o princípio da liberdade na família apresenta duas vertentes essenciais: liberdade da entidade familiar, diante do Estado e da sociedade, e liberdade de cada membro diante dos outros membros e da própria entidade familiar. A liberdade se realiza na constituição, manutenção e extinção da entidade familiar [...] O princípio da liberdade diz respeito não apenas à criação, manutenção ou extinção dos arranjos familiares, mas à sua permanente constituição e reinvenção [...]. [60]
Quanto ao aspecto da afetividade, inicialmente, cabe destacar que desde muito tempo Coulanges ao analisar a etiologia da família a partir do direito grego e romano, constatou que o afeto natural não explicava a união entre um homem e uma mulher, mas a religião seria seu ambiente catalisador, in verbis:
O esteio da família não o encontramos tampouco no afeto natural. O direito grego como o direito romano não tinham em conta este sentimento. Este podia realmente existir no íntimo dos corações, mas para o direito não contava, nada era. [...] Sem dúvida, não foi a religião que criou a família, mas seguramente foi a religião que lhe deu as suas regras, daí resultando receber a família antiga constituição muito diferente da que teria tido se os sentimentos naturais dos homens tivessem sido seus únicos causadores [...]. [61]
Em relação ao princípio da afetividade, Lobo entende tratar-se do predomínio das relações socioafetivas e na comunhão de vida, em detrimento dos aspectos biológicos e patrimoniais. Quanto a esse suposto dilema, já se apresentou anteriormente ponderações contra tal visão, que se mostra, na prática, de difícil constatação. Nas palavras do autor:
[...] O princípio jurídico da afetividade faz despontar a igualdade entre irmãos biológicos e adotivos e o respeito a seus direitos fundamentais, além do forte sentimento de solidariedade recíproca, que não pode ser perturbada pelo prevalecimento de interesses patrimoniais [...]. [62]
Destaca, ainda, Lobo, que o princípio de afetividade não se refere ao afeto, já que este consiste num estado de alma ou animus, em que os sujeitos lidam com categorias como amor, ódio, afeição, desafeição, sentimento de aproximação ou repulsa etc. No caso da afetividade, ocorre uma imposição de direitos e deveres recíprocos nas relações familiares e nas suas palavras:
[...] Por isso, sem qualquer contradição, podemos referir a dever jurídico de afetividade oponível a pais e filhos e aos parentes entre si, em caráter permanente, independentemente dos sentimentos que nutram entre si, e aos cônjuges e companheiros enquanto perdurar a convivência [...]. [63]
No mundo hodierno, que interesse (s) ou elo (s) subjaz (em) à constituição de um casamento ou união estável? Em princípio, poderíamos afirmar que seria a affectio maritalis, mas não haveria também interesse patrimonial? Nesta última hipótese, quando apenas o idoso se fixa a partir de affectio e a outra pessoa com base em fins econômicos, como o direito poderia contribuir para minimizar eventuais conflitos por conta de dissolução inter vivos e mortis causa (da união estável de idoso), resguardando o patrimônio do idoso? O regime de separação obrigatória de bens seria um mecanismo necessário ou criaria obstáculo para o idoso constituir união estável?
2.2Entidades familiares: concubinato, união estável e casamento
Com o advento da Constituição de 1988, art. 226, as mudanças das relações familiares que já vinham em curso passaram a se sedimentar, cabendo registro a menção constitucional do fim da discriminação das entidades familiares não matrimonializadas, as quais passaram a receber proteção semelhante às definidas pelo casamento, a igualdade de direitos e deveres entre homem e mulher, na sociedade conjugal e na união estável, a igualdade entre filhos de qualquer origem. Destaque-se, novamente, que a Constituição passou a dar proteção por parte do Estado não apenas à família matrimonializada, mas também à união estável, à entidade monoparental, bem como a outras entidades implícitas, mediante uma exegese extensiva e sistemática. [64]
Nader, na mesma perspectiva de raciocínio, entende que até a vigência do Código Civil de 1916, as relações afetivas extramatrimonialmente eram consideradas concubinato, as quais ficavam praticamente sem proteção legal. Algumas medidas no curso da história do Direito de Família no Brasil foram adotadas para reduzir essa marginalização nesse tipo de relação afetiva, a exemplo da Súmula 380 do STF, editada em abril de 1964, a qual buscou resguardar direitos patrimoniais dos até então concubinos, conforme a seguir: [65]
Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum.
Coltro, ao analisar a família enquanto fenômeno sócio-jurídico faz certa regressão no tempo para apresentar a amplitude dessa instituição, especialmente pontuando diversos casos de concubinato (família de fato) verificados na história humana desde a antiguidade. Sua conclusão sobre o conceito de família é objetivo, mas enfático, senão vejamos:
A família surgiu antes do casamento, este último uma criação humana; aquela, como dito, um fato natural [...]. [66]
Segundo José Ferreira Lamartine Correa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, citados por Coltro, a relação afetiva não se circunscreve ao matrimônio, ao contrário, impõe-se enquanto realidade mais abrangente e não está condicionada necessariamente a um vínculo matrimonial, in verbis:
[...] a relação de fato entra igualmente no âmbito do juridicamente relevante. A rigor não é essencial o nexo família-matrimônio: a família não se funda necessariamente no casamento. Isto significa, portanto, que casamento e família são realidades diversas. [67]
Segundo Coltro, a Constituição de 1988 veio admitir a mudança verificada na sociedade e na própria jurisprudência, a qual já vinha ampliando o escopo de relação afetiva nos seus julgados, inclusive reconhecendo direitos a pessoas com relacionamento extramatrimonial como se casadas fossem. Assim, de acordo com Sílvio Rodrigues, citado pelo autor:
[...] o casamento perdeu, para o constituinte de 1988, aquela posição de primazia, que desfrutava anteriormente; hoje é a família, derivada ou não do matrimônio, vinda ou não da união estável entre um homem e uma mulher, ou mesmo a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, que está sob a proteção especial do Estado. [68]
Guimarães diferencia união estável de concubinato, onde este se caracteriza pela incompatibilidade com uma situação já verificada de fato (união estável) ou jurídica (casamento), portanto, indica a hipótese de uma pessoa casada ou companheira que tenta constituir uma nova relação afetiva, contrariando o Direito de Família. Em convergência à interpretação de Nader sobre esse tema, Guimarães defende que o concubinato não tem nenhuma proteção legal, exceto o direito a patrimônio quando provada a aquisição por esforço comum, o que já era previsto na Súmula 380 do STF, como forma de evitar o enriquecimento ilícito. [69] No tópico de regime de bens será discutida a vigência e aplicação desta súmula sob o enfoque de alguns doutrinadores.
Ainda, segundo Guimarães, a definição do art. 1.727, CC, não reflete de forma adequada a abrangência das hipóteses factuais, pois as pessoas casadas e separadas de fato podem estabelecer uniões estáveis, apesar de não poderem se casar. Nesse sentido, afirma:
[...] Melhor seria definir o concubinato como a união mantida concomitantemente ao casamento ou à união estável, de forma não-eventual e por um prazo de duração razoável, com ou sem existência de filhos, introduzindo um parágrafo no qual conste que será partilhável o patrimônio amealhado na constância do concubinato, com a colaboração direta ou indireta do outro, para evitar enriquecimento ilícito. [70]
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, a definição de união estável deve ser realizada a partir da idéia de família. É preciso, então, lidar com os elementos que compõem uma entidade familiar, a fim de identificar uma união estável, na forma sedimentada pela jurisprudência e doutrina, a saber: durabilidade, estabilidade, convivência sob o mesmo teto, prole, relação de dependência econômica. Todavia, destaca o autor que a ausência de qualquer destes elementos per se não significa a inexistência de uma união estável:
[...] Entretanto, se faltar um desses elementos, não significa que esteja descaracterizada a união estável. É o conjunto de determinados elementos que ajuda a objetivar e a formatar o conceito de família. O essencial é que se tenha formado com aquela relação afetiva e amorosa uma família, repita-se [...]. [71]
Ao tratar da diferença entre concubinato e união estável, Cunha busca traçar os seus elementos característicos e peculiares, assinalando que isto se faz necessário não só para se adequar ao princípio jurídico da monogamia adotado no Brasil como para evitar injustiças. Além disso, busca-se deixar claro o encaminhamento jurídico a ser utilizado em cada uma das hipóteses, conforme ficar caracterizado união estável ou concubinato, in verbis:
Assim, com a evolução do pensamento construtor da doutrina sobre o direito concubinário, podemos dizer que o concubinato não adulterino é a união estávele o adulterino continua sendo o concubinato propriamente dito [...]. [72]
Quanto ao art. 1.727 do Código Civil, Cunha, de modo semelhante a Guimarães, critica a forma disposta, pois ao invés de deixar clara a intenção do legislador, dá margem a outras interpretações, inclusive gerando conflito com o contido no §1º do art. 1.723, que designa como união estável os separados de fato e judicialmente. In verbis:
[...] Entretanto, em vez de usar a palavra ‘adulterino’ ou outra melhor, acabou utilizando ‘impedidos de casar’. Tal expressão não traduz o espírito e o sentido desse artigo que quis, exatamente, diferenciar união estável e concubinato. Os separados judicialmente, por exemplo, são impedidos de se casar e, no entanto, são livres para estabelecer uma união estável. Essa expressão deveria ser modificada para traduzir com mais clareza o sentido e o espírito do referido dispositivo. Caso essa modificação não se opere, restará incoerente e contraditório com o §1º do art. 1.723 [...]. [73]
De acordo com Cunha, é relevante a diferenciação entre relações de concubinato e de união estável, a fim de se utilizar os instrumentos jurídicos adequados para um e outro diante do caso concreto. Na primeira hipótese, a solução de litígios será baseada no direito obrigacional, enquanto na segunda o referencial estará no Direito de Família. Nesse sentido assevera o autor:
A distinção entre concubinato e união estável faz-se necessária para aplicar as medidas e conseqüências jurídicas em cada um dos institutos. Os direitos e deveres decorrentes de uma união estável serão buscados no campo do Direito de Família utilizando-se seus marcos teóricos [...] O concubinato, assim considerado aquele adulterino ou paralelo ao casamento ou a outra união estável, para manter-se a coerência no ordenamento jurídico brasileiro – já que o Estado não pode dar proteção a mais de uma família ao mesmo tempo – poderá valer-se da teoria das sociedades de fato e, portanto, no campo obrigacional [...]. [74]
Segundo Cunha, a união estável vem sofrendo ao longo do tempo muita intervenção estatal, aproximando-se cada vez mais do casamento e perdendo sua característica de livre. É interessante assinalar que esta convergência entre os institutos, no nosso entendimento, deve ser analisada sob a perspectiva de direitos e deveres, de modo a se evitar tratamentos distintos para situações equivalentes e para pessoas nas mesmas condições, como adiante se discutirá ao tratar do regime de bens, v.g., o idoso que constitui casamento e o que forma união estável. Assim, cabe aqui transcrever a posição de Cunha sobre a questão:
Por mais que a união estável seja o espaço do ‘não instituído’, à medida que é regulamentada, vai ganhando contornos de casamento. Com isso, aos poucos, vai deixando de ser uma ‘união livre’, como, aliás, muitas vezes denominada, para ser uma união ‘amarrada’ às regras impostas pelo Estado. Este é um paradoxo com o qual teremos de aprender a conviver: ao mesmo tempo em que não queremos a intervenção do Estado em nossas relações mais íntimas, buscamos sua interferência para lhe dar legitimidade e proteger a parte economicamente mais fraca [...]. [75]
A união estável nos moldes jurídicos atuais foi delineada a partir da Constituição de 1988, especificamente, por meio do art. 226, § 3º, cujo conceito foi inserido no art. 1.723 do Código Civil, o qual apresenta o seguinte enunciado:
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. [76]
Para Carlos Roberto Gonçalves, a união estável caracteriza-se pela inexistência de formalismo quando de sua constituição, enquanto o instituto do casamento se reveste de solenidades, tais como, habilitação, publicação dos proclamas, registro, entre outras. [77] Segundo Antônio Carlos Mathias Coltro, citado por Gonçalves, a união estável se constitui:
A partir do instante em que resolvem seus integrantes iniciar a convivência, como se fossem casados, renovando dia a dia tal conduta, e recheando-a de afinidade e afeição, com vistas à manutenção da intensidade. [78]
Por se manifestar na forma descrita por Coltro, argumenta Gonçalves, firmando-se também em Euclides de Oliveira, a união estável ao tempo em que tem a vantagem de ser dissolvida com maior facilidade, sendo suficiente concordância entre os companheiros, por outro lado fica difícil a sua comprovação pela inexistência de documento que demonstre sua constituição. Como alternativa para minimizar a dificuldade de provas, Euclides de Oliveira, citado por Gonçalves, sugere a elaboração de contrato de convivência ou até mesmo a ritualização do início de convivência com presença de amigos e familiares, conforme abaixo:
Por meio de um contrato de convivência entre as partes, que servirá como marco de sua existência, além de propiciar regulamentação do regime de bens que venham a ser adquiridos no seu curso. Os mais preocupados ainda poderão, ao seu alvitre, solenizar o ato de união mediante reunião de familiares e amigos para comemorar o evento, até mesmo com troca de alianças e as bênçãos de um celebrante religioso, em festa semelhante às bodas oficiais. [79]
Segundo Venosa, identifica-se no art. 1.723, do Código Civil, o aspecto de estabilidade, que é indicada pelo termo duradoura, sugerindo certo espaço de tempo para caracterizar a união estável. Cabe destacar, que o tempo não é absoluto. Outro ponto é a continuidade do relacionamento, ou seja, sem interrupções. Também a relação pressupõe a diversidade de sexo, ou seja, só pode ser constituída por homem e mulher. A publicidade consiste na notoriedade da relação, de modo que o casal se apresenta como se marido e esposa fossem diante da sociedade. Finalmente, há necessidade do animus de constituir família, ainda que não tenha prole. [80]
Mais adiante, o autor apresenta outro aspecto caracterizador da união estável, a saber:
Outro elemento que pode ser levado em consideração é a habitação comum. O legislador não a mencionou no que andou bem. A Súmula 382 do Supremo Tribunal Federal já dispunha que ‘a vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável à caracterização do concubinato’. A experiência social demonstra que há uniões sólidas, duradouras e notórias sem que o casal resida sob o mesmo teto [...]. [81]
Em relação ao instituto do casamento, para Washington de Barros Monteiro, é uma "união permanente entre o homem e a mulher, de acordo com a lei, a fim de se reproduzirem, de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos". Sobre essa definição a atualizadora da obra de Monteiro, Regina Beatriz Tavares da Silva, ressalva que a procriação atualmente não é a finalidade deste instituto. [82]
Sem entrar em polêmicas sobre a concepção, finalidade e natureza jurídica do instituto do casamento, convém destacar em linhas gerais suas características, que segundo Monteiro, o referido instituto apresenta natureza de ordem pública, já que o seu regramento transcende a órbita particular. Também ocorre por união exclusiva, de modo que a não observância desta regra gera um ilícito penal e implicações no âmbito cível. Além disso, o casamento se dá em comunidade de vida para os cônjuges e não aceita termo ou condição, ou seja, é um negócio jurídico puro e simples. [83]
Quanto à natureza jurídica do casamento, conforme Monteiro, a concepção clássica entendia como uma relação contratual, em que o elemento volitivo das partes era essencial para a existência do instituto. Para a concepção supra-individualista, o casamento se caracteriza como uma instituição social, de modo que os nubentes têm a liberdade até o momento em que decidem por constituí-lo, após o qual, todo o regramento provém da própria lei. Já para uma terceira corrente, o matrimônio compreende um ato complexo, que envolve simultaneamente contrato e instituição. Para o autor, em particular, o instituto se caracteriza por um contrato especial, conforme se verifica abaixo:
Assim, o caráter volitivo está presente no casamento, em sua formação, duração e dissolução. Em razão de sua regulamentação ser realizada, em grande parte, por normas de ordem pública, de caráter imperativo, sua natureza contratual é especial: é um contrato de direito de família. [84]
Na análise entre os institutos da união estável e casamento, Paulo Lobo pondera que a interpretação do § 3º do art. 226 da Constituição deve ser realizada dentro de uma perspectiva mais sistemática, observando-se as demais regras e os princípios constitucionais, em especial o da igualdade dos institutos. Nesse sentido, assinala o autor que a possibilidade de converter a união estável em casamento não significa uma subordinação dos institutos, mas um indicativo para facilitar eventual conversão, se assim optarem os companheiros. Caso estes desejem continuar na união estável, a proteção constitucional é plena com base no princípio da igualdade definido para as entidades familiares. In verbis:
Com efeito, a norma do § 3º do art. 226 da Constituição não contém determinação de qualquer espécie. Não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração, como de resto estabeleceu o art. 1.726 do Código Civil [...] Além do princípio da igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pela Constituição, há de se ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana [...]. [85]
Paulo Lobo admite diferenças entre casamento e união estável, mas isso não significa estabelecer tratamento desigual para situações em que os institutos se mostrarem juridicamente semelhantes, não havendo, portanto, prevalência de um sobre o outro. In verbis:
(união estável) É um estado de fato que se converteu em relação jurídica em virtude de a Constituição e a lei atribuírem-lhe dignidade de entidade familiar própria, com seus elencos de direitos e deveres. Ainda que o casamento seja sua referência estrutural, é distinta deste; cada entidade é dotada de estatuto jurídico próprio, sem hierarquia ou primazia [...] Finalmente, o Código Civil de 2002 sistematizou toda a matéria relativa à união estável, revogando-se, em conseqüência, a legislação anterior. Todavia, a preferência evidente do legislador pelo casamento fez com que nem sempre haja tratamento isonômico para as duas entidades [...]. [86]
O autor reforça a idéia da semelhança entre o casamento e a união estável, a despeito de suas peculiaridades, a partir das características comuns, a saber: a) publicidade ou ostensibilidade da convivência; b) afetividade; c) estabilidade. Segundo Paulo Lobo, a diferença destacada na lei consiste na convivência de um homem e de uma mulher em posse de estado de casados, isto é, portam-se como se casados fossem, gerando os mesmos componentes essenciais: impedimentos para constituição, direitos e deveres comuns, regime legal de bens, alimentos, poder familiar, relações de parentesco, filiação. In verbis:
[...] o casamento é ato jurídico formal e complexo, enquanto a união estável é ato-fato jurídico. Por ser ato-fato jurídico, a união estável não necessita de qualquer manifestação de vontade para que produza seus jurídicos efeitos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas constitucionais e legais cogentes e supletivas e a relação fática converta-se em relação jurídica [...]. [87]
Para Belmiro Pedro Welter, citado por Semy Glanz, a união estável encontra-se no mesmo nível do casamento, tendo como única diferença o modo de prova: na união estável é pós-constituída, enquanto no casamento é pré-constituída, in verbis:
[...] no casamento é pré-constituída (certidão de casamento), e na união estável é pós-constituída, mas em ambos os casos deve habitar o firme propósito de constituir família. [88]
Nessa mesma perspectiva de análise, Guimarães considera que, a despeito de união estável e casamento apresentarem certas diferenças, ambos os institutos estão direcionados para idênticos valores e mesmo campo fático, manifestando-se também de forma semelhante. In verbis:
Embora diferentes, as definições legais de casamento e união estável convergem nos mesmos valores, pois a comunhão plena de vidas acontece tanto no casamento como na união estável, dando início à constituição de uma família [...] a família é o espaço em que o ser humano busca suprir a sua natural incompletude através do laço amoroso e da solidariedade que deve ser assegurada também na questão patrimonial. A situação fática da união estável é semelhante ao casamento, pois em ambas as pessoas se unem pelo afeto e pelo desejo de comungar suas vidas. A diferença está na formalização, pois o casamento nasce de um ato jurídico expresso enquanto a união estável geralmente é declarada a posteriori, pois um de seus requisitos é a continuidade e a duração. [89]
Cabe assinalar que a união estável é uma das modalidades de entidade familiar mencionada no art. 226, caput, § 1º, § 3º e § 4º, da Constituição Federal de 1988, a qual assegura especial proteção do Estado a este instituto, cuja possibilidade de convertê-lo em casamento não significa apresentá-lo como uma categoria inferior, in verbis:
A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
O casamento é civil e gratuita a celebração.
Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. [90]
Nesse sentido, Maria Berenice Dias é ainda mais enfática que outros doutrinadores defensores da convergência entre união estável e casamento ao destacar que a Constituição Federal, ao tratar da família nos dispositivos acima, enumerou exemplificadamente algumas entidades familiares, sem dotar qualquer delas maior proteção do que outras, ou sem reduzir o papel e importância que cada uma delas possui nas várias situações concretas, não importando, para isso, a ordem com que aparecem na seqüência da enumeração da Carta Magna, in verbis:
A Constituição, ao garantir especial proteção à família, citou algumas entidades familiares, as mais freqüentes, mas não as desigualou. Limitou-se a elencá-las, não lhes dispensando tratamento diferenciado. O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável e, por último, a família monoparental não significa qualquer preferência nem revela escala de prioridade entre eles. Ainda que a união estável não se confunda com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção. [91]
Observa-se que a referida autora interpreta o enunciado constitucional que trata de família como gênero, cuja extensão não se limitaria às três modalidades de casamento, união estável e família monoparental, o que sinaliza uma regra genérica com possibilidades adaptativas em consonância com a própria sociedade de onde emana tal preceito. Nesse sentido, Maria Berenice Dias recorre a Belmiro Welter, o qual critica veementemente certos doutrinadores que adotam uma interpretação restritiva do art. 226 da Constituição e aludem à união estável como uma entidade de segunda categoria. Segundo Belmiro Welter, citado por Maria Berenice Dias, "[...] há necessidade de afastar essa baixa constitucionalidade que se quer emprestar à união estável, desigualando-a do casamento". [92] Fica patente no posicionamento de Welter certa defesa da equiparação dos institutos, faltando, contudo, uma maior elucidação quanto à abrangência do termo "equiparação".
Apesar do que se vislumbra de semelhanças entre os institutos do casamento e união estável a partir do art. 226 da Carta Magna, na medida em que ambos possuem proteção especial do Estado e são espécies do gênero família, Maria Berenice Dias constata que a legislação pertinente ao tema, que é o Código Civil, dá um tratamento diferenciado para casamento e união estável, o que vai de encontro a todos os avanços consagrados na Constituição de 1988. Diante de tal excrescência, a autora se posiciona contrariamente, conforme sua assertiva a seguir:
Quando a lei trata de forma diferente a união estável em relação ao casamento, é de se ter simplesmente tais referências como não escritas. Sempre que o legislador deixa de nominar a união estável frente a prerrogativas [!] [93] concedidas ao casamento, outorgando-lhe tratamento diferenciado, devem tais omissões ter tidas por inexistentes, ineficazes e inconstitucionais. Igualmente, em todo texto em que é citado o cônjuge, é necessário ler-se cônjuge ou companheiro. [94]
Com esse mesmo enfoque, Dias, firmando-se em Paulo Luiz Netto Lobo, rebate o viés discriminatório constante no Código Civil quando o legislador inseriu os dispositivos que tratam da união estável em campo apartado do casamento, o que segundo a autora, não representa isso um desnivelamento entre ambos os institutos, pois o texto constitucional os considera com a mesma especial proteção, a saber:
Porém, inserir a união estável tão distanciadamente do capítulo do casamento revela resistência para reconhecê-la como entidade familiar de igual status. Apesar do desdém do legislador, inexiste hierarquia entre os dois institutos. O texto constitucional lhes confere a especial proteção do Estado, sendo ambos fonte geradora de família de mesmo valor jurídico, sem qualquer adjetivação discriminatória (grifo da autora). [95]
Destaca Dias que a união estável vem aos poucos ganhando maior regulamentação e se aproximando do instituto do casamento. Em função de ter como referência a relação matrimonializada, a união estável vai se equiparando ao casamento e passando a ter os mesmos benefícios e restrições daquele instituto. Note-se na citação a seguir que a autora reconhece que a equiparação vem sendo atingida, paulatinamente, à custa de regulação que enseja maior intervenção do Estado, ou seja, maior grau de restrições também na união estável, muito embora se mostre contra tal implicação, in verbis:
Com isso, aos poucos, vai deixando de ser união livre para ser união amarrada às regras impostas pelo Estado. Esse é um paradoxo com o qual é preciso aprender a conviver, pois, ao mesmo tempo em que não se quer a intervenção do Estado nas relações mais íntimas, busca-se a sua interferência para lhes dar legitimidade e proteger a parte economicamente mais fraca (grifo da autora). [96]
Nessa mesma linha de raciocínio, Maria Berenice Dias pontua de forma efusiva sua oposição ao tratamento diferenciado que o Código Civil adota entre os institutos casamento e união estável. O que não fica muito claro nos posicionamentos da autora, como a citação abaixo, é o conceito e amplitude utilizados para o termo equiparação, mas antecipa-se que sua definição contempla basicamente as "prerrogativas" que são identificadas no casamento, in verbis:
O casamento e a união estável são merecedores da mesma e especial tutela do Estado. Todavia, em que pese a equiparação constitucional, a lei de forma retrógrada e equivocada outorgou à união estável tratamento notoriamente diferenciado em relação ao matrimônio. [97]
De qualquer modo, com base na posição até aqui defendida por Maria Berenice Dias sobre a equiparação da união estável ao casamento, entende-se que esta interpretação fundamentada no art. 226, caput e § 3º. da Constituição Federal, não se pode limitar somente às prerrogativas ou direitos já consagrados ao casamento e estendê-los à união estável, mas também abranger deveres e restrições, a exemplo da condicionante disposta no art. 1.641, II, CC na união estável de pessoa idosa, [98] objeto desta pesquisa. Como ambos os institutos são da mesma natureza, conforme posicionamento defendido por Dias, entende-se, diferentemente desta, que não haveria razão jurídica, lógica ou ontológica para tratá-los de forma diferenciada no que se refere às restrições relacionadas, especificamente, ao regime de bens. Mais adiante, quando se discutir o referido dispositivo sob o enfoque dos posicionamentos doutrinários, será evocado mais detidamente o conceito de equiparação.
Na comparação do casamento com a união estável, conforme Dias, a diferença restringe-se à forma de constituição. No primeiro caso, o ponto de demarcação é fixado pela celebração do matrimônio, já no segundo inexiste termo inicial, pois decorre da sedimentação do vínculo de convivência, do comprometimento recíproco, do envolvimento das existências e da junção de patrimônios. [99]
Na doutrina, há posicionamentos contrários ao defendido por Dias, Lobo, Welter e Guimarães, a exemplo de Sílvio Rodrigues que conceitua união estável como instituto diverso do casamento, não sendo plausível estabelecer equiparação entre ambos, pois, segundo ele, a Constituição apenas transformou a união estável em entidade familiar, que poderá ser convertida em casamento. É bem verdade, como pôde se verificar anteriormente, Sílvio Rodrigues entende que a proteção do Estado recai sobre a entidade familiar, qualquer que seja a sua forma de manifestação, tais como casamento, união estável ou família monoparental. De qualquer modo, há diferenças entre união estável e casamento, conforme pontua o autor:
O fato importante que ressalta do texto constitucional é o reconhecimento de que a ligação, mais ou menos duradoura, entre pessoas de sexo diverso, com o propósito de fazerem vida em comum, adquiriu o status de entidade familiar. [...] Sendo a união estável instituto de natureza diversa do casamento, o fato de a Constituição tê-la declarado entidade familiar não implica que se apliquem a ela todos os efeitos daquele [...] [100]
Na mesma linha de Sílvio Rodrigues, segue Inácio de Carvalho Neto e Érika Harumi Fugie, para os quais a união estável e casamento são espécies do gênero entidade familiar, cada um com suas especificidades, não sendo apropriado equipará-los, em que pese certas semelhanças entre tais institutos, in verbis:
Note-se que, nem a Constituição, nem a Lei da União Estável (Lei 9.278/96), nem o novo Código Civil, equiparam a união estável ao casamento. Trata-se de falsa idéia, posto que muito difundida, a que considera união estável e casamento a mesma coisa. São duas espécies do mesmo gênero (família – ou entidade familiar, como chama a Constituição), mas espécies diferentes, embora tenham muitas semelhanças, justamente por pertencerem ao mesmo gênero. Assim, não têm que ter (sic), necessariamente, os mesmos efeitos e semelhantes disposições; pode a lei, atendendo às peculiaridades de cada espécie, regulá-las diversamente. [101]
Ainda se verifica em Sílvio de Salvo Venosa posição semelhante a Sílvio Rodrigues, Inácio de Carvalho Neto e Érika Harumi Fugie, já que o mesmo ao traçar um quadro comparativo entre casamento e união estável, entende tratar-se de institutos diversos, daí exigir-se tratamento diferenciado. Fundamenta-se Venosa na indicação que a Constituição Federal faz da possibilidade de conversão da união estável em casamento, além disso, no pensamento do autor, a natureza jurídica de ambos são diferentes, visto que o casamento é negócio jurídico, enquanto a união estável é fato jurídico. [102]
Nessa mesma linha de raciocínio segue Washington de Barros Monteiro, para o qual casamento e união estável são institutos diferentes, já que o primeiro é um negócio jurídico puro e simples, enquanto o segundo consiste numa constituição de família (o fato em si), ou seja, numa relação de companheiros e nas suas palavras:
(união estável) é a relação lícita entre um homem e uma mulher, em constituição de família, chamados de partícipes desta relação de companheiros. [103]
O posicionamento de Monteiro fica mais claro ao evocar Ruggiero, que citado pelo autor, afirma o seguinte:
[...] é a ausência de casamento para aqueles que vivam como marido e mulher. O conceito generalizado de união estável tem sido invariavelmente o de vida prolongada em comum, com aparência de casamento. [104]
Também para Caio Mário não há que se falar em equiparação entre os institutos da união estável e casamento, dada a diferença reconhecida pela própria Constituição ao prever a conversão da primeira na segunda. Nesse sentido, afirma o autor:
De primeiro, afastou-se a sua equiparação (união estável) ao casamento. Uma vez que ‘a lei facilitará sua conversão em casamento’ deixou bem claro que não igualou a entidade familiar ao casamento. Não se cogitaria de conversão, se tratasse do mesmo conceito [...]. [105]
Mais adiante, reforça a idéia Caio Mário:
Um dos pontos de atenções é que diz respeito à conversão em casamento. A norma constitucional se limita a dizer: ‘devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. O legislador constituinte, ao priorizar a conversão, indicou expressamente, a diferença entre os dois institutos; não se justificaria converter institutos semelhantes [...]. [106]
Não obstante as concepções conflitantes na doutrina a respeito da equiparação dos institutos união estável e casamento, para efeito da hipótese de solução apresentada nesta pesquisa, qual seja a discussão de possibilidades e incongruências da aplicação do regime de separação obrigatória na união estável constituída por pelo menos uma pessoa idosa, serão utilizados os posicionamentos defendidos por Maria Berenice Dias, Paulo Lobo, Belmiro Pedro Welter e Marilene Silveira Guimarães, com as ressalvas até aqui apontadas.
2.3Regimes de bens das entidades familiares: conceitos e características
Conforme Regina Beatriz Tavares, o regime de bens consiste em princípios e regras que tratam dos interesses econômicos originados no transcurso do casamento e da união estável, sendo, portanto, um aspecto do relacionamento da mesma forma que affectio maritalis, nas suas palavras:
Regime de bens é o conjunto de princípios e normas referentes ao patrimônio dos cônjuges, que regulam os interesses econômicos oriundos do casamento, podendo ser chamado de ‘estatuto patrimonial’ da sociedade conjugal. [107]
Encontra-se em Semy Glanz concepção semelhante, para o qual os regimes de bens definidos no Código Civil buscam estabelecer parâmetros dos aspectos econômicos do casal, não havendo, em princípio, diferenciação entre união estável e casamento, mesmo porque ambos os institutos são espécies de entidade familiar prevista na Constituição de 1988. Nesse sentido, cabe evocar o conceito de regime de bens adotado pelo autor, in verbis, "regime patrimonial do casal é o conjunto de regras que disciplinam a vida econômica de um casal unido pelo casamento ou pela união estável". [108]
No Código Civil, são definidos quatro tipos básicos de regimes de bens: comunhão parcial (arts. 1.658 a 1.666); comunhão universal (arts. 1.667 a 1.671); participação final nos aquestos (arts. 1.672 a 1.686) e separação de bens (arts. 1.687 a 1.688). Apesar dessa estruturação básica, em que os cônjuges têm liberdade de escolha, o Código possibilita a combinação de regimes, adotando-se um tipo misto e há restrições em situações específicas, de acordo com o disposto no art. 1.641, incisos I a III, hipóteses em que o regime deve ser o de separação obrigatória de bens. Em princípio, prevalece a regra da imutabilidade de regime, sendo exceção a alteração, que ocorre mediante sentença judicial, após motivação e justificação do pedido, resguardados os interesses de terceiros, na forma do art. 1.639, § 2°. [109]
Em linhas gerais, o regime de comunhão parcial consiste na separação dos bens adquiridos antes da celebração do casamento e comunicação dos que forem adquiridos na constância do matrimônio, sendo denominado de regime legal ou supletivo, porquanto prevalece sobre os demais na ausência de pacto antenupcial feita pelos consortes. No regime universal, há comunicação de todos os bens, tantos os anteriores ao casamento quanto os adquiridos posteriormente. No regime de participação final nos aquestos, ocorre um regime misto, em que na vigência do casamento há uma separação total de bens e na sua dissolução ocorre comunhão parcial. Já no regime de separação de bens, há uma incomunicabilidade dos bens adquiridos antes e durante o matrimônio. [110]
De forma geral, na união estável, qualquer que seja a condição/situação das pessoas envolvidas, utiliza-se o regime da comunhão parcial de bens por força do contido no artigo 1.725 do Código Civil, que apresenta o seguinte teor:
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens. [111]
Em relação ao regime de separação de bens, conforme Maria Helena Diniz decorre de lei ou de pacto antenupcial, de modo que cada consorte detém, com exclusividade, o domínio, a posse e a gestão de seus bens presentes e futuros, bem como respondem isoladamente pelas dívidas adquiridas antes e depois do matrimônio. Nesta hipótese, verificam-se dois patrimônios diferenciados, destaca Diniz: o do marido e o da mulher. [112]
No caso do regime de separação de bens estabelecido por meio de pacto antenupcial, Diniz apresenta duas formas distintas, a saber:
Separação pura, absoluta ou total, se se estabelecer a incomunicabilidade de todos os bens adquiridos antes e depois do casamento, inclusive de frutos e rendimentos. Separação limitada, relativa ou parcial, se se circunscrever aos bens presentes, comunicando-se os frutos e rendimentos. [113]
Adotando-se o regime de separação de bens, por lei ou por acordo entre as partes, prossegue Diniz, a gestão e fruição dos bens competirão a cada um dos cônjuges, não havendo necessidade de concordância da outra parte para alienar imóveis ou gravar bens com ônus real, in verbis:
[...] Cada cônjuge poderá, livremente, não só alienar seus bens móveis ou imóveis, mas também gravá-los de ônus reais. Todavia, nada impedirá que no pacto antenupcial haja estipulação outorgando a um dos cônjuges a administração dos bens do outro. [114]
Ao tratar do regime de separação obrigatória de bens, Washington de Barros Monteiro apresenta o seguinte conceito: "Eis o regime em que cada cônjuge conserva exclusivamente para si os bens que possuía quando casou, sendo também incomunicáveis os bens que cada um deles veio a adquirir na constância do casamento". [115] Mais adiante, Monteiro esclarece que o regime de separação se dá de duas formas: legal e convencional. Neste os próprios nubentes estabelecem por meio de pacto antenupcial os procedimentos quanto aos bens (comunicabilidade e incomunicabilidade). Já a forma legal está disposta no art. 1.641, incisos I a III, e não admite margem aos cônjuges para definirem os bens que se comunicam ou não, porquanto a separação é absoluta ou "pura", a saber: [116] das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; da pessoa maior de sessenta anos; de todos que dependerem, para casar, de suprimento judicial.
De acordo com Monteiro, o regime da separação de bens convencional ocorre de duas formas: pura e limitada. A primeira hipótese trata-se de restrição absoluta e total, contemplando todo o patrimônio presente e futuro, bem como frutos e rendimentos, aplicando-se a tudo, indiferentemente, o princípio da incomunicabilidade. Segundo ele, as principais conseqüências deste tipo são: a) incomunicabilidade dos bens anteriores ao casamento; b) incomunicabilidade dos frutos e aquisições posteriores; c) autonomia dos cônjuges para gerir o patrimônio particular. In verbis:
A separação tem ainda outra divisão: pura e limitada. É pura, quando absoluta e irrestrita, abrangendo todos os bens presentes e futuros, assim como frutos e rendimentos, estendendo-se a tudo, indistintamente, o princípio da incomunicabilidade. [117]
Já na separação limitada aplicam-se o princípio da incomunicabilidade e a autonomia na gestão somente aos bens presentes, comunicando-se, por outro lado, os frutos e rendimentos destes. Além disso, comunicam-se os frutos e rendimentos dos bens futuros, que são adquiridos durante o casamento. Quanto a essa modalidade, esclarece o autor:
Observe-se ainda que na separação limitada prevalece a vontade dos contraentes, que podem no pacto antenupcial, livremente, restringir ou graduar o alcance da comunicação referente aos bens futuros, bem como a comunicação, ou não, dos frutos e rendimentos dos bens presentes. Pactos antenupciais existem que se transformam em verdadeiros mosaicos dos vários regimes matrimoniais contemplados em lei. [118]
Segundo Paulo Lobo, a gestão do patrimônio no regime de separação de bens ocorre de três formas: a) administração exclusiva de cada cônjuge sobre seus bens próprios e respectivo usufruto; b) a liberdade de alienação dos bens próprios, sem autorização do outro, bem como do destino do resultado; c) a responsabilidade de cada um sobre as dívidas e obrigações que contrair. Conforme o autor, apesar da administração dos bens ser exclusiva de cada cônjuge, o pacto antenupcial pode definir regra que possibilite a administração conjunta ou um gerir o patrimônio do outro. A liberdade de alienação consiste em gravar os bens particulares de ônus reais, como servidão, usufruto, uso, habitação ou de dá-los em garantias reais (penhor, hipoteca). Da mesma forma, nesse regime pode cada cônjuge responder em juízo na condição de autor ou réu a respeito de seu patrimônio, bem como prestar fiança ou aval. [119]
Na concepção de Lobo, o regime de separação de bens encontra-se em consonância ao princípio da igualdade de gênero, porquanto dispensa tratamento isonômico em eventual dissolução inter vivos da entidade familiar, evitando acumulação de patrimônio de uma parte em detrimento da outra, ou seja, enriquecimento ilícito. Nesse sentido, afirma Lobo:
O regime de separação absoluta é o que melhor corresponde ao princípio da igualdade de gêneros, como tendência das sociedades ocidentais. A crescente inserção da mulher no mercado de trabalho e na vida econômica torna dispensável a motivação subjacente de sua proteção, que se encontra nos regimes de comunhão parcial ou universal. Enquanto vigorou o modelo legal de família patriarcal, o regime de separação era injusto para a mulher; no modelo igualitário de família, é o mais justo e o que melhor respeita a dignidade e a liberdade de cada cônjuge. Em virtude de sua simplicidade e da ausência de interesses patrimoniais superpostos, o regime reduz sensivelmente o quantum de litigiosidade ou conflituosidade que os demais propiciam. [120]
Segundo Lobo, na vigência do relacionamento familiar firmado no regime de separação convencional de bens, há de se reconhecer a possibilidade de questionamento em juízo pela parte que se sentiu lesada na partilha de bens em eventual dissolução inter vivos da entidade familiar, in verbis:
Por razões de ordem ética e de vedação do enriquecimento sem causa, e sem quebra da natureza do regime de separação convencional, admite-se a ocorrência de sociedade de fato entre os cônjuges, quando a aquisição de determinado patrimônio tiver recebido o concurso de recursos financeiros difusos e de trabalho de ambos, ainda que a titularidade tenha recaído expressamente sobre um deles [...] Durante o casamento, um cônjuge pode se enriquecer em detrimento do outro. O caso típico é o do cônjuge que se beneficia da colaboração do outro para o exercício de sua atividade profissional ou empresarial. Neste caso, é cabível ação de in rem verso, para obter indenização, na medida em que sua colaboração contribuiu para o enriquecimento do beneficiário, sem ter recebido remuneração. [121]
Ainda quanto a regime de bens, Paulo Lobo, a exemplo da posição de Nader e Guimarães, como se indicou alhures, identifica anacronismo da Súmula 380 do STF [122], a qual foi elaborada sob a égide da Constituição de 1946, sedimentando-se no início da década de 60, que até então era aplicada na dissolução de sociedade de fato (concubinato), tendo em vista que a referida súmula foi superada com o advento da Constituição de 1988, que reconheceu a união estável como entidade familiar.
Além disso, posteriormente com a Lei n. 8.971/94 e especialmente com a Lei 9.278/96, ficou claro que as questões relativas à união estável deveriam ser discutidas nas Varas de Família, uma vez que este instituto é uma das possibilidades de entidade familiar. Dessa forma, o autor ressalta que a existência da Súmula 380 não tem mais sentido, haja vista que a entidade extramatrimonial, denominada de união estável a partir da Constituição de 1988, passou a ter seus conflitos tratados no âmbito do direito de família, in verbis:
Assim, a Súmula 380 perdeu sua função histórica de realização alternativa de justiça, pois o impedimento que visava a superar (exclusão das famílias fora do casamento) deixou de existir [...] Os conflitos decorrentes as entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do direito de família e não do direito das obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais. [123]
Diante do que foi indicado até aqui sobre regime de bens, há de se concluir pela importância do tema no âmbito do matrimônio ou da união estável, de forma que o seu aprofundamento no debate jurídico não implica relegar o princípio da afetividade enquanto "locomotiva" da entidade familiar. Na verdade, entende-se que tanto o chamado patrimonialismo (viés econômico) quanto à affectio maritalis (personalismo) são elementos imprescindíveis da entidade familiar, o que não descarta a possibilidade de em algum momento uma das dimensões atingir maior valoração no caso concreto.