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A cláusula de não concorrência em fusões e aquisições à luz da jurisprudência do CADE

Agenda 11/06/2012 às 09:11

As autoridades de defesa da concorrência possuem poderes para determinar a sua exclusão ou para limitar o seu alcance, quando entenderem ser ela, efetiva ou potencialmente, lesiva aos interesses tutelados pela legislação antituruste.

A cláusula de não concorrência encontra previsão no ordenamento jurídico. O Código Civil, em seu art. 1.147, caput e parágrafo único, estabelece a regra de abstenção da concorrência, deixando evidente sua incidência em três negócios jurídicos: alienação, arrendamento e usufruto. In verbis:

“Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência.

Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do contrato.”

O fundamento para a incidência da obrigação de não concorrência decorre da boa-fé objetiva. De fato, a obrigação contratual moderna está, pois, pautada no princípio da boa-fé, segundo o qual cada parte tem o dever de agir de forma a não lesar a confiança da outra parte.

Nesse contexto, ressalta-se que, a par dos negócios jurídicos previstos no dispositivo transcrito, entende-se que, na alienação do controle acionário ou de quotas sociais, também ocorrerá a transferência do estabelecimento, pois, na transferência de tal controle, segue junto todo o patrimônio da empresa, muito embora esse não sofra alteração em sua titularidade. Por conseguinte, o dispositivo legal aplica-se, igualmente, a tais casos. Isto porque não se pode admitir, por exemplo, que um sócio de determinada empresa, detentor do controle, venda a sua participação societária e, em  seguida, instale novo estabelecimento, no mesmo ramo e praça a que pertencia, pois poderá desviar a clientela que ajudou a conquistar no antigo estabelecimento1.

A cláusula de não concorrência tem sido admitida quando é acessória a um contrato principal, de modo, que, sem ela, o negócio seria desvalorizado ou ameaçado. Tal cláusula, em muitos casos, termina por  integrar o preço, uma vez que intenta proteger a viabilidade do negócio, ou, em outras palavras, objetiva viabilizar a aquisição do fundo de comércio. Assim é que tal cláusula deve estar revestida de  razoabilidade, não se admitindo aquela cujo único objetivo seja cercear a concorrência.

A proibição da concorrência, entretanto, deve ser pactuada de forma limitada, pois, caso contrário, seria juridicamente nula, já que poderia  representar o fim da vida profissional do alienante. A obrigação de não concorrência deve possuir limite temporal, geográfico e substancial, de forma a não representar quebra absoluta dos princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência.

Desse modo, no intuito de promover o equilíbrio entre a proteção dos interesses do adquirente e a livre concorrência, entende-se que a análise concorrencial das cláusulas de não concorrência deve ser sistematizada por meio de uma estrutura cognitiva baseada na regra da razão.

Assim, o primeiro passo da análise consiste em verificar se a cláusula é necessária para a viabilização do negócio principal, ou seja, se a existência da cláusula no bojo do negócio é justificada. Caso a cláusula não se justifique, tal qual ocorre com quaisquer outras cláusulas que possam causar ou causem efeitos nocivos à concorrência, a mesma deve ser suprimida.

Saliente-se que, no caso concreto, a cláusula de não concorrência pode ser considerada uma prática comercial legítima, estipulada no estrito fim de resguardar a justa expectativa das empresas envolvidas na operação de se autoprotegerem de uma concorrência desencadeada pelo uso indevido de informações estratégicas a respeito do negócio, até então, detidas pelo vendedor. A existência de tal cláusula deve, portanto, ser necessária à proteção dos legítimos interesses negociais dos beneficiários, ou seja, à devida transferência dos bens tangíveis e intangíveis (clientela, know-how, informações de marketing, etc).

Consoante os parâmetros adotados pela Comissão Européia, as restrições da concorrência, para serem aceitas, devem ser "diretamente relacionadas" e "necessárias à realização da operação", o que significa que, na sua falta, a operação não poderia realizar-se ou sê-lo-ia em condições mais aleatórias, a custos substancialmente mais elevados, num prazo consideravelmente maior ou com muito menos possibilidades de êxito. Tais acordos de não concorrência só são justificados pelo objetivo legítimo de busca da realização da operação de concentração, na medida em que a sua duração, a sua aplicação territorial e o seu âmbito material e pessoal não excedem o que é razoavelmente necessário para esse fim. De acordo com tal entendimento:

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"... Estas proibições [de concorrência] servem para garantir a transferência para o adquirente do valor integral dos ativos cedidos, que, em geral, compreendem os bens corpóreos e outros ativos incorpóreos, como a clientela que o cedente angariou ou o saber-fazer que desenvolveu. Tais proibições estão não só diretamente relacionadas com a operação de concentração, como são igualmente necessárias à sua realização, porque, na sua falta, poderia razoavelmente pensar-se que a venda da empresa (...) não seria efetuada de modo satisfatório. A fim de recuperar plenamente o valor dos bens que lhe são cedidos, o adquirente deve poder se beneficiar de uma certa proteção contra atos de concorrência do cedente para poder fixar a clientele, assimilar e explorar o saber-fazer ..." 2

Justificada a existência da cláusula, passa-se ao segundo passo da análise, qual seja a verificação da sua dimensão material, espacial e temporal e seu enquadramento nos parâmetros mínimos consagrados pela autoridade antitruste. Para a validade da obrigação de não concorrência, devem existir os três limites referidos, que são, portanto, cumulativos. Os limites existem como reguladores dos princípios constitucionais: por meio deles é que se respeita a liberdade de iniciativa e a livre concorrência.

Uma vez verificado que um dos aspectos da cláusula não se enquadra nos parâmetros estabelecidos pela autoridade antitruste, deve-se passar ao terceiro passo. Nesse momento, examina-se a existência de justificativa plausível ou de eficiências que tornam necessária a adoção de parâmetros diversos daqueles comumente adotados e consagrados. Se presente tal justificativa, a cláusula pode ser mantida. Do contrário, deve ser alterada e adequada aos critérios determinados.

Quanto ao aspecto temporal da cláusula de não concorrência, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, a partir do parâmetro dado pelo art. 1.147 do Código Civil, considera como tempo razoável, para que o adquirente se aproprie de forma integral dos bens intangíveis do negócio, o prazo de até cinco anos. Nesse passo, a jurisprudência do CADE tem fixado, quando da análise dos atos de concentração, o prazo de 5 (cinco) anos como razoável para a admissibilidade da duração da cláusula não competição. Tal entendimento encontra-se sumulado:

Súmula nº 5, publicada no D.O.U. de 09/12/2009

“É lícita a estipulação de cláusula de não-concorrência com prazo de até cinco anos da alienação de estabelecimento, desde que vinculada à proteção do fundo de comércio”.

Esse já era o entendimento que vinha sendo consagrado pelo Conselho, consoante o julgamento proferido no AC n° 08012.003691/2001-65. Eis a posição, então, defendida pela Relatoria:

“Ressalto a existência de cláusula de não concorrência constante no item 8 do Acordo de Acionistas. Tal dispositivo estabelece que as empresas envolvidas no negócio não concorrerão durante o prazo de vigência da associação, qual seja 05 (cinco) anos podendo este ser prorrogado por períodos adicionais sucessivos de 05 (cinco) anos, e por um prazo de 02 (dois) anos após o término da vigência do contrato. Ou seja, se o contrato não for prorrogado, a cláusula de não concorrência terá vigência de 07 (sete) anos.

(...) O período do acordo de não concorrência entre os associados quando da vigência do contrato é inteiramente aceitável e, inclusive, incontestável é a sua aceitabilidade, pois não há como conceber que empresas que estão se unindo para ampliar seus serviços, reduzir os custos e melhor atender seus clientes concorram entre si.

No que tange ao período subseqüente à vigência do contrato, qual seja 02 (dois) anos, este encontra-se inteiramente dentro dos parâmetros jurisprudenciais estabelecidos por este Conselho, visto que o entendimento aqui amplamente consolidado é de que tais disposições não podem ultrapassar 05 (cinco) anos.

Isto posto, entendo admissível a cláusula ora apreciada, visto que inconcebível é a idéia de estabelecimento de concorrência entre empresas que se associaram para implementar suas eficiências, e que o lapso temporal de vedação de não concorrência após o prazo de vigência do contrato está dentro dos limites entendidos como não lesivos à concorrência por este Conselho.

Pelo exposto, considero admissível o prazo de não concorrência de 7 (sete) anos, tendo em vista não ser aceitável a concorrência entre as Requerentes durante a vigência do contrato de transferência de know how, tecnologia e assistência técnica. O período de 2 (dois) subseqüentes à vigência do contrato, por sua vez, está dentro do permitido pela jurisprudência do CADE, que entende por razoável um lapso de tempo de não concorrência de 5 (cinco) anos.”

Tal prazo, comumente estabelecido em cinco anos para cláusulas de não competição, é presumido ou estimado como um lapso de tempo razoável para: (i) desvinculação das relações entre clientes e fornecedores e o estabelecimento das relações de mercado da nova empresa ou nova composição societária;  e (ii) a estipulação e fixação de políticas empresariais desvinculadas das estratégias conhecidas pelos antigos sócios do corpo vendido.

Não obstante tal prazo seja considerado pelo CADE em grande parte das decisões, cumpre destacar a jurisprudência do Conselho para a aceitação de cláusulas de não concorrência estipuladas com prazo superior a cinco  anos. Nesse sentido, importante mencionar o voto do Conselheiro Roberto Pfeiffer no AC no 08012.001066/01-89, no qual figuravam como requerentes as empresas AGIP Distribuidora S.A e SHELL DO BRASIL S.A.,  in verbis:

“...

Sobre esta cláusula algumas considerações devem ser feitas.

O CADE, nessa matéria, tem acompanhado o entendimento de outras jurisdições (EUA e UE) de que essas cláusulas não são restritivas da concorrência desde que sejam acessórias ao propósito principal de um negócio considerado legítimo, e que tenham sua amplitude estabelecida de maneira proporcional à proteção que se deseja para os legítimos interesses do beneficiário da restrição. A acessoriedade desses acordos de não-concorrência, contudo, não lhes confere legitimidade, devendo, pois, serem analisados sob o aspecto de sua 'necessidade' à consecução do objeto do acordo principal.

No que se refere à duração aceitável da cláusula de não- concorrência, a Comissão Européia reconheceu como apropriado um período de cinco anos quando o objeto do negócio abrange ativos patrimoniais e know-how, e um período de dois anos quando abrange unicamente os ativos, embora esta posição não tenha um caráter absoluto, admitindo, em casos especiais, uma proibição de concorrência com uma maior duração. Entre as circunstâncias especiais que levam a Comissão Européia a admitir cláusulas com duração acima dos prazos padrões por ela aceitos é quando ficar demonstrado que a fidelidade da clientela do vendedor se manterá durante um período superior àqueles prazos.

Da mesma forma, o CADE tem avaliado a razoabilidade da duração dessas cláusulas analisando caso a caso. Assim, são diversos os casos em que o Plenário fixou esse prazo em cinco anos: A.C. no 109/96 (Procter & Gamble/Bombril S.A.), A.C. no 193/97 (Basf/Dow Química), A.C. no 08012.000167/98-11 (Etti/Parmalat), A.C. no 163/97 (Praxair/Rolmaster), A.C. 08012.002921/00-98 Brinks/TGV, etc.). Houve também o caso em que se considerou razoável o prazo de dez anos, como no A.C. n. 177/97 (Cia. Brasileira de Estireno e Unigel), com base na longa maturação dos investimentos.

No caso em apreço, a operação envolve a transferência de ativos tangíveis e os direitos contratuais de fornecimento de combustíveis vinculados ao uso da marca da compradora, prevendo-se inclusive que será obtida uma autorização da proprietária das marcas para que esta possa continuar a exibir as marcas registradas, marcas de serviço, razões sociais, identidade visual ou logotipos da vendedora ou de qualquer uma de suas coligadas que apareçam nos postos de serviço na região que compreende o negócio, durante um período provisório de 24 meses (cláusula 8.3 do Contrato de Compra de Ações).

Por ocasião de dois votos, salientei que o fato da jurisprudência do CADE tradicionalmente admitir que as cláusulas de não-concorrência tenham duração de cinco anos não quer dizer que seja este o único prazo aceitável, tanto isto é verdade que há precedente admitindo a duração de dez anos em aquisição que envolveu processos de longa maturação.

...

No entanto, tais situações devem ser absolutamente excepcionais, cabendo às requerentes o ônus de demonstrar estarem presentes os requisitos que permitem tal exceção (cf. meu voto no AC no 08012.002921/2000-98) no qual analisei cláusula de não-concorrência equivalente a dez anos.”

Quanto à dimensão espacial da cláusula, segundo a orientação da Comissão Européia, o âmbito geográfico deve ser limitado à zona em que o vendedor tinha introduzido os seus produtos ou serviços antes da operação. Com efeito, não parece, objetivamente, necessário que o adquirente seja protegido da concorrência do vendedor em territórios que este não ocupava anteriormente.

A restrição de não concorrência deve ser limitada à área em que já havia concorrência, não podendo ser estendida para além da zona de influência do estabelecimento alienado.

De acordo com a jurisprudência do CADE, as cláusulas de não concorrência devem se restringir à dimensão geográfica e material dos mercados em que o alienante efetivamente ofertava seus produtos e que foram afetados pela operação3.

No que concerne à delimitação material da cláusula de não concorrência, a Súmula n. 4 do CADE estabelece que:

 “É lícita a estipulação de cláusula de não concorrência na vigência de joint venture, desde que guarde relação direta com seu objeto e que fique restrita aos mercados de atuação”.

Tal entendimento sumulado, a despeito de se referir a joint venture, pode ser aplicado analogicamente a fusões e aquisições.

O exame de efeitos concorrenciais decorrentes da cláusula de não concorrência deve ser realizado caso a caso, com minuciosa análise das características intrínsecas do mercado relevante em questão. Não há dúvida de que as autoridades de defesa da concorrência possuem poderes para determinar a sua exclusão ou para limitar o seu alcance, quando entenderem ser ela, efetiva ou potencialmente, lesiva aos interesses tutelados pela legislação antituruste. Nesse caso, não se trata de uma indevida intromissão do Estado nos aspectos inerentes a um negócio privado. Trata-se, ao contrário,  de uma atuação legítima, expressamente prevista em lei, tendo em vista a proteção de um ambiente concorrencial salutar, o qual poderia se ver limitado na prevalência de uma cláusula que, ao invés de simplesmente viabilizar a aquisição de um fundo de comércio, visasse, também, o afastamento por completo de um potencial concorrente no mercado.


REFERÊNCIAS:

[1] FRIEDA, Geisy: Obrigação de não-concorrência. São Paulo: Singular, 2007, p. 107.

[2] Comissão Europeia, Controlo das Operações de Concentração na União Europeia. Situação em Março de 1998, Luxemburgo: Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias. 1999, p. 142

[3] Tal entendimento foi adotado, por exemplo, no AC n. 08012.000180/2007-87.

Sobre a autora
Rossana Malta de Souza Gusmão

Procuradora Federal, Mestre em Direito Público e Pós-graduada em Direito Tributário pela UFPE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUSMÃO, Rossana Malta Souza. A cláusula de não concorrência em fusões e aquisições à luz da jurisprudência do CADE. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3267, 11 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21961. Acesso em: 22 dez. 2024.

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