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A restituição de depósito de coisa fungível em instituição financeira falida.

Estudo de caso através da análise de um dos pedidos de restituição

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3 DECISÃO E EFETIVIDADE

A primeira decisão que merece destaque no caso em questão é logicamente a sentença de primeiro grau da 1ª Vara de Falências da Comarca de Belo Horizonte, na qual atuava a então juíza Márcia de Paoli Balbino que exarou a bem fundamentada decisão de fls. 72 a 85 dos autos.

Em princípio, a magistrada começa análise de sua decisão pela questão preliminar levantada pelo síndico da massa falida, de intempestividade da contestação do BACEN, a qual foi afastada uma vez que o aviso dos credores ao qual refere-se o art. 77 § 2º do Dec-Lei nº 7661/45, não foi oficialmente publicado, tendo em vista que o art. 205 do referido decreto exige que a publicação deve ser feita por duas vezes no Diário Oficial. Desse modo, conforme inferiu dos autos, a publicação fora realizada uma única vez. Ainda em sede de preliminar, trouxeram as partes a discussão sobre o interesse de agir do BACEN. A magistrada entendeu que apesar de o crédito do BACEN encontrar-se em questionamento na Justiça Federal, embora não habilitado na falência, o seu crédito é patente, vez que sub-rogou-se no crédito da CEF, fato este confirmado pelo síndico.

No mérito, inicialmente, a juíza teceu considerações sobre os pedidos de restituição que se enquadravam na Lei n. 9.099/95 e mencionou que nos autos do processo de falência do Banco do Progresso S.A. foram arrecadados bens suficientes para arcar com todos os créditos apresentados, segundo informações do síndico.

Em seguida, a magistrada dissertou acerca do paradigma Constitucional do Estado Democrático de Direito. Segunda ela, tal paradigma reflete brusca mudança da visão do direito, não tendo o positivismo de KELSEN mais lugar, dando ensejo e maior relevância aos princípios e valores sociais.

Nos termos da sentença, a magistrada de primeira instância teceu também considerações sobre a Constituição da República de 1988 como lei superior, considerando, portanto, todas as outras hierarquicamente inferiores. Nesse ponto, traz à baila os princípios da propriedade privada, da defesa do consumidor, o da plena indenização bem como o do não confisco, como norteadores da decisão. Esses princípios são limitadores tanto do poder público, quanto da atividade privada, eis que são o mínimo de garantia dos cidadãos. Ainda nesse diapasão, a magistrada entende que a atividade financeira envolve interesse público apesar de seu intuito de lucro, dessa forma, inseridos no mercado de consumo.

Em consonância com o parecer do Ministério Público, a douta juíza entendeu que o depósito bancário não transfere a propriedade do dinheiro à instituição, sendo este um verdadeiro confisco, sustentado por premissas falhas. Ainda nesse ponto, entendeu que se prevalecer o entendimento de que a propriedade do dinheiro é transferida ao banco, tal absurdo levaria a um caos no sistema financeiro, já que ninguém em plena consciência depositaria seus valores em uma instituição financeira, ciente de que a propriedade da quantia seria transferida ao banco. Sustentou ainda, que essa também não é a vontade manifestada pelos clientes ao realizarem os seus depósitos e que entendimento contrário é uma ofensa ao princípio constitucional de proteção ao consumidor, afastando-se da ética que a atividade financeira requer. Além disso, mencionou o enriquecimento sem causa por parte da instituição financeira.

Consoante a decisão, o consumidor não desejou nem soube da transferência porque não era racional nem razoável que assim o entendesse, fato jurídico este que deveria ser destacado tanto no contrato quanto no ato de transferência dos valores, nos termos, do art. 6º, III e IV do CDC.

Segundo a sentença, se referida cláusula de transferência da propriedade existisse ainda que implicitamente, estaria configurado o chamado vício oculto que induziu o consumidor em erro, no mesmo sentido, entende que prevalecendo a tese sustentada pelo Banco Central estaríamos diante do instituto da doação, haja vista que não houve contraprestação da devolução da quantia requisitada. A transferência de propriedade em contrato de depósito bancário não é característico de sua natureza nem assim está disciplinado legalmente, consoante art. 1265, 1266, 1237, 1276 do então Código Civil.

Ainda neste ponto, entendeu a ilustre juíza que a interpretação dada à súmula 417 pela autarquia federal mostra-se equivocada, eis que exatamente aplicável ao caso em tela.

Posteriormente, ponderou que a instituição financeira presta serviço público e que, dessa forma, sua responsabilidade perante o consumidor é objetiva nos termos da lei e da Constituição. Certa de que mesmo sendo contrato de mútuo irregular como querem os réus, a coisa deve ser devolvida quando solicitada, e não sendo possível a sua devolução, converte-se em perdas em danos nos termos do CDC, portanto, em dinheiro, como pedido na inicial.

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Pelos argumentos apresentados, em 28 de junho de 2000, entendeu por bem a magistrada da 1º Vara de Falências da comarca de Belo Horizonte julgar procedentes os pedidos formulados pelo autor, nos termos do art. 76 do Dec-Lei n. 7.661/45, determinando à autora a devolução da quantia de R$ 2.196,58, devidamente a seu tempo, quando determinado pelo síndico, condenando o BACEN ao pagamento das custas e honorários de advogado em 10%, que deveriam ser rateados em proporção entre advogados e síndico. Justificou, por fim, que embora a sentença fosse desfavorável à autarquia, não estaria sujeita ao reexame necessário, nos termos da súmula 34 do TRF.

É interessante ressaltarmos alguns pontos que são extremamente relevantes na decisão e nas suas conseqüências. De início, ao introduzir a questão consumerista na decisão, a ilustre magistrada trouxe um campo novo de discussões, eis que à época do acontecido estava vigente o Código Civil de 1916, dessa forma, foram introduzidas no debate questões trazidas pelo advento do Código de Defesa do Consumidor, como a nova teoria contratual, a boa-fé objetiva como regra de conduta e a responsabilidade objetiva da instituição financeira. A referida decisão de primeira instância, favorável aos correntistas, fez com que todos os outros credores, correntistas do banco, que tiveram seu dinheiro arrecadado pelo síndico, ajuizassem pedidos de restituição com seus fundamentos e precedentes. Essa talvez seja a maior conseqüência direta da sentença exarada na 1ª Vara de Falências de Belo Horizonte.

Diante da sentença extremamente desfavorável ao seu pleito, o BACEN interpôs recurso de apelação, sendo que seus fundamentos já foram devidamente apresentados.

Neste ponto, importante ressaltarmos que no juízo de admissibilidade feito pela magistrada monocrática, além de receber a apelação em ambos os efeitos, medida esta que impedia qualquer execução por parte dos correntistas que tivessem seu pedido de restituição deferido, o caso em questão foi tratado realmente como passível do recurso de ofício, consoante Lei n. 9.469/97, e não conforme havia decido na sentença.

Em segunda instância, a Apelação foi distribuída na primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas com o n. 000.204.968-2/00, sob a relatoria do ilustre Desembargador Garcia Leão. Neste ponto vale ressaltar a ementa do acórdão, in verbis:

EMENTA: FALÊNCIA – RESTITUIÇÃO DE DINHEIRO – DEPÓSITO BANCÁRIO. Não havendo transferência da propriedade do dinheiro em contrato de depósito, o depositante não é credor do banco, logo, na falência deste, o dinheiro tem que ser devolvido aos correntistas, sob pena de configurar-se ofensa ao princípio constitucional que regula o Sistema Financeiro Nacional, indicado no caput do art. 192 da Constituição Federal. (TJMG Apelação Cível Nº 000.204.968-2/00 – Comarca de Belo Horizonte – Apelantes(S) JD 1 V Falências e Concordatas Belo Horizonte e Outros – Apelado(S): Gráfica Real Ltda – Relator: Exmo. Des. Garcia Leão)

De início, o Desembargador Relator, em síntese, afirmou que a matéria falência de bancos no judiciário é nova, sendo escassas as referências na jurisprudência e na doutrina. Expôs seu posicionamento no sentido de que o depósito bancário não transfere a propriedade do dinheiro ao banco, senão de forma precária, de modo que a instituição pode dele utilizar-se, mas não apropriar-se. Ainda neste sentido, apresentou um argumento que merece a transcrição nas suas exatas palavras, senão vejamos:

Se nós formos levar ao pé da letra a questão posta pelo Banco Central de que o banco adquire a propriedade plena do dinheiro depositado, como ficaria a situação daqueles que, como nós, recebem dos cofres públicos, mas não diretamente das mãos do Secretário da Fazenda ou do Sr. Governador do estado, e sim através de um depósito bancário em estabelecimento que sequer escolheram? Teriam perdido a propriedade do seu salário pelo simples fato de ele ter sido depositado num banco?

Em seu voto, o julgador ressaltou que estando subordinados à Constituição e ao Sistema Financeiro Nacional, os bancos estão sujeitos aos princípios da propriedade privada, da defesa do consumidor, da isonomia, do não-confisco e o da segurança jurídica. Entendeu que trata-se de contrato de depósito, que não transfere a propriedade e trouxe posicionamentos favoráveis ao seu voto, como de Fran Martins e Orlando Gomes. Citou também a súmula 417 do STF que entendeu ser favorável ao pleito dos correntistas, e afirmou que o banco depositário, apesar de estar em estado de falência, possuía recursos necessários à satisfação de todos os créditos. Afirmou a aplicação do CDC aos bancos conforme vinha sustentando em outros julgamentos.

Em seguida proferiu voto o revisor o Desembargador Paris Peixoto Pena, o qual, em princípio, entendeu pela legitimidade passiva do BACEN, e pela tempestividade de sua contestação com fincas nos art. 77 § 2º , já que não fora devidamente cumprido conforme art. 205 do Dec.-lei n. 7.661/45. Ainda, entendeu também que apesar de o depositário ter a disponibilidade de dispor da coisa, não tem o seu domínio, pois sempre estará na obrigação de devolvê-lo, afirmando que o entendimento do BACEN é absurdo.

Finalmente, o ilustre vogal Desembargador Francisco Lopes de Albuquerque, voto vencido no referido acórdão, produziu seu voto no sentido de que em sua opinião o depósito em questão é o chamado depósito irregular, aplicando-se, pois, as regras do mútuo, e que desse modo, na esteira da mais aclamada doutrina, o mesmo transfere a propriedade ao depositário, devendo ser os correntistas considerados no processo de falência como credores quirografários, havendo apenas um crédito do correntista contra o banco. O resultado do julgamento foi o seguinte: confirmaram a sentença no reexame necessário, vencido o vogal, o que ensejou a interposição de Embargos Infringentes pelo BACEN.

A decisão dos Embargos Infringentes começa com o voto do Desembargador Antônio Hélio Silva, que pugnou pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor ao caso, afirmando que o depósito não transfere a propriedade do dinheiro ao banco, eis que vontade do depositante não pode ser presumida diante dos princípios constitucionais do não confisco e da plena propriedade, afirmando ainda que a transferência da propriedade ao depositário seria uma verdadeira afronta ao princípio constitucional da proteção ao consumidor e que tal atitude deveria estar expressa de forma clara e destacada no contrato de abertura de qualquer depósito em banco. Seguiram-se ao seu voto o Desembargador Garcia Leão e Francisco Lopes de Albuquerque, sendo que o primeiro acompanhou o Relator e o segundo manteve seu voto divergente. O voto seguinte coube ao ilustre Desembargador Eduardo Andrade que em síntese concordou com o voto divergente no sentido de se entender o depósito bancário transfere sim a propriedade, e que a Súmula 417 não se aplica ao caso, nem o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que embora relação de consumo, trata-se de simples interpretação de matéria de direito substantivo, em que se examina, inclusive, direito de terceiros credores. Ainda traz a baila, que o STJ permitiu a penhora de dinheiro "na boca do caixa" confirmando assim, sua tese.

Por fim, o ilustre Desembargador Geraldo Augusto proferiu seu voto e decidiu que o depósito bancário possui características sui generis que impedem que sejam aplicadas de modo simplista e literal as disposições concernentes a contratos convencionais de depósito irregular e ou de mútuo, reiterando os demais argumentos trazidos em votos anteriores. O resultado do julgamento dos Embargos Infringentes foi pela rejeição dos mesmos, vencidos os primeiro e segundo vogais. Em sede de embargos de declaração interposto pelo BACEN, os desembargadores entenderam que a finalidade utilizada foi a de prequestionamento e dessa forma, foram rejeitados.

Já em sede de Recurso Especial sob o n. 505.710-MG (2003/0002212-9) o Ministro César Asfor Rocha conheceu parcialmente o recurso interposto pelo BACEN, sendo que relativamente ao art. 535, II, CPC, não considerou subsistir a ofensa alegada, eis que os embargos de declaração foram rejeitados pela inexistência omissão, já quanto ao mérito, entendeu o ilustre Ministro que em outra hipótese o STJ havia entendido que o depósito bancário não é depósito comum, tendo a particularidade de transferir à instituição a titularidade dos valores depositados, o que autorizava o banco a dispor do numerário como quiser, não se enquadrando porém nas hipótese do art. 76 do Dec.-lei n. 7.661/45. Nesses termos, em consonância com o art. 557, § 1º A, do CPC, conheceu parcialmente do recurso, determinando a improcedência do pedido de restituição. Em seguida, proferiu decisão no Agravo Regimental interposto, negando seguimento ao referido agravo com as fundamentações anteriormente apresentadas.

Posteriormente, aviado recurso extraordinário pela massa falida, o Ministro Edson Vidigal determinou que se intimassem as partes a efetuar o recolhimento das custas. Irresignado, o síndico da Massa Falia do Banco do Progresso, sem ter condições de arcar com as custas de todos os recursos dos correntistas, requereu que cada correntista fosse intimado a arcar com suas próprias custas, pedido que foi indeferido pelo Ministro Vidigal sob o argumento de que o art. 511 do CPC não admite tal hipótese. Dessa forma, transcorrido prazo para que a parte realizasse o recolhimento do preparo e do porte de remessa, o Recurso Extraordinário foi tido por deserto, tendo sido negado seu seguimento. Ainda para que as decisões não fossem objetos de execução provisória, os procuradores do Banco Central ajuizaram Medidas Cautelares perante o Tribunal de Justiça de Minas Gerais nos Recursos Especial e Extraordinário para resguardar o dinheiro das restituições. Entretanto, tais medidas foram indeferidas.

Por fim, os autos retornaram a origem, isto é, para a primeira Vara de Falências de Belo Horizonte, na qual o juiz Paulo de Carvalho, entendendo que o STJ não desconheceu a titularidade do crédito em questão, determinou a habilitação do crédito, junto aos quirografários com os juros e correções na forma da lei.

Pelo exposto, neste capítulo foi demonstrado todo o trâmite das decisões mais importantes no processo bem como suas conseqüências.

Sobre os autores
Júlio Moraes Oliveira

Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade FUMEC (2011), Especialista em Advocacia Civil pela Escola de Pós-Graduação em Economia e Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas EPGE/FGV e EBAPE/FGV. (2007), Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos - FDMC (2005). Membro da Comissão de Defesa do Consumidor - Seção Minas Gerais - OAB/MG. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Membro Suplente do Conselho Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor - Comdecon-BH. Professor da FAPAM - Faculdade de Pará de Minas. Professor da Faculdade Asa de Brumadinho. Parecerista da Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM) Qualis B1, Parecerista da Revista Quaestio Iuris da Universidade do Estado Rio de Janeiro (UERJ) Qualis B1. Pesquisador com diversos artigos publicados em periódicos. Autor dos Livros: CURSO DE DIREITO DO CONSUMIDOR COMPLETO, 4ª edição e CONSUMIDOR-EMPRESÁRIO: a defesa do finalismo mitigado. Advogado, com experiência em contencioso e consultivo, em direito civil, consumidor, empresarial e trabalhista. juliomoliveira@hotmail.com

Fernando Benevides de Souza

Especialista em Advocacia Cível pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV-EDESP - Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Advogado.

Mara Carolina Almeida Rabelo

Especialista em Advocacia Cível pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas - FGV-EDESP -Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Júlio Moraes; SOUZA, Fernando Benevides et al. A restituição de depósito de coisa fungível em instituição financeira falida.: Estudo de caso através da análise de um dos pedidos de restituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2878, 19 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19139. Acesso em: 23 dez. 2024.

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