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O delito penal militar de publicação ou crítica indevida.

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Agenda 15/02/2012 às 08:10

O direito do militar de expressar suas crenças e opiniões como membro da sociedade decorre dos princípios fundamentais do Estado democrático (para promover o bem-estar do indivíduo) e da igualdade (pois todos, possuidores ou não de divergentes concepções e distintas ideias, têm o direito de se fazer ouvir).

RESUMO

O Código Penal Militar, editado durante o regime militar que imperou no Brasil desde 1964 até 1985, em seu art. 166, diz ser crime a conduta praticada por um militar que faz publicar, sem licença, ato ou documento oficial, ou criticar publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do Governo. A Lei de Imprensa, também editada dentro do mesmo regime, foi objeto de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, sendo revogada pelo Supremo Tribunal Federal em 2008 por atentar contra as liberdades civis em geral, e a liberdade de comunicação em particular, e que, portanto, seria incompatível com os tempos democráticos e com nossa Constituição Federal. Assim, se para o civil foi garantido a supremacia universal da liberdade de expressão e informação, inconstitucional e insignificante se tornou o tipo de ação prevista no ordenamento penal militar.

PALAVRAS CHAVE:Democracia. Militar. Liberdade de expressão. Ação significativa.


SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Os preceitos fundamentais e a liberdade de expressão; 2.1 O tipo de ação significativa praticada pelo militar; 2.2 A (ir)relevância social e institucional do delito militar de crítica indevida no contexto constitucional democrático; Conclusão.


 

1 INTRODUÇÃO

Na primeira metade do século XIX, Miguel Reale se atreveu a contrapor a teoria normativista desenvolvida por Hans Kelsen e estabeleceu um verdadeiro meridiano da jurisprudência em sua época. Afirmou que a norma jurídica, mais do que uma norma, seria um caminho a ser percorrido, partindo-se de um fato, rumo a determinado valor (REALE: 2001, p. 118). A essa nova visão o eminente jurista denominou teoria tridimensional do direito, cujo significado expressa uma integração normativa de fatos segundo valores.

Durante longos 21 anos, desde 1964 até 1985, o Estado Brasileiro viveu o que Paulo César Busato (2008, p. 147) chama de “hiato científico”, e que segundo ele “condiz com o período em que vivemos sob as garras de uma violenta e virulenta ditadura militar. Trata-se do mesmo período em que as disciplinas de História e Geografia foram banidas do currículo do ensino fundamental, trocadas por uma disciplina denominada ‘Educação Moral e Cívica’. Nesse momento tudo era subversivo. Pensar era subversivo” (grifo nosso). Rouanet, citado por Busato (2008, p. 51) compara este período repressivo ao que os psicanalistas chamam de “latência”, explicando:

‘Para Freud, como se sabe, a latência é uma fase que se dá em todo indivíduo e se caracteriza por uma amnésia parcial com relação ao passado – ele sobrevive, mas sob a forma de reminiscências extremamente nebulosas – e pelo fechamento com relação ao novo, isto é, pela incapacidade de aprender, enquanto dura a latência. O mesmo parece ter acontecido com o Brasil, durante o governo autoritário. Nesse período, não aprendemos nada – ficamos virtualmente fora da história – e conservamos a obscura lembrança de temas que haviam sido tratados antes de 1964. Encerrada a latência, esses temas voltam à tona e são tratados como descobertas inéditas, em geral sem a sofisticação teórica com que haviam sido abordados na origem’.

Do passado repressivo ao presente libertário, resta a sequela da desinformação e de um medo incondicional de inovar entre os operadores do Direito Militar, por outro lado, felizmente, a ideia de Reale ecoa no século XXI com muita intensidade, tanto que Buzato (2010, p.196 e 197), citando Vives Antón (1996) e Martínez-Buján Pérez (2007) destaca que “(...) o resultado prático da aplicação da norma jurídica é a produção de justiça e não de verdade. E nisso coincide com as modernas tendências do Direito Penal, no sentido da conjugação de tópica e silogismo, sob a égide da relação entre fato e norma”.

Ainda, os novos estudiosos sobre uma ação significativa afirmam que:

(...) a norma será válida quando obedecer a uma série de afirmações parciais desta em face da ação apreciada, compondo perguntas, a respeito da relevância, da ilicitude, da reprovabilidade e da necessidade de pena. A norma será válida em face da ação analisada, quando responder afirmativamente a todas estas subpretenções.

Deste ponto de vista tridimensional e de uma ação significativa, surge um profundo incômodo ao debruçarmos sobre o delito militar contido no art. 166[1] do Dec. 1001/69 – Código Penal Militar Brasileiro (CPM). Seria tecnicamente legal investigar e punir um militar a partir desse tipo de ação normativa, bem como estaria essa conduta compatível com os princípios e preceitos fundamentais que regem o Estado Democrático de Direito em um país que busca preservar a dignidade da pessoa humana?

Diante da revogação integral da Lei de Imprensa[2] pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro - STF, ao afirmar ser a liberdade de expressão um preceito fundamental inviolável e assegurado a qualquer cidadão nacional ou estrangeiro, a princípio, nos aventuramos a dizer que referida ação delituosa militar encontra-se tacitamente revogada, ou na pior das hipóteses, sustenta uma inequívoca e verossímil inconstitucionalidade a favorecer eventuais acusados em inquéritos e processos militares. Cabe aqui destacar que a Lei de Imprensa n. 5.250 de 09 de fevereiro de 1967, assim como o Código Penal Militar, Dec. Lei 1001, de 21 de outubro de 1969, foram editados, respectivamente, durante o regime militar[3] dos Presidentes Militares Marechal Castelo Branco e General Ermílio Garrastazu Médici. Além desses, todos os presidentes militares que atuaram no Brasil entre os anos de 1964 a 1985, tiveram como postura de poder, uma ação de governo pouco ou quase nada comunicativa.

 

 


 

 

2. Os preceitos fundamentais e a liberdade de expressão

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) enumera nos incisos IV, V, IX, X, XIII e XIV, art. 5º e no §2º do art. 220[4], alguns preceitos fundamentais de especial relevância ao direito de expressão e de informação que mereceram atenção especial por parte de nossa Corte Suprema quando do julgamento da “arguição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF, manejada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, contra dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, autorreferida como Lei de Imprensa” (STF: 2008, p. 231).

A ação teve como objeto principal declarar, em caráter vinculante, a existência de dispositivos da referida lei que não teriam sido recepcionados pela Constituição e estariam servindo para a prática de atos lesivos à liberdade de imprensa, porquanto “incompatível com os tempos democráticos” (STF: 2008, p. 232). E entenda-se aqui a democracia não como uma forma de governo, mas e, principalmente, a plena capacidade que cada cidadão brasileiro, civil ou militar, deve possuir para poder se expressar, manifestar, viver bem em uma sociedade verdadeiramente livre para todos. Como nos ensina Norberto Bobbio (1997, p. 218/219):

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Sintéticamente se puede decir que si se debe hablar hoy de un desarrollo de la democracia, éste no consiste tanto, como frecuentemente se dice por error, en la sustitución de la democracia representativa por la democracia directa (sustitución que de hecho es imposible en las grandes organizaciones), sino en el paso de la democracia en la esfera política, es decir, en la esfera en la que el individuo es tomado en consideración como ciudadano, a la democracia en la esfera social, donde el individuo es tomado en cuenta en la multiplicidad de sus status, por ejemplo de padre y de hijo, de cónyuge, de empresario y de trabajador, de enseñante y de estudiante, y también de padre de estudiante, de médico y de enfermo, de oficial y de soldado, de administrador y de administrado, de productor y de consumidor, de gestor de servicios públicos y de usuario, etcétera. En otras palabras, en la ampliación de las formas de poder ascendente, que había ocupado hasta ahora casi exclusivamente el campo de la gran sociedad política (y de las pequeñas con frecuencia políticamente irrelevantes asociaciones voluntarias), al campo de la sociedad civil en sus diversas articulaciones, desde la escuela hasta la fábrica (grifo nosso).

E outro não deve ser o entendimento em um país que caminha por uma democracia que liberta uma sociedade “não democrática” (BOBBIO: 1997, p. 220), sufocada e reprimida até o fim do século XX por formas de governo tipicamente repressivos e desiguais. Assim, o STF ressuscita e ativa a condição humana do povo brasileiro em participar da vida política desse país a que Hannah Arendt chama de “conditio per quam” (2007, p. 15), ou seja, a capacidade de agir contra as injustiças por intermédio da imprensa escrita, falada e televisiva. Para a autora, a ação, é a “única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, correspondente à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o homem, vivem na Terra e habitam o mundo”.

A atividade humana na terra está intimamente voltada para as relações políticas e estas, por sua vez, se manifestam fortemente na possibilidade que cada um deve ter de participar das decisões que transformam, modificam e tornam possíveis os acontecimentos históricos “(...) pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (ARENDT: 2007, p. 16). Ainda, de acordo com a autora, somente assim o poder pode ser legítimo, onde “a liberdade de expressão e de imprensa pressupõe repensar os padrões de democracia existentes e aqueles que se pretende construir (...)”.

2.1 O tipo de ação significativa praticada pelo militar

Para a doutrina e jurisprudência contemporânea o conceito de crime se traduz em uma conduta típica, antijurídica e culpável. Entretanto, seja pela perspectiva finalista ou causalista, a conduta ou ação humana perpassa, obrigatoriamente, pela análise e interpretação de aspectos objetivos e subjetivos. Segundo Francisco Muñoz Conde e Luis Ernesto Chiesa (2009, p.4) “a distinção é que para a teoria causal, o conceito de ação não requer conhecimento sobre o que, em primeiro lugar, é o conteúdo da vontade humana – o que o autor quer – que é algo examinado um estágio posterior na análise da responsabilidade penal (essencialmente, na análise da culpabilidade)”.

Para Luiz Regis Prado (2008, p. 230), as condutas a serem consideradas socialmente danosas seriam aquelas a afetar “de forma intolerável a estabilidade e o desenvolvimento da vida em comunidade, só sendo admissível o emprego da lei penal quando haja necessidade essencial de proteção da coletividade ou de bens vitais do indivíduo”. Rogério Greco (2009, p. 155), ao discorrer sobre as fases de realização da ação, destaca que para “o agente alcançar sua finalidade, sua ação deve passar, necessariamente, por duas fases: interna e externa”, sendo a primeira aquela contida na esfera do pensamento e a segunda, quando “o agente exterioriza tudo aquilo que havia arquitetado mentalmente, colocando em prática o plano criminoso (...)”. Para Fernando Galvão (2010, p. 151), é necessário que a conduta típica, “além de ajustar-se de maneira formal a um tipo legal de delito, represente, de forma material, lesão relevante ao bem juridicamente protegido, o que caracteriza a conduta como socialmente reprovável”. Finalmente, ao discorrerem sobre a tipicidade conglobante como corretivo da tipicidade legal, Eugenio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2009, p. 474/475), destacam que “a tipicidade penal não se reduz à tipicidade legal (isto é, à adequação à formulação legal), e sim que deva evidenciar uma verdadeira proibição com relevância penal, para o que é necessário que esteja proibida à luz da consideração conglobada da norma”. Afirmam que a falta de sincronia entre as duas modalidades de tipo incorreria no que chamaram de atipicidade conglobante, ou seja, aquela que ocorre quando,

(...) uma norma ordena o que outra parece proibir (cumprimento de dever jurídico),quando uma norma parece proibir o que outra fomenta, quando uma norma parece proibir o que outra norma exclui do âmbito de proibição, por estar fora da ingerência do Estado, e quando uma norma parece proibir condutas cuja realização garantem outras normas, proibindo as condutas que a perturbam.

Aparentemente, salta aos olhos o conflito de interesses da norma constitucional que autoriza a liberdade de expressão e informação e a norma infraconstitucional militar que proíbe a mesma conduta quando praticada por militares subalternos contra atos de superiores e por todos os militares contra atos de governo. Para a sociedade civil, o direito personalíssimo de expressão e de informação superou os receios preliminares de que essa medida viesse a gerar grave insegurança jurídica ao direito de intimidade e dignidade das pessoas. Trazendo para o âmbito militar, somam-se o temor pela quebra da hierarquia e disciplina, verdadeiros pilares das Instituições Militares. Neste contexto, vale destacar as palavras do Ministro Menezes (STF: 2011):

“Não existe lugar para sacrificar a liberdade de expressão no plano das instituições que regem a vida das sociedades democráticas”, disse o ministro, revelando que há uma permanente tensão constitucional entre os direitos da personalidade e a liberdade de informação e de expressão. “Quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição deve-se defender a liberdade. O preço do silêncio para a saúde institucional dos povos é muito mais alto do que o preço da livre circulação das ideias”, (...)

O STF sinaliza a todos que as decisões de Estado, ou seja, as relações entre poder e sociedade em um ambiente de democracia plena, se manifestam pela transparência dos acontecimentos sem, necessariamente, representar a perda de poder político. E esse poder deve ser capaz de ouvir aqueles a quem governa sob pena de se tornar biopolítico, ou como melhor descreve Agamben (2004), um Estado de Exceção. Modernamente, autores como Paulo César Busato (2010, p. 144), apoiado nos estudos de Vives Antón e George Patrick Fletcher, destaca que “o conceito significativo de ação parece ser o que melhor se coaduna com a perspectiva de um Direito Penal moderno, que a um só tempo responda aos anseios de uma nova Dogmática e seja respeitoso para com os direitos e garantias fundamentais do homem, historicamente conquistados”.

Partindo do conceito de uma ação significativa, recente julgado do Supremo Tribunal Militar (STM) evidencia a disposição dessa justiça especializada em reconhecer a constitucionalidade e legalidade do tipo penal militar de publicação ou crítica indevida a atos de superiores e de governo, ao sustentar a condenação de militares da aeronáutica, controladores de voo, pelo crime, dentre outros, de crítica indevida, senão vejamos:

Acórdão

Num: 0000023-40.2007.7.12.0012 (2009.01.051331-0) UF: AM

Decisão: 01/07/2010

Proc: AP(FO) - APELAÇÃO (FO) Cód. 40

Publicação

Data da Publicação: 16/09/2010 Vol: Veículo:

Ementa

APELAÇÃO. INCITAMENTO E PUBLICAÇÃO INDEVIDA. CONTROLADORES DE VOO. CINDACTA IV. CAOS AÉREO. Apelos concomitantes interpostos pelo Ministério Público Militar e Defensoria Pública da União. Aquele buscando a condenação dos acusados, nos termos da denúncia, excetuando-se um, para quem buscava absolvição. Esta, visando a absolvição de todos os envolvidos. Inequívoca quebra dos princípios da hierarquia e disciplina decorrentes da conduta dos acusados que, buscando a "desmilitarização" do sistema de controle de tráfego aéreo, além de articularem movimento de aquartelamento voluntário e de greve de fome, em conjunto com outros controladores de vôo de outros CINDACTAs, o que culminou em reunião na qual o comandante da unidade foi desrespeitado, foram à imprensa escrita e permitiram publicar entrevista na qual discorriam a respeito de matéria atinente à disciplina militar. A conduta dos controladores não está protegida pela garantia da liberdade de expressão, já que tal princípio constitucional não é absoluto, como qualquer princípio, e fica mitigado quando estão em jogo, como no caso, a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas, vetores da defesa da soberania da Pátria, fundamento do Estado Democrático de Direito (grifo nosso). Afastada a alegação de atipicidade material, já que inequívoca a lesão ao bem jurídico tutelado, já que a conduta colocou em cheque o próprio sistema político-social, ao colocar em risco a soberania da Pátria sobre o território aéreo nacional. É possível o aumento da pena quando o Ministério Público Militar, em hora nada tenha dito quanto à individualização da reprimenda, busca, no apelo, a condenação na parte em que restou sucumbente na denúncia, isso porque o recorrente não delimitou no termo de apelação a parte que queria ver devolvida ao conhecimento do Tribunal, presumindo-se efeito devolutivo total. Apelos da defesa e da acusação parcialmente procedentes.

Particularmente, amparado pela visão constitucional do STF, entendo que a decisão do STM encontra-se gravemente e perigosamente equivocada, em especial, ao evidenciar em sua decisão que a garantia da liberdade de expressão ficaria mitigada (grifamos) quando estão em jogo a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas. Ora, se nossa Corte Suprema afirma que no conflito possível entre a liberdade e sua restrição deve-se defender a liberdade, como a hierarquia e a disciplina podem prevalecer sobre aquela? Nesse sentido, a posição defendida por nosso Tribunal Militar, nas palavras de Busato (2010, p. 61/62), dissocia o Direito penal especializado de seu sentido político, deixando de ser um reflexo da sociedade onde é elaborada, mantendo-se em um passado de desastrosa política criminal. Ainda, esse mesmo autor afirma que a dogmática deve representar “uma gramática, no sentido de um conjunto de regras que servem para ordenar a leitura e compreensão do Direito penal vigente. E isto porque o sistema serve à percepção ordenada de fatos delitivos, em resumo, para ler os preceitos relativos ao delito” (BUSATO: 2010, p. 77).

O teor do acórdão do STM não evidencia qualquer indício de ação significativa praticada pelos militares operadores de voo, a afetar gravemente os pilares da hierarquia e disciplina militares, que justifique a manutenção desse dispositivo normativo. Contrariamente, o que se apresenta é uma bem articulada trama, amparada por instrumentos jurídicos antidemocráticos, autoritários, no intuito de ofuscar e omitir do conhecimento público os graves problemas de controle de tráfego aéreo que esses profissionais fizeram publicar. Na verdade, prioriza-se proteger o Poder de Estado e Militar de suas falhas em detrimento da liberdade de expressão e informação. 

2.2 A (ir)relevância social e institucional do delito militar de crítica indevida no contexto constitucional democrático 

Um ponto nevrálgico e exaustivamente debatido quando da declaração de inconstitucionalidade e da revogação pelo STF da lei de imprensa orbitou em torno da dúvida se haveria instrumentos outros a proteger as pessoas e autoridades de manifestações de palavras e ideias falsas, equivocadas e perigosas. Entretanto, nas felizes argumentações de Cláudio Chequer (2011, p. xiv):

(...) o fato de as crenças humanas poderem ser falsas não significa que todas o sejam. Como não existe um processo infalível de determinação do que é falso e do que é verdadeiro (certo ou errado, justo ou injusto), a discussão pública parece ser a forma mais legítima de deliberação em assuntos de interesse coletivo.

Esse compromisso de liberdade de expressão e informação se revela substancialmente importante em ambientes de democracia, pois se oportuniza aos operadores políticos do Estado que estes possam se manifestar em face de decisões que, verdadeira ou equivocadamente, não estejam a satisfazer as necessidades coletivas e até mesmo individuais do povo brasileiro. O que é legítimo e legal não precisa estar oculto e não pode estar afastado da possibilidade da discussão pública. Assim, razoavelmente, nos parece legítimo que militares subordinados a atos de superiores ou de governo, aparentemente equivocados e/ou insatisfatórios, também possam livremente debater suas necessidades em ambiente público e coletivo. Pensar de outra forma é retroceder a um tempo de inquisição e de totalitarismo inaceitável. Por isso mesmo o ministro Carlos Brito (STF: 2008, p. 235), ao relatar a medida cautelar em arguição de descumprimento de preceito fundamental, destaca a democracia como:

(...) princípio constitucional de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica (...), que, segundo a Constituição Federal, se apóia em dois dos mais vistosos pilares: a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade; b) o da transparência ou visibilidade do Poder, seja ele político, seja econômico, seja religioso (art. 220 da CF/88).

Ora, se confrontarmos os pilares infraconstitucionais da hierarquia e disciplina que sustentam as bases da ideologia militar, e os constitucionais da máxima informação e transparência do Poder que mantém o Estado de Democracia plena, não resta dúvida em afirmar que algo está visivelmente errado na normativa penal militar. E em hipótese alguma legitimamos o discurso da desmilitarização, da desordem, da desobediência ou da insubordinação entre superiores e subordinados, ou entre militares e governantes, mas tão somente na capacidade mútua de participação política institucional. O que se espera de quem detém poder em um ambiente político macro ou institucional é que estejam alinhados com o princípio da democracia, pois aquele que Governa ou Comanda, o deve fazer de forma participativa, transparente e visível (STF: 2008, p. 235).

Chequer (2011, p. 12) escreve que “a liberdade de expressão em sentido estrito não se confunde com o direito fundamental à liberdade de informação (...)”, isso porque esta última exige a prova da verdade ou da existência de um trabalho preparatório, por estar relacionada a fatos, diferente daquela que, “por se referir a ideias, opiniões, pensamentos, não está condicionada à verdade”. O medo que as instituições militares apresentam na possibilidade de perda do poder hierárquico pela suposta indisciplina advinda da liberdade de expressão e informação é injustificável e não guarda nenhuma relação com a capacidade da norma penal contida no art. 166 do CPM em manter a disciplina da tropa. O silêncio à crítica, principalmente sendo ela devida, apenas representa uma dimensão do Direito Penal Militar que não se sustenta mais nos dias de hoje, servindo tão somente de estímulo para o distanciamento entre superiores e subordinados, ou dos militares com seus governantes, e o que deveria servir de norma inibidora se transforma em norma de violência e constrangimento.

Contrariando decisão do STM e alinhada antecipadamente à prudente visão do STF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2004, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança assim também já havia se posicionado quanto à garantia e a supremacia constitucional de liberdade de expressão:

Processo: RMS 11587 SC 2000/0017515-3

Relator(a): Ministro GILSON DIPP

Julgamento: 16/09/2004

Órgão Julgador: T5 - QUINTA TURMA

Publicação: DJ 03/11/2004 p. 206

Ementa

CONSTITUCIONAL - ADMINISTRATIVO - MILITAR - ATIVIDADE CIENTÍFICA - LIBERDADE DE EXPRESSÃO INDEPENDENTE DE CENSURA OU LICENÇA - GARANTIA CONSTITUCIONAL - LEI DE HIERARQUIA INFERIOR - INAFASTABILIDADE - PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR - TRANSGRESSÃO MILITAR - INEXISTÊNCIA - FALTA DE JUSTA CAUSA - PUNIÇÃO ANULADA - RECURSO PROVIDO.

I – A Constitucional Federal, à luz do princípio da supremacia constitucional, encontra-se no vértice do ordenamento jurídico, e é a Lei Suprema de um País, na qual todas as normas infraconstitucionais buscam o seu fundamento de validade.

II - Da garantia de liberdade de expressão de atividade científica, independente de censura ou licença, constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros (art. 5º, IX), não podem ser excluídos os militares em razão de normas aplicáveis especificamente aos membros da Corporação Militar. Regra hierarquicamente inferior não pode restringir onde a Lei Maior não o fez, sob pena de inconstitucionalidade.

III - Descaracterizada a transgressão disciplinar pela inexistência de violação ao Estatuto e Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Santa Catarina, desaparece a justa causa que embasou o processo disciplinar, anulando-se em conseqüência a punição administrativa aplicada. III - Recurso conhecido e provido.

Se o que se quer evitar são as manifestações indevidas, mentirosas e criminosas, que se utilize de outros mecanismos de controle, que se conforme a conduta praticada a outro tipo, se for o caso, como diz Busato (2008, p. 100): “Quando o risco criado e realizado no resultado não se encontra compreendido no espectro de proteção da norma, não pode gerar a imputação pelo tipo descrito nesta mesma norma, nada impedindo, porém, que possa ser alcançado por outro tipo”. O ordenamento jurídico comum e militar, seja ele cível, criminal ou administrativo, possui inúmeros outros dispositivos a proteger a imagem e a intimidade das pessoas, bem como a íntegra relação que dever existir entre superiores e subalternos.

Mais do que em qualquer outra instituição na face da terra, o militar é um profissional que se junta a outros indivíduos na formação de uma cultura comum, específica, mas que não subsiste mais se não aprender a conviver e viver em meio àqueles que protege, seja a nação ou as pessoas. O discurso medieval de que militares são diferentes e devem receber tratamento diferenciado deve ser melhor interpretado quando analisado sob a ótica de um Direito Penal garantista. Por dentro da farda está, antes de tudo, um cidadão comum, e aquele militar que não conseguir se enxergar como tal, deve rever seus conceitos, sob pena de representar um perigo aos seus companheiros e a toda à sociedade. Assim como qualquer homem, o militar, nas palavras de Chequer (2011, p. 20), estará sujeito “ao necessário e importante controle da sociedade e, particularmente, do Estado”. Seu direito de expressar suas crenças e opiniões como membro da sociedade decorre de dois princípios fundamentais, o Estado, de promover o bem-estar do indivíduo e o da igualdade, em que todos, possuidores ou não de divergentes concepções e distintas ideias, tem o direito de se fazer ouvir.

 

 

Sobre o autor
Paulo Roberto de Medeiros

Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto. O delito penal militar de publicação ou crítica indevida.: Uma análise constitucional da liberdade de expressão e de informação sob a ótica do Supremo Tribunal Federal.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3150, 15 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21094. Acesso em: 22 nov. 2024.

Mais informações

Artigo jurídico apresentado como conclusão da disciplina de Derecho Penal y Acción Significativa - Prof. Dr. Cesar Busato, do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA) - Argentina.

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