INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, o desenvolvimento das instituições sociais modernas e a sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para que os seres humanos gozassem de uma existência mais segura e gratificante que em qualquer tipo de sistema pré-moderno [01].
Nesse sentido, qualquer olhar sobre o mundo moderno, necessariamente, deve considerar a presença da ciência e da tecnologia, que estendeu sua influência sobre quase todos os campos do agir humano e do saber social, penetrando nas relações sociais e até mesmo nos espaços individuais, transformando-se, por assim dizer, no modus vivendi da sociedade contemporânea.
É notável a crescente dependência da humanidade atual em relação à ciência e à tecnologia. As principais, senão a totalidade, das atividades humanas, como processo de produção, a educação, a alimentação, a medicina, a comunicação, etc., estão fortemente vinculados ao desenvolvimento sempre maximizado das tecnociências. Nos últimos tempos, cresceu a preocupação acerca dos efeitos, nem sempre favoráveis, do uso das modernas tecnologias. Se por um lado, nada parece impossível aos olhos da tecnociência, crescem os sentimentos de impotência diante dos impasses, da instabilidade e da precariedade das conquistas tecnológicas.
Nesse contexto, a sociedade atual, complexa e diversificada, apresenta novos conflitos e, em razão disso busca novas metodologias científicas para solucioná-los. Os aspectos negativos provenientes do progresso tecnológico passam a ser questionados e ponderados.
Os avanços na área da biotecnologia atingem polêmicas discussões filosóficas, sociais, econômicas e jurídicas, sendo o seu impacto na sociedade. As descobertas no campo da genética de um lado possibilitam a salvação de milhões de vidas, por outro lado, muitas vezes podem apresentar conseqüências imprevisíveis e não calculáveis. O desenvolvimento tecnológico é, ao mesmo tempo, acompanhado por um modelo de bem estar e de conforto, bem como pela produção de riscos imprevisíveis e incalculáveis, cuja repercussão não pode ser delimitada no tempo e no espaço.
Todavia, em dadas circunstancias a biotecnologia, com o escopo de atender às necessidades humanas, pode provocar praticas eugemonicas. Desse modo, a eugenia, um tema que parecia ter sido extinto ao final da Segunda Grande Guerra com a queda do império nazista, todavia encontra-se cada vez mais atual. De fato, pode-se afirmar que jamais deixou de ser atual, pois acompanha o homem por toda a sua evolução.
Na verdade, o instinto eugênico é inerente a todos os animais, assim como o instinto de sobrevivência. O interessante é que o ser humano consegue se destacar entre todos os animais por conseguir, por meio da evolução de seu raciocínio e do reconhecimento de sua espiritualidade, agir não por instinto, mas pela razão. Sendo assim, quanto mais o homem age pela razão, mais se distancia de qualquer espécie, passando a dominá-las.
Diante disso, o presente trabalho teve por objetivo analisar a responsabilidade civil e a eugenia.
1 A RESPONSABILIDADE CIVIL
A Responsabilidade constitui-se como um dos mais relevantes temas da ciência jurídica. Trata-se, aliás, de questão das mais antigas, apresentando uma evolução pluridimensional, pois sua expansão se deu quanto à sua história, aos seus fundamentos, à sua extensão ou área de incidência (número de pessoas responsáveis e fatos que ensejam a responsabilidade) e à sua profundidade ou densidade (exatidão de reparação).
Primitivamente, a reparação do dano resumia-se na retribuição do mal pelo mal, de que era típico exemplo a ‘pena de talião’: olho por olho, dente por dente. A responsabilidade era objetiva, não dependia de culpa, apresentando-se apenas como uma reação do lesado contra a causa aparente do dano. Mas, a vingança privada, como modo de compensar o dano, era contraproducente; em verdade, com ela, não havia reparação alguma, porém, duplo dano, redobrada lesão, a da vítima e a do seu ofensor, depois de punido [02].
Depois desse período, tem-se período da denominada composição, ante a observância de fato que seria mais conveniente entrar em composição com o autor da ofensa, para que ele repara-se o dano mediante a prestação da pena a critério da autoridade pública, se o direito fosse público, e do lesado, se trata de direito privado, do que cobrar a retaliação.
A ação de ressarcimento nasceu no dia em que a repressão se transferiu das mãos do ofendido para as do Estado. À vítima cabe apenas uma indenização pelo dano sofrido, já não se fala mais em ‘vingança’, mas sim em ‘reparação’.
Todavia, a responsabilidade também evoluiu no que tange ao seu fundamento, isto é, a razão pela qual alguém deve ser obrigado a reparar um dano, baseando-se o dever de reparação não só na culpa, hipótese em que será subjetiva, bem como no risco, caso em que passará a ser objetiva. O regime de responsabilidade relacionado a idéia de culpa tinha razão de ser no sistema das relações econômicas de épocas ultrapassadas [03].
O teor da vida moderna mostrou a ineficácia da idéia de culpa para legitimar o dever de indenizar prejuízos dignos de reparação que, todavia, não resultam de atos ilícitos propriamente ditos. Multiplicam-se, com efeito, as situações nas quais precisa alguém obter reparação do dano sofrido sem que haja a quem se possa atribuir a responsabilidade do fato danoso, no sentido genuíno da palavra, mas a quem, por outras razões, se pode determinar a obrigação de ressarci-lo. Tende-se, porém, para estender o conceito de responsabilidade até aos casos em que o dano resulta da prática de ato lícito.
Toda a evolução no sentido da chamada responsabilidade objetiva denota a imprestabilidade do conceito de culpa para a solução dos casos que reclamam a atribuição do dever de indenizar independentemente da comprovação de erro da conduta do agente [04]. Segunda a nova concepção, quem quer que crie um risco deve suportar as conseqüências.
A expansão da responsabilidade operou-se também no que diz respeito à sua extensão ou área de incidência, aumentando-se o número de pessoas responsáveis pelos danos, de beneficiários da indenização e de fatos que ensejam a responsabilidade [05].
Todo aquele que causar dano a outrem, seja pessoa física ou jurídica, fica obrigado a repará-lo, restabelecendo o equilíbrio rompido. Quando a responsabilidade advém de ato do próprio imputado, ela será direta. Todavia, houve uma evolução estendendo a responsabilidade de certa pessoa, por presunção de culpa, por fatos de terceiros pelos quais o imputado responde, p. ex., entre pais e filhos menores, tutores e tutelados por culpa in vigilando, entre transportadores e causadores do dano, seguradores e terceiros culpados etc.
Pelo seguro obrigatório de responsabilidade por acidentes causados a terceiros, os seguradores se responsabilizam por atos de terceiros culpados, através deste seguro obrigatório, transfere-se o encargo de reparar o dano à comunidade, evitando que o dever de indenizar faça do responsável outra vítima, causando-lhe a ruína financeira. Espalha-se assim, pela comunidade o dano experimentado por um de seus membros, hipótese em que surge a socialização da responsabilidade [06].
Ao lado da responsabilidade por fato próprio, ou seja, responsabilidade direta, ter-se-á então, os casos de responsabilidade por fato de terceiros, assim como de animais e de coisas, que configuram a chamada responsabilidade indireta.
Quanto à densidade ou profundidade da indenização, o princípio é o da responsabilidade patrimonial, segundo o qual a pessoa deverá responder com o seu patrimônio pelos prejuízos causados a terceiros, exceto nos casos em que se disponha a proceder, ou seja, possível, a execução pessoal e nos de intervenção de terceiro para a realização devida.
Segundo Maria Helena Diniz:
A responsabilidade civil é a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesmo praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal [07].
Para Stocco, a responsabilidade civil está fundamentada no restabelecimento da situação anterior ao dano, isto é, todo dano tem o direito de ser indenizado na mesma magnitude, restabelecendo o equilíbrio [08].
Para Pereira a responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. O binômio da responsabilidade civil é composto pela reparação e pelo sujeito passivo, que então se apresenta como o princípio que subordina a reparação à incidência na pessoa do causador do dano [09].
Nelson Dower, por sua vez, assevera que quando alguém causa prejuízo a outrem está obrigado a reparar o dano. Tem como pressuposto que o ser humano, desde que capaz, deve responder por seus atos. Havendo um comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão), contrário ao direito e alcançando terceiro, causando-lhe prejuízo, deve o agressor arcar com as suas conseqüências, ou seja, deve reparar o dano causado, restaurando o equilíbrio que sua ação ou omissão, dolosa ou culposa, provocou [10]. Assim, o ato material que infringe o dever legal e causa prejuízo a outrem é considerado ato ilícito. Sua conseqüência, no campo privado, está na responsabilidade civil que consiste no dever que alguém tem de reparar o dano, a que der causa.
1.1 Elementos da responsabilidade civil
Consolidou-se no direito a exigência de que o direito à reparação necessita da conjugação dos seguintes elementos: o dano, que se faz necessário, eis que, sem dano não há Responsabilidade Civil; a ação: que envolve tanto o ato comissivo como o ato omissivo e o nexo causal, ou seja, a relação de causalidade entre a ação e o dano. Isto se levando na linha de consideração que o princípio da culpa como requisito do direito à reparação, não pode mais ser considerado como algo indispensável, eis que, como já fora afirmado anteriormente, a Responsabilidade Civil subsiste em hipóteses culposas ou não-culposas, erigindo-se o risco como uma das fundamentações de responsabilidade, tendo em vista certas atividades [11].
1.1.1 Dano
O primeiro elemento refere-se ao dano. A ocorrência do dano configura-se como um dos requisitos básicos para que haja a responsabilidade civil, não pode haver responsabilidade civil sem dano. Este deve ser injusto, no sentido de contrário ao direito. Deve ser atual, certo e pessoal (ou derivado).
Caio Mario da Silva Pereira descreve o dano como o resultado de uma conduta antijurídica, imputável a uma pessoa, tendo como conseqüência a obrigação de sujeitar o ofensor a reparar o mal causado [12].
A caracterização do dano independe de sua extensão. Tanto os prejuízos de pequeno porte como os de grande expressão são suscetíveis de reparação. A Lei Civil não distingue a respeito. O objeto e seu valor podem ser definidos mediante prova técnica. Esta, todavia, nem sempre é essencial, pois há casos em que o valor do bem é tabelado, o que dispensa a avaliação do expert. Os autos, por outro lado, podem conter a prova documental do bem destruído, o que induz o montante da condenação judicial [13].
Ao expressar a noção de ato ilícito, o art. 186 do Código Civil não faz restrição a qualquer modalidade de prejuízo. Assim, desde que o agente, culposamente, produza dano ao direito alheio, não ocorrendo alguma exclusão de ilicitude, haverá a responsabilidade de reparação. O agente deve ser compelido a recompor a situação fática ao status quo ante ou, não sendo isto possível, a indenizar a vítima com o valor correspondente à extensão do seu prejuízo [14].
Dano suscetível de reparação é o praticado contra ius, ou seja, o dano injusto, o não amparado pelo ordenamento. Não são ilícitas as lesões praticadas em legítima defesa, no exercício regular de direito ou a fim de remover perigo iminente, desde que necessária a conduta e nos limites indispensáveis (art. 188 do CC) [15].
Os danos se distinguem ainda em contratuais, decorrentes do inadimplemento das obrigações, sob a forma de perdas e danos (art. 389 do CC) e extracontratuais, resultantes de atos ilícitos (art. 927 do CC).
Mas, a mais importante classificação dos danos é a que os distinguem em patrimoniais, morais e estéticos. O mais comum é o patrimonial, que atinge os interesses materiais da pessoa, por exceção às ofensas aos valores íntimos da personalidade [16].
O dano se diz patrimonial quando provoca a diminuição do acervo de bens materiais da vítima ou, então, impede o seu aumento. Materializa-se por danos emergentes, com a diminuição do patrimônio, ou por lucros cessantes, quando a vítima se vê impedida da atividade que lhe traria proveito econômico [17].
Clayton Reis traz define o dano moral nos seguintes termos:
Trata-se de uma lesão que atinge os valores físicos e espirituais, a honra, nossas ideologias, a paz íntima, a vida nos seus múltiplos aspectos, a personalidade da pessoa, enfim, aquela que afeta de forma profunda não bens patrimoniais, mas que causa fissuras no âmago do ser, perturbando-lhe a paz de que todos nós necessitamos para nos conduzir de forma equilibrada nos tortuosos caminhos da existência [18].
A indenização por danos morais não visa à reparação, pois não há como a vítima se tornar indene; condena-se com dupla finalidade: a de proporcionar à vítima uma compensação e para se desestimular condutas desta natureza [19].
1.1.2 A ação ou conduta humana
O outro elemento diz respeito ao agente que, por sua ação ou omissão causa danos à vítima. O agir pode ser consectário da prática de atos lícitos ou ilícitos.
Nas palavras de Maria Helena Diniz:
Ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de satisfazer os direitos do lesado [20].
O ato ilícito pode ser praticado mediante ação ou omissão do responsável pela reparação. Em outras palavras, o ilícito pressupõe uma conduta do agente, violadora da lei ou de ato negocial e causadora de lesão ao direito alheio [21].
O ilícito decorre de uma ação quando o agente não se abstém de uma prática vedada em lei ou em ato negocial. Se, em lugar de respeitar a incolumidade alheia, como a lei ordena, agride, física ou moralmente, incide em ilícito civil e penal. Neste caso, a conduta ilícita foi comissiva. A inclusão de nomes, indevidamente, em cadastro de inadimplentes, constitui ilícito suscetível de reparação por danos morais. Impunha-se a omissão, enquanto o agente praticou conduta comissiva [22].
No dever jurídico omissivo ou negativo, em cuja categoria se enquadra a generalidade dos ilícitos penais, o agente cumpre a norma geral ou individual deixando de interferir na ordem dos fatos. Sujeita-se à responsabilidade civil quando a sua conduta é comissiva e dela decorrem danos a outrem. Um executivo, ao violar o dever omissivo de manter sigilo sobre determinada linha de produção, transmitindo ao concorrente informações proibidas e, com a sua atitude, causando prejuízos à empresa, responde civilmente, sem prejuízo de possível co-responsabilidade da pessoa jurídica beneficiada. A conduta do agente, in casu, foi comissiva [23].
Para a configuração da responsabilidade objetiva, que não depende de culpa lato sensu, também é indispensável a conduta do agente. Este se torna responsável pelos danos ao criar e acionar o mecanismo que lhe proporciona satisfação, criando risco para outrem.
Sabe-se também o direito brasileiro, prestigia sobremaneira a imputação da responsabilidade mediante a prova da culpa do agente pela vítima, embora esta seja muitas vezes insuficiente para atender à finalidade reparadora. Diante dessa realidade, viu o legislador a necessidade de imputar responsabilidade à pessoa diversa da figura do agente, ou por vinculação jurídica especial (responsabilidade indireta por fato de outrem), ou por fato de animal, ou por fato de coisa, ou, simplesmente, pelo desempenho de alguma atividade [24].
Assim sendo, a responsabilidade pode derivar de ato próprio, de ato de terceiro que esteja sob a guarda do agente e, ainda, de danos causados por coisas ou animais que lhe pertençam.
1.1.3 O nexo causal
Por fim, deve o agir estar relacionado com o dano. Há de existir um vínculo efetivo entre a ação ou a omissão e o resultado (o dano). Tal relação de causalidade precisa ser comprovada. Tem-se então o terceiro elemento da responsabilidade: o nexo causal.
É preciso que os prejuízos sofridos por alguém decorram da ação ou omissão do agente contrária ao seu dever jurídico. Se houve a conduta, seguida de danos, mas estes não decorreram daquela, não haverá ato ilícito.
A relação de causa e efeito entre a conduta e o dano é o chamado nexo de causalidade, e, em nosso sistema, uma pessoa é responsável pelos danos advindos direta e imediatamente de seus atos (art. 1060 do CC).
Não se confundem as noções de imputabilidade e causalidade. A primeira consiste no fato de se atribuir a alguém a responsabilidade por um dano, praticado pelo imputável ou não. Já a causalidade é o reconhecimento de que a conduta imputada a alguém foi a determinante do dano, ou seja, a conduta imputada constitui a causa da qual o dano figura como efeito. Enquanto a imputabilidade se define considerando-se o elemento subjetivo da conduta, a causalidade é de natureza objetiva, pois acusa o laço existente entre a ação ou omissão e o dano. É possível a imputabilidade sem o correspondente nexo de causalidade [25].
2 A EUGENIA
Nas ultimas decadas, o desenvolvimento e descobertas ocorridos nas áreas da biociência e da biotecnologia potencializaram a capacidade de realização de um pensamento eugênico.
O termo eugenia foi criando por Francis Galton (1822-1911), cientista britânico, que formulou sua definição dizendo que era o estudo dos agentes sob o controle social que poderiam melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente [26].
Eugenia vem do grego e significa de bom nascimento ou de origem nobre [27].
Pode-se afirmar que a eugenia constitui uma constante na história da humanidade. A preocupação com a melhoria do ser humano sempre esteve presente, à melhoria de seus ca racteres biológicos como também psíquicos e mentais.
De acordo com Casabona, a contribuição da biologia humana e animal sobre os mecanismos de reprodução “e da herança biológica permitiram que os propósitos seletivos pudessem ser apoiados em bases científicas – embora em algumas ocasiões não suficientemente avaliadas e, inclusive, errôneas –, assim como em seus recursos e técnicas disponíveis para tais objetivos” [28].
O que acabou proporcionando um embasamento científico para o processo: a eugenia “foi-se enroupando deste modo de um pretenso suporte científico e, com isso, de uma maior credibilidade intelectual e autoridade moral, o que não impediu, por outro lado, que tenha sido contestada nos momentos históricos de maior esplendor, ao menos frente a algumas de suas práticas mais radicais” [29].
Citanto Galton, Casabona assim se manifesta:
Recordemo-nos que, por eugenia, se entendem os procedimentos capazes de melhorar a espécie humana. Como é sabido, foi Francis Galton quem utilizou o termo (eugenics), no Reino Unido, em fins do século passado, e a definiu como a “ciência que trata de todos os fatoresque melhoram as qualidades próprias da raça, incluídas as que a desenvolvem de forma perfeita.” (...) Galton propugnava o recurso a todos os fatores sociais utilizáveisque pudessem melhorar as qualidades raciais, tanto físicas, como mentais das gerações vindouras [30].
A eugenia é a ciência que busca o aperfeiçoamento dos seres humanos [31].
Fermin Roland Schramm conceituando eugenia, eugenética e eugenismo ressalta que todos estes termos derivam do grego eugenés (composto por eu, “bem”, e génos, “raça, espécie, linhagem”), que, em regra, significa “bem nascido”, “de boa linhagem, espécie ou família”, “de descendência nobre”, “bem concebido ou engendrado” [32].
A eugenia pode ser positiva ou negativa [33]. A eugenia positiva é aquela que favorece a transmissão dos caracteres considerados
desejáveis ou queridos, o que em algum momento se pretendeu pôr em prática – sem grandes perspectivas de êxito em virtude das limitadas possibilidades então existentes – fomentando matrimônios de casais selecionados, ou, mais recentemente, coletando gametas (em concreto, sêmen) de pessoas com traços físicos ou intelectuais considerados excelentes [34].
Junges faz questão de frisar que o projeto genoma é motivado pelo sonho do ser humano perfeito e considera que este sonho é um dos elementos centrais da ideologia do progresso humano [35].
Citando Joan Rothschild, Casabona lembra que essa ideologia tem por fundamentos a crença na hierarquia da espécie, em que o ser humano aparece na posição superior (topo), na crença também de que há hierarquia no interior da espécie (alguns seres humanos são melhores que outros e por isso superiores), e ainda na crença da melhoria do ser humano e sua perfectibilidade [36].
Esta ideologia data do século XVIII, conforme relata Junges:
Quando se transportou a cidade celeste para a terra, convertendo a perfectibilidade do ser humano em fé secular. O eugenismo é a própria expressão desta fé secular no progresso contínuo e na possibilidade de criar o ser humano perfeito. Quem não corresponde a este ideal de perfeição é alijado e discriminado. O ser humano defeituoso não tem lugar. É uma tendência permanente que se pensava rompida com a experiência nazista, mas continua presente sob outras formas mais sofisticadas. A pseudiciencia nazista desapareceu, mas a ideologia da superioridade do homem permanence [37].
A eugenia positiva conclama a reprodução de “pessoas sadias” ou de “qualidade superior” e ainda a criação de “traços desejáveis”. A eugenia positiva pode ser conseguida buscando encorajar a reprodução entre seres humanos “superiores”, através dos métodos de reprodução artificial, através de manipulações genéticas sem fins terapêuticos ou até mesmo através da clonagem de seres humanos [38].
Por outro lado, à eugenia negativa cabe selecionar e evitar a transmissão dos caracteres considerados indesejáveis ou não queridos; para conseguir-se êxito nesta seleção, os cientistas valem-se de procedimentos considerados eficazes como a inseminação artificial, a contracepção, o aborto e até a morte do recém-nascido [39].
A eugenia negativa busca extirpar os defeitos genéticos, através da esterilização ou recolhimento dos defeituosos em instituições fechadas, impedindo a transmissão de defeitos genéticos [40].
Ressalta Varga que no início do movimento foi proposta a esterilização forçada, porém eugenicistas modernos são a favor da informação e da persuasão. Ou seja, aplica-se a seleção genética, quando então as pessoas teriam a possibilidade de saber se são eventuais portadores de genes defeituosos e estas, seriam informadas e persuadidas a decidir pela abstenção na procriação, evitando assim a propagação desses genes [41].
As novas biotecnologias viabilizam o ideal do ser humano perfeito por estarem baseadas em dados genéticos. Por isso alega-se que o eugenismo, hoje, está baseado em pressupostos científicos; tudo o que não for considerado perfeito no ser humano deverá ser descartado e eliminado [42].
Poderá haver, ainda, a influência de elementos de ordem sociocultural, que deflagrarão um processo de escolha, o que, para Casabona, é uma possibilidade concreta:
A preferência por um filho do sexo masculino, vendo o feminino como um defeito. Isto não acontece apenas na Índia e na China, mas em todos os países do mundo. A genética pode fornecer instrumental para uma discriminação de gênero. Pode ser colocada também a serviço de uma discriminação racial, fundada em razões de saúde, quando os testes genéticos demonstram que famílias judias ashkenazes portam com mais freqüência a doença do T-Say-Sachs e que certas famílias negras desenvolvem uma forma particular de anemia celular. A genética não pretende justificar o racismo, mas ela pode ser enroscada na espiral racista [43].
Destaca ainda Casabona que a proteção da espécie humana (ou sua sobrevivência) e a melhora das condições sociais do ser humano e da coletividade foram, desde sempre, a justificativa do pensamento eugênico [44].
Lembra ainda Casabona que as teorias de Darwin exerceram influência decisiva em outras esferas do pensamento, como nas ciências sociais de forma mais direta e nas ciências jurídicas indiretamente. Para ele,
O darwinismo social foi uma transposição do darwinismo estrito – biológico – para o âmbito social, desenvolvido por Herbert Spencer com o fim de explicara evolução das sociedades humanas a partir daquela ótica: a luta pela sobrevivência dos mais capazes, seleção etc., e terminaria por impor-se ao neolamarckismo (seguido, principalmente, na França), que parte da idéia de que os caracteres adquiridos são também hereditários, idéia a que não foi alheia o próprio Darwin.
O darwinismo social sofreu, paradoxalmente, manifestações diversas, que foram, essencialmente, uma conservadora e outra reformista, com uma forma diferente de entender a evolução da sociedade humana: a seleção e a sobrevivência dos mais aptos, e o progresso do ser humano através daquelas sociedades que se sustentaram na cooperação e ajuda entre os indivíduos, respectivamente. Mas o impulso definitivo até a eugenia foi dado, como dizíamos, por Galton, que a estruturou e reforçou com a aplicação de métodos científicos, fundamentalmente o estatístico e matemático, e insistiu na importância da herança nos componentes mentais e morais dos indivíduos e da eugenia – positiva – para a sua eliminação [45].
Tom Wilkie ressalta que a diversidade biológica é importante para o próprio desenvolvimento da raça humana, pois a diversidade fornece a matéria-prima sobre a qual a seleção natural pode operar. Na verdade, as mutações genéticas, mesmo as aparentemente não favoráveis, podem se constituir em fonte inesgotável de genes quando do surgimento de novas doenças, pois os indivíduos portadores destas mutações podem ter mais chances de sobrevida e se procriarão com a propagação destas mutações que então seriam favoráveis [46].
Portanto, o que para alguns pode ser considerado motivo para discriminação – a variedade genética da espécie humana – para a sociedade como um todo, em especial para as futuras gerações, é de extrema importância. Porém, sabe-se que, em que pese tais circunstâncias científicas, a história nos relata que tais perspectivas eugênicas e/ou deterministas foram e ainda serão usadas como fundamento de várias práticas discriminatórias [47].
2.1 A atualidade as práticas neo-eugênicas
Devido à barbárie da era nazista, a Eugenia assumiu uma conotação negativa e muitas pessoas esperavam que esse campo de estudo, assim como os milhões que foram mortos em seu nome, estivesse definitivamente enterrado. Na década de 70, porém, começaram a circular informes sobre avanços científicos no novo campo da biologia molecular. Alguns temiam que esses avanços pudessem fazer ressurgir as idéias que haviam seduzido a Europa e a América do Norte no século anterior. Não pode deixar de ser mencionada a opinião de muitos que acreditam não haver nenhuma comparação entre os avanços da engenharia genética com o programa de Eugenia de Hitler. Há 60 anos, os esforços eram voltados para se conseguir pureza racial. A antiga Eugenia se baseava na política e era estimulada pelo preconceito e pelo ódio. Hoje as pessoas se interessam em melhorar a saúde e a qualidade de vida [48].
Atualmente, não fica difícil visualizar-se o pensamento eugênico que pode vir a ressurgir apesar de apresentar algumas diferenças visíveis do movimento eugênico do início do século passado.
Com a manipulação genética e o grande desenvolvimento da bioengenharia, muitas dessas idéias estão sendo rediscutidas com base em pressupostos eugênicos.
Os avanços em genética têm permitido a realização de diagnósticos preditivos em indivíduos assintomáticos, bem como a informação indireta a respeito dos familiares do indivíduo submetido a estas mesmas análises [49].
Muitos cientistas afirmam que introduzindo genes novos no bebê que está por nascer, estaremos contribuindo para a Eugenia ao dotá-lo de mais saúde, beleza e inteligência [50].
Casabona destaca especialmente aquelas análises que são realizáveis em torno da reprodução “como são os diagnósticos pré-conceptivos praticados nos casais antes da procriação, o diagnóstico pré-natal no curso da gravidez e o diagnóstico pré-implantatório no zigoto obtido in vitro antes dadecisão a respeito de sua transferência à mulher” [51].
Estes procedimentos todos, que se justificam como sendo de saúde, para que os casais possam tomar decisões a respeito da reprodução tão almejada, poderão também ser realizados com fins essencialmente eugênicos (de eugenia negativa) quando for desejado que a descendência deste casal não re produza as anomalias ou doenças hereditárias existentes no seio de suas famílias, ou ainda quando o embrião ou feto apresentar patologias graves [52].
Casabona destaca ainda que a engenharia genética, da mesma maneira que pode ser utilizada como instrumento terapêutico, é mais um meio de aperfeiçoamento da espécie e da seleção que poderá transformar-se em um novo movimento eugênico:
Finalmente, a chamada engenharia genética ou do ADN recombinante, da mesma maneira que pode – ou poderá – ser utilizada como instrumento terapêutico (terapia gênica em linha somática e em linha germinal), com sua complexa problemática ética e jurídica, é outro meio de aperfeiçoamento da espécie ou de sua seleção, como procedimento de eugenia positiva, cujas enormes possibilidades ficam abertas no futuro. Todas estas técnicas ou meios, ou alguns deles, podem ser o pano de fundo do ressurgimento das correntes eugênicas de fins deste século: a neo-eugenia [53].
A nova eugenia, distintamente da eugenia do início do século XX, está apresentada como sendo uma questão médica, própria da relação médico-paciente, questão própria da saúde individual que poderá afetar tanto estes indivíduos como toda sua descendência, passando a ser considerado então um ato de responsabilidade dos indivíduos ou dos casais com as gerações futuras. O alcance desta responsabilidade também já é objeto de discussão.
Já são comuns os processos judiciais e as condenações dos profissionais da saúde, decorrentes da responsabilização civil dos mesmos pelas omissões ou incorreções nos diagnósticos pré-natais realizados. Muitas vezes poderia ter sido indicado o aborto como única possibilidade, por parte deste profissional, para o casal que se vê obrigado a enfrentar a questão da saúde de sua prole [54].
Asssim sendo, as práticas neo-eugênicas vêm normalmente camufladas pela promessa de cura, ou pelo menos da não transmissibilidade de doenças hereditárias, que, de modo progressivo, teriam suas manifestações reduzidas ou mesmo eliminadas do genoma humano, sem muitas vezes apontar para a face deletéria destas práticas, sobretudo no que concerne à violação dos direitos fundamentais individuais das pessoas nela envolvidas.
De acordo Nalini:
Toda forma de eugenia é potencialmente perigosa. A eugenia gerou a higiene social, o controle médico do casamento, com certificação pré-nupcial, a inseminação artificial mediante fecundação das fêmeas com ajuda de esperma cientificamente selecionado. Esse poderia ser considerado um eugenismo positivo. Mas a história recente registra um eugenismo negativo. Invoque-se a esterilização, a imigração seletiva, o holocausto e a exterminação suave. Em que categoria estariam insertos os fenômenos de xenofobia, etnofobia ou homofobia registrados nestes dias, dos quais é emblemática a reação dos torcedores italianos diante de jogadores negros? [55]
2.2 A Responsabilidade Civil
O art. 951 do Código Civil retrata a regra da responsabilidade médica, nos termos assim explicitados:
são obrigados a indenizar, quando no exercício da atividade profissional, por imprudência, negligência, ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causando-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.
Apesar de a responsabilidade médica ter sido regulada em dispositivo referente à responsabilidade extracontratual ou aquiliana – aquela decorrente de ato ilícito –, segundo José de Aguiar Dias, “esse fato não importa negar a existência de um contrato entre o profissional o cliente” [56].
Portanto, não se deve olvidar que, a despeito da eventual ocorrência de ilícito civil apto a ensejar de per se reparação de danos, se houver contrato de prestação de serviços ou mesmo compromisso de atuação profissional, o médico deve também por eles se pautar.
No direito brasileiro o contrato de prestação de serviços médicos, independentemente de cogitar-se se a responsabilidade desse profissional é de meio ou de resultado, se é objetiva ou subjetiva, encontra-se sob o manto protetor das normas da Lei nº 8.078/90 que protegem o consumidor [57].
Esta assertiva explica-se pelo fato de ter-se num dos pólos da relação jurídica contratual um fornecedor de serviços (art. 3º, caput do CDC), ou seja, o médico, e, no outro, um consumidor (art. 2º, caput do CDC), isto é, o paciente. O objeto (art. 3º, § 2º do CDC) é justamente o tratamento a que este se submeterá, remunerando aquele por isso.
Segundo Maria Helena Diniz:
Realmente nítido é o caráter contratual do exercício da medicina. No entanto, por vezes, a responsabilidade médica pode se enquadrar como extracontratual, quando, o médico cometer um ilícito penal ou transgredir normas que regulamentam sua profissão [58].
Não é outra a opinião do insigne professor Carlos Alberto Bittar, para quem a natureza do contrato celebrado entre o médico e a paciente é de “prestação de serviços”.
No contexto do combate as praticas eugenicas, por exemplo, os médicos estão autorizados, pelo seu órgão de classe, a intervir no embrião, desde que o façam com o propósito único e exclusivo de diagnosticar eventuais doenças, bem como de tratá-las ou de impedir sua transmissão.
Assim, escolher o sexo do bebê dependerá de justificativa que comprove eventual prejuízo que o bebê a ser gerado, possa vir a sofrer, tendo-se em vista que determinadas alopatias só acometem pessoas de determinado sexo [59].
Nesse sentido, a Resolução nº 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina (CFM), dispõe sobre o procedimento ético que deve ser seguido pelo profissional da área médica, no campo da reprodução assistida.
Consta dos Princípios Gerais (nº 4) da citada Resolução do CFM que a técnica da reprodução assistida não deve ser aplicada "com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se tratar de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer" [60].
O Conselho Federal de Medicina, portanto, entende ser aceitável que o profissional da área médica investigue o embrião, antes de introduzi-lo no útero materno, com a finalidade única e exclusiva de evitar doenças ligadas ao sexo. Já nos números 1 e 2 do item IV da Resolução, que cuida do diagnóstico e tratamento de pré-embriões, autoriza-se o uso dessa técnica para detectar e tratar possíveis doenças graves, genética ou hereditariamente transmissíveis, "quando perfeitamente indicadas e com suficientes garantias de diagnóstico e terapêutica", desde que haja "o consentimento informado do casal" [61].
Ademais, para que se possa "tratar uma doença ou impedir sua transmissão, com garantias reais de sucesso", também será necessário o referido consentimento informado do casal [62].
O Conselho Federal de Medicina, portanto, autoriza a prática do diagnóstico, e o conseqüente tratamento do pré-embrião, desde que os futuros genitores consintam, e que a intervenção no embrião seja para tratamento com chances reais de sucesso. Assim, tanto a escolha do sexo, quanto o diagnóstico e eventual tratamento de doença em pré-embrião podem ser realizados, sem que isso implique qualquer transgressão que seja a norma de ordem ética [63].
Desse modo, em caso de responsabilidade do médico ou do paciente, o consentimento informado será de vital importância como elemento de prova.
Saliente-se, ainda, que "a decisão do paciente de submeter-se a um tratamento ou a uns exames diagnósticos não implica assegurar o êxito dos mesmos, com conseqüências necessariamente favoráveis para sua saúde, mas, ao contrário, supõe a assunção, por parte daquele, de todos os riscos previsíveis para sua vida e a sua saúde; são razões suficientes para que uma decisão tão importante tenha de ser necessariamente tomada de forma pessoal e livre. Ademais, esta deriva também de que o médico não pode assumir sozinho a responsabilidade de uma intervenção, mas que deve compartilhá-la com o paciente, orientando-o sobre as possibilidades e riscos que envolvem o tratamento e interrogando-o sobre sua vontade de suportar os ditos riscos e, portanto, sobre a intervenção. A questão em torno do consentimento é, pois, esta: em que consentir o paciente, pois o objeto do consentimento é a intervenção médica como tal, com sua tendência diagnóstica, preventiva ou curativa, mas também com seu inevitável risco de danos." [64]
2.3 O direito à vida digna e o dilema da eugenia
Em toda a discussão resultante do tema concernente a responsabilidade civil e eugenia, emerge quase que automaticamente a necessidade de se explorar um pouco mais o direito à vida digna e a eugenia, posto cuidar-se aqui da possibilidade que um embrião portador de alguma deficiência possa viver dignamente, bem como de ser descartado, caso não contenha determinadas características.
O direito à vida está previsto no caput do art. 5º da Constituição brasileira, como integrante do rol de garantias e direitos fundamentais do homem. Sem ele praticamente não há como se falar em quaisquer outros direitos, por faltar o essencial, ou seja, o sujeito de direito [65].
Ainda que se cogite que o homem, após sua morte, continue merecendo proteção legal de sua esfera jurídica, basicamente a relativa aos seus direitos de personalidade (direitos autorais, direito à imagem etc.), direitos esses que serão protegidos por seus herdeiros, sem uma vida prévia, isto é, sua existência, ele logicamente não desfrutará de qualquer proteção. Assim, a vida em si deve existir e ser preservada acima de tudo.
Por outro lado, não basta viver. É necessário que haja dignidade nesse viver, o que implica, em primeiro lugar, que o mínimo existencial esteja disponível. Em segundo, que o ser humano possa autodeterminar-se, de forma plena, acerca de todas as suas potências, desenhando com a máxima precisão, e dentro do que lhe é permitido, ao longo de sua existência, o livre desenvolvimento de sua personalidade [66].
Refletindo-se agora sobre esses aspectos e a eugenia em relação a responsabilidade do medico concernente ao embrião , há de ser levantar pelo menos duas questões: a primeira, se ele tem direito à vida; a segunda, se essa vida teria de ser digna, ou seja, se para seu mínimo existencial ele deveria nascer perfeito.
Quanto à primeira indagação, defende-se o entendimento de que todo embrião tem direito à vida. Há muito se discute sobre o status do embrião, em sua fase pré-implantação,] mas uma coisa não se pode negar: em seu âmago encontram-se presentes todas as condições para que ele possa desenvolver-se como ser humano [67].
Há não só uma pessoa, mas uma vida em potência, e que deve ser resguardada. Não se deve esquecer, porém, que alguns embriões, por razões da própria natureza, ainda que já se encontrem no ventre materno, não conseguem desenvolver-se e nascer com vida [68].
Gozzo citando Jürgen Habermas, levanta algumas questões sobre esse tema: "À aplicação da técnica de pré-implantação vincula-se a seguinte questão normativa: É compatível com a dignidade humana ser gerado mediante ressalva e, somente após um exame genético, ser considerado digno de uma existência e de um desenvolvimento?” [69]
Ainda segundo a autora, no caso de esse embrião ser portador de alguma anomalia? Deveria o medico ter negado seu direito à vida, e à vida digna por que um deficiente não poderia desfrutar de uma vida digna? Deveria o médico interferir nesse processo, diagnosticando o problema, antes de implantar o embrião no útero materno? Não seria esta uma forma de transferir a ele a responsabilidade sobre eventual descarte do embrião, composto de material genético que não lhe pertence? [70]
Segundo Habermas, na medida em que a produção e a utilização de embriões para fins de pesquisas na área médica se disseminam e se normalizam, ocorre uma mudança na percepção cultural da vida humana pré-natal e, por conseguinte, uma perda da sensibilidade moral para os limites dos cálculos do custo-benefício. Hoje, ainda notamos a obscenidade de tal práxis reificante e nos perguntamos se gostaríamos de viver numa sociedade que adquire consideração narcísica pelas próprias preferências ao preço da insensibilidade em relação aos fundamentos normativos e naturais da vida." [71]
2.4 A responsabilidade civil do medico
O ponto central a ser analisado é se a responsabilidade do médico é de meio ou de resultado.
De acordo com Gozzo, o objetivo é o de determinar se ele simplesmente colocará à disposição dos genitores os seus conhecimentos para diagnosticar ou tratar eventual enfermidade da qual o embrião seja portador (obrigação de meio), ou se ele responderá pelo resultado do exame realizado neste (obrigação de resultado). Esta distinção entre obrigação de meio ou de resultado, no que concerne ao exercício da medicina tem sido bastante tormentosa aos operadores do Direito [72].
O médico não tem obrigação alguma de curar o paciente. Seu dever é simplesmente o de tratá-lo dignamente e com os recursos e conhecimentos científicos disponíveis.
Não se exige dele, sequer, que, no anseio de tratar o paciente, ele prolongue sua existência, causando sofrimento desnecessário àquele e aos seus parentes, mantendo-o vivo por meio de aparelhos [73].
Assim sendo, sua obrigação é meramente de meio, embora se cogite de obrigação de resultado, fundamentalmente para as cirurgias estéticas, em que o paciente busca um determinado resultado [74][43] ou no caso de tratamento odontológico.
Outro aspecto importante no campo da responsabilidade médica é a de saber, se o profissional responderá objetiva ou subjetivamente pelo dano causado. Como asseverado acima, o contrato celebrado entre o médico e os genitores do embrião, está sujeito às normas do Código de Defesa do Consumidor. Neste, de acordo com o disposto no art. 14º, § 4º, a responsabilidade do profissional liberal deverá ser analisada sob o aspecto da culpa lato sensu. Sua responsabilidade, portanto, é subjetiva, distanciando-se, assim, das demais hipóteses legais disciplinadas por esse diploma legal, em que impera a responsabilidade objetiva [75].
Para Gozzo, tudo indica que a obrigação do médico é de meio, não respondendo este profissional perante os genitores ou o filho nascido do embrião analisado, principalmente, em três hipóteses examinadas a seguir [76].
A primeira, no caso do filho ser acometido por enfermidade grave, que não tenha podido ser detectada no exame genético pré-implantação, em razão de o problema ser desconhecido, até então, da ciência médica.
Sobre o tema afirma Carlos Roberto Gonçalves que o erro de diagnóstico "não gera responsabilidade, desde que escusável em face do estado atual da ciência médica, e desde que não haja acarretado danos ao paciente." [77]
No entanto, complementa Gonçalves que:
Diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar-se em exames de laboratório, ultra-som, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu-se a tratamento inócuo e teve a sua situação agravada, principalmente se se verificar que deveriam e poderiam ter submetido o seu cliente a esses exames e não o fizeram, optando por um diagnóstico precipitado e impreciso [78].
Restando provado que o médico agiu culposamente, ele deverá indenizar tanto os genitores quanto o filho.
A segunda hipótese de isenção de responsabilidade ocorrerá se o médico, após o diagnóstico, tiver interferido na herança genética trazida pelo embrião, a fim de libertá-lo de eventual doença grave ao nascer. Se o filho nascido desse embrião apresentar doença grave depois de vir à luz, o médico só poderá ser responsabilizado se restar provado que ele agiu com culpa ao tratar o embrião [79].
Assim, se ele tomou todas as medidas para evitar que o pior acontecesse, nada lhe será imputado. O que ele deve fazer, contudo, é informar aos genitores sobre os riscos e sobre as possibilidades de cura do embrião em sua fase pré-implantatória [80].
Se eles concordarem com o procedimento, apondo suas assinaturas no termo de consentimento informado, ele estará isento de responsabilidade, desde que tenha agido de forma diligente. Se, ao contrário, ele garantir aos genitores que o embrião restará devidamente curado após a intervenção médica, e que não apresentará, no futuro, qualquer resquício da doença grave que se objetivava eliminar, ele poderá ser responsabilizado pelo erro de diagnóstico [81].
A terceira hipótese tem a ver com o fato de o ato sexual ter como conseqüência, por um lado, a geração, por outro a lesão. Pela dogmática jurídica trata-se muito mais do problema, se a transferência de disposição genética desfavorável pelo homem e pela mulher representam uma lesão à saúde da criança [82].
A partir do exame dessas situações em que poderá haver a isenção do médico de responder perante os genitores, necessita-se ainda esclarecer que, em caso de dano ao embrião que se afaste das hipóteses acima tratadas, os ofendidos deverão provar que o profissional agiu com culpa, como sói acontecer nos casos de responsabilidade subjetiva [83].