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A proteção aos direitos da criança.

Um estudo sobre a inquirição nos casos de abuso sexual

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6. O depoimento judicial da criança sob novos parâmetros

A estratégia global para encarar a questão do abuso sexual da criança e do adolescente implica a construção de novos paradigmas, quer no campo valorativo, ético e jurídico.

Entretanto, no Brasil já se passam mais de uma década das vigências da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que vieram para deflagrar a luta pela defesa da infância cidadã, contudo, segundo Azambuja (2004, p.159), "[...] observam-se ainda fartes resistências por parte do poder público em adequar suas práticas ao comando constitucional [...]", deixando de abster à criança a condição de prioridade absoluta, como dispõe o artigo 227 da Carta Maior.

No que tange aos depoimentos prestados por crianças vítimas de abuso sexual, o problema ocorre, pois, devido à falta de conhecimentos específicos sobre a dinâmica do abuso sexual infantil, bem como à falta de estrutura adequada para ouvir as crianças, gerando uma dificuldade em realizar o ato.(DOKKE, 2001, p.95).

Fato é que, muitos juízes não consideram satisfatório o recurso psicológico, pois preferem ouvir diretamente a vítima, entretanto, alguns avaliam que este recurso compromete os princípios da ampla defesa e do contraditório do processo judicial. Desse modo, o trabalho do psicólogo e do assistente social, nestas situações, poderia preparar a criança para o depoimento, dando tranquilidade e segurança a ela. (SUCUPIRA, 2006).

Desta forma, com o intuito de viabilizar o depoimento de crianças e adolescentes que sofreram algum tipo de maus-tratos, o Juiz José Antônio Daltoé Cezar, juntamente com alguns colegas do campo jurídico, resolveram adaptar um novo modelo de depoimento. Este projeto chama-se "Depoimento Sem Dano", sendo implantado inicialmente na Comarca de Porto Alegre, tendo como objetivo a redução do dano durante a produção de provas em processos de natureza criminal e civil, nos quais a criança ou o adolescente é vítima ou testemunha, bem como que seus direitos sejam garantidos, e sua palavra valorizada. Isto apenas ocorrerá se for respeitada a sua condição de pessoa em desenvolvimento. (CEZAR, 2007, p.67).

As providências tomadas, sem dúvida, atendem aos principais objetivos do projeto depoimento sem dano: redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; a garantia dos direitos da criança /adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento; melhoria na produção da prova produzida. (CEZAR, 2007, p.62).

Por fim, encerrada a inquirição pelo projeto "Depoimento Sem Dano", o arquivo de som e imagem é encaminhado para degravação, a qual é realizada no prazo máximo de setenta e duas horas. Após, o termo degravado é juntado ao processo, assim, com um disco contendo o som e as imagens do depoimento, este que é inserido na contracapa. Ao final, por questões de segurança, uma cópia do disco é mantida junto aos arquivos da Vara da Infância e da Juventude, a fim de eventual necessidade de cópia do documento. (CEZAR, 2007, p.61-62).

Na visão de Araújo e Williams (2009, p.184), "o Depoimento Sem Dano aumenta a confiabilidade das informações por ser gravado em vídeo e áudio, preservando as próprias palavras da criança, pois a memória do evento vai diminuindo com o passar do tempo". Aliás, evita que a criança seja submetida novamente a outros depoimentos.

A experiência desenvolvida de forma pioneira pela Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre está sendo disseminada para outros Estados brasileiros. Goiás, recentemente, e em processo de implantação no Rio de Janeiro, São Paulo, Rondônia e Bahia.

Já, com o advento da Lei 11.690, de 09 de junho de 2008, o artigo 156, inciso I, do Código de Processo Penal, passou a admitir a produção antecipada de provas. Esta reforma permite que o depoimento seja videogravado no momento do ajuizamento das provas, com vistas a ser anexado no processo.

Neste contexto, tramita atualmente no Senado Federal o Projeto de Lei 35/2007, de autoria da Deputada Maria do Rosário, o qual, com base na experiência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pretende incorporar ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e ao Código de Processo Penal alterações acerca da inquirição de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência sexual por meio do Depoimento Sem Dano (DSD), podendo tal procedimento ser estendido a outros crimes, bem como a possibilidade de produção antecipada de prova. (FÁVERO, 2009)

Quanto ao modelo de tomada de depoimento especial, dois são os mais utilizados tanto no Brasil e em diversos países do mundo: um que segue a linha do direito inglês utilizando massivamente o sistema Closed Circuito of Television [01] (CCTV), com depoimentos por circuito fechado de TV e gravação de videoimagem; e o outro que segue o modelo americano, com a utilização de Câmara Gesell.

Veleda explica que a inquirição na Câmara Gesell prescinde "da aquiescência da defesa técnica, pois as partes podem fazer perguntas à vítima, através do "expert", e o acusado, sem contato com a criança, estará junto ao seu defensor para as informações que quiser lhe transmitir".(DOBKE, 2001, p.93).

Borba (2002, p.06), apresenta outras propostas de inquirir a criança ou adolescente sem revitimizar: a) a substituição da inquirição da vítima por uma avaliação técnica que só será possível com a concordância da Acusação e Defesa; b) a nomeação de um intérprete, para a oitiva da criança vitimada; c) a inquirição pela Câmara Gesell; e d) a criação de Varas Especializadas na apuração dos crimes de abuso sexual.

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Para Araújo e Williams (2009, p.71), seria necessário criar Juizados Especiais, com equipe de profissionais qualificados para acompanhar a vítima, com treinamento de juízes, delegados, promotores para abordagem dessas vítimas. A criação desses Juizados, e ainda "[...] permitiria, inclusive, a formação de um banco de dados nacional sobre o problema, com cadastro dos agressores condenados".

No entanto, percebe-se que há uma necessidade enorme de assegurar que todos os profissionais envolvidos no sistema de justiça criminal, entre eles advogados, juízes, promotores e delegados, recebam treinamento adequando sobre abuso sexual, para que tenham uma compreensão mais profunda acerca das questões complexas envolvidas nele, tais como padrões de abuso, diferenças entre abuso sexual interno e externo à família, impacto do abuso, bem como efeitos emocionais e psicológicos do abuso sexual. (SANDERSON, 2005, p.300).

Somente depois que tudo estiver adequadamente compreendido é que os profissionais do direito poderão tomar decisões apropriadas e implementar mudanças legislativas que protejam de fato a criança e o adolescente, estimulando a prevenção do abuso sexual no País.

Assim, uma das maiores dificuldades existentes para quem lida com qualquer tipo de violência sexual é encontrar a linguagem correta para se comunicar com a vítima, testemunhas e com o suposto abusador sexual.

O abuso sexual infantil é um tema que mobiliza emoções naqueles que lidam com o problema, bem como as pessoas que dele apenas tomam conhecimento. De acordo com Dobke (2001, p.49), isso ocorre porque "[...] o assunto engloba sexo, sexualidade da criança, fatos ainda não desmistificados, e violência". Por esta razão, conclui-se que os operadores do direito que irão inquirir a criança devem estar psicologicamente preparados para a árdua tarefa, pois para este mister não basta apenas os conhecimentos das normas processuais.

Para Furniss (1993, p.198), "a entrevista de revelação deve ser conduzida conjuntamente pelo assistente social com responsabilidade estatuária [...]" juntamente na presença da pessoa de confiança a quem a criança revelou inicialmente. Furniss (1993, p.203), ressalta ainda que "antes da entrevista de revelação com a criança, deve acontecer um encontro separado de todos os profissionais que talvez estejam na sala durante a entrevista".

Gauderer (1998, p.166), salienta que

O profissional deve, antes de mais nada, avaliar a sua própria postura e disponibilidade profissional para discutir assuntos relacionados à sexualidade, ao abuso físico, sexual, agressões etc., antes de avaliar uma criança. Se o grau de desconforto for muito grande, é melhor encaminhar esta criança para alguém que se sinta mais à vontade.

Contudo, além dos profissionais possuírem uma preparação psicológica, os inquiridores devem ter conhecimentos, sobre a dinâmica do abuso sexual infantil, como síndrome do segredo e adição. Segundo Dobke (2001, p.50), este conhecimento se faz necessário "para melhor tomar o depoimento da criança, porque inquiri-la sobre a prática abusiva não é o mesmo que inquirir vítimas de outros delitos".

A inquirição deve ser feita por meio de perguntas formuladas com uma linguagem simples e compatível, de acordo com o estágio e nível de desenvolvimento da criança, mas sempre utilizando linguagem sexual explícita, para que ela possa compreender o que está sendo perguntado, bem como de maneira sensível à dimensão psicológica do abuso sexual, para que desta forma a criança não sofra mais do que já sofreu. (DOBKE, 2001, p.50).

Em todas as etapas do depoimento, o profissional deve produzir aspectos de base segura, acolhedora e continente, devendo isso ocorrer não apenas através dos diálogos nos quais se realiza durante o ato, mas também através do seu olhar, dos gestos, da valorização da pessoa que acompanha o depoente, além de ser importante que deixe transparecer um sentimento de compreensão, com a situação que a criança encontra-se inserida.(CEZAR, 2007, p.67).

Além de algumas perguntas específicas, para a tomada do depoimento da vítima, é necessário que o inquiridor – juiz, promotor de justiça e defensor – antes de tudo, estabeleça com a criança uma relação de confiança, mostrando-se interessado nela e na sua experiência, e deixe claro que ela não tem responsabilidade pelo que aconteceu. Também

Deve evitar referir "não é culpa sua", em razão do aspecto psicológico de sentir culpado que está ligado à interação abusiva, ou seja, a criança, assim como o abusador, está envolvida no abuso e, por isso, também se sente culpada; dizer que a culpa não é dela gera, então, confusão na criança, pois a culpa não é entendida no seu aspecto legal. (DOBKE, 2001, 51-52)

Desse modo, a conversa deve iniciar com assuntos gerais, atividades de que gosta, escola, brincadeiras e etc. e, depois de estabelecida a confiança, bem como o respeito, passa-se a formular as perguntas específicas. Esta fase interlocutória permitirá ao inquiridor estabelecer o vínculo de confiança, bem como avaliar o grau de desenvolvimento cognitivo, intelectual e psicossocial da criança, que, segundo Dobke (2001,p.50-51) será necessário "[...] para melhor direcionar as perguntas seguintes, além de "testar" a linguagem com que deverá realizar a inquirição".

Assim, perguntas adequadas levam a um bom conteúdo do relato, possibilitando uma convicção segura sobre o cometimento ou não do abuso, mormente quando não há outras provas a serem levantadas, a versão da vítima passa a ser de suma importância nos delitos cometidos na clandestinidade.

Outra forma de se comunicar com a criança, dentro do contexto, seria a utilização de bonecas anatômicas na avaliação do abuso sexual. Segundo Furniss (1993, 205), as bonecas "[...] são apenas um instrumento entre outros, e que somente podem ser utilizadas em um contexto global de comunicação adequada com a criança. Outras formas e elementos de comunicação também devem ser explorados".

Portanto, a proteção da criança deve ser prioridade e, por certo, a declaração dela também; e ainda, considerando que esta poderá ser a única prova, precisa ser tomada com a máxima capacitação profissional, de maneira adequada, com atenção e, acima de tudo, com a coragem de ouvir a resposta.


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Carta Magna veio trazer à criança e ao adolescente o direito fundamental de ser ouvida, amada, protegida e cuidada, com base no princípio da prioridade absoluta. Com a promulgação da Constituição de 1988, tornaram-se reconhecidos os direitos da criança e do adolescente, por meio de um instrumento importante, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), representando um marco na história dos direitos da criança e do adolescente. Contudo passaram-se quase duas décadas e nada mais foi feito no que concerne à legislação.

O fato é que a justiça depara-se hoje com uma grande demanda de situações de violência sexual, necessitando da oitiva da criança vítima dessa violência, e, não havendo nem espaço nem profissionais habilitados e competentes para ouvi-la o seu depoimento acaba sendo uma segunda violência.

O abuso sexual atualmente tornou-se uma epidemia, pois todos os dias são registradas novas denúncias no que se refere a violência sexual, sendo que na maioria dos casos o agressor é alguém integrante da própria familiar ou alguém que a ela tem acesso e toda confiança.

Identificar e punir o abusador é o papel esperado do Poder Judiciário, mas isso apenas não é suficiente, pois, são necessárias políticas públicas e prevenção e tratamento, tanto para vítima quanto para o abusador.

Desta forma, conclui-se, que o atendimento adequado as crianças vítimas de violência sexual, seguida de um bom auxílio profissional competente, da área de psicologia ou assistência social, o qual acompanhará os depoimentos com os cuidados necessários para não prejudicar a saúde psicológica da criança, já abalada pelo abuso e agora por ter contado o "segredo", ajuda de certa forma, a amenizar as conseqüências advindas do abuso.

Cabe assim, aos legisladores e integrantes do poder judiciário, habilitar nossos mecanismos de coleta de depoimento, no que se refere a crianças e adolescentes, seja elas vítimas de abuso sexual, ou por qualquer outro motivo que faça com que a mesma se sinta constrangida.


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Nota

  1. Circuito fechado de televisão.
Sobre os autores
Ismael Francisco de Souza

Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina; graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense; professor de Direito da Criança e do Adolescente,e de Sociologia do Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense; pesquisador do Laboratório de Direito Sanitário e saúde coletiva, e Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (UNESC).

Priscilia Ugioni Duarte

Bacharel em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense-UNESC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Ismael Francisco; DUARTE, Priscilia Ugioni. A proteção aos direitos da criança.: Um estudo sobre a inquirição nos casos de abuso sexual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2975, 24 ago. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19840. Acesso em: 10 nov. 2024.

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