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Conselhos e ordens de fiscalização do exercício profissional: perfil jurídico a partir da jurisprudência do STF

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Agenda 17/08/2012 às 16:56

3 análise da jurisprudência do STF: os casos das ADI's 1.717/DF e 3.026/DF

O Supremo Tribunal Federal, para atribuir na ADI nº 1.717/DF a natureza autárquica aos Conselhos, valeu-se essencialmente da premissa de que a fiscalização do exercício profissional, por abranger inclusive poder de polícia, é atividade tipicamente estatal, indelegável à iniciativa privada.

Ao fazê-lo, reconheceu o STF estarem os Conselhos sujeitos a um regime jurídico peculiar, no qual prevalece a supremacia do interesse público sobre o privado[185].

Por outro lado, no julgamento da ADI nº 3.026/DF os fundamentos utilizados para definição da natureza autônoma da OAB e de sua distinção em relação às demais entidades de fiscalização fixaram-se, basicamente, no papel de destaque assumido pela Ordem e pelos advogados na Constituição de 1988 (que imporiam sua atuação livre e independente), nas atribuições elencadas em seu Estatuto e, por fim, nas peculiaridades por si desfrutadas, especificamente a forma de composição de sua estrutura orgânica e a inexistência de vínculo com a Administração (elementos esses que, porém, se fazem presentes nos demais Conselhos).

A função de disciplina do exercício profissional, que, vale registrar, foi a razão da criação da OAB em 1930[186], não foi detidamente analisada.

Assim, nas próximas linhas serão apresentadas algumas incoerências e divergências nas razões que culminaram com o estabelecimento de diferenças entre os Conselhos e a OAB.

Por fim, serão listadas algumas realidades vivenciadas pelos Conselhos, as quais prejudicam o desempenho de suas atribuições e ampliam, ilegitimamente, o campo de restrições ao exercício profissional admitido no inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988.

Antes, porém, relevantes se mostram algumas considerações complementares acerca do Poder de Polícia exercido pelos Conselhos e Ordens.

3.1. Fiscalização do exercício profissional como poder de polícia

Mendes et al. (2008, p. 302) afirmam que restrições a direitos fundamentais só são permitidas por “expressa disposição constitucional (restrição imediata) ou mediante lei ordinária promulgada com fundamento imediato na própria Constituição (restrição mediata)”.

Embora possível se mostre a limitação do direito consagrado no inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988, certo é que, para se afigurar legítima, a restrição deve se ater ao campo das qualificações profissionais.

Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (1989, p. 77), ao comentarem a Constituição de 1988, asseveram:

Para que uma determinada atividade exija qualificações profissionais para o seu desempenho, duas condições são necessárias: uma, consistente no fato de a atividade em pauta implicar conhecimentos técnicos e científicos avançados. (…).

Outro requisito a ser atendido para regulamentação e que a profissão a ser regulamentada possa trazer um sério dano social.

É óbvio que determinadas atividades ligadas à medicina, à engenharia, nas suas diversas modalidades, ao direito, poderão ser geradoras de grandes malefícios, quer quanto aos danos materiais, quer quanto à liberdade e quer quanto à saúde do ente humano. Nestes casos, a exigência de cumprimentos de cursos específicos se impõe como uma garantia oferecida à sociedade.

Em outros casos, a própria pessoa interessada pode perfeitamente acautelar-se contra o profissional desqualificado, obtendo informações sobre o mesmo. É certo que a evolução tecnológica recente torna cada vez mais complexas certas profissões. Alguma sorte de curso faz-se quase sempre necessária. Nestes casos, no entanto, em que inexistem grandes riscos para a sociedade, é preferível manter-se atividade livre em nome precisamente do direito à livre opção profissional. O excesso de regulamentação nega este direito.

(…).

A atual redação deste artigo deixa claro que o papel da lei na criação de requisitos para o exercício da profissão há de ater-se exclusivamente às qualificações profissionais. Trata-se portanto de um problema de capacitação, técnica, científica ou moral. Não há dúvida que dentre as qualificações profissionais hão de compreender-se requisitos pertinentes à idoneidade moral do profissional.

(…)

O que é preciso ter em mente é que este é um dispositivo que, como dito inicialmente, visa assegurar a sociedade quanto à capacitação daqueles que exercem profissões técnico-científicas. Mas ele é de outra parte inspirado no princípio eminentemente liberal de que a cada um cabe a escolha da sua profissão.

É, portanto, a supremacia do interesse público sobre o privado que autoriza o Estado a restringir o campo de proteção da liberdade de profissão.

Pois bem, as leis que criaram os Conselhos e Ordens de fiscalização e que regulamentaram as respectivas profissões estabelecem normas genéricas e abstratas para o exercício profissional, sendo o registro profissional a corporificação da vontade do Estado. Ainda, os Conselhos e Ordens se estruturam de modo a possibilitar a fiscalização profissional e, finalmente, impõem sanções àqueles que não cumprirem o comando legal.

Outorgaram-se a tais entes poderes para, unilateralmente, exigir obrigações, cobrar providências e impor sanções aos particulares com o fim único de ver a sociedade protegida contra a atuação de pessoas não habilitadas ou capacitadas para o exercício profissional[187], ou seja, poder de polícia, que, segundo Cretella Júnior (1990, p. 25), se delegado a particulares acarretaria a falência virtual do Estado[188].

Ricardo Teixeira do Valle Pereira, apud Bozzi (2006, p.36), quanto aos Conselhos e Ordens, expõe:

Não há dúvida de que os conselhos de fiscalização profissional exercem atividade de polícia administrativa por outorga do Estado. Por outro lado, e isso é extremamente importante também, em razão de sua natureza, por representarem a mais clara expressão do poder estatal, as atividades de polícia não podem ser delegadas a particulares, mesmo porque, como reconhece a doutrina, gozam elas de coercibilidade e auto-executoriedade, atributos que são desconhecidos, como regra, nas relações de direito privado.

Liliam Bozzi (2006, p.37), no mesmo sentido, afirma:

Revestem-se, segundo as suas leis de criação, os Conselhos, de personalidade jurídica de direito público com autonomia administrativa e patrimonial, motivo pelo qual são típicas autarquias, que recebem do Estado a incumbência de fiscalizar o exercício das profissões liberais regulamentadas, porque compete à União, nos termos do art.21, inciso XXIV, da Constituição Federal, 'organizar, manter e executar a inspeção do trabalho', executando, pois, atividades típicas e de responsabilidade do Estado, possuindo, para o exercício desse mister, o poder de polícia, a delegação, para exigir dos contribuintes submetidos à sua fiscalização o pagamento das taxas e contribuições, para aplicar sanções, entre outras atividades tipicamente estatais.

Os Conselhos atuam no campo da responsabilização administrativa relativa aos comportamentos éticos e técnicos dos profissionais, esfera que, ao lados da civil e da criminal, é assim abordada por Nalini (2002, p. 141):

Todas elas são autônomas, embora possam interpenetrar-se. Assim, o mesmo fato (...) pode configurar infração administrativa, não apenas para a hipótese de a prática vir a ocorrer no âmbito do serviço público, mas também quando vier a ser acionado o organismo profissional sancionador de infrações ético-disciplinares.

Na verdade, a esfera ético-disciplinar é subjacente às demais. (...). Aliás, a preocupação ética tem permeado todas as atividades profissionais e sempre impregnada de contornos jurídicos. A cada dia, o direito é mais invocado para responder às angústias morais.

Dito de outro modo, embora seja competência das entidades de fiscalização a verificação prévia do preenchimento das condições exigidas em lei para o exercício profissional, sua atuação ganha relevo quando são instadas a se manifestar sobre o comportamento dos profissionais, e respectivas consequências, no plano prático.

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A atuação dos Conselhos e Ordens, pois, culmina com a delimitação, vedação e repreensão de condutas dos particulares, ou seja, efetivo exercício do poder de policia, guardando estreita relação entre a atividade de tais entidades e a concretização do princípio da supremacia do interesse público.

3.2. Críticas ao tratamento diferenciado à OAB

Como afirmado anteriormente, na CRFB/1988 (consideradas as alterações nela implementadas até a Emenda Constitucional nº 62, de 2009) a OAB e os advogados receberam tratamento específico, sendo citados inúmeras vezes[189].

Tal situação, porém, não é prerrogativa da atual Carta, porquanto, desde 1934 (inclusive no período de exceção militar), a importância do advogado é reconhecida no ordenamento jurídico ao se ter previsto e exigido sua participação ativa na formação e composição da estrutura do Estado brasileiro[190].

Nesse jaez, pertinente destacar que a previsão constitucional nos Diplomas anteriores e a disciplina e atribuições próprias (inclusive de defesa da ordem jurídica e da Constituição, da boa aplicação das leis e rápida administração da justiça) lhe conferidas nos artigos 18, 20 e 139 de seu antigo Estatuto[191] não impediram que o STF reconhecesse a identidade entre a Ordem e os demais Conselhos, o que ocorreu em 1966 quando o Relator, Ministro Aliomar Baleeiro, em voto proferido no RE nº 55.456/PE (no que foi acompanhado à unanimidade por seus pares), definiu que o “Conselho Federal de Contabilidade e os Conselhos Regionais de Contabilidade são instrumentalidades federais semelhantes à Ordem dos Advogados, cujo caráter de órgão da União nunca se contestou”[192].

Isso se deu porque, como apresentado no tópico anterior, a atuação dos Conselhos e da própria OAB é revelada essencialmente pela limitação de um direito fundamental (liberdade profissional) em proveito da sociedade, sendo admitido e exigido o controle prévio relativo ao preenchimento de condições previstas em lei ou os controles concomitante e superveniente referentes ao correto exercício do mencionado direito.

Não se pretende com isso ignorar o fato de que, com a CRFB/1988, o advogado passou a ser considerado “indispensável à administração da justiça” e a Ordem dos Advogados do Brasil foi legitimada a provocar o controle concentrado de constitucionalidade sem a exigência de demonstrar pertinência temática.

Acontece que o referido tratamento não implica na afirmação de que a fiscalização exercida pela OAB sobre os advogados seja distinta daquela realizada pelas demais entidades sobre as outras profissões.

Pelo contrário, a imprescindibilidade dos advogados só reforça a importância da fiscalização exercida sobre tais profissionais e, portanto, dá maior ênfase ao caráter público do mister exercido pela OAB sobre os mesmos.

Por outro lado, a legitimidade ativa para provocação do controle de constitucionalidade não é suficiente para atribuir à OAB o referido caráter autônomo.

Isso porque a ampla legitimação instituída no artigo 103 da CRFB/1988[193] decorreu da postura assumida pelo PGR de, no regime pré-1988, não instaurar, a pedido do MDB, controle concentrado de normas e, mais, da ratificação de tal posição pelo STF quando do julgamento da Reclamação nº 849/DF[194].

Mendes et al. (2008, p. 1055), quanto ao referido fenômeno, dizem:

Se a intensa discussão sobre o monopólio da ação por parte do Procurador-Gral da República não levou a uma mudança na jurisprudência consolidada sobre o assunto, é fácil constatar que ela foi decisiva para a alteração introduzida pelo constituinte de 1988, com a significativa ampliação do direito de propositura da ação direta.

O constituinte assegurou o direito do Procurador-Geral da República de propor a ação de inconstitucionalidade. Este é, todavia, apenas um dentre os diversos órgãos ou entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade.

Os autores precitados expõem (2008, p. 1.105) que a lista de legitimados presentes no artigo 103 “fortalece a impressão de que o constituinte pretendeu reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro”, ou seja, tal medida decorreu da opção feita de, a um só tempo, reduzir o significado do controle difuso e permitir que mais controvérsias constitucionais relevantes fossem submetidas ao STF mediante processo de controle abstrato.

Como demonstração de que a inclusão da OAB no rol do artigo 103 nada teve a ver com sua natureza jurídica, devem ser destacados os votos proferidos quando do julgamento, em 1991, da ADI nº 641/DF[195].

Néri da Silveira, nesse jaez, disse:

Se é exato, de um lado, que a Ordem dos Advogados do Brasil é entidade, também, de disciplina profissional, de defesa das prerrogativas da classe dos advogados, à semelhança dos demais Conselhos Federais, no que concerne às diversas profissões liberais regulamentadas, não é menos procedente, de outra parte, que há razões históricas, remotas e próximas, que justificam a decisão constituinte,...

Celso de Mello, por sua vez, embora ao final tenha entendido que as autarquias profissionais não dispõem de legitimidade ativa para ajuizamento de ADIs, preliminarmente fixou a premissa de que a OAB se enquadra na referida categoria, decorrendo sua legitimidade exclusivamente da expressa disposição constitucional:

Os Conselhos e as Ordens profissionais constituem pessoas dotadas de capacidade meramente administrativa. Submetem-se, por isso mesmo, à tutela administrativa do Ministro de Estado a cujo poder de controle estão juridicamente sujeitos.

O reconhecimento, aos Conselhos e às Ordens profissionais, da qualidade para agir – ressalvada a hipótese da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo poder deriva de explícita previsão constitucional (art.103, VII) – significa conferir legitimidade ativa, na esfera da fiscalização normativa abstrata, a entes autárquicos, quando falece, no plano do direito positivo, ao próprio Ministro de Estado – a cuja supervisão estão sujeitos – o exercício dessa mesma e excepcional prerrogativa de índole constitucional.

Sepúlveda Pertence, na mesma assentada, expôs:

Impressiona, em termos de exegese rotineira, o argumento extraído da menção expressa a uma das ordens profissionais, a uma dessas autarquias corporativas, no caso, a Ordem dos Advogados do Brasil.

(…)

A menção expressa à OAB, serve, sim, na linha da jurisprudência aqui firmada a propósito do requisito da pertinência, para mostrar que ele não se aplica àquela instituição, mas somente às outras entidades de classe: enquanto a legitimação das entidades de classe se fez, mal ou bem, como qualificação de setores identificados por sua atividade profissional, a legitimação da Ordem se fez, historicamente, como reconhecimento do seu papel político de defesa da Constituição.

Paulo Brossard, a seu turno, registrou que a inclusão da OAB “no elenco de autoridades e entidades que podem ajuizar ação direta, tem, evidentemente outras motivações que não dizem respeito à sua natureza jurídica”.

Assim, o argumento de que a natureza autônoma da OAB decorreria da legitimidade ativa lhe conferida para iniciar o controle concentrado de constitucionalidade não se sustenta, pois sua inclusão foi resultado de premissas político-históricas, não jurídicas.

Por fim, para distinguir a OAB dos demais Conselhos suscitou-se: a) não integração aos órgãos e entes da Administração Pública; b) não submissão à direção superior do Presidente da República; c) não coordenação, supervisão e orientação dos ministros de Estado; d) não integração de seu patrimônio ao do Estado; e) não criação, modificação ou extinção de seus cargos e empregos por lei; f) ausência de repasses pelo Estado; e f) não nomeação de seus dirigentes pelo Executivo.

Tais argumentos igualmente não se sustentam na medida em que todas essas peculiaridades são presenciadas pelos outros 28 Conselhos e Ordem.

Assim, ausentes razões que justificam a diferenciação da natureza jurídica dos Conselhos em relação à da OAB.

3.3 Incoerências vivenciadas pelos Conselhos e Ordens mesmo depois de definida sua natureza jurídica

Não obstante a incoerência retratada no tópico anterior, a definição da natureza jurídica dos Conselhos e Ordens (implementada na ADI nº 1.717/DF) e a distinção em relação à OAB (aparentemente declarada na ADI nº 3.026/DF) pôs fim às incertezas então reinantes, sendo gerada a expectativa de que, a partir de então, os Conselhos, exceção feita à OAB, poderiam executar com maior força e legitimidade as atribuições lhes outorgadas.

Entretanto, outra foi a realidade instaurada, não sendo poucas as ilegalidades constatadas.

A partir deste momento, o trabalho apresentará esquematicamente alguns dos exemplos dessas imprecisões e, logo em seguida, far-se-ão breves considerações acerca dos pontos destacados:

a) O Decreto nº 6.129, de 20 de junho de 2007[196], ao asseverar categoricamente em seu artigo 1º que “a vinculação das autarquias, ..., aos Ministérios e a outros órgãos da administração pública federal fica estabelecida na forma do Anexo a este Decreto”, em nenhum momento fez menção a Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional.

Tal fato, pois, demonstra que, ao invés de se seguir o pronunciamento do STF na ADI nº 1.717/DF, preferiu o Executivo dar continuidade a uma equivocada interpretação dada a partir de 1986 com o Decreto nº 93.617 e mantido nos Decretos nº 801, de 20 de abril de 1993[197], nº 3.131, de 09 de agosto de 1999[198], nº 3.280, de 08 de dezembro de 1999[199] e nº 4.566, de 1º de janeiro de 2003[200].

Assim, o próprio Executivo Federal reconhece que os Conselhos não integram sua estrutura administrativa e, ao fazê-lo, deixa de exercer o dever de supervisão ministerial elencado nos artigos 19 e 26 do Decreto-lei nº 200, de 1967.

b) Embora se exija que o preenchimento dos quadros dos Conselhos se dê mediante concurso público (inciso II, artigo 37, da CRFB/88[201]), os demais requisitos constitucionais (prévia criação dos empregos por lei de iniciativa do Presidente da República e fixação dos subsídios e da remuneração por lei[202]) intimamente relacionados à citada exigência não são observados.

Assim, em verdade os Conselhos e Ordens desfrutam de autonomia legislativa para, por Resoluções ou outros atos próprios, criar empregos, fixar remunerações e disciplinar outros elementos atrelados à relação mantida com seus empregados.

c) Ainda quanto à admissão de seus servidores (lato sensu), embora o STF não tenha modulado os efeitos da decisão proferida na ADI nº 1.717/DF, o Tribunal de Contas da União passou a considerar regulares as contratações efetuadas sem concurso sob as regras da Carta de 1988, valendo-se, para tanto, não da ADI nº 1.717/DF (que tem eficácia erga omnes e efeito vinculante), mas da decisão proferida no MS nº 21.797/RJ[203].

Assim, o TCU entende válidas (e constitucionais) as contratações sem concurso realizadas antes de 18 de maio de 2001 (data da publicação, no Diário de Justiça, do resultado do julgamento), esquecendo-se que a eficácia da referida decisão se restringe aos litigantes (efeito inter partes), ou seja, ao Conselho Federal de Odontologia e ao TCU.

d) Outra situação peculiar vivenciada se refere ao regime do vínculo existente entre os Conselhos e seus servidores.

Isso porque a extinção do regime jurídico único[204] pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho 1998[205], resultou na prejudicialidade da análise do §3º, artigo 58, da Lei nº 9.649, de 1998 (que fixara o regime celetista como regente das relações entre os Conselhos e seus empregados), e, por consequência, na não definição quanto ao regime jurídico aplicável no período compreendido entre a promulgação da CRFB/1988 e a EC nº 19[206] (a instituição do regime jurídico único pela redação original do artigo 39 da Constituição não impediu que os empregados dos Conselhos fossem regidos não pelas normas dos Estatutos dos Funcionários e Servidores Públicos - Leis nº 1.711, de 28 de outubro de 1952, e nº 8.112, de 11 de novembro de 1990 -, mas pela Consolidação das Leis do Trabalho - Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943).

Assim, após o julgamento da ADI nº 1.717/DF, os Conselhos e Ordens continuaram a aplicar a seus empregados o regime celetista, o que fizeram com suporte no artigo 1º do Decreto-lei nº 968, de 1969.

Entretanto, o retorno do regime jurídico único em decorrência do deferimento da Medida Cautelar na ADI nº 2.135/DF[207] (que culminou com a suspensão da eficácia da redação dada ao caput do artigo 39 pela EC nº 19) não impediu que os Conselhos continuassem e continuem a se valer da CLT para reger as relações com seus empregados, o que é explicitado nos Editais dos concursos públicos realizados.

O Superior Tribunal de Justiça, nesse aspecto, por sua Quinta Turma considera aplicável a Lei nº 8.112, de 1990[208].

O Tribunal Superior do Trabalho, embora também se manifeste pela submissão à Lei nº 8.112[209] e, portanto, pela impossibilidade de celebração de acordos ou convenções coletivas[210], contraditoriamente afirma que as regras previstas no inciso II do artigo 37 e no artigo 41, todos da CRFB/1988, não lhes são aplicáveis[211].

e) Os Conselhos, ainda, não recebem subvenção ou transferências à conta do orçamento da União, seu orçamento fiscal, ao contrário do que verbaliza o artigo 165, §5º, I, CRFB/88[212], não está compreendido na lei orçamentária anual e, finalmente, seu orçamento não é aprovado pelo Executivo e não se sujeita às regras dos artigos 107 a 110 da Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964[213].

f) Do mesmo modo, sendo sua receita oriunda principalmente das contribuições pagas pelas pessoas (físicas e jurídicas) inscritas em seus quadros (verbas estas de caráter tributário – art.149, caput, CRFB/88[214]), a dupla revogação[215] da legislação que disciplinava a matéria (Lei nº 6.994, de 26 de maio de 1982[216]) resultou na fixação, pelos próprios Conselhos, dos valores das contribuições, multas e outros encargos por si arrecadados.

A colmatação da referida lacuna legislativa pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, por outro lado, não alterou o aspecto da ilegitimidade dos Conselhos e Ordens para auferirem, em nome próprio, o valor correspondente a essas receitas, porquanto o artigo 2º[217] do novel diploma, além de não estabelecer a alíquota e a base de cálculo do tributo, conferiu aos próprios Conselhos Federais o poder de fixar os valores, ou seja, competência tributária.

Embora a constitucionalidade da precitada Lei nº 11.000, de 2004 tenha sido questionada em 15 de fevereiro de 2005 pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) por intermédio da ADI nº 3.408/DF (cuja Relatoria atual compete ao Ministro Dias Toffoli[218]), não foi proferida qualquer decisão, monocrática ou colegiada, pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim, enquanto não julgada a ação, os diversos juízos, em sede do controle difuso, têm declarado a inconstitucionalidade[219] da norma e determinado a repetição de valores[220], situação essa que, aliada à ausência de repasses pela Administração Direta, vulnerabilizam a situação financeira dos Conselhos.

Alguns juízos, ainda, têm decidido que, enquanto não editada lei específica, devem ser aplicados os parâmetros da revogada Lei nº 6.994 para fixação dos valores das anuidades[221], o que, além de contrariar as regras básicas de eficácia temporal das normas, acarretaria os limites de R$ 38,00 e R$ 190,04[222], valores estes insuficientes para manutenção da estrutura dos Conselhos, custeio de seu pessoal e cumprimento de suas finalidades legais.

g) O Tribunal de Contas da União, embora entenda que os Conselhos sejam autarquias e integrem o rol de seus jurisdicionados[223], aos poucos tem se afastado do dever constitucional de fiscalização[224] sobre os mesmos, pois, no §1º, artigo 2º, de sua Instrução Normativa nº 57, de 27 de agosto de 2008, expressamente dispensa os responsáveis pelas entidades de fiscalização do exercício profissional de lhe apresentar prestação de contas ordinárias[225]-[226].

Demonstração de que o TCU aos poucos tem flexibilizado a fiscalização exercida sobre os Conselhos é o Acórdão nº 570/2007-Plenário[227], no qual os Ministros da Corte de Contas autorizaram os próprios Conselhos a normatizarem o valor das diárias, jetons e auxílios de representação por si pagos em valores superiores aos fixados pela Administração Central no Decreto nº 5.992, de 19 de dezembro de 2006, sendo, inclusive, superiores aos valores definidos em proveito do Presidente da República.

h) Muito embora o inciso XVII, artigo 1º, da Lei nº 8.443 de 16 de julho de 1992[228], garanta o direito de se formularem consultas ao TCU quanto à aplicação de dispositivos e regras relacionadas à fiscalização por si exercida, o exercício de tal direito pelos Conselhos é impedido na medida em que a Corte de Contas, com respaldo no rol de pessoas legitimadas fixado em seu Regimento Interno[229], nega conhecimento às consultas pelos mesmos formuladas[230], negativa esta que elimina um importante instrumento de controle prévio das ações e atos administrativos.

i) A Lei nº 9.289, de 04 de julho de 1996, haja vista a divergência quanto à natureza jurídica dos Conselhos de Fiscalização do Exercício Profissional, havia determinado no parágrafo único de seu artigo 4º que a isenção das custas judiciais não era gozada por essas entidades[231].

Acontece que o posicionamento adotado pelo STF no julgamento da ADI nº 1.717/DF extirpou do ordenamento as razões que motivaram a exceção da regra de isenção de custas, o que se ratifica pelo fato de, em 2001, ou seja, depois de julgada a Cautelar na ADI, ter sido acrescido à Lei nº 9.028, de 12 de abril de 1995, o artigo 24-A[232], dispositivo no qual se instituía a regra de isenção de custas sem qualquer ressalva.

Não obstante, os juízos ainda exigem dos Conselhos o recolhimento de custas processuais[233], exigência que, aliada à ausência de repasses orçamentários e à precariedade das receitas por si arrecadadas, acaba por dificultar a defesa dos interesses e atribuições públicos lhes outorgados.

j) A autonomia conferida aos Conselhos em razão da completa ausência de supervisão ministerial acaba por gerar a edição de diversos atos normativos voltados não à defesa da sociedade, mas das próprias profissões, sendo importante citar matéria veiculada pelo Superior Tribunal de Justiça sob o título “Profissões regulamentadas disputam no STJ espaço de atuação”[234].

Em tal notícia, ao serem ressaltadas intensas e frequentes disputas entre médicos, enfermeiros e psicólogos, ou entre químicos, farmacêuticos e biólogos, ou entre veterinários e agrônomos etc., foi citado estudo realizado pela cientista social ceres Pizzato Favieira, no qual se constatou que “as antigas profissões não querem perder poder que já adquiriram, retroceder em fronteiras já conquistadas, abrir espaço para novas profissões”.

Igual entendimento é exposto por Sólon Cordeiro de Araújo em seu “Os Conselhos Profissionais e o Engessamento do Conhecimento”[235], quando diz:

Hoje o conhecimento é, essencialmente, multidisciplinar e quanto mais permeabilidade houver entre profissões, melhor para a sociedade. Mas os conselhos profissionais são, essencialmente, reducionistas e agem como se o conhecimento coubesse em caixas, feudos, castelos artificialmente construídos. Logicamente que determinadas profissões exigem um maior rigor em sua fiscalização, mas outras devem ser mais abertas a vários tipos de conhecimentos e permitir uma maior interação entre diversas profissões. Acaba que os conselhos tornam-se órgãos que lutam por uma reserva de mercado que, se aparentemente benéfica para os profissionais a ele filiados compulsoriamente, é danosa para a sociedade como um todo, pois se torna limitante à difusão de conhecimentos.

k) A referida autonomia dos Conselhos gera em seus administradores a confiança de que podem limitar o exercício profissional às condições por si fixadas em atos próprios, sendo exemplo o Conselho Federal de Contabilidade, que, por Resolução[236], condicionou a inscrição em seus quadros e, consequentemente, o exercício profissional à prévia submissão e aprovação em exame de certificação profissional.

Embora o STJ tenha declarado a ilegalidade do referido ato regulamentar[237], vê-se que há a limitação ao livre exercício profissional em situações diversas das fixadas na parte final do inciso XIII, artigo 5º, da CRFB/1988.

l) Na mesma linha da autonomia, os Conselhos acabam por impor à sociedade, por Resoluções, obrigações não previstas em leis, forçando os particulares a buscarem o amparo do Judiciário para ver afastadas as exigências infralegais[238]-[239] que cerceiam o livre exercício de atividade econômica garantido no parágrafo único, artigo 170, da CRFB/1988[240].

Essas são, pois, algumas das realidades vivenciadas pelas entidades de fiscalização do exercício profissional (exceção feita à OAB), as quais comprometem o desempenho de suas atribuições institucionais ou acarretam, na prática, uma autonomia legislativa suficiente a ferir seu patrimônio e direitos e interesses dos profissionais e da sociedade.

Percebe-se que o Supremo Tribunal Federal, ao conferir aos Conselhos, excetuada a OAB, a natureza autárquica não se afastou de seu entendimento há muito sedimentado de que a fiscalização do exercício profissional. Pelo contrário, confirmou-o, porquanto o poder de polícia por tais entidades exercido pode restringir o gozo de direito fundamental, o que, à luz da Constituição de 1988, só pode ser exercitado pelo Poder Público, sem delegação a ente privado.

Entretanto, os mesmos argumentos não foram sopesados por ocasião da análise da natureza jurídica da OAB, dando início a uma tormentosa e inexplicável distinção entre pessoas que, em essência, desempenham o mesmo papel.

Sobre o autor
Cyrlston Martins Valentino

Advogado atuante em Goiás e Distrito Federal, advogado do Conselho Federal de Medicina Veterinária

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTINO, Cyrlston Martins. Conselhos e ordens de fiscalização do exercício profissional: perfil jurídico a partir da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3334, 17 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22434. Acesso em: 18 mai. 2024.

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