5 DIREITO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL
Segundo Pontes de Miranda, o direito constitucional é o direito imediato do Estado, ficando entre a comunidade supraestatal e atividade legislativa, judiciária e administrativa dos órgãos do Estado.[31] Ocorre que, nos dias atuais, alguns autores apontam a existência de um verdadeiro direito constitucional internacional, que é o resultado da fusão entre o direito constitucional e o direito internacional, em que esses dois ramos buscam resguardar o mesmo valor: o direito das gentes.
Dentro do âmbito do direito constitucional internacional, encontra-se o direito internacional dos direitos humanos, que foi criado para que os povos respeitassem os direitos da pessoa humana, tendo sua fonte, consequentemente, natureza internacional. Destarte, ele não se confunde com o direito internacional público, que serve para definir as relações de reciprocidade e equilíbrio entre os Estados pactuantes, por meio de negociações e concessões recíprocas.
Desta sorte, a plena inserção do Brasil, nesse âmbito, sintoniza-o com a agenda internacional dos direitos humanos, colocando-o em participação efetiva nos órgãos internacionais de proteção aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, as repercussões dessa posição provocam mudanças também no plano interno do país, que se compromete a respeitar e fazer valer, perante todos os seus órgãos nacionais, a efetividade da aplicação das normas supraestatais, obrigando o Estado brasileiro, inclusive, a adotar medidas contrárias a outros Estados que violem os postulados fundamentais do direito das gentes.
E é nesse contexto que surge o jus cogens que, no entender de Piovesan, constitui direito imperativo para os Estados e é inderrogável por parte dos países. [32] Portanto, tendo em vista que os direitos humanos fundamentais fazem parte do jus cogens, é razoável admitir que tais regras estão incorporadas em um ordenamento supraestatal, impondo a incorporação automática de tais preceitos ao direito interno brasileiro e ao de outros países, tudo isso sem que haja qualquer espécie de intermediação do poder estatal, traduzindo importantes consequências em governos despóticos que têm dificuldades de reconhecer os direitos mais básicos da humanidade.
Dessa forma, o cidadão poderá invocar imediatamente tais direitos perante os poderes públicos de seu Estado; e, por outro lado, o Estado está proibido de praticar quaisquer condutas contrárias a tais direitos sob pena de invalidação.
Com algumas convenções internacionais, positivaram-se muitas regras do costume internacional, razão pela qual se percebe que tais diplomas são importantes formas de legislar o direito das gentes.
6 O DIREITO DAS GENTES CONVENCIONAL
Após as atrocidades cometidas durante a segunda guerra mundial, com violações dos direitos humanos por parte de alguns Estados e a consequente crise do positivismo de Kelsen, a comunidade internacional percebeu que a questão dos direitos fundamentais merecia atenção especial. É inequívoco que um dos mais importantes passos para uma aplicação efetiva dos direitos, no âmbito internacional, pode ser encontrado na condenação dos malfeitores nazistas no tribunal de Nuremberg. A despeito da grande polêmica, em torno do princípio da legalidade penal, o tribunal deu um importante passo na defesa internacional dos direitos humanos, aplicando, basicamente, o costume internacional, ou seja, o direito das gentes.
Posteriormente a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, constituiu um importante marco escrito em busca da efetividade do caráter universal dos direitos fundamentais. Mas, objetivando uma melhor efetividade, no intuito de dar mais força jurídica à declaração, ocorreu uma série de tratados internacionais no âmbito da Organização das Nações Unidas, a começar pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos em 1966.
Destarte, é necessário ressaltar, mais uma vez, que não se pode confundir o direito das gentes com as normas de tratados internacionais, pois o primeiro contém normas produzidas pelo costume internacional e orienta a própria elaboração dos tratados e convenções internacionais. Já os segundos, que são os tratados, são os costumes internacionais (direito das gentes) convencionados, sendo produtos de acordos.
No que importa ao sistema de incorporação de cada país, há aqueles que adotam a teoria monista, pela qual o direito supraestatal e o direito interno compõem uma mesma unidade, um mesmo ordenamento, prevalecendo o primeiro em caso de conflito. Doutra banda, nosso país seguiu outra teoria, a dualista, pela qual existem duas ordens jurídicas e que somente através de um procedimento específico de incorporação é que o tratado internacional terá validade no Brasil.
Por isso, para que um tratado internacional possa ser incorporado ao Brasil, é necessário que o Presidente da República ratifique o tratado (art. 84, VIII da CF) e o Congresso Nacional referende essa ratificação (art. 49, I da CF). Portanto, só depois dessa observação, é que o tratado será incorporado ao direito brasileiro e com status de lei ordinária. Porém, calha salientar que os tratados internacionais sobre direitos humanos, que já foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, podem vir a ter força de Emenda Constitucional, acaso sejam aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos e por três quintos dos votos (§ 3º do art. 5º da Constituição Federal).
À guisa de conhecimento, sabe-se que a divergência doutrinária acerca da hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos está posta da seguinte forma: a) hierarquia supraconstitucional; b) hierarquia constitucional; c) hierarquia infraconstitucional, mas supralegal; d) paridade hierárquica entre tratado e lei federal.
Nesta oportunidade, calha salientar que o Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de conferir status normativo supralegal aos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, isto é, acima das leis ordinárias e abaixo da Constituição.[33] Entretanto, para Piovesan, mesmo diante do § 3º do art. 5º da CF e da posição do Pretório Excelso, todos os tratados de direitos humanos, independentemente do quorum de sua aprovação, são materialmente constitucionais.[34]
Na história do constitucionalismo brasileiro, a carta de 1988 foi a primeira que elencou a prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger o Brasil nas relações internacionais (art. 4º, inc. II da Constituição Federal). Com efeito, um grande passo foi dado, no âmbito dos direitos humanos internacionais, obrigando os juristas, ainda mais, a relativizar o conceito de soberania, cabendo aos juízes brasileiros, por exemplo, apenas declarar a norma de direito das gentes que incidiu.
Com efeito, tais valores constituem critérios axiológicos fundamentador de todo o ordenamento jurídico interno, que será impregnado pelo direito das gentes, constituindo, como mostra Piovesan[35], um retorno das ideias de Kant e fazendo com que a força normativa dos princípios ganhe relevo no âmbito interno.
Flávia Piovesan[36] descreveu o panorama após a Constituição de 1988 como sendo um resgate do pensamento kantiano, “com as ideias de moralidade, dignidade, direito cosmopolita e paz perpétua”. E prossegue: “Para Kant, as pessoas devem existir com fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito”.
Com os novos rumos a serem tomados com esse novo panorama, cabe aos juristas brasileiros, cada vez mais, emprestarem especial atenção aos direitos fundamentais contidos no direito das gentes.
Conforme já registrado, somente através de tratados internacionais é que tais preceitos seriam incorporados ao direito interno brasileiro e, segundo o STF, com status supralegal se tais tratados versarem sobre direitos humanos, lembrando que esses últimos somente terão hierarquia de Emenda Constitucional se forem aprovados consoante a regra do § 3º do art. 5º da Constituição Federal. Todavia, impende reafirmar que o Brasil deve respeitar o direito das gentes independente de assinar Tratados. Deveras, já há alguns países, muitos na America Latina, que não imprimem dificuldades para a total incorporação do direito das gentes em seus territórios, sendo mais uma razão pela qual o Brasil deve reconhecer definitivamente essa incorporação em seu território.
Advirta-se, de plano, que, na hipótese de conflito entre a norma supraestatal e uma norma constitucional interna, a que deve prevalecer é a norma mais benéfica à pessoa humana. E, se uma norma constitucional vier a restringir direitos consagrados em normas supraestatais, estas deverão prevalecer em detrimento da norma constitucional interna.
Em nível mundial, vários instrumentos internacionais como, pactos, tratados, convenções e protocolos estão sendo assinados pelos países, no sentido de conceder uma maior efetivação ao direito das gentes. Pode-se apontar, como precedente de algumas declarações, o próprio direito humanitário, que constituía uma lei de guerra, para proteger os militares postos fora de combate e populações civis, contra Estados agressores, e que é composto pelas leis das Convenções de Genebra e da Convenção de Haia.
Ora, independente de direitos humanos estarem elencados em tratados internacionais ou não, o Brasil deve respeitar os direitos fundamentais que estão contidos no direito das gentes, que é produto das nações. Nesse mister, forçoso repisar que tais regras estão acima das próprias normas constitucionais de todos os países, portanto, as declarações de direitos internacionais são apenas exemplos não exaustivos dessas normas, a que os Estados estão vinculados. Dessa forma, a Constituição Federal do Brasil, juntamente com as de outros países, devem adotar postulados da civilização atual para terem o reconhecimento perante os outros Estados.[37] Além disso, entende-se que o direito das gentes e o direito interno devem coexistir, prevalecendo o primeiro em caso de conflito,[38] caso seja mais favorável ao cidadão.
CONCLUSÃO
As contribuições que a doutrina de Pontes de Miranda deixou para o Direito revelam conceitos e resoluções jurídicas jamais ensinadas na história da humanidade, visto que nela encontram-se explicações adequadas para questões que até hoje os doutrinadores não conseguem explicar satisfatoriamente. Além disso, situações jurídicas que nenhum jurista europeu, ou de qualquer outra parte, conseguiu explicar com razoabilidade já foram solucionadas por Pontes de Miranda há anos.
Cardozo lembra que uma antiga lenda rezava que certa vez Deus orou, e que sua prece foi: “Seja minha vontade que minha justiça seja governada por minha misericórdia”. Assim, é que todos precisam lembrar-se dessa passagem, “quando o demônio do formalismo tenta o intelecto com o fascínio da ordem científica[39]”.
Dessa forma, levanta-se a seguinte pergunta: seria a soberania absoluta também um formalismo? A resposta à indagação é afirmativa. E que ela deve respeitar o que está contido na tradição das coletividades internacionais. Porém, ainda não se encontra pacificada a definição jurídica dessas coletividades, situação cuja solução já poderia ter tomado um rumo razoável há tempos, justamente com os ensinamentos de Pontes de Miranda, quando, já na década de 40, defendia a aplicação do direito das gentes usando a técnica da supraestatalidade dos direitos fundamentais e a técnica da democracia, liberdade e igualdade.
De grande importância é sua efetiva aplicação entre os povos, vez que tende a evitar guerras e atos usurpadores e opressivos dos Estados.
Para alguns doutrinadores, o Estado soberano de concepção individualista tende a desaparecer, já que a missão histórica das nacionalidades já foi cumprida. Dessa forma, se faz necessária uma revisão atual do conceito de soberania, no sentido da mesma ser uma espécie de competência conferida pelo direito das gentes.
Nesse mister, interessante perceber que ainda não há uma organização supraestatal de defesa das normas contidas no direito das gentes, que assegure as liberdades e outros preceitos. Porém, percebe-se significativo avanço, por exemplo, no âmbito interamericano, onde se percebe que as instituições nacionais (União, Defensorias Públicas, órgãos de defesa dos direitos humanos) estão cada vez mais se internacionalizando e trocando experiências com outros países, no intuito de buscar uma uniformidade jurídica na tutela de direitos e uma maior proximidade com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, localizada em San José (Costa Rica).
Apesar de respeitar as opiniões em contrário, ressoa evidente que, diante de todo o contexto exposto neste artigo, a supraestatalidade dos direitos fundamentais (que estão preenchendo as dimensões de democracia, liberdade e igualdade) mais cedo ou mais tarde prevalecerá, pois tal tríade deita raízes profundas na psique humana,[40] sendo fins humanos necessários.
Portanto, a construção da sociedade e das coletividades internacionais está se dando e deve se dar de forma progressiva, cujos fins devem estar em sintonia com o permanente aperfeiçoamento da democracia, com a proteção e asseguração das liberdades individuais e a realização de um certo grau progressivo de igualdade. Lembrando que um relativo grau de democracia e de igualdade é indispensável à efetivação da liberdade.
Notas
[1] VATTEL, Emmerich de. O Direito das Gentes. Rio Grande do Sul: Unijuí, 2008, p. 139.
[2] Ibid., p. 140.
[3] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 621.
[4] Id., Comentários à Constituição de 1967. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 46.
[5] Ibid., p. 62.
[6] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 622.
[7] SILVA, G. E. do Nascimento e; ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 7.
[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 91.
[9] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano de existência. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 17.
[10] Expressão utilizada por Pontes de Miranda.
[11] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 621.
[12] Ibid., p. 647.
[13] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 28.
[14] OLIVEIRA, Márcio Luís de. O Sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 379-407.
[15] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. 5. ed. Coimbra: Coimbra., 2003, p. 124 e segs.
[16] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 81 e segs.
[17] CUNHA JR., Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Salvador: JusPODIVM, 2009, p. 244.
[18] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 653.
[19] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos. São Paulo: Bookseller. 2002, p. 31.
[20] PONTES DE MIRANDA, op. cit., p. 651.
[21] PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos, 2002, p. 49.
[22] SANCHEZ, Giovana. Lei que prevê morte para gays em Uganda pode gerar 'efeito dominó na África. G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1486041-5602,00.html.> Acesso em: 10 abr 2010.
[23] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 3.
[24] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 203.
[25]SARMENTO. George. Direitos Fundamentais e Técnica Constitucional: reflexões sobre o positivismo científico de Pontes de Miranda. In: DIDIER JR., Fredie / EHRHARDT JR., Marcos / Revisitando A Teoria do Fato Jurídico - Homenagem a Marcos Bernardes de Mello. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 267.
[26] BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4. ed. Bauru: Edipro, 2008, p. 172.
[27] PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos, 2002, p. 220.
[28] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 622.
[29] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. Os novos direitos do homem. Os direitos humanos, segundo Pontes de Miranda. Disponível em: <http://www.servulo.com.br/pdf/homem.pdf>. Acesso: 04.06.2010.
[30] PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos, 2002, p. 77.
[31] Id., Comentários à Constituição de 1967. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 224.
[32] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 67.
[33] Informativo do Supremo Tribunal Federal nº 498. 10 a 14 de março de 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo498.htm.>. Acesso em: 10 ago 2010.
[34] PIOVESAN, op. cit., p. 55.
[35] Ibid, p. 29.
[36] Ibid., p. 29.
[37] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 628.
[38] Id., Comentários à Constituição de 1967. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967, p. 208.
[39] Benjamin. A natureza do processo judicial. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 47.
[40] PONTES DE MIRANDA, Democracia, Liberdade, Igualdade, Os três Caminhos. 2002, p. 96.