1. Introdução
A partir da evolução jusfilosófica por que passou o Direito, em necessário corte gnosiológico, da gênese do pensamento moderno à contemporaneidade, se estabelecerá as bases conceituais do direito contemporâneo, apontando pelos novos direcionamentos da ciência jurídica, em especial do Direito Processual Civil Brasileiro.
Estabelecendo um diálogo crítico-construtivo com os mais variados ramos do conhecimento humano, se pretende questionar a ciência jurídica enquanto fruto de um sistema fechado, possuidor de fundamentos exclusivamente baseados em sistemas racionais, que utiliza como método tão somente a causalidade analítica, para, ao final, apontar para uma nova direção, um pouco mais cética e mais complexa.
Estabelecidas as bases conceituais do pensamento moderno, apontando suas incongruências, imperfeições e incompletudes, se construirá um esboço da inquietação intelectual da contemporaneidade, que tem como ponto cume, na tradição jurídica, a recente teoria Neoconstitucionalista. É a partir deste paradigma que se estabelecerão os avanços e retrocessos da teoria da supremacia dos direitos fundamentais, apontando as mudanças ocorridas no mundo jurídico neste recente processo de adaptação. Como conseqüência desta metamorfose, desta “evolução”, se discutirá acerca da reformulação do sistema processual, implementada não só pelas novas alterações legislativas, mas também pela cultura jurídica mais recente, influenciada pela teoria da supremacia dos direitos fundamentais, que atribui ao judiciário uma esfera de poderes muito além do que previra Montesquieu em sua célebre teoria da tripartição dos poderes.
É com base em uma nova análise conceitual, em uma nova dimensão normativa e não normativa do Direito, que se pretende estabelecer os novos pontos de partida, os novos desafios da ciência jurídica, em especial do Direito Processual Civil Brasileiro, trazendo à baila, à reflexão, a teoria do pensamento complexo, complementada, no campo jurídico, pela processualística sistêmica.
Levando em conta esta nova dimensão do Direito, este novo direcionamento, esta nova alternativa, mais cética e mais complexa, se pretende discutir acerca do poder criador atribuído ao magistrado contemporâneo pela tradição jurídica mais recente, pondo em evidência a característica contraditória entre os fundamentos de justificação da nova tradição jurídica (que partem de uma redução ôntica causal-analítica – justificação juspositiva) e suas conseqüências (poder criador justificado pela nova hermenêutica constitucional).
A missão deste trabalho, pois, trata-se de identificar as incongruências da ciência jurídica da atualidade, que continua se utilizando do paradigma metodológico moderno (objetividade de um diálogo racional e não distorcido, avançando para obtenção da verdade plausível – racionalismo cientificista) mesmo diante de uma nova perspectiva: a noção de Direito como um fenômeno de múltiplas representações, de infinitos significados, de muitos modos de aplicação, enfim, de variáveis mais amplas e mais complexas.
Mas este trabalho não adentrará em questões técnico-jurídicas, nem terá um viés conclusivo. Utilizar-se-á, isto sim, de uma hermenêutica sistêmica dialética capaz de elucidar os problemas estruturais do Direito para, ao final, apontar por uma solução, por uma alternativa.
2. A construção do pensamento moderno: as bases do Direito Contemporâneo
2.1. O paradigma medieval
O pensamento moderno não surgiu como em passe de mágica, não emergiu do nada. Ele é fruto de um longo e gradativo processo de negação que culminou, nas palavras de Sérgio Paulo Rouanet[1], em um novo “projeto de civilização”. Seguindo as bases hegelianas e sua filosofia da história, a humanidade passou por infindáveis processos dialéticos de constante afirmação, negação e ressurgimento, podendo, a modernidade, ser entendida, desta forma, como a síntese da negação de uma afirmação. Mas que afirmação era esta e qual foi a negação capaz de desestabilizar o antigo regime, culminando na modernidade? Resumindo em poucas palavras, a afirmação pode ser entendida como a tradição medieval, e a negação como o Iluminismo. Deste choque, nos ensinamentos de Nicola Abbagnano, surge o “Renascimento” do espírito que já fora próprio do homem da época clássica, ou seja, “um espírito de liberdade, pelo qual o homem reivindica sua autonomia de ser racional e se reconhece intimamente ligado à natureza e à história, apresentando-se a fazer de ambas o seu reino” [2]. O embrião da era moderna fora semeado.
Em grosseira síntese, mas de fundamental necessidade aos fins a que se propõe este trabalho, algumas considerações sobre estas fases de “desenvolvimento”, de “evolução” do pensamento humano merecem ser declinadas, para, compreendida a noção de pensamento moderno, sermos capazes de identificar suas incongruências e insuficiências, apontando para um novo paradigma, um pouco mais cético e mais complexo.
Seguindo este intuito de demonstrar a construção do pensamento moderno, começamos pela tradição que antecede o novo regime: a Idade Média. Em seu viés gnoseológico, a tradição medieval pode ser entendida como uma etapa em que o conhecimento humano estava voltado, cingido, limitado, guiado pelas revelações divinas obtidas através da intermediação da igreja. O conhecimento, a verdade, era, por assim dizer, uma construção pré-estabelecida, pronta e acabada, que era revelada pelo poder divino através da interpretação “oficial” das escrituras sagradas, realizada pelas autoridades religiosas. Além de absoluto, o conhecimento tinha um intermediador que ditava as regras de verdade. E não era diferente com o Direito, que recebia como fundamento de validade a “Lei Divina” revelada pelas autoridades eclesiásticas.
João Maurício Adeodato bem nos apresenta esta idéia no primeiro capítulo do “Ética e Retórica”, intitulado “Positividade e conceito de Direito”, quando tece alguns comentários acerca da evolução filosófica por que passou o Direito:
O jusnaturalismo teológico, desenvolvido sob o respaldo do Cristianismo medieval, chega ao ápice na obra de Thomás de Aquino, que classificou as leis em eternas, naturais e humanas e fixou o direito natural como base do conceito de direito. [3]
De fato, Santo Thomás de Aquino é um dos maiores nomes da tradição jusfilosófica medieval, evidenciando em seus escritos sua tendência a usar a moral divina como fonte e argumento justificador do Direito. Mas a teoria jurídica da Idade Média não teve apenas o jusnaturalismo como expressão única de sua experiência. Muito mais que isso, a tradição jurídica medieval tinha um método bastante claro e bem definido de produção e aplicação do Direito, tendo a linguagem e suas formas de significação um papel interessante na formação deste método. E mais uma vez, São Thomás serve de exemplificação: a escolástica aristotélica foi o método utilizado pelo ilustre pensador medieval, em que se acreditava que a reunião e discussão dos vários argumentos de diversas fontes e autoridades era o meio mais seguro para se obter a verdade, sendo a confrontação argumentativa o único meio de acessibilidade à justiça daquela época.
Outro grande pensador medieval que merece menção neste escrito é Guilherme de Ockham. Jusnaturalista de forte apelo à retórica, também é característico do método medieval, mas em direção contrária às conclusões de Thomás de Aquino. Guilherme de Ockham nos apresenta uma teoria nominalismo em oposição ao universalismo tomista. E essa discussão nos evidencia a preocupação da época com os institutos lingüísticos e suas formas de representação, evidenciando a preocupação retórica de outrora, mas que, pelas finalidades deste trabalho, não serão esmiuçadas nestas linhas.
O método medieval, pois, procurava a solução dos conflitos através da disputa retórica, em que se buscava apontar as contradições e falácias dos discursos dos opositores. E isso tem uma razão de ser bastante clara, vez que o jusnaturalismo era a corrente dominante da época. Ora, a legitimidade e fonte do Direito não provinham de um sistema estatal normatizador, típico dos tempos atuais, em que a justiça é aquela que esta posta nos textos legais formulados pela autoridade delegada. A justiça da época era uma espécie de sentimento interno provocado pela perfeição divina e revelado pelas autoridades eclesiásticas, únicos que possuíam as escrituras sagradas e o conhecimento para lê-las, interpreta-las e traduzi-las aos fiéis. O poder de convencimento, então, era crucial.
Seguindo os ensinamentos de José Reinaldo de Lima Lopes, a tradição jurídica medieval pode ser apresentada da seguinte forma:
Se um método pode ser definido como um conjunto de categorias em operação e se toda ciência se articula em torno de paradigmas, a verdade é que a primeira experiência de ensino do direito no Ocidente medieval está articulada em torno de uma idéia de direito natural. No método, o direito medieval subordina-se a um enfoque filosófico-metafísico, de corte aristotélico. (...) Por outro lado, o próprio regime de debates torna o direito casuístico. Ele é um todo, mas um todo dialético.[4]
Esta realidade perdurou por séculos, mas encontrou na inquietação intelectual do século XV e XVI um grande opositor. Embora já se constatasse algumas fissuras do pensamento medieval já nos séculos XIII e XIV, foi por volta dos séculos XV e XVI que as idéias inquietantes e contrárias à tradição medieval tomaram corpo e robustez. Da filosofia à reforma religiosa, passando pela política e ciência, todos os campos do conhecimento da era medieval foram sendo lentamente implodidos a ponto de não mais se sustentarem.
Os impérios construídos pelas guerras e invasões, sufocados pelo inchaço clerical, mas estabilizados pelas autoridades religiosas, começaram a ruir lentamente diante das evidências denunciadoras de Maquiavel. O poder político, legitimado e estruturado segundo leis divinas, é explicado por Nicolau Maquiavel através da objetividade histórica e realismo político.
A vida religiosa toma novos horizontes pela reforma protestante de Lutero, Zwingli e Calvino, que eliminam a intermediação da autoridade religiosa para o exercício da fé, libertando os fiéis das revelações eclesiásticas do divino, aproximando-os dos textos religiosos traduzidos para várias línguas. O divino, a fé, a religiosidade passa a ser defendida como um sentimento individualizante de um todo, como um sentimento de um, mas vivido por todos. O exercício da fé passa a prescindir de um intermediador, possibilitando a cada um dos fiéis construir sua própria noção de moralidade, desde que o faça com base nas escrituras sagradas.
Giordano Bruno, Nicolau de Cusa e Bacon, dentre outros, abrem novas possibilidades filosóficas, garantindo o fundamento do novo direcionamento renascentista. Eles não garantem um novo fundamento para o afloramento da racionalidade moderna, para o desenvolvimento das ciências, mas incutam, semeiam uma filosofia mais aberta, menos dependente da metafísica medieval, mas não suficiente para criação de um novo paradigma. A nova perspectiva racionalista só aparece no pensamento de René Descartes.
Seguindo a tendência iluminista, a ciência toma novas proporções com as descobertas de Copérnico, Kepler e Galileu que, através de um novo método, o da observação objetiva e mensurável da natureza, conseguiram demonstrar o modelo heliocêntrico, introduzindo a ciência à sua fase adulta.
A tradição medieval estava, pois, em cheque.
2.2. O ressurgimento da subjetividade
Diante de todo este turbilhão de novas idéias e acontecimentos, a modernidade, ou melhor dizendo, o pensamento moderno, a transposição do paradigma medieval, pode ser considerado inaugurado com afloramento das idéias de Descartes. Considerado o pai da filosofia moderna, e, via de conseqüência, fundador da nova forma de pensar e ver o mundo, Descartes cria um sistema garantidor das novas descobertas, que, pela importância e originalidade, merece maior destaque.
Ele parte do pressuposto de que os homens teriam algo de comum entre eles e que isto os diferenciaria dos outros animais, concluindo que esta igualdade humana seria a razão, a capacidade de pensar e compreender-se pensante. A partir daí ele se percebe diante de uma realidade tão florescente e fértil, mesmo comparando-a com épocas passadas, que supôs poder tomar a liberdade de julgar por si próprio tudo o que lhe aprouvesse, criando ele mesmo sua própria doutrina, ausente da disputa retórica e da vaidade dos doutos que obscureciam, segundo Descartes, a verdade.
Esta foi a razão e o fundamento para tentar construir algo de novo, algo seu, sem influências. Soltar-se das amarras dos estudos letrados, das verdades reveladas, ir diretamente à fonte: o mundo e o seu próprio espírito. Para ele, a eloqüência da retórica dos doutos podia sustentar tantas e diversas opiniões que sentiu a necessidade de uma premissa primeira, ausente de questionamentos e capaz de distinguir certo de errado, pelo que concluiu dever começar do zero, sem influências pré-concebidas. Essa premissa primeira, como se vê na segunda e terceira parte de “Discurso do Método”, parte da idéia de “Penso, logo existo”[5], da idéia de cógito, de ser pensante, e assim semeia o ressurgimento da subjetividade clássica.
O filósofo francês passa então a fundamentar todos os seus pensamentos e idéias a partir do uso da razão. Pelo questionamento racional e dialético (dialético, mas emoldurado nas características de um monólogo) ele consegue clarear e tomar para si uma verdade inteiramente sua, destituída de qualquer influência pregressa (se absteve do eruditismo em que foi letrado para iniciar uma “doutrina” própria, sua), posto que só se utilizou da razão para concluir seus pensamentos. A partir dessa verdade primeira, inabalável, incólume; fincando este pilar, esta coluna, a base de sua filosofia; utilizando como mão-de-obra unicamente a sua premissa absoluta e observando como dogma unicamente o seu método, Descartes passa a declinar outras “verdades” que, derivadas tão somente do incontestável, do irrefutável, devem assumir a qualidade de seu gênero, sendo aceitas necessariamente como verdades. Através de suas idéias, Descartes abre ao homem a possibilidade de construir conhecimento através do próprio homem, da subjetividade humana, da racionalidade.
A verdade com Descartes passa a ter fundamento na própria razão do homem, excluindo a noção de verdade revelada, possibilitando, desta feita, o crescimento e a autonomia do conhecimento científico. Em passagem interessante do “Discurso do Método”, ele transfere a legitimidade do conhecimento da revelação divina à revelação racional, afirmando:
Com efeito a razão não nos dita em absoluto, que o que assim vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas, ao contrário, que todas as nossas idéias e noções devem ter um fundamento de verdade, pois de outra forma não seria possível que Deus, sendo absolutamente perfeito e verdadeiro, as tivesse posto em nós.[6]
O desenvolvimento destas idéias cartesianas colimou na criação de um método que, como será visto mais adiante, configurará, tempos depois, o próprio método científico, merecendo, desta forma, algumas considerações.
Influenciado pelos raciocínios lógicos e matemáticos, Descartes tenta assegurar o uso da razão humana como irrefutável e reveladora de verdades partindo de quatro preceitos metodológicos básicos:
(...) nunca aceitar como verdadeira uma coisa que não que se apresentasse evidentemente como tal, só incluindo nos meus juízos o que se apresentasse de modo tão claro e distinto ao meu espírito, que eu não tivesse ocasião alguma para dele duvidar; (...) dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolve-las; (...) conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de precedência de uns em relação a outros; (...) fazer, para cada caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de não ter omitido nada. [7]
Libertando o homem das amarras religiosas que legitimavam todo o conhecimento da época, embutindo um sentimento de subjetividade através do uso metódico da razão, reconciliando o homem com a natureza, não mais como mero expectador, mas como agente atuante e transformador desta natureza, Descartes cria a base de todo pensamento moderno, possibilitando ao homem o desenvolvimento das ciências, em especial as ciências naturais. Seu sistema racional, do ponto de vista jurídico, elimina a vontade divina como fundamento, transformando o jusnaturalismo teológico em racional, assegurando ao direito uma base sólida para desenvolver-se.
A partir de então é relatado pela história uma mudança radical de comportamento que se seguiu pelos séculos XXVII e XXVIII, tendo sido detectado um movimento cultural desenvolvido na Inglaterra, Holanda e França, caracterizado pela inovação intelectual, dando origem a idéias de liberdade política e econômica, defendidas pela burguesia.
A Europa daquela época experimentou algumas inovações que determinaram o caminho a ser seguido pela história desde então: o surgimento das máquinas, da energia motriz e do sistema de produção fabril, em substituição às ferramentas, à energia humana e ao sistema de produção artesanal, proporcionou um processo de transformação tão intenso que ainda hoje pode ser sentido. O Sistema Feudal foi substituído pelo Sistema Capitalista, com a acumulação de capital sobressaindo à mão-de-obra e à produção. Essas alterações, mais profundamente de cunho econômico, surtiram efeito em todas as ramificações sociais, transformando a vida política e cultural da época. A sociedade antigamente concentrada em centros rurais, passa a formar grandes conglomerados urbanos, divididos em duas grandes castas: a burguesia e o proletariado. A ciência e o desenvolvimento tecnológico passam a ser o centro das atenções. A fidalguia absolutista cede lugar ao crescente prestígio da burguesia, suscitando mais participação política. Estado e Igreja se divorciam lentamente.
Enfim, eis o pano de fundo que se tem para o desenvolvimento do pensamento moderno, calcado pelo ideário renascentista e iluminista.
Essa inversão de valores foi determinante para a mudança de ideário. E é aqui que surge a idéia de renascimento, de ressurgimento, de nova vida ideológica. A busca do conhecimento como condição de liberdade (racionalismo), a crença em verdades universais (universalismo), a transposição do homem para o centro das atenções e preocupações (antropocentrismo), a crença na existência de um deus fruto da atividade racional do homem, justificado pela razão humana (deísmo), posições políticas difundidas sob um ideário liberal (antiabsolutismo) e a hostilidade ao mundo clerical, à influência da igreja, ou das religiões em questões de estado (anticlericalismo) fundam o pensamento iluminista, assim denominado em alusão ao “tempo das luzes”, determinando a marcha do pensamento moderno.
No Direito a realidade não era outra. Marcado pelo ideário iluminista-renascentista da época, o saber jurídico se desenvolve seguindo os seus moldes, em clara busca pela autonomia e fundamento científicos, até chegar, séculos depois, ao objetivismo positivista de Kelsen. Mas até lá, longa foi a jornada.
John Locke e Jean-Jacques Rousseau, seguidos por Montesquieu, nas suas teorias contractualistas, permitiram uma reviravolta política, até então subordinada ao absolutismo da época. Sai o súdito e entra o indivíduo que deve ser tido não só como objeto de políticas públicas, mas também como sujeito ativo dessas políticas. Aqui surgem as bases do sistema democrático. Através desse “contrato” o homem abre mão de direitos e prerrogativas para viver em sociedade e para a sociedade. Só depois, já sob as diretrizes de Montesquieu, é que surge a noção de repartição dos poderes sob convivência harmoniosa, lastreada como dogma ainda hoje, sendo sua obra um modelo de ciência política justificadora do positivismo jurídico.
O final do século XVIII desponta com as idéias de Immanuel Kant, as principais publicadas nos textos “Crítica da razão pura”, “Crítica da razão prática” e “Crítica do Juízo”, tendo sido o primeiro deles um grande marco na especulação filosófica racional. Mas para declinar o pensamento kantiano, que foi capaz de sedimentar e estruturar o pensamento racional cartesiano, faz-se necessário, obrigatoriamente, tecer alguns comentários sobre a filosofia de Hume, grande opositor do sistema racional cartesiano, embora tivesse como projeto universalizar a ciência newtoniana.
Filósofo escocês do século XVII, mas indiscutivelmente atual, principalmente depois da especulação e agito intelectual da contemporaneidade, Hume põe em cheque todo o raciocínio cartesiano. Para ele, o conhecimento, ao invés de partir da razão e por ela ser conduzida, provém dos sentidos, da empiria, organizados em raciocínios dedutivos e indutivos. Através desta formulação ele discute a possibilidade do homem conhecer através da concepção de relação lógica e necessária de causa e efeito, demonstrando, através de seus argumentos, que é apenas pelo método empírico, da experiência, que o homem pode conhecer a natureza. Desta forma, Hume assegura a eficiência da ciência, em especial a da natureza, mas aponta para primeira barreira da razão humana. O racionalismo estaria limitado aos ditames dos sentidos, à experiência.
É diante deste precipício que Kant restabelece o poder da razão, declinando ter acordado do sono dogmático:
Confesso francamente: a lembrança de David Hume foi justamente o que há muitos anos interrompeu pela primeira vez meu sono dogmático e deu às minhas pesquisas no campo da filosofia especulativa uma direção completamente nova.[8]
O filósofo alemão, intimamente influenciado por Hume, delineia os limites e as possibilidades da razão cartesiana, sistematizando a racionalidade através de uma estrutura arquitetônica da razão. Estética, Analítica e Dialética Transcendentais são as etapas de conhecimento da razão pura, que retira da intuição sensível (Faculdade da Intuição) todo conhecimento empírico fornecido ao entendimento (Faculdade das Regras), possibilitando que a razão trabalhe as idéias na Faculdade dos princípios. Assim, para Kant, a razão só conheceria abstratamente, nunca se aproximando do “númeno”, da coisa em si.
Apesar de não ter se concentrado no logos jurídico, a segunda crítica kantiana, a “Crítica da razão Prática”, dá boa contribuição à área ao aproximar a moral da razão, ao integrar um conceito no outro, ao atribuir à razão o exercício da moralidade. Da análise desta idéia os juristas passaram a ter a possibilidade, o fundamento, de agregar ao direito a análise moral das questões suscitadas, percebendo-se um estreitamento mais sensível entre direito e justiça. A justiça deveria, então, nos regramentos de Kant, influenciar e justificar diretamente as decisões e apontamentos jurídicos.
Aqui abro um parêntese para apontar a influência kantiana, ou pelo menos neokantiana, nos novos rumos do direito contemporâneo, mas detidamente através da teoria neoconstitucionalista da supremacia dos direitos fundamentais, justificando, ou melhor dizendo, exemplificando a junção entre justiça e direito, mantida no porão do positivismo kelseniano até pouco atrás. A aplicação efetiva dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente na solução de litígios práticos, inclusive em controvérsias em que há previsão legal infraconstitucional, contrariando o ímpeto legislativo derivado, é um exemplo claro da incompletude do positivismo e da necessidade de reavaliar a junção entre justiça e direito. Mas essas questões merecem um maior e mais profundo debate, e, para não fugir à metodologia deste trabalho, serão esmiuçadas com mais propriedade em tópico próprio.
Mais adiante, Hegel também tenta assegurar a supremacia da razão, mas o faz em constante combate às idéias kantianas. Para Hegel, nas palavras do professor Paulo Meneses,
(...) o racional não está em alguma utopia, mas existe no íntimo da realidade. Não é um sonho abstrato, mas é o concreto na riqueza de seus múltiplos aspectos e contradições. O real, por sua vez, não é uma história contada por um idiota, mas está impregnado de razão, que o estrutura e lhe dá significação.[9]
Hegel abre sua filosofia em sentido diverso da dada por Kant e seu idealismo crítico. Para Hegel o saber absoluto é possível e, para tanto, o espírito tem como principal função tornar-se objetivo para si mesmo e de reconhecer-se nesta objetivação, evoluindo neste processo de reconhecimento. O saber absoluto é o fim colimado, mas também é recomeço. E esta travessia tem uma metodologia própria: a dialética. Para Hegel, enquanto que a natureza é um ciclo que sempre se repete, o espírito, o homem, está em constante processo de evolução, em busca da perfeição. Hegel abre a possibilidade de renovação constante, de evolução necessária, conferindo à historicidade o destaque que lhe fora renegado até então. Necessário entender, destarte, que o filósofo alemão, embora tenha introduzido a noção de dialética, de constante evolução em busca da perfeição, negando a estática histórica, o fez tão somente voltado ao espírito, ao homem, garantindo, desta forma, a exatidão das leis naturais e, via de conseqüência, a continuação do projeto racionalista cientificista.
Seguindo na construção do pensamento moderno, outro personagem importante que surge é Marx. Ele reconhece a importância do pensamento de seu antecessor no que se refere a concepção de dialética na construção da história do homem, mas readapta o conceito hegeliano para uma concepção mais pragmática. Enquanto que para Hegel a consciência é que determina a vida, para Marx a vida é que determina a consciência. Arnaldo Godoy[10] assenta que Marx é a versão de esquerda da filosofia hegeliana, que é o dileto filho do iluminismo, tendo como principais pilares de seu universo conceitual temas como dialética, ideologia, luta de classes, marcha da história, ditadura do proletariado, crítica da sociedade burguesa, alienação, mais-valia e reitificação. Observe que este universo conceitual, aliado à dialética, foi responsável pela revolução socialista, grande marco ideológico da modernidade.
Apesar de ter construído um modelo quase que dicotômico de ideologia econômica, centrados, basicamente, no capitalismo e no socialismo, importante ressaltar que da descentralização e decorrência prática desses modelos a modernidade desenvolveu outros modelos ideológico-políticos, tais como o liberalismo, o intervencionismo, o totalitarismo, a democracia, dentre outros.
O pensamento moderno ainda assentou, nas idéias de Rousseau, a individualidade humana, a igualdade, a soberania do povo, e, como conseqüência prática, semeou a idéia de democracia, importantes fundamentos do desenvolvimento sócio-político da modernidade:
E assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.[11]
A tradição do pensamento moderno, então, continuando com a lição de Arnaldo Godoy[12], acredita na objetividade de um diálogo racional e não distorcido, guiado pelo próprio homem, sem intervenções, avançando para obtenção da verdade plausível que aguarda ser descoberta. A natureza, humana e não humana, seria, para a tradição moderna, um conjunto de leis naturais e certas, um conjunto de fórmulas matemáticas capazes de estruturar tudo que é, mas sempre tendo como fundamento justificador de suas descobertas a própria racionalidade humana, o ser humano como sujeito ativo dessas criações. A modernidade cogita a libertação do homem através da conquista dessas verdades pelo método da razão. Ciência e razão seriam os meios para essa libertação, buscando-se critérios objetivos e universais que pudessem de forma infalível descobrir, revelar, desvelar, demonstrar as verdades e os princípios morais universais.
2.3. A racionalidade como método e o método racional
Visto este esboço, esta construção sumária e bastante resumida do pensamento moderno, nos incumbe agora tratar do método resultante desta construção que fundamenta todo modelo científico pós-moderno. A atitude racional foi capaz de restabelecer a subjetividade há muito perdida, reaproximando o homem de si mesmo, mas trouxe consigo um método bastante definido, perfeito para encerrar as necessidades e anseios da época.
Para bem entender este método nada melhor que voltar ao arquiteto, ao primeiro delineador das idéias racionalistas, que definiu com precisão alguns preceitos metodológicos básicos capazes de dar azo à racionalidade cientificista da idade moderna. René Descartes mais uma vez surpreende pela originalidade, apontando como precursor não só da nova forma de pensar e ver o mundo, mas também como idealizador do novo método, descrevendo pormenorizadamente cada passo a ser tomado para se obter a verdade, para se decodificar o mundo, para se decifrar a natureza. Descartes assegura a autonomia do sujeito que conhece com relação ao objeto a ser conhecido. Esse objeto passa ser identificado, isolado e decodificado. A verdade era então esta fórmula matemática decifradora do objeto estudado.
O filósofo francês chegou a esboçar e tentar aprofundar o método racionalista na inacabada obra “Regras para a direção do espírito”, mas foi muito mais eficiente e direto na “Segunda parte” do “Discurso do método”, quando elencou quatro preceitos básicos para se tomar como firme e constante toda e qualquer verdade.
O primeiro deles seria nunca aceitar como verdadeiro nada que não se apresentasse evidentemente como tal, só incluindo nos seus juízos o que conhecesse de modo tão claro e tão distinto dentro de seu próprio espírito que não houvesse razão alguma para dele duvidar. Percebe-se, então, que a verdade para Descartes deveria ser o resultado de uma construção minuciosa e indubitável, incapaz de provocar quaisquer questionamentos posteriores, servindo como base sólida para o desenvolvimento da razão. A verdade seria, desta forma, algo perfeito e acabado que espera ser revelado pela razão humana. Uma vez descoberta, a verdade asseguraria o desenvolvimento do conhecimento humano, atestando a razão como único meio revelador, como centro epistemológico do homem.
Apesar de ser o primeiro preceito metodológico cartesiano, poderia ser o último, já que capaz de resumir a noção de verdade cartesiana. Mas justificando sua precedência, os demais preceitos servem quase que como meios assecuratórios da não violação do primeiro preceito metodológico, orientando a forma de se atestar verdades.
Neste ínterim, Descartes enumera como segundo preceito metodológico da razão dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possível e necessário para resolvê-las. Preocupado com a complexidade das coisas a conhecer, Descartes se propõe a torná-las tão simples quanto fosse possível a fim de reduzir as complicações ao desvelamento da verdade. Reduzir a realidade às simplificações da mente foi a alternativa encontrada pelo filósofo francês para direcionar a busca pela verdade. Mas não foi só. Tornar as coisas mais simples para poder conhecê-las era só o começo.
Depois de simplificar os objetos de conhecimento, Descarte descreve o terceiro preceito metodológico como sendo o de conduzir por ordem os seus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo também, naturalmente, uma ordem de precedência de uns em relação aos outros. Resta clara a intenção de sistematizar a simplificação dos objetos a serem conhecidos, evidenciado no segundo preceito, pondo o conhecimento em ordem cronológica: conhece-se primeiro o mais fácil e mais simples para então se conhecer o mais difícil e mais complexo.
Por fim, Descartes propõe como quarto preceito metodológico fazer, para cada caso, enumerações tão completas e revisões tão gerais, que tivesse a certeza de não ter omitido nada. Este quarto direcionamento deixa evidente a intenção de catalogar o conhecimento tanto quanto possível, enumerando e descrevendo as verdades reveladas no afã de confrontá-las, de verificá-las, impedindo, por consectário lógico, a violação do primeiro preceito metodológico cartesiano.
Apesar de ter servido como base de criação e sustentação do modelo racional cientificista desenvolvido nos séculos seguintes, a metodologia cartesiana não encerrou e definiu o método moderno. Com o passar dos anos este método foi sofrendo acréscimos e divagações que foram compondo sua atual identidade.
Embora Descartes tenha bem nos servido com suas idéias, para ele, tudo partia do cógito, do eu pensante. A razão era base e limite de todo conhecimento. Alguns estudiosos, no entanto, começaram a questionar suas conclusões, o que nos faz lembrar de uma corrente de pensamento denominada empirista, para quem o conhecimento adviria dos sentidos, das experiências. Mas como isso já foi objeto de debate no tópico antecedente, advertidos pelo dever da não prolixidade, nos ateremos às conseqüências metodológicas da inclusão da advertência empirista ao método racional cientificista da modernidade.
Assim, o método cunhado por Descartes ganha novo relevo com a advertência humeniana e uma nova descrição nas obras de Immanuel Kant. A razão passa a ser uma unidade que conhece, que unifica a multiplicidade das experiências reais em idéias. Em outras palavras, o homem conhece em três níveis diferentes definidos por Kant como a estética transcendental, a analítica transcendental e a dialética transcendental. O conhecimento parte do objeto dado pela experiência que é captado pela intuição sensível. Esta multiplicidade sensível é canalizada em conceitos pelo entendimento. O entendimento, através de seus conceitos, reduz à unidade a multiplicidade sensível dada na intuição. Essa unidade pode então ser trabalhada na faculdade dos princípios, pode ser especulada através das idéias. Isso tudo é a razão, um complexo único, mas que se dá em níveis diferentes, diversos.
Através da arquitetônica da razão, Kant eleva o método racional aos tribunais da ciência, compatibilizando razão e experiência. A partir de então o método racionalista cientificista só ganha em relevo, passando a integrar os anais dos mais letrados. A ciência se devota a constatação ôntica-causal-analítica. Tudo passa a ser uma busca incessante pela revelação da verdade última garantidora do desenvolvimento do conhecimento humano.
As idéias de Hegel apenas ratificam o método criado pela razão cartesiana. Para Hegel o saber absoluto, além de possível, é o fim colimado. E esta travessia tem uma metodologia própria: a dialética. A eterna negação do que fora afirmado para negar-se então a negação, necessariamente reafirmando uma nova afirmação. O espírito é sempre, neste ínterim, reflexo de uma evolução constante, uma evolução historicamente representada.
É a partir desta noção histórica e evolutiva do conhecimento que Hegel assegura à ciência a capacidade de se regenerar, de ter uma tese negada por uma antítese, mas sempre criando uma nova síntese. Com essa capacidade de auto-regeneração a ciência passa a ser o fundamento último de todas as coisas. A verdade está garantida, mesmo que ela seja temporária, fugaz, a síntese produzirá uma nova tese que assegurará a nova verdade.
Embora pudéssemos dissertar uma infinidade de laudas acerca do método racional, levando em conta os fins a que se destinam este trabalho, entendemos bastarem as características já declinadas nestas breves linhas, incumbindo-nos tão somente uma última citação de Edgar Morin capaz de descreve com perfeição o fim último do método racionalista desenvolvido ao longo dos séculos:
Partiria da idéia de que nossa atividade cognitiva, nossa pesquisa de conhecimento, é, no fundo, uma procura de certeza, seja em filosofia, seja em ciência. Buscamos o fundamento absolutamente garantido sobre o qual poderemos desenvolver o conhecimento e o pensamento.[13]
O método racionalista cientificista descrito nestas breves linhas, então, pode ser entendido como uma busca pela verdade que espera ser revelada, como um desvelamento dos enigmas da natureza e do homem, sempre sendo assegurada por uma relação de causa e efeito. Simplifica-se a multiplicidade do real, divide-se esta realidade em partículas mínimas capazes de eliminar as contradições aparentes, conhecendo-se parte à parte. O todo, assim, seria a reunião destas inúmeras e microscópicas partes, não integrando a construção deste conhecimento.
O discurso moderno, então, elimina a complexificação do real em busca de uma verdade emoldurada na fórmula causa x efeito. Qualquer alternativa contrária ao modelo de verdade criado não era considerada como proposta epistemológica. O isolamento e simplificação do objeto a ser estudado (não só com relação ao sujeito, mas também em relação aos demais objetos de um referido sistema) foi tão eficaz que esta alternativa foi capaz de levar as ciências ditas naturais por caminhos e descobertas surpreendentes, elevando o modelo racional cientificista ao mais alto grau de acúmulo de conhecimentos. Qual seria a fissura, então? Qual a insuficiência do método moderno?
Um problema bem identificado no modelo de cientificidade moderno foi constatado nas ciências ditas humanas, mas esta discussão será retomada nas últimas páginas deste escrito, pelo que se adentrará pormenorizadamente e à contento na busca pela solução desta problemática.
Em se falando de direito, de ciência jurídica, o método racional cartesiano não se exime da influência exercida. Foi a exigência metodológica moderna que levou o jurista austríaco Hans Kelsen a desenvolver uma das mais importantes obras jurídicas de todos os tempos: a teoria pura do direito. O jurista, seguindo os preceitos epistemológicos modernos, procurou elevar o direito à categoria de ciência, excluindo do conceito de seu objeto (o próprio direito) quaisquer referências estranhas, especialmente aquelas de cunho sociológico e axiológico. Kelsen isolou e simplificou o objeto a ser conhecido, integrando o direito às exigências da cientificidade da época. Por meio de uma linguagem precisa e rigidamente lógica, ele abstraiu do conceito do direito a idéia de justiça, termo que sempre e invariavelmente está imbricado com os valores (sempre variáveis) adotados por aquele que a invoca, não cabendo, portanto, pela imprecisão e fluidez de significado, num conceito de direito universalmente válido.
José Manoel de Sacadura Rocha, ao tecer algumas considerações acerca da teoria de Kelsen, assevera:
Kelsen, na tentativa de fazer do Direito uma ciência, nos leva a ‘abrir’ outras discussões sobre um sistema normativo com base em uma lógica jurídica formal. Se essa norma é formal, podemos dizer que é direito posto (feito pelo homem para o homem). Kelsen tem o desejo de elaborar uma teoria pura para uma base científica jurídica, e é por esse motivo que o Direito de Kelsen deixa de ser uma ciência humana para ser uma ciência quase exata (Direito Positivo). E a ciência do Direito se transforma em puro normativismo, fundamentada em uma extrema lógica formal jurídica.[14]
Eis, pois, algumas características do método racional capazes de traçar as linhas gerais do paradigma metodológico moderno, com base nas quais nos ateremos com mais afinco capítulos adiante, isto para apontar incompletudes e imperfeições suficientes para sustentar uma proposta de mudança de paradigma.
2.4. A inquietação intelectual da contemporaneidade
Construída esta noção de pensamento moderno, e, via de conseqüência, racional e cientificista, incumbe-nos agora demonstrar, clarear, apontar alguns pontos de incongruência e insuficiência desta forma de pensar, para, mais adiante, definir as conseqüências práticas do uso desta racionalidade no Direito, tomando atenção especial com o Direito Processual. Para tanto, tomaremos como base crítica do racionalismo cartesiano a inquietação intelectual, o agito filosófico desenvolvido a partir de meados do século XX.
Nietzsche abre essa inquietação, centrada em verdades possíveis e idealizadas, anunciando a morte de Deus e rejeitando o direito natural e racional modernista, desconstruindo os modelos normativos. Seus escritos nos condenam à transmutação dos valores éticos fundados na cultura judaico-cristã, relativizando a moral, em “Além do bem e do mal”, “Humano, demasiadamente humano” e “Genealogia da moral”. “A Gaia Ciência”, quase um tratado crítico à epistemologia, provoca aversão aos métodos científicos, à sistematização do cientificismo positivista construído ao longo dos séculos anteriores. As noções de super-homem e de eterno retorno reforçam sua crítica. Em contrapartida, não declara novo direcionamento, não nos impõe “sua verdade”, não nos indica como pensar. Apenas nos suscita dúvida, estranhamento, inquietação. Provoca-nos um sentimento de incredulidade diante das “verdades” modernistas, negando a existência de neutralidade e objetividade destas verdades.
Martin Heidegger segue a mesma linha crítica ao suscitar a vida como uma interpretação espontânea da realidade de si mesma e de todas as coisas. Para ele, a linguagem, o discurso, é a maior preocupação, defendendo ser impossível universalizar verdades racionais e científicas, posto que estas são demonstradas através da linguagem, e a própria linguagem é mutante e de infinitas variáveis. Seria impossível então conceber uma idéia iluminista da Europa Ocidental como única e universal, desconsiderando as mais infinitas possibilidades ao redor do globo. A ciência, expressão de um diálogo racional e universal, estava, desta forma, condenada às possibilidades e limitações da comunicação. Em instigante passagem do texto “A caminho da linguagem”, Heidegger consegue exprimir bem a base de sua filosofia:
Há algum tempo, com muita timidez, chamei a linguagem de casa do ser. Se, pela linguagem, o homem mora na reivindicação do ser, então nós europeus, pelo visto, moramos numa casa totalmente diferente da oriental (...) Assim a conversa de uma casa para outra torna-se quase impossível.[15]
Em contínuo exercício crítico da racionalidade, observando o leque de possibilidades criado por Heidegger, Saussure desenvolve a semiótica, a ciência dos signos. A visão descritiva da linguagem, uma linguagem segura e que possibilitasse o desenvolvimento do conhecimento científico, de descrição do mundo de forma causal-analítica, semeada pela lógica formal moderna, foi quebrada com o desenvolvimento da semiótica, que incluiu o pragmatismo à análise sintática e semântica dos textos.
Ludwig Wittgenstein, um dos maiores representantes desta filosofia analítica, em sua segunda fase, a fase das “Investigações Filosóficas”, nos apresenta uma noção de jogos de linguagem, possibilitando uma crítica aos conceitos fechados. Ele acreditava que o significado das coisas não podia ser isolado de sua relação com o sujeito da comunicação, mas sim analisado e refletido de acordo com o contexto situacional. A dimensão pragmática da linguagem estava assegurada. A descrição do mundo sob a perspectiva fria e desinteressada, objetiva, racional, descritiva, característica do cientificismo, começa a ruir.
Ao perceber esta instabilidade, Jacques Derrida cria uma doutrina de desconstrução, de desconfiança, fulminando com a ingenuidade do discurso, da leitura de mundo, vinculando-os sempre a um interesse determinado. Os discursos, para Derrida, então, se amoldariam aos interesses mais evidentes, não tendo uma significação única, correta, incumbindo ao leitor, sempre, uma atitude de determinar seu interesse, de manter-se guiado pelas suas intenções. A linguagem, o sistema simbólico de viabilização da comunicação, criado e desenvolvido por determinada organização social, passa a ser entendida, desta forma, como um sistema arbitrário e instável, incapaz de sustentar verdades unas e universais.
A crítica ao racionalismo continua com as idéias de Karl Popper, para quem a ciência não abrangeria todas as hipóteses possíveis. Para ele, a linguagem, a nova forma de formulação de problemas, o surgimento de novas situações problemáticas, o confronto de teorias conflitantes, a crítica mútua por meio da argumentação, são elementos que, apesar de indispensáveis ao desenvolvimento da ciência, não são considerados como deveriam. As liberdades teriam sido ofuscadas, renegadas, esquecidas em nome da ciência e do desenvolvimento técnico apontados pelo iluminismo renascentista.
As idéias de Michel Foucalt seguem a mesma linha crítica. Ele nos apresenta a “Microfísica do poder”, afirmando ser a verdade construída pelas relações de subordinação, de supremacia intelectiva e discursiva. A verdade passa a ser uma construção intelectiva, uma interpretação imposta pelos mecanismos de poder. Os fatos humanos passam a ser arbitrários e o conhecimento absoluto cada vez mais distante e impossível: “É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma sociedade, de uma cultura ou de uma civilização; nem mesmo, sem dúvida, o arquivo de toda uma época”[16]. Nas vielas da Filosofia do Direito, declara uma teoria circular que reputa ser o poder o produtor do direito, que por sua vez produz a verdade, que inexoravelmente produzirá poder, que novamente produzirá novo direito e assim por diante. Foucalt critica a criminologia iluminista e a justiça convencional, entendida como privilegiadora, arbitrária e arrogante. Característica também interessante do pensamento de Foucalt, e que, talvez, nos sirva de embasamento à crítica do cientificismo pelo pensamento complexo, é
(...) o método, a transgressão, o livre trânsito em todos os campos dos saberes, uma epistemologia que pretendo um certo agenciamento global das ciências humanas no interior daquilo que ele chama de triedro dos saberes, e que lhe permite definir um espaço epistemológico da constituição das ciências humanas de caráter racional e científico.[17]
Em suma, essas são algumas representações da insuficiência da razão como modelo único de estruturação e estabilização de toda uma civilização, que, apesar de fundante, de imprescindível ao “desenvolvimento” do conhecimento humano, tem se mostrado deficiente, insuficiente, falha, incompleta para dar conta do atual estágio civilizatório, incumbido a nós pesquisadores apontar por novo paradigma, novo horizonte representativo das aspirações humanas.
A ciência do Direito, até então construída e estruturada seguindo todos os ditames racionalistas, influenciada pelo método cientificista da demonstração causal-analítica, guiada pelo escopo de atingir verdades absolutas e universais, quando confrontada com o agito intelectual contemporâneo começa a revelar incongruências e dissonâncias. O Direito, este fenômeno humano e social, se apresenta hoje como um fenômeno de múltiplas representações, de infinitos significados, de muitos modos de aplicação, enfim, de variáveis tão amplas e tão complexas que simplesmente se torna incompatível com o sistema racionalista cartesiano, e mais que isso, incompatível com as várias formas de racionalidade desenvolvidas pelo pensamento moderno ao longo dos anos. Mas isso não implica imputar caráter niilista ou ausência de possibilidade de desenvolvimento de uma ciência capaz de satisfazer os novos anseios. Implica sim em apontar para novo paradigma, para novo olhar sobre as ciências em geral, e com mais propriedade para as ciências humanas, em particular, para o Direito, assegurando terreno fértil para desenvolvimento de novas idéias. Se houvesse simplesmente a crítica sem apontamento de novo rumo, perderíamos o sentimento essencial às especulações humanas: a vontade de evoluir, de ultrapassar novas barreiras. Mas onde estaria a resposta deste problema, o novo apontamento, o novo paradigma?
Não existe resposta pronta ou certa para este questionamento. Esta nova direção terá de ser construída lentamente pela nova tradição jurídica que despontará, além de que a própria contemporaneidade não tem autoridade histórica de se definir além de seu tempo. No entanto, nos incumbe dar início, ou, melhor dizendo, dar continuidade às especulações e inquietações intelectuais desta contemporaneidade, apontando por alternativas que comportem as novas dificuldades.
Mas antes disto, antes de apontar por um novo paradigma, para uma nova direção, antes de especular respostas aos problemas da atualidade, nos incumbe entender um pouco mais acerca das conseqüências práticas e conceituais desta mudança de pensamento no Direito, e, por via de conseqüência, no arcabouço procedimental jurídico.