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Direito penal da loucura.

A questão da inimputabilidade penal por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 10/04/2012 às 09:57

2. LOUCURA E DOENÇA MENTAL

Não existe um conceito de loucura que seja universalmente aceito, porém, a Organização Mundial da Saúde define como saudável uma pessoa em estado de completo bem estar físico, mental e social. Partindo dessa idéia, podemos constatar que um quadro de anormalidade surge quando as atitudes, o pensamento e a maneira de agir de determinado indivíduo começam a atrapalhar a vida social, inviabilizando a vida comum.

É cediço que a visão da loucura passa por diferentes compreensões de acordo com o momento histórico e a ótica estabelecida. Do ponto de vista jurídico, a avaliação da doença mental depende também da verificação dos aspectos culturais do momento, observando-se a média do comportamento da maioria tida como hígida.

Ainda que assimiladas tais premissas, estas são insuficientes para dissecar a razão da loucura e compreender sua real implicação na vida em sociedade e, conseqüentemente, no âmbito jurídico.

A respeito desta questão, relata Foucault (1988 p.85): “Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que esta detém a verdade da psicologia”

Em sua célebre frase, o referido autor demonstra que a psicologia surgiu em função da loucura, como uma maneira de entendê-la e explicá-la, porém, por mais que a psicologia se esforce para atingir seu objetivo, este nunca será maior que a sua força criadora.

Nessa dificuldade de compreender tema tão complexo devemos criar parâmetros para definir a zona obscura que separa a loucura da lucidez, a fim de criarmos ferramentas para promover o convívio social entre desequilibrados e sãos.

Em linguagem simples, o louco seria aquele que adota condutas que vão de encontro com as regras estabelecidas por um determinado grupo social, denotando ausência de razão.

Porém, nem todo ato que denota irracionalidade é apto a considerar determinado ser humano como doente mental. Se pensássemos dessa maneira, todo aquele que comete um crime seria considerado como louco. Isso porque, toda a parte especial do Código Penal descreve condutas que afrontam o conceito de normalidade, visto sob uma ótica social. Entretanto, todos os delitos estampados no Código Penal nada mais são do que condutas tipicamente humanas, que, embora confrontem a ordem jurídica, não implicam, em princípio, na caracterização da insanidade.

Embora isso demonstre que o crime é passível de ser cometido por todos, não é verdade dizer que todos os homens cometem delitos. O ser humano, desde o seu nascimento, toma resistência em praticar atos aos quais possui aversão moral ou que não são aptos a promoverem a harmonia social.

Dessa maneira, para o desvio grave de conduta cometido por um indivíduo mentalmente sadio, comina-se a pena criminal.

De contrapartida, existem casos que, em razão de doença mental, o homem fica privado de sua consciência e perde a noção de que determinadas condutas são criminosas ou, no caso de saber o caráter criminoso de seu ato, ele fica impossibilitado de agir conforme esse entendimento.

Não podemos deixar de lado o caráter cíclico ou eventual das manifestações de algumas doenças mentais, o que significa dizer que determinada pessoa pode estar doente hoje, e amanhã não, e que a pessoa que hoje denota um comportamento absolutamente sadio, pode não ter nada a ver com a pessoa que cometeu determinado ato ontem.

E, no âmbito penal, para os desvios de comportamento praticados por um homem mentalmente enfermo, geradores de uma conduta delitiva é aplicada a medida de segurança.

Dessa maneira, com o escopo de punir o agente em sua esfera pessoal, recaindo o juízo de reprovabilidade sobre a conduta do agente, surge a inimputabilidade penal.

2.1. DA IMPUTABILIDADE PENAL

A imputabilidade é uma condição de caráter pessoal que estabelece que todo aquele que possui maturidade e sanidade mental para entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento deve responder pelos seus atos.

Nos dizeres de Luiz Regis Prado (2002, p. 249)

“É a plena capacidade (estado ou condição) de culpabilidade, entendida como capacidade de entender e querer, e, por conseguinte, de responsabilidade criminal (o imputável responde por seus atos). Costuma ser definida como “conjunto das condições de maturidade e sanidade mental que permitem ao agente conhecer o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Essa capacidade possui, logo, dois aspectos: cognoscivo ou intelectivo (capacidade de compreender a ilicitude do fato); e volitivo ou de determinação da vontade (atuar conforme essa compreensão).”

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Portanto, para o referido autor a imputabilidade possui dois elementos, o primeiro é o discernimento do agente em entender que o fato que esta sendo praticado é contrário ao ordenamento jurídico, o segundo consubstancia-se na capacidade de agir de acordo com essa compreensão.

2.1.1. Sistemas de aferição da imputabilidade

A doutrina penalista estabelece três sistemas ou métodos que explicam a imputabilidade, são eles:

Sistema biológico ou etiológico: Leva em conta a doença mental, isto é, o estado anormal do agente. Este sistema é de inspiração francesa e considera a inimputabilidade apenas do ponto de vista das causas biológicas. Dessa maneira, ele peca em não indagar se essa anomalia causou alguma perturbação que limitou a inteligência ou a vontade do agente, deixando impune aquele que, embora portador de doença mental, possua discernimento e capacidade de determinação.

Sistema psicológico: este sistema tem em conta apenas as condições psicológicas do agente à época do fato. Aqui, não há necessidade de demonstração de insanidade mental ou de distúrbio psíquico patológico. Trata-se de um critério pouco cientifico e de difícil averiguação.

Sistema biopsicológico: é um sistema híbrido, misto, uma combinação dos dois sistemas anteriores. Exige, de um lado, a presença de anomalias mentais, e de outro, a completa incapacidade de entendimento. Dessa forma, o agente só será considerado inimputável se em função de enfermidade ou retardamento mental era, no momento da ação, incapaz de entender o caráter criminoso do fato e de se comportar conforme essa compreensão.

O Código Penal brasileiro adotou esse terceiro sistema, sendo a imputabilidade excluída, e em conseqüência a culpabilidade, em razão de doença mental e desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26), menoridade penal (que nada mais é do que um desenvolvimento mental incompleto presumido) e a embriaguez fortuita completa (art. 28, parágrafo primeiro).

2.1.2. Diferenças entre imputabilidade e responsabilidade penal

O Código Penal de 1940, em sua redação original, empregava o termo “responsabilidade penal”, para introduzir os artigos 22 e 24, que tratavam da imputabilidade penal. Em decorrência disto, surgiu um debate doutrinário para averiguar se os termos eram sinônimos.

Na realidade, imputabilidade e responsabilidade penal são aspectos distintos relacionados ao mesmo fenômeno jurídico.

A imputabilidade, como já conceituada no tópico acima, consiste na capacidade psíquica de alguém ser responsabilizado por um fato descrito na norma penal, já a responsabilidade penal surge diante do efetivo cometimento de um delito, como um aspecto concreto da imputabilidade.

Para Basileu Garcia (1982, p. 358),

“Responsabilidade não se considera como sinônimo de imputabilidade e sim, mais precisamente, como uma decorrência da imputabilidade. Esta representa um pressuposto daquela, tal qual acontece com a ilicitude do comportamento, a qual também constitui pressuposto da responsabilidade, ou seja, uma condição para que o agente responda pelo seu ato e sofra as correspondentes conseqüências penais”

Responsabilidade e imputabilidade possuem significados parecidos pois ambos os institutos dizem respeito à presença de condições de saúde mental mínimas para que uma pessoa possa responder pelo ato praticado. A diferença se dá pois a imputabilidade é um dos elementos da culpabilidade, do juízo de reprovação da conduta, enquanto a responsabilidade reside em um liame que une o sujeito ativo do delito e as conseqüências do cometimento do fato típico.

Com a reforma da parte geral do Código Penal (lei 7.209/84), o legislador substituiu o termo responsabilidade por imputabilidade como titulo de introdução aos artigos 26 a 28, os quais tratam da referida matéria.

2.3. ELEMENTOS DA INIMPUTABILIDADE PENAL

2.3.1. Incapacidade de entender o caráter ilícito do fato

Uma das situações que caracteriza a inimputabilidade do agente é a impossibilidade de conhecer o caráter ilícito da sua ação. Tal conhecimento é meramente potencial, ou seja, não se exige a possibilidade real de conhecimento da ilicitude. Basta apenas o conhecimento profano, leigo, que qualquer homem comum do povo possui.

Esse conhecimento potencial refere-se a um fato ilícito, que contraria o ordenamento jurídico, e não ao conhecimento específico da legislação penal. Se o agente soubesse ou tivesse a possibilidade de saber que aquela determinada ação contrariava o ordenamento jurídico, ele não será considerado inimputável, ressalvada a situação tratada no tópico seguinte

É importante esclarecer que o conhecimento do caráter ilícito do fato não se confunde com a imoralidade ou a falta de ética de determinado comportamento, pois o ordenamento jurídico penal abarca condutas que são consideradas imorais, porém, nem todas as condutas que podem ser tidas como imorais e antiéticas são consideradas como ilícito penal.

Tal elemento da inimputabilidade penal tem especial relevância quando se levam em conta os intervalos lúcidos e os intersurtos, isso porque, embora muitas vezes o estado patológico persista, nem sempre este é apto a retirar o discernimento daquele que pratica a conduta ilícita.

Enfim, a inimputabilidade só pode subsistir quando o individuo tem sua consciência maculada em razão de distúrbios na área da vontade, que o impede de entender o caráter ilícito de sua conduta.

2.3.2. Incapacidade de determinar-se de acordo com o entendimento do caráter ilícito do fato

Sem prejuízo das considerações feitas no tópico acima, ainda que o sujeito praticante de uma conduta ilícita entenda plenamente o caráter ilícito de sua conduta, poderá não possuir capacidade de autodeterminação, assim, o individuo sabe que esta praticando uma conduta tipificada no ordenamento jurídico como crime, porém é incapaz de evitá-la.

A simples vontade de praticar o crime não é suficiente para ensejar a incapacidade de autodeterminação. Só ocorrerá a exclusão da culpabilidade por inimputabilidade se a patologia do agente provocar grave adulteração da vontade. Essa adulteração, por sua vez, pode ocorrer de três modos, quais sejam: eversão, adversão ou perversão.

Segundo Maximiliano Ernesto Fuhrer (2000, P. 53)

“Eversão é a subversão das atividades volitivas. Ocorre na psicose maníaco-depressiva e nas demais manias. Adversão é a redução ou ablação daquelas atividades, como, por exemplo, acontece nas depressões em geral, no autismo e nas síndromes de diminuição do impulso vital. Perversão é todo desvio mórbido da vontade que atinge o caráter, especialmente no que se refere aos limites esperados como normais. É encontrável amiúde nas personalidades psicopáticas”.

Logo, referido elemento da inimputabilidade trata da capacidade mental de resistência e abstenção da pratica do crime, estando presente quando, embora o caráter criminoso seja totalmente conhecido, o agente não consegue agir de acordo com esta compreensão, se tornando escravo de um impulso irresistível.

2.4. A semi-imputabilidade

Assim prevê o Código Penal brasileiro em seu artigo 26, parágrafo único:

“A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”

No citado o artigo o Código Penal adotou expressamente a semi-imputabilidade, ou semi-responsabilidade ou culpabilidade diminuída, onde o agente ativo do crime tem sua pena reduzida em razão de condições de caráter pessoal.

Referido tema gera muita insegurança no cenário jurídico, eis que existem aqueles que admitem a semi-imputabilidade e aqueles que a rejeitam veemente.

Para os que a rejeitam, não pode haver semi-responsabilidade, pois não existe o meio-entendimento, ou o agente entende o caráter ilícito de sua conduta, ou não entende. Desse modo, como defende Nelson Hungria (1983, p 273), “Como os estados contrários são excludentes entre si, é logicamente impossível o meio-termo”.

Para os que a aclamam, é admitida a semi-responsabilidade, pois o agente pode estar num estado de evolução, como acontece com o estágio de desenvolvimento entre a infância e a adolescência, e Segundo Basileu Garcia (1954, p. 332), “a vida não evolui em saltos”.

Na realidade, tal instituto surgiu em decorrência da necessidade de dar uma resposta aos casos de zona fronteiriça, onde não se sabe em qual categoria o agente se enquadra.

Nestes casos, será facultado ao juiz optar pela redução da pena ou pela medida de internação ou tratamento ambulatorial, lembrando que, no caso de substituição da sanção penal pela medida de segurança, o sentenciado estará vinculado as mesmas regras que são impostas ao inimputável, devendo ser submetido a perícia médica para averiguar a cessação da periculosidade e cessação do tratamento.

2.5. Inimputabilidade por doença mental

O Código Penal, em seu artigo 26, dispõe que a doença mental é uma das causas que podem determinar a irresponsabilidade penal. Cumpre esclarecer que doença mental é um termo muito abrangente, e tal expressão, no mundo jurídico, vai além das classificações médicas, abrangendo todos os estados mentais capazes de gerar um estado patológico.

Segundo Maximiliano Ernesto Fuhrer (2000, p. 55):

“Doença mental é toda manifestação nosológica, de cunho orgânico, funcional ou psíquico, episódica ou crônica, que pode, eventualmente, ter como efeito a situação de incapacidade psicológica do agente de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Não é necessário que cause os dois efeitos (falta de entendimento e impossibilidade de autodeterminação) ao mesmo tempo, basta um.”

Portanto, segundo referido autor, a imputabilidade poderá ser diminuída ou excluída, toda vez que a enfermidade mental seja capaz de causar um vício na manifestação da vontade ou no entendimento do agente acometido pela patologia, não sendo suficiente somente a presença da doença, mas que ela seja determinante para macular a vontade ou a compreensão do agente praticante da conduta delitiva.

A respeito do mesmo tema, esclarece Antônio José Fabrício Leiria, (1980, p.240):

“A doença mental, para os efeitos da norma jurídica, apresenta-se como um estado morboso da psique, capaz de produzir profundas inibições na Inteligência ou na vontade, no momento da ação ou da omissão. Por outro ângulo, é de se ter presente que o conceito psiquiátrico de doença mental, embora sirva de base para a formulação do conceito jurídico, nem sempre coincide exatamente com este. Igualmente, não é de se confundir a perturbação da saúde mental, com a doença mental propriamente dita. Nas enfermidades psíquicas, há sempre uma perturbação da saúde mental, mas, tais perturbações nem sempre decorrem de uma doença mental, na concepção científica do termo”

Dessa maneira, o conceito jurídico de doença mental não é igual ao conceito psiquiátrico, sendo que o primeiro pode abarcar inclusive desmaios e delírios febris, desde que estes sejam capazes de gerar perturbação da saúde mental, ou qualquer vício na manifestação psíquica.

A imoralidade, ou a mera anormalidade de caráter, não são suficientes para ensejar a irresponsabilidade penal, o Direito Penal exige, para tanto, que haja uma verdadeira perturbação da saúde mental, capaz de gerar um estado patológico que retire a consciência ou a determinação do indivíduo.

Sobre a autora
Francieli Batista Almeida

Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA, Francieli Batista. Direito penal da loucura.: A questão da inimputabilidade penal por doença mental e a aplicação das medidas de segurança no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3205, 10 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21476. Acesso em: 23 dez. 2024.

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