4UNIÃO ESTÁVEL DE IDOSO E O REGIME LEGAL DE BENS
4.1Análise crítica do art. 1.641, II, C.C.: possibilidades
Na sociedade atual, em que aumenta a qualidade e expectativa de vida das pessoas, o que possibilita a constituição de mais de uma relação afetiva (casamento ou união estável) por pessoas na faixa etária acima dos 60 anos, ainda persistem dilemas jurídicos envolvendo esse segmento quando seu relacionamento é posto em debate, como a questão patrimonialismo x personalismo, os interesses do indivíduo e de terceiros, a possível afronta a princípios constitucionais e a questão de proteção de patrimônio do idoso e da família anterior.
Prima facie, o que não dá para admitir nesse debate, pelo menos no que se refere ao regime de bens e ainda sem entrar no mérito do próprio art. 1.641, II em si, é um tratamento diferenciado entre o idoso que constitui casamento e o que constitui união estável, pois se entende que esta postura não se coaduna com o disposto no art. 4º, caput e § 1º, do Estatuto do Idoso [172], e, acima de tudo, porque esse tipo de discriminação entre o idoso casado e o idoso companheiro, em relação ao regime de bens, afronta ao princípio constitucional da igualdade (art. 5º CF/88) [173]. O reforço deste posicionamento é dado pela própria Constituição, que é muito clara em situar a união estável como uma entidade familiar, na forma do art. 226, § 3º. Certamente existem diferenças entre ambos os institutos, como se pôde verificar no capítulo 2, todavia não justificaria tratamento diferenciado para o problema ora posto.
Nesse sentido, considerando que o inciso II do artigo 1641, CC, encontra-se vigente e sendo aplicado para o casamento de idoso e com base nos fundamentos apresentados pelos doutrinadores favoráveis ao dispositivo, bem como à equiparação dos institutos na forma defendida por Maria Berenice Dias e Paulo Lôbo, com as ressalvas já indicadas, entende-se que a aplicação/interpretação de tal regra deveria ser estendida, por analogia, aos idosos que constituírem união estável, senão haveria, na prática, uma afronta ao princípio constitucional da igualdade (isonomia) entre pessoas do mesmo segmento, em equivalente condição, na mesma situação fática e enfrentando igual problema jurídico.
Em julgados recentes, o STJ tem trilhado nessa linha de raciocínio, e.g., RESP 1090722 (acórdão ainda não disponibilizado em meio eletrônico), que o Ministro Relator Massami Yeda posicionou-se favorável à aplicação analógica do disposto no inciso II do art. 1.641 CC na união estável de sexagenário. Na publicação da notícia, em 15/04/10, comenta-se que o Ministro fundamentou sua decisão no art. 226 da Constituição Federal que prevê a conversão da união estável em casamento e a não observância da restrição do art. 1.641 poderia desestimular a formação de relacionamento na modalidade de casamento, resultando em privilégio do primeiro instituo em detrimento do segundo. Por outro lado, consta na notícia que o Ministro reconhece o direito da companheira em participar da sucessão do companheiro falecido relativamente aos bens adquiridos onerosamente durante o convívio. [174]
Na doutrina, verifica-se que Caio Mário, embora seja contrário ao disposto no art. 1.641, II, faz uma hermenêutica de integração desta regra com o contido no art. 1.725, a fim de não prestigiar a união estável em detrimento do casamento e permitir uma aplicação analógica do regime de separação de bens obrigatória, já que a previsão do legislador era de converter a primeira no segundo, in verbis:
[...] devem ser aplicadas aos companheiros maiores de 60 anos as mesmas limitações previstas para o casamento para os maiores desta idade: deve prevalecer o regime da separação legal de bens. A omissão do legislador na hipótese dos companheiros idosos criou flagrante conflito de interpretação. [175]
Na mesma linha de raciocínio segue Guilherme Calmon Nogueira da Gama, citado por Caio Mário, quando afirma:
[...] as pessoas inseridas no contexto da separação legal de bens, ou seja, as pessoas que não têm opção de escolha do regime de bens no casamento, pelas razões apontadas no dispositivo, também não podem pactuar quanto aos bens adquiridos na constância da união extramatrimonial, pois, do contrário, haveria estímulo à existência de situações fundadas no companheirismo em detrimento do casamento, o que é vedado pela norma constitucional que prevê a conversão da união estável em casamento. [176]
Da mesma forma, Paulo Nader, muito embora defenda a aplicação da Súmula 377 nas hipóteses de separação legal de bens para maiores de 60 anos e, por conseguinte seja contrário ao contido no art. 1.641, II, firmando-se em Érica Verícia de Oliveira Canuto, Nagib Slaibi Filho e em Caio Mário da Silva Pereira, entende que o referido dispositivo deveria ser estendido para os idosos que constituírem união estável. In verbis:
[...] O art. 1.641 impõe o regime de separação de bens no casamento, quando este se realiza com inobservância de causa suspensiva, no casamento de pessoa maior de sessenta anos e para todos que dependem de suprimento judicial. Cabia ao legislador estender aos companheiros, para determinadas hipóteses, o regime legal obrigatório. Para situações diversas, mas com igual fundamento, deve haver idêntica disposição. Ou seja, se para o casamento de pessoa maior de 60 anos o regime de bens é o obrigatório, igual critério deve prevalecer na união estável quando pelo menos um dos companheiros possuir idade superior àquela [...]. [177]
Entende-se que não se pode olvidar nessa possibilidade de aplicação do art. 1.641, II, tanto no casamento quanto na união estável de pessoa idosa a contribuição de outras áreas do conhecimento, a exemplo da Psicologia, onde se pôde apresentar no capítulo 1 o processo do envelhecimento, a velhice e o próprio idoso em si. Nesse sentido, há de se reconhecer, conforme afirma Anita Liberalesso, que o processo da existência humana contempla perdas e ganhos durante cada etapa de vida que se avança, inclusive redução da plasticidade do comportamento e elevação da vulnerabilidade, bem como a expectativa da morte à medida que os anos se passam [178]. Podendo-se depreender dessa concepção, também, maior fragilidade na dimensão emocional ou afetiva por parte das pessoas idosas, o que poderia justificar certa tutela do Estado, a fim de resguardar os seus interesses e de seus familiares. Neste caso, há de se concordar com Barros Monteiro quando afirma que as restrições à liberdade e autonomia do sujeito estão disseminadas em nosso ordenamento, e.g., o limite de dispor em testamento só 50% da herança, havendo herdeiros necessários (art. 1.789 CC). [179]
Assim, esse seria um dos fundamentos subjacentes utilizados pelos doutrinadores defensores da vigência e aplicação do referido dispositivo, sob a argumentação de caráter protetivo para o idoso e sua família anterior, na hipótese de constituição de novos relacionamentos, o que somente se mostrará plausível se houver um maior aprofundamento da discussão em torno do critério ou faixa etária mais adequada, bem como de outros fatores associados ao tema ou mesmo a possibilidade de utilização de outros mecanismos mais flexíveis para o regime de bens nas relações afetivas desse segmento.
Nesse contexto, a proposta levantada por Francisco José Cahali, conforme se abordou no capítulo anterior, abre novas perspectivas para o tema, na medida em que, caso se defina o regime de separação obrigatória de bens como um "regime legal", ficaria mitigada a afronta à autonomia de vontade e a chamada tutela excessiva do Estado, possibilitando à pessoa idosa optar pelo regime mais adequado ao seu relacionamento afetivo ou, no silêncio dos nubentes ou companheiros, prevaleceria a separação obrigatória de bens, a exemplo do que ocorre atualmente com o regime de comunhão parcial de bens.
4.2Análise crítica do art. 1.641, II, C.C.: incongruências
Depreende-se dos posicionamentos dos doutrinadores ora uma defesa do viés considerado patrimonialista constante no relacionamento familiar, ora sua rejeição com destaque para a concepção personalista. Entende-se que a relação afetiva na forma de casamento ou união estável implica, necessariamente, esforços dos companheiros ou cônjuges para se desenvolverem em todas as dimensões existenciais, inclusive na econômica, tais como aquisição de moradia, bens de consumo e meios de locomoção. A construção de patrimônio traz implicitamente a idéia de TROCA, refletida no apoio recíproco da convivência (sentimental, psicológico, moral, material). Assim, o patrimônio reflete o esforço comum para satisfação de necessidades da própria família, não é um puro TER de uma única pessoa, por si e para si mesma, pois é a síntese de uma história de vida construída em conjunto, que envolve cônjuge ou companheiro e, geralmente, filhos.
Dessa forma, o patrimônio transcende o aspecto econômico, haja vista que se constrói em balizes de trabalho, sentimento, amor, convivência, de forma recíproca. Entende-se que há um preconceito dos doutrinadores que rejeitam de pronto a concepção patrimonialista ou a sua presença no casamento ou união estável, sob a alegação de que é um resquício do Código de 1916. Note-se a concepção patrimonialista em si, não é negativa, pois é uma das dimensões no Direito de Família, conforme afirma Couto e Silva, citado por Judith Martins-Costa:
[...] a revelação da existência de um duplo sistema de relações jurídicas no Direito de Família permite que a diversidade material que está em sua base conduza à adoção de normas e de tutela jurídica valorativa e finalisticamente inconfundíveis, umas centradas na dimensão afetiva, pessoal, outra na dimensão propriamente patrimonial decorrente da sociedade familiar. Porém, como ‘nem sempre uma relação jurídica aparece de modo puro, pessoal ou patrimonial’, estando ambos os setores dialeticamente co-implicados, o critério há de ser o da prevalência de um ou outra destes elementos, conforme a situação concretamente apreciada. [180]
Seguindo essa linha de raciocínio, especialmente quanto ao patrimônio constituído com a família anterior (bens do passado), em que, muitas vezes, filhos passaram por privações, contribuíram com trabalho ou mesmo com investimentos, enfrentaram e comungaram no seio da família desafios, problemas de ordem psicológica, social, econômica, etc., entende-se que não seria justo que um ascendente idoso pudesse partilhar esses bens formados durante a convivência da primeira família com o cônjuge do novo relacionamento em eventual separação inter vivos ou mesmo em decorrência de mortis causa.
Por outro lado, quanto à aplicação analógica do art. 1.641, II, CC, para a união estável entre maiores de 60 anos ou mesmo sua utilização no casamento de pessoa idosa, quanto aos bens presentes e futuros constituídos no novo relacionamento, não se pode olvidar que uma eventual dissolução inter vivos ou mortis causa sob o regime da separação legal de bens, em que cada companheiro administra e dispõe livremente de seus próprios bens, fica difícil visualizar na prática de que modo essa incomunicabilidade não estaria favorecendo um e prejudicando outro, na medida em que as despesas e receitas/ganhos, muitas vezes, podem se misturar em alguma etapa do relacionamento. De qualquer modo, na defesa que faz da aplicação analógica do regime de separação legal de bens na união estável para pessoa idosa, Washington de Barros Monteiro alerta, que, nos efeitos patrimoniais se eventualmente um dos companheiros alienar um imóvel comum (administração de bens), sem a concordância do outro, a reparação ocorre por meio de indenização por perdas e danos, o que amiúde não assegura o ressarcimento devido, pois o patrimônio de quem lesou pode não ser suficiente. [181]
Dessa forma, falar em regime de separação obrigatória, na forma pura, tanto no casamento quanto na união estável de idoso (a), como concebe Washington de Barros Monteiro, não parece adequado sem antes serem clarificados e definidos com mais criticidade os critérios/parâmetros para situar, juridicamente, a pessoa idosa, a partir de uma maior aderência à concretude. Tal aprofundamento transcende o ramo jurídico, exigindo interdisciplinaridade, a fim de serem ponderados os vários aspectos envolvidos no tema.
Na análise inicial deste trabalho, capítulo 1, verificou-se a impossibilidade de tratar de forma genérica as pessoas situadas acima de 60 anos, haja vista que dentro desse segmento encontram-se faixas etárias de 60, 70, 80, 90 e 100 ou mais anos com diferenças de ordem cultural, social, geográfica, econômica, ritmo e qualidade de vida, as próprias experiências pessoais, entre outras variantes. Tal diferenciação não é contemplada no enunciado do art. 1.641, II. Neste caso, são relevantes os estudos apresentados pela psicologia e gerontologia, os quais sinalizam as formas distintas no processo de envelhecimento, mesmo porque a definição do início da fase da velhice está cada vez mais extrapolando os fatores e parâmetros até então utilizados, o que dificulta estabelecer um critério cronológico estático. [182]
Também esse é o entendimento de especialistas em questões relacionados ao idoso, e.g., Wladimir Novaes Martinez, que reconhece a dificuldade em se estabelecer um ponto demarcador desse segmento, quando comenta o art. 1º da Lei 10.741 (Estatuto do Idoso) [183], dado suas nuanças a serem exploradas em outras áreas do conhecimento, in verbis:
No art. 1º, o importante é o desejo do legislador de disciplinar esses direitos, o que acontece nos 116 artigos subseqüentes. Presente a expressão ‘idoso’, a ser deslindada pela doutrina, sob os aspectos sociológicos, médicos, práticos e jurídicos. [184]
Considerando as diferenças identificadas no segmento idoso apontadas acima e à luz do que dispõe o art. 10, caput e § 2º., bem como a dificuldade de se estabelecer um critério adequado para definir pessoa idosa, não resta dúvida que o art. 1.641, II – que apresenta um caráter extremamente genérico e sem ancoragem com a realidade concreta do referido segmento– se mostra contrário à autonomia da vontade, à liberdade e fere a própria dignidade da existência da pessoa idosa. A tentativa de ampliar o limite de adoção do regime de separação obrigatória para as pessoas acima de 70 anos, na forma proposta pelo Projeto de Lei nº 276/2007, ainda não consegue solucionar a incoerência do dispositivo.
Ainda quanto à questão da liberdade e dignidade, Manuel Alceu Affonso Ferreira, citado por Wladimir Novaes Martinez, ao comentar o disposto no art.2º do Estatuto do Idoso [185], entende como redundante a menção a esses direitos fundamentais, haja vista que estão insculpidos na Constituição Federal e com uma amplitude que veda qualquer tipo de discriminação, inclusive sob o aspecto etário, in verbis:
Verifico, por exemplo, colho no art. 2º do Estatuto, a enfadonha pérola de que o idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana [...]. Tal como se a Constituição da República, ao catalogar os direitos desse quilate, de pronto não tivesse pronunciado a igualdade perante à lei, ‘sem distinção de qualquer natureza’. Por conseguinte, vedando discrimines etários. Para justificar a bombástica assertiva do recente Estatuto, teria alguém, em qualquer das correntes do pensamento jurídico, jamais hesitado em que ‘os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana’ não constituem monopólio dos moços? [186]
Com base no posicionamento da doutrina contrária ao disposto no art. 1.641, II, CC, segundo se discutiu alhures, e a partir de análise com maior amplitude dos direitos fundamentais da pessoa humana, e.g., liberdade e dignidade, na forma abordada acima por Manuel Alceu Affonso Ferreira sob o enfoque dos direitos do idoso, há de se reconhecer que o enunciado que trata do regime de separação obrigatória de bens para pessoas sexagenárias afronta garantias concebidas constitucionalmente. No entanto, entende-se que esta incongruência não seja suficiente para suprimir o dispositivo, dada a complexidade do tema.