11. EXORTA-NOS KIERKEGARRD: "deixemos o tempo cumprir sua obra de destruição: quanto mais consuma a substância de que é feito o amor romântico, mais tremendo será o dia em que esta consumição termine e o sobressalto em que tomaremos consciência da perda sofrida, e então sentiremos nossa desdita na desesperança" (KIERKEGAARD, 1994). E entra em cena os ressentimentos, um afeto que, observa Camus, "deleita-se por antecipação com uma dor que ele gostaria de ver sentir pelo objeto de seu rancor" (CAMUS, 2003). Essa é o afeto desejado pelos mentores do Direito das Famílias? Não? Então por que falar tanto e tão abstratamente em afeto? De onde vem essa sensibilidade abstrata em relação ao afeto? Nietzsche e Scheler, continua Camus, "têm razão quando vêem uma bela ilustração dessa sensibilidade no trecho em que Tertuliano informa a seus leitores que no céu a maior fonte de felicidade, entre os bem aventurados, será o espetáculo dos imperadores romanos consumidos pelo fogo do inferno". É assim que aí as coisas acabam no Tribunal de Justiça onde, alertava-nos já o filósofo grego Antífon que, dizem, morreu em 411 a.C., "os ofendidos que se defendem sofrem a afronta dos ofensores dispostos a tudo, inclusive a mentir, disfarçar a verdade, usar falsos testemunhos, para fazer triunfar seu ponto de vista errado; na barra do tribunal, não se trata de erro, bem e mal, mas de capacidade ou incapacidade de sedução verbal" (ONFRAY, 2008). E o mais calculista, desavergonhado e inescrupuloso, vitimando-se, ganha! Só resta sentir (fraca ou fortemente) o gosto amargo da traição. Quer dizer, segundo Antífon, "o direito raramente serve a vítima, e na quase totalidade das vezes ao algoz". E concluindo denuncia "o funcionamento perverso das leis civis ou morais que não apagam o sofrimento, e às vezes até o ampliam" (ONFRAY, 2008) – Para isso servem as notícias das vicissitudes da vida (namoros, casamentos, separações, escândalos, fofocas, brigas etc.) e das baixarias dos "famosos" ou de seus personagens de novelas da TV nas revistas da TV (como se a arte imitasse a vida ou vive-versa): para nortear o espírito das relações amorosas de nosso tempo. Viva os paparazzi! Viva as telenovelas! E pensar que Antífon dizia isso há quase 2.500 anos é estarrecedor. Que aprendemos em todos esses séculos que totalizam dois milênios e meio? Nada? Que fazer a respeito? Busco respostas. E pra começar releio "Ser e Tempo" de Martin Heidegger, não porque, segundo La Bruyère, a filosofia nos consola "dos insucessos, do declínio de nossas forças ou de nossa beleza". Nem porque tenho lido que com o Direito das Famílias "ruiu o império do ter, sobressaindo à tutela do ser" (FARIAS & ROSENVALD, 2010). – Tal afirmativa, entre outras, ad infinitum, seria cômica se não fosse tragicamente asinina. -- Mas sim porque me dedico a escrever a partir do que sinto, do que vejo, do que leio, do que ouço, do que penso, das respostas que busco e do que colho na velocidade possível do caracol, este "Manual Crítico de Direito das Famílias". Exilo-me não pela mesma razão de Camilo Torres, por exemplo, a fim de demonstrar uma capacidade de sobreviver diante de uma sociedade assassina cuja ilegitimidade estaria assim comprovada? Não! Não tenho tal pretensão, não vejo ninguém assim tão atento em mim, apenas "fujo da praça pública" onde ninguém percebe a minha ausência, e quando percebem, tenho medo, experimento a estranha sensação de que o desejo de bajulação ou linchamento se volta novamente contra mim. Tremo só de imaginar! É que o problema mais dramático que se apresenta é que ser anônimo é correr o risco de não ser amado, portanto, todos querem igualmente aparecer, distinguir-se, ser diferente como todo mundo. Estou fora, prefiro o risco! Gosto das alturas e da soledade das montanhas, do ar puro e da água das fontes solitárias. E agora sei efetivamente que é pelo prazer de ver-me envolvido por "sutis gêneros de fatos", como diria Guimarães Rosa. Coisas que precisava vivenciar com vigor e sensibilidade, "macarrão e metafísica", na ironia de Guimarães Rosa. Por que Heidegger? Resposta difícil! Mas, em sinopse e, em paráfrase, digamos: (1) se"o pensar trabalha na edificação da casa do ser"; (2) se "é como tal casa que a juntura do ser dispõe, sempre de acordo com o destino, a essência do homem para morar na verdade do ser"; e, finalmente, (3) se, "este morar é a essência do Ser-no-mundo", não há como negar, Heidegger é imprescindível para a compreensão do Ser do Ente-jurídico. Por que um "Manual crítico de Direito das Famílias"? Porque no Direito, como acontece, o homem não pode continuar sendo pensado a partir da animalitas, mas, sim, com cuidado, muita atenção em direção a sua humanitas, pois o humanismo é isso, diz Heidegger: "meditar e cuidar para que o homem seja humano e não desumano, inumano, isto é, situado fora de sua essência". E situado em sua essência, ser-no-mundo. Como diz Heidegger, "o que é verdadeiro e autêntico não chega à maturidade senão quando o homem está disponível ao apelo mais alto do céu, mas permanece ao mesmo tempo sob a proteção da terra que dá e produz". Por "apelo mais alto do céu" devemos entender, em Heidegger, que: (1) pensar o ser vivo causa-nos a máxima dificuldade, "por possuir conosco o parentesco mais próximo", e ser, (2) "ao mesmo tempo, separado por um abismo da nossa essência ex-sistente", assim, em comparação, (3) "pode nos parecer que a essência do divino nos é mais próxima", em outras palavras, "mais familiar para a nossa essência ex-sistente que o abissal parentesco corporal com o animal, quase inesgotável para o nosso pensamento" (HEIDEGGER, 2005). Daí as mais absurdas reflexões jurídicas, as sentenças mais insensatas, as mais desvairadas decisões dos Tribunais etc. A metafísica é verdadeiramente um buraco negro que suga o universo do Direito.
12. VIVENDO EM MEU EXÍLIO como se fosse num paraíso perdido e sendo Eva ainda apenas um novo plano divino (apesar de eu pensar muito solitariamente como quem não quer nada na doce Trícia), é sempre assim que trabalho: depois de um dia exaustivo de leitura e anotações, com muitas idéias na cabeça (idéias com o dom tácito do grão maturescente), reflito percorrendo solitariamente a lonjura dos caminhos sempre semelhantes do campo, numa estrada de terra fértil e, lambida pela noite, úmida. Ultrapasso os limites, entro na floresta -- este outro lugar do imaginário Ocidental. "Ela – diz-nos Georges Balandier – é o anterior, o antes, aquilo a que a civilização se opôs a fim de se constituir segundo uma sucessão de progresso ironicamente descrita, no século XVII, por Vico: ‘Primeiro as florestas, depois as cabanas, os vilarejos, as cidade e por fim as academias dos sábios’" (BALANDIER,1999). Entro na floresta porque creio como Camus, que "não há fronteiras entre as disciplinas que o homem se propõe para compreender e amar". E a questão é: o Direito de Família é uma das disciplinas? No fundo, no fundo, espero encontrar alguma coisa que tenha a dignidade (Art. 1º - III, CF) para e de ser norma para o Direito de Família... Este é o sentido que as questões que compõem o título de capa tem como perspectiva: "Quer ser pai? Seja homem! Quer ser mãe? Seja mulher!". A verdadeira aporia, sem dúvida, é que nosso pensar esta preso às âncoras da metafísica (e de seus delírios), da qual, se objetivamos chegar a algum lugar, a caminho do ser, temos que nos libertar e superá-la porque, paradoxalmente, reconhece Heidegger, "a metafísica pensa o homem a partir da animalitas, ela não pensa o homem em direção da sua humanitas". E tentar, alerta-nos Heidegger, "eliminar e compensar esta insuficiente determinação da essência do homem, instrumentando-o com uma alma imortal ou com as faculdades racionais, ou com o caráter de pessoa" (HEIDEGGER, 2005), só levara ao desespero do ambicioso que diz ser Cesar ou nada e a todas as suas tentações. Nada, portanto, mais metafísico do que a proposição de uma "ciência do direito", e, mais particularmente, o que tem sido chamado de "Direito das Famílias", objeto de nossa crítica. Que fique claro, portanto, que criticar é sempre mostrar a distância que separa uma obra do horizonte filosófico ou da filosofia do horizonte mais vasto que ela não conseguiu abarcar ou que não conseguirá abarcar. É o que penso enquanto caminho, ora falando sozinho pelos caminhos de meu refúgio, ora quando recostado numa árvore frondosa à beira do rio percorro numa leitura concentrada e assustada as páginas do "Manual de Direito das Famílias", da professora Maria Berenice Dias e coisas assim. Às vezes até pesco alguma coisa com o anzol sem isca. Alguma coisa que possua um sentido suicida. E na volta para casa, sob as solas do sapato mais do que o barro da estrada que gruda "estende-se a solidão do caminho do campo que se perde no crepúsculo...". E da varanda em que sozinho desfruto toda uma gestalt, lá longe, na obscuridade cinzenta do anoitecer, vejo todos os dias, o caminhar pesado do lavrador que volta para casa e que lentamente se aproxima. E ouço os sapos coaxarem ("que disparate o amor") e rumino a questão: por onde começar? "Boa noite! - saúda o lavrador de passagem. Bom começo! Penso sorridente. "Boa noite!"– respondo com vivacidade. "Filosofar é perguntar pelo começo", observou Vicente Descombes. Estamos de olho, eu, a tristeza (que não é só minha), a solidão (que é de todos nós) e a noite que cai sobre nós. Que seja, portanto, boa. Um bom sono ajuda. A paisagem espaço-temporal é muito grande e, em todas as direções e percursos, quantos males, armadilhas, crimes, fracassos. Mas, também, a brisa fresca, o céu azul, o rio de água limpa, a floresta, o canto dos pássaros... "O mundo é Tipasa", disse Camus. Tenhamos, portanto, bons sonhos! Neste sentido, Albert Béguin adverte o homem moderno que "ele poderia ter, como o mundo em que habita relações mais profundas e mais harmoniosas". É verdade! É possível! E cai a noite! Tudo é vivido agora na forma poética que encontro no Zaratustra de NIETZSCHE (1985): "É noite; agora se elevam mais a voz das fontes. E a minha alma também é uma fonte. É noite; agora despertam todas as canções dos amantes. E a minha alma é também uma canção de amante. Há algo em mim não aplicado nem aplicável, que deseja elevar a voz. Há em mim um desejo sublime de amor que fala a linguagem do amor". Amanhã será um novo dia! E nele, por onde começar? Infinitas são as dúvidas, arbitrárias as certezas, cruéis as verdades... É noite! Que dizer sendo fonte, canções e desejos? Gostaria de falar com Deus... Penso em Sloterdijk: "Quem fala, contraí dívidas; e quem continua falando, fala para pagar" (SLOTERDIJK, 2004). Quando se paga? Prefiro a inadimplência por temer tagarelices. Então, o que dizer para superar a necessidade de continuar falando? Falar algo definitivo? Como, diria Popper: "Nossa ignorância é sóbria e ilimitada". Ser ouvido? Como, diz Sloterdijk: "O ouvido é educado para não dar crédito e para interpretar a sua avareza como consciência crítica"... Sim, idade do cinismo, a nossa. Sem dúvida! E uma estranha devoção a acompanha. É verdade! Cinismo e devoção nos educam. Lamentavelmente! E as faculdades se tornam cada vez mais privadas, verdadeiramente privadas...
13. "ROUBEI A BÍBLIA PARA ir à igreja", confessou-me um jovem universitário sorrindo irônica e candidamente para mim, lá na minha querida cidade de Cachoeiro de Itapemirim, confessando ter feito isso "porque precisava de uma Bíblia, para fazer bonito" porque objetivava "conquistar uma gatinha que era muito carola", talvez porque consciente de que no começo é sempre um pecado e depois, uma impunidade ou um perdão. Talvez até intuitivamente. Jung diria "inconsciente coletivo". E é sempre a história um eterno retorno. Mas eu apenas o olhei interrogativamente: "Grande plasticidade acumulou a fé", pensei perplexo. "Não roubarás", é o que ele encontrará na Bíblia roubada, está escrito. E na igreja, o quê? Que comunhão? Estranha apreensão essa, de que as coisas que importam estão cada vez mais ficando inomináveis e paradoxais e nos escapando. Que adianta a escrita? "Onde, agora? Quando, agora? Que, agora?"- podemos indagar como Samuel Beckett diante de mais uma fatalidade, e depois outra, e outra ad nauseam! (BECKETT, 2000). Diz o primeiro dos axiomas da "Ética" de Spinoza: "Tudo que é, ou é em si, ou é em outro". Não parece ocorrer agora simultaneidade, ao mesmo tempo em si e em outro no padrão ultraliberal da dialética do senhor e do escravo? Que agora? Tudo se despersonaliza. Estranha realidade. Plasticidade líquida. Prostituição. Permissividade. Promiscuidade. Perversidade... Diria Walter Benjamim: "Nossa experiência decaiu de valor". Diria Fernando Pessoa algo assim: "Sou o que fracassei ser, e minha realidade é justamente aquilo que não alcanço nunca". E agora, o começo, qual é o seu lugar? Trata-se, aqui, do Direito de Família, difícil saber! Pensar as mutações da "família patriarcal" (para a infelicidade de quem?) no sistema capitalista e no cristianismo pode ser o começo, e, neste sentido, a família do Código Civil brasileiro... E ir além. E ir além. Com efeito, Deleuze e Guattari, no "Anti-Édipo", nos mostra "a íntima relação que se estabeleceu entre o cristianismo (católico ou protestante) e o capitalismo" (DELEUZE-GUATARI, 1976); aquilo que poderíamos chamar, segundo Lapoujade, "nossa piedade" ou "nosso humanismo", algo mediante o qual ainda somos piedosos (LAPOUJADE, 2004). Equacionando de forma simplificada teríamos: "Nossa piedade" = "Cristianismo"; nosso "Humanismo" = "Capitalismo". É o "Cristianismo" também nosso "Humanismo"? A laicização do Estado nunca se completa. Um problemão! Só a multidão pode resolvê-lo; ou a massa dissolvê-lo; ou o povo negá-lo. "Modernidade líquida", diria Zygmunt Bauman. De onde vem a grande onda? Que outra alegria desceu do céu para o mar? Nestes termos, a infra-estrutura e a superestrutura (ideologia) social funcionam em conjunto, são "agenciamentos" distintos de forças de uma única máquina, uma "megamáquina" distribuidora dos desejos e necessidades e capaz de um agenciamento coletivo no que Sodré define como "o povo" (SODRÉ, 1982), no que Negri e Hardt conceituam de "multidão" (NEGRI-HARDT, 2005) ou mesmo no que Baudrillard caracteriza como "massa" (BAUDRILLARD, 1982). Uma "megamáquina" de duas dimensões: o cinismo e a devoção, isto é, "a interiorização das relações econômicas" (produtoras de desejos e necessidades), por um lado, "a espiritualização déspota" (produtoras de políticas e ocasos salvadores), do outro. Por isso uma megamáquina consistente e voraz em seu curso histórico. Uma observação de Jacques Lacan, do início dos anos 70, explica melhor o fenômeno político-jurídico e social que rege as mutações da Família, ou melhor, do Direito de Família, que o transforma em Direito das Famílias, fundamentado na deformação genética do conceito, da história e do sentido social da Família e nos interesses perversos do capitalismo monopolista, ultraliberal, hegemônico, globalizado e esquizofrênico. Diz Lacan: "O discurso capitalista é algo loucamente astucioso [...] anda às mil maravilhas, não pode andar melhor. Mas, justamente, anda rápido demais, se consome. Consome-se de modo que se consuma" (LACAN, 1972, apud DUFOUR, 2005). E aí está o problema, segundo Dany-Robert Dufour: "ele não se consumará antes de ter consumido tudo: os recursos, a natureza, tudo, - inclusive os indivíduos que a ele servem" (DUFOUR, 2005). Consumará e consumirá também, portanto, a Família, e depois ou simultaneamente, os indivíduos e a coletividade que o ajudaram a consumá-la e a consumi-la. Como conseqüência, Deleuze e Guattari estão certos: "Não é mais a idade da crueldade nem do terror, mas a idade do cinismo, que é acompanhado de uma estranha devoção". (ANTI-ÉDIPO, 1976) De fato! Os dois, cinismo e devoção, constituem a essência do humanismo judaico-cristão agora capitalista pós-moderno que embasa a atual cruzada internacional Pró-Direitos Humanos: o cinismo é a imanência física do campo social, [no qual o Estado pode se propagar "visto que tem uma missão e um evangelho democrático" (LAPOUJADE, 2004)], e a devoção, a manutenção de um Urstaat espiritualizado (Catolicismo, e Protestantismo); o cinismo é o capital como meio de extorquir sobretrabalho, mas a devoção é esse mesmo capital como capital-Deus de onde parecem emanar todas as forças de trabalho (ANTI-ÉDIPO, 1987), que Max Weber foi o primeiro a apreender no fenômeno religioso como espírito do capitalismo.