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A crise do direito processual e o neoprocessualismo.

Uma alternativa complexa ao poder criador dos magistrados

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11/09/2012 às 16:07
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3. O Direito contemporâneo

3.1. O movimento Neoconstitucionalista

É claro que o Direito não ficou imune a toda essa mudança de ideário, a todo este agito intelectual observado a partir do século XX. Seguindo a direção do novo horizonte especulativo a ciência jurídica desenvolveu um interessante movimento considerado hoje como cume, como ponto centro, como força motriz das novas mudanças no campo do direito: o movimento Neoconstitucionalista.

A intenção é, a partir de agora, desvelar que movimento é este, como surgiu, em que circunstâncias, quais seus anseios, para então estabelecer seus pressupostos conceituais de conseqüências múltiplas em todos os ramos do Direito, principalmente e de forma mais detida no que atine ao processo.

Para esta tão árdua tarefa tomaremos emprestada a lição de Luís Roberto Barroso[18], um dos maiores expoentes do movimento Neoconstitucionalista no Brasil, para quem o movimento teve como marco histórico a reconstitucionalização da Europa logo após a segunda grande guerra e, em terras tupiniquins, o renascimento constitucional sentido com a convocação, elaboração e promulgação da Constituição de 1988. Mas para bem compreender este movimento o simples contexto histórico, o simples marco de seu surgimento não é suficiente.

Atento às dificuldades, no esforço de reconstruir a trajetória constitucional recente da Europa e do Brasil, Barroso instituiu três marcos fundamentais capazes de bem identificar as idéias contidas na mudança de paradigma neoconstitucionalista: o marco histórico, o marco filosófico e o marco teórico. Eduardo Cambi[19], intimamente influenciado pela doutrina de Roberto Barroso, ensina ainda que “as alterações mais importantes, na compreensão constitucional, a que se denomina de neoconstitucionalismo, podem ser sistematizadas em três aspectos distintos: o histórico, o filosófico e o teórico”.

Assim, historicamente, o movimento neoconstitucionalista tem como pano de fundo o fim da 2ª grande guerra, que fez clarear a necessidade de postulação de direitos e garantias fundamentais incólumes para assegurar aos governados garantias mínimas contra possíveis abusos por quaisquer dos detentores do poder.

Este é um reflexo claro das atrocidades que eram cometidas sob a insígnia da legalidade na Alemanha de Adolf Hitler, líder do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que ficaram conhecidas como o holocausto. Esta suposta legalidade foi combatida em um dos mais famosos julgamentos da história: o julgamento de Nuremberg, que aponta para abertura dos processos contra os 24 principais criminosos de guerra da Segunda Guerra Mundial, dirigentes do nazismo, ante o Tribunal Militar Internacional, em 20 de novembro de 1945, na cidade alemã de Nuremberg. O sentimento que restou evidenciado no julgamento foi um só: garantir direitos fundamentais mínimos em face de qualquer poder, seja ele revolucionário ou constituído, positivado ou não.

Diante disto, deste novo sentimento, desta nova forma de pensar, não tardou para se iniciar um grande movimento de reconstitucionalização em toda Europa, tendo a Lei Fundamental de Bonn (Carta Magna alemã) e as Constituições italiana e portuguesa aberto a nova tradição constitucional. A junção entre o sentimento constitucional e o sentimento democrático faz surgir então uma nova forma de organização política que será observada e seguida por quase todos os países do ocidente europeu: o Estado Democrático de Direito.

A nova tradição jurídica logo chegou ao Brasil. A luta contra a ditadura militar desenvolvida a partir das eleições de 1974 evidenciava a quebra do silogismo no binômio autoritarismo-democracia. A ideologia democrática difundida na Europa em nada convergia com a idéia de democracia defendida pelo poder militar, o que acirrou ainda mais a luta pela queda do regime no Brasil. As “diretas já” e a constituição de 1988 foram as conseqüências deste processo, fincando o marco histórico do renascimento do sentimento constitucional no Brasil.

Visto este aspecto do movimento neoconstitucionalista, o marco histórico, passemos agora a tratar do viés filosófico. Segundo Antônio Cavalcanti Maia[20], as transformações percebidas após a segunda grande guerra impuseram à dogmática constitucional a necessidade de uma nova referência, de descrever, compreender e melhor operacionalizar a aplicação efetiva dos materiais normativos positivados nas constituições, pondo em cheque o guia metodológico da ciência jurídica da modernidade. Diante das incongruências e dificuldades de se encontrarem respostas convincentes aos problemas contemporâneos, tendo como base o positivismo kelseniano, tornou-se imperioso a intelecção de novo paradigma jusfilosófico.

A estrutura normativa, antes idealizada por Kelsen em sua célebre pirâmide normativa hierarquizada, tomou outro direcionamento. Agora além das regras positivadas também fazem parte da estrutura normativa dos sistemas jurídicos ocidentais os princípios. Foram incorporados, desta forma, conteúdos substantivos no ápice das estruturas legais, estabelecendo uma relação necessária entre direito e moral, implicando em abandono de uma das principais características do paradigma positivista: a não conexão necessária entre direito e moral.

Pietro Sanchís bem define a mutação de paradigma, aduzindo:

A Constituição já não é mais uma norma normarum à moda de Kelsen, encarregada somente de distribuir e organizar o poder entre os órgãos estatais, mas é uma norma com amplo e denso conteúdo substantivo que os juízes ordinários devem conhecer e aplicar a todo conflito jurídico.[21]

Assim, as bases conceituais positivistas foram relativizadas, fazendo surgir um sentimento pós-positivista, situando o pensamento jurídico contemporâneo para além da estiolada querela jusnaturalismo x positivismo jurídico, quase que unindo parte das duas teorias. O direito a partir de então passou a ser encarado como um instrumento efetivo de pacificação social através da aplicação coercitiva dos direitos e garantias fundamentais. Surgiu uma noção intrínseca de justiça atrelada ao exercício do direito, afastando a visão positivista de equiparação do direito à lei.

O pós-positivismo, então, visto sob a luz da obrigatoriedade de aplicação fática dos direitos fundamentais, sob a perspectiva de entrelaçamento de direito e moral, sob a ótica do reconhecimento da normatividade dos princípios e da essencialidade dos direitos fundamentais, prega uma noção de justiça intrínseca à aplicação do direito. Retoma-se então a idéia clássica de Kant que pensava na moralidade como princípio fundamental. Eis o caráter filosófico do Neoconstitucionalismo: a junção de justiça e direito, a união das questões morais às questões políticas, a complexificação do fenômeno jurídico.

O terceiro aspecto elencado por Luís Barroso é o elemento teórico, subdividido em três linhas distintas: o reconhecimento da força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a nova hermenêutica constitucional.

Os dois primeiros aspectos do Neoconstitucionalismo (histórico e filosófico) – em divisão temporal meramente para fins didáticos, reconhecendo-se que os três aspectos estão intimamente ligados e foram observados simultânea e paulatinamente – clarearam a necessidade de reconhecimento e aceitação da normatividade constitucional, de sua força imperativa. Aqui a Constituição deixa de ser uma mera declaração de intenções políticas, definidora de normas programáticas e passa a ter caráter de observação e aplicação obrigatórias.

Juntamente com o reconhecimento da normatividade da constituição criam-se os tribunais constitucionais, fazendo emergir o fenômeno da expansão da litigiosidade, decorrente da ampliação do acesso à justiça, caracterizando a segunda linha do aspecto teórico: a expansão da jurisdição constitucional.

Mas essa expansão não é tida só sob o aspecto do acesso mesmo à justiça. O judiciário passa a ser mais ativo também do ponto de vista jurídico. Ao Poder Jurisdicional foi concebido, em última análise, verificar a observação dos requisitos constitucionais essenciais mínimos, personalizados sob a titulação dos Direitos Fundamentais e do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Compatibilizando toda essa engenhosa construção, surge a nova hermenêutica jurídica, que permite ajustar a Lei Fundamental às circunstâncias dos casos práticos, possibilitando encontrar soluções ajustadas às pretensões sociais legítimas. Seria uma noção de direitos vinculantes, mas flutuantes e flexíveis, permitindo solucionar as complexas colisões entre direitos fundamentais.

Os elementos tradicionais da interpretação do direito (histórico, gramatical, sistemático e teleológico) não são descartados, continuam a ser utilizados para estabelecer os critérios (hierárquico, temporal e o da especificidade) de solução dos eventuais conflitos normativos. Mas a nova hermenêutica constitucional traz novos elementos interpretativos que passam a vincular obrigatoriamente este exercício de interpretação. Os preceitos especiais de interpretação constitucional são descritos por Luís Roberto Barroso[22] como sendo pressupostos lógicos, metodológicos ou finalísticos de aplicação das normas constitucionais. Ele cita os princípios da supremacia da constituição, da presunção da constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, da interpretação conforme a constituição, da unidade, da razoabilidade e da efetividade como sendo os mais adequados à situação brasileira.

Este é, em grosseira síntese, um sumário acerca da teoria neoconstitucionalista tratada por Roberto Barroso e complementada por alguns autores também citados ao longo destas breves linhas, e que servirá, aos fins deste trabalho, como ponto cume da mudança de ideário “pós-moderno”, como força motriz das novas especulações jusfolisóficas, como projeto de reestruturação de uma nova ciência jurídica.

3.2. Neoconstitucionalismo e Processo: o Neoprocessualismo

Com o surgimento e supremacia da teoria neoconstitucionalista várias foram as conseqüências observadas na ciência jurídica, dentre as quais, levando em conta os fins a que se destinam este trabalho, se destaca a imediata e rápida irradiação de suas bases conceituais aos mais variados ramos do direito. A ciência jurídica renovou suas forças e passou a elaborar novos fundamentos, a articular novas finalidades, a elucubrar novos métodos de racionalização do direito, usando como força matriz a normatividade constitucional.

A constitucionalização de todos os ramos do direito é bem evidenciada por Barroso na obra “Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora”, ao distinguir as noções de superlegalidade formal e material:

A superlegalidade formal identifica a constituição como fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlegalidade material subordina o conteúdo de toda atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagram um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de “controle de constitucionalidade”.[23]

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Assim, o direito processual seguiu os novos apontamentos e logo foi influenciado pela doutrina da supremacia dos direitos e garantias fundamentais, sistematizando e direcionando a teoria neoconstitucionalista aos seus fins. Tomando como base conceitual o marco teórico neoconstitucionalista, cingido na normatividade, expansão e nova hermenêutica constitucional, o direito processual tratou de elaborar uma nova teoria, dita neoprocessualista, adequando e remodelando alguns de seus conceitos clássicos aos novos direcionamentos.

A nova sistemática processual iniciou sua peregrinação mutacional em concomitância com o movimento neoconstitucionalista, surgindo como conseqüência óbvia da atribuição de força normativa aos preceitos constitucionais fundamentais. A normatividade constitucional atribuída ao art. 5º da CF, por exemplo, elevou algumas normas processuais à categoria de princípios que passaram a ter observância prática obrigatória. Normas ditas programáticas ganharam efetividade normativa e passaram a reger faticamente as relações jurídicas processuais. O que era um mero norte, mero guia, meros fins desejáveis, passou a ter vinculação coercitiva aos olhos dos operadores do direito.

Diante desta nova realidade, deste novo apontamento, surgiram várias construções teóricas que tiveram como escopo estabelecer e explicitar as garantias processuais mínimas, fazendo insurgir um novo campo de investigação do direito processual. Não bastava mais utilizar-se do processo apenas como instrumento de mediação de conflitos capaz de estabelecer normas instrumentais garantidoras da aplicação da norma material. O processo a partir de então devia ser encarado como instrumento positivo de efetivação dos anseios sociais, não só servindo como instrumento de aplicação da norma, mas também de conformação e adequação do direito material ao caso concreto.

Investigando o processo à luz da normatividade constitucional, nos salta aos olhos alguns preceitos normativos que foram capazes de estabelecer solo fértil à nova concepção jurídica do procedimento judicial, tendo Eduardo Cambi bem explicitado a questão ao assentar que:

A supremacia da constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram, no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol do artigo 5º da CF a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito, consagrou-se não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa). [24]

O processo passa a ser visto como um instrumento de efetividade jurisdicional, de promoção de um conjunto de valores objetivos básicos e fins diretivos da ação positiva do Estado. Quebrando a noção de norma diretiva, de carta de intenções políticas, a constituição passa a exigir sua aplicação efetiva e o processo perde um pouco da inatividade, passando a ser utilizado como mais um instrumento de promoção dos valores constitucionais.

Segundo Marinoni:

O juiz não é mais a boca da lei, como queria Montesquieu, mas sim o projetor de um direito que toma em consideração a lei à luz da Constituição e, assim, faz os devidos ajustes para suprir as suas imperfeições ou encontrar uma interpretação adequada, podendo chegar a considerá-la inconstitucional no caso em que sua aplicação não é possível diante dos princípios de justiça e dos direitos fundamentais.[25]

Essa mudança de paradigma, aliada às novas técnicas processuais, deixou evidente a expansão da jurisdição constitucional, atribuindo aos operadores do direito uma maior flexibilidade normativa, adequando a lei aos novos valores. A criação dos tribunais constitucionais, a ampliação do rol de legitimados a propor as ações de controle constitucional, a possibilidade de controle constitucional já em primeira instância, a interpretação conforme a constituição e a declaração parcial de nulidade sem redução de texto são só alguns exemplos das transformações trazidas com a mudança de ideário.

A nova noção de processo, o novo ângulo de visão acerca da jurisdição trouxe consigo muitas implicações. Hoje se fala em caráter publicístico do processo, que estaria voltado a uma gama superior de princípios, não mais se limitando aos interesses controvertidos das partes; em quebra da dicotomia clássica entre direito e processo, concretizando o princípio da instrumentalidade do processo; em cláusulas gerais de processo, permitindo ao juiz ampla discricionariedade para verificação da efetividade jurisdicional, etc.

Todas essas mudanças, todavia, não ocorreram como em passe de mágica, sem fundamentos capazes de lhes assegurar legitimidade. Elas foram resultado da utilização prática, da construção dogmática do terceiro aspecto teórico neoconstitucionalista: a nova hermenêutica constitucional.

Através da ponderação de valores, da adequação argumentativa das normas abertas aos casos práticos insurgentes, da utilização da hermenêutica jurídica para vincular os princípios e flexibilizar as normas, foi possível ajustar a Lei Fundamental para solução dos conflitos, tornando possível atribuir ao processo a flexibilidade desejada.

O caráter publicístico do processo o liberou a buscar os fins públicos, aproximando jurisdição e democracia e evidenciando a transmutação do Estado Liberal ao Estado Social; o processo se uniu ao direito material no afã de dar-lhe efetividade; a atribuição do caráter instrumental ao processo lhe reforçou a efetividade e lhe garantiu uma maior celeridade, sem falar que a própria constituição consagrou o princípio da duração razoável do processo, deixando claras as suas intenções. Enfim, vários foram os sintomas capazes de indicar a nova orientação do processo, aproximando-o ao conceito de direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada, sempre utilizando-se da nova hermenêutica constitucional.

Apesar das dificuldades a hermenêutica constitucional foi capaz de sistematizar e controlar as instabilidades da nova teoria processual, assegurando terreno fértil para as transformações que se seguiram na tentativa de adequar o processo aos novos anseios neoconstitucionalistas. Mas é claro que, em se tratando de complexa realidade social, de declarada secularização de pensamentos, de multiculturalidade evidente, este pode não ser o direcionamento último. Valores e razões podem mudar, transformando a forma de sentir e ver as coisas, traçando-se novos direcionamentos, o que não tirará a autoridade das razões utilizadas à época.

Em suma, a maturação do pensamento jurídico moderno, influenciado pelos agentes de perturbação e inquietação do pensamento jurídico pós-moderno, propiciou o surgimento de nova linha de raciocínio, de nova forma de pensar: o Neoconstitucionalismo. Com o surgimento desta nova teoria e sua irradiação aos mais variados ramos do direito, tratamos neste tópico acerca do Neoprocessualismo. Emergirá a partir de agora, é natural, diria até que é desejável, novos problemas a serem encarados, novos enlaces discursivos, novas críticas; tais como o poder “criador” dos magistrados, a discricionariedade exarcebada, etc. E estas conseqüências, estes problemas emergentes da mudança de paradigma é que será tratado nos tópicos seguintes.

3.3. O poder “criador” dos magistrados

Como vimos no tópico anterior, ao Poder Judiciário foi concebido, em última análise, verificar e observar os requisitos constitucionais essenciais mínimos, o que lhe atribuiu força renovada. Aliás, esta verificação última do Poder Judicante ganha relevo e poder ao se observar que estes preceitos e garantias fundamentais são normalmente explicitados constitucionalmente sob a roupagem de normas jurídicas abertas, de difícil conceituação e limitação. Como assevera Ana Carolina Lôbo, os princípios possuem um “elevado grau de abstração e ‘indeterminabilidade’, impossibilitando sua aplicação imediata, pelo que necessitam de ‘atividades concretizadoras’.”[26] Assim, a conformação dos princípios e normas abertas são, em última análise, de responsabilidade dos magistrados, que lhes dita seu sentido e abrangência através da argumentação e da nova hermenêutica jurídica.

Dissertando acerca da obra de Ronald Dworkin, Ruy Alves justifica a necessidade e legitimidade do poder criador do juiz, aduzindo:

A insuficiência do modelo legal abre oportunidade para a mediação que poderá ser desenvolvida pelo próprio juiz. O direito é uma mediação entre o poder e a cidadania, funcionando como um amortecedor social que não pode deixar de agir nas situações colocadas ao Poder Judiciário. (...) A legitimação de fato e formal se dá por intermédio da atividade jurisdicional fundamentada. (...) O ponto de partida é o texto da lei, mas haverá uma construção a partir de um diálogo multidisciplinar, conforme declara Ronald Dworkin.[27]

Diante desta constatação se verifica que o exercício de aplicação efetiva dos direitos e garantias processuais fundamentais é uma construção retórica mais ou menos perfeita, que inculta à esta ou àquela norma seu sentido e abrangência, sendo inevitável a constatação de que, em última análise, quem dita a abrangência e limitações destas normas são os magistrados. É por esta razão que conceitos e definições destas normas abertas se encontram hoje em amplo e avançado processo de discussão argumentativa, não se podendo ainda atribuir quaisquer ônus ou bônus às correntes divergentes.

Roberta Fragoso Menezes Kaufmann descreve com clareza essa dificuldade de apontar direcionamentos inequívocos ou ao menos não conflitantes ao asseverar que a:

(...) constituição, como sistema aberto de regras e princípios, possui em seu bojo normas que traduzem idéias aparentemente conflitantes, cuja concretização depende sobremaneira da atuação mediadora do Poder Público, a partir de uma hermenêutica harmonizadora relativa aos direitos fundamentais em conflito. Dessa forma, lança-se ao hermeneuta constitucional o desafio de realizar a ponderação de valores, nos casos concretos, para solucionar a colisão de princípios, para tanto se utilizando do contexto histórico, social, econômico e cultural do qual aquele princípio fundamental faz parte e observado o povo a que se destina.[28]

O neoconstitucionalismo e, via de conseqüência, o neoprocessualismo, desta forma, ao estabelecerem novos rumos à ciência jurídica, imputando aos aplicadores do direito a tarefa de compatibilizar a norma aos novos anseios, relativizando a teoria positivista kelseniana, trouxeram consigo uma nova complicação, um novo dilema a ser maturado pelos estudiosos do tema. Evidenciada esta nova prerrogativa judicante, o poder de aplicar efetivamente as normas e preceitos fundamentais nos moldes já evidenciados linhas atrás, ou seja, conformando os princípios constitucionais aos casos concretos, inclusive contra legem, se necessário, em claro controle de constitucionalidade difuso, não estaria o Poder judiciário criando norma, fazendo lei? Como evitar o excesso de subjetividade, a linha tênue entre discricionariedade e arbitrariedade? Como estabelecer limites aos excessos interpretativos?

Estas questões trazem consigo tantas outras variáveis que a digressão intelectiva é quase uma obrigação. Podia se incluir como temas obrigatórios para boa intelecção do novo paradigma jurídico pós-moderno, por exemplo, a quebra de representatividade democrática ou a aniquilação da tripartição dos poderes. Mas é intenção deste escrito tratar de momento anterior ao surgimento destes questionamentos, de ir na raiz do problema: a questão do método. Se complexifica a ciência jurídica, mas se mantém o mesmo método racionalista cientificista moderno. A questão é justamente apontar um novo método aos novos anseios, o que se pretende com o desenvolvimento dos últimos capítulos desta monografia.

Este tópico foi criado justamente para evidenciar as novas prerrogativas dos magistrados, fazendo insurgir, necessariamente, as dúvidas e questionamentos expressamente consignados nos parágrafos anteriores. Mas como já dissemos, este trabalho não pretende ser conclusivo, não tem intenção de indicar respostas ou direcionar pensamentos. Muito pelo contrário, tem afã de apresentar novos enlaces discursivos, de manter a crítica, de elevar à complexidade as discussões triviais.

Importante frisar, todavia, que esta tarefa é árdua e muitas vezes conflituosa. Há muito que se discute os rumos da humanidade e do pensamento humano, não tendo, todavia, os protagonistas desta histórica, quer pela própria natureza do saber (ruminante, fugaz, mutável), quer pela ironia de interesses contrapostos, logrado êxito em chancelar direcionamentos comuns, ou ao menos não conflitantes.

3.4. As recentes reformas processuais

Assim como a nova teoria jurídica neoconstitucionalista foi criada pelo agito intelectual pós-moderno, ainda em Processo de sedimentação, alheia a questões procedimentais e metodológicas, o Código de Processo Civil Brasileiro, influenciado pelas novas orientações doutrinárias, sofreu inúmeras alterações legislativas esparsas ao longo destes últimos anos, não tendo observado, entretanto, que seu todo codificado foi criado em janeiro de 1973, época em que ainda não se falava, pelo menos no Brasil, em aplicação efetiva dos direitos fundamentais, instrumentalidade e efetividade do processo.

É que hoje se debate acerca do novo direcionamento processual, corporificado pelas alterações legislativas mais recentes, imputando a elas (as modificações) o caráter de grande solução aos problemas do Direito, de descontinuidade do projeto processual clássico, de novo paradigma, caracterizado pela implantação de propostas que se dizem garantir a efetividade da justiça.

Humberto Theodoro Júnior bem explicita as etapas de transformação por que passou o Caderno Processual Pátrio:

Nos últimos anos do século passado e nos primeiros do século atual, o legislador brasileiro procedeu a profundas reformas do Código de Processo Civil (...) Num primeiro momento, a Lei nº 8.952, de 13.13.94, alterou o texto do art. 273 do CPC, acrescentando-lhe vários parágrafos (que viriam a sofrer adições da Lei nº 10.444, de 7.05.2002), com o que se implantou, em nosso ordenamento jurídico, uma verdadeira revolução, consubstanciada na antecipação da tutela.[29]

Em busca da realização desses direitos substanciais, a primeira alteração legislativa processual é sentida com a implementação da atual redação do art. 273 do CPC. A cognição exaustiva do processo, fundamentada sob a insígnia da segurança jurídica, abre espaço à cognição sumária que busca muito mais a efetividade e celeridade processuais.

Em prol da efetividade processual, outras técnicas preventivas e assecuratórias tomam forma e os artigos 461 e 461-A, ambos do Caderno processual Pátrio, são editados pelas Leis nº 8.952/94 e nº 10.444/2002. Ao juiz é concedido o poder de efetivar sua decisão, conferindo ao litigante vencedor o direito de receber a tutela específica de seu direito, seja ela uma obrigação de dar, fazer ou não fazer. Acrescente-se o que o §5º do art. 461-A ainda atribui ao juiz ampla discricionariedade na efetivação deste direito, conferindo-lhe interpretação e concreção da dicção aberta “meios necessários” à realização do direito material. A estiolada conversão em perdas e danos perde apreço. Como conseqüência, perdemos o aporte teórico da classificação trinaria das sentenças.

A necessidade de se distribuir o ônus do tempo do processo, tomou muito mais força com a implementação da Emenda Constitucional nº 45 que incluiu no rol exemplificativo de garantias fundamentais mínimas a duração razoável do processo. Isso foi fundante para a criação de novas técnicas processuais implementadas pelas alterações legislativas que se seguiram. Mas talvez a alteração legislativa mais significativa e mais profunda tenha sido a consubstanciada pela Lei nº 11.232/2005, abolindo-se de um vez por todas o processo autônomo de execução de sentença.

As alterações não se restringem a procedimentos executivos, primando a efetividade das decisões judiciais. Outras modificações são efetivadas pensando em problemas pontuais da nossa realidade sócio-jurídica. As súmulas vinculantes, o novo requisito de admissibilidade recursal da repercussão geral, a sentença sumária de improcedência do artigo 285-A, dentre outras, restringem a acessibilidade à justiça em nome do desafogamento dos tribunais.

Talvez o grande desafio que se tem hoje, em se falando de processo, como conseqüência clara dos enfrentamentos argumentativos acerca das novas mudanças legislativas, seja a compatibilização entre instrumentalidade e garantismo processual. O primeiro, relativizando as noções de direito material e de procedimento, permite a construção de técnicas processuais que aceleram e adéquam o processo à realização e efetivação dos direitos. O segundo busca o respeito aos direitos e garantias fundamentais do réu, do demandado, no afã de evitar os abusos cometidos em épocas passadas. A medida certa entre as duas vertentes talvez consiga diminuir os constantes atritos discursivos entre elas. Nem excesso de garantias de defesa, nem desmesurada inquisitoriedade processual.

Entenda-se, porém, que não é intenção deste trabalho discutir questões estritamente técnicas ou apontar possíveis erros legislativos, razão pela qual não desenvolvemos à exaustão as inúmeras implicações das modificações mais recentes. Não se discute as várias benesses trazidas com as inovações aqui comentadas, dentre as quais se destacam a maior celeridade e efetividade processuais. O ponto de real interesse do discurso desenvolvido nestas breves páginas é discutir a forma como estas inovações foram implementadas no nosso ordenamento e as conseqüências conceituais e metodológicas impostas à ciência jurídica. O que o Direito, enquanto ciência, sofre com essas inovações.

De fato, em se falando do Código de Processo Civil Brasileiro, o que se tem hoje é uma colcha de retalhos. Ao invés de se pensar em um novo projeto de código capaz de compatibilizar os atuais anseios em um todo não contraditório, mantendo a integridade metodológica de uma suposta ciência jurídica, se faz uma adaptação frankensteiniana, lapidando o CPC, aresta por aresta, como se ele ainda fosse matéria bruta, primária.

Ao se proceder desta forma se concebe uma verdadeira anomalia jurídica, se perdendo a raiz de sustentação, o pilar estrutural de uma área do conhecimento que se pretende científica. Não se pode confundir mudança de ideário jus-filosófico com anarquismo científico. Proceder a mudanças práticas no direito sem o devido alicerce metodológico é quase que suicídio científico. Esta é a verdadeira intenção deste labor: identificar os ranços e avanços da nova sistemática pós-moderna para a partir de então lhe direcionar um sentido, um caminho menos arenoso e mais suscetível de sucesso e desenvolvimento.

O legalismo moderno, o positivismo kelseniano assegurara ao direito uma matriz metodológica firme capaz de elevá-lo aos rigores da ciência. Mas uma ciência ainda moderna, racionalista, cientificista, buscando critérios objetivos e universais que pudessem de forma infalível descobrir, revelar, desvelar, demonstrar as verdades universais. O positivismo pecou no seu engessamento pragmático, na burocracia paralisante já desvelada há anos por Franz Kafka, no clássico literário “O processo”.

O paradigma pós-moderno trouxe consigo novo ideário, novos enlaces argumentativos, novos problemas, desta vez muito mais preocupado com o pragmatismo jurídico, com a efetividade do direito, proporcionou inúmeras e profundas mudanças, algumas vistas ao longo deste escrito. Por sua vez, esqueceu-se do rigor metodológico, quis obter a legitimação de sua doutrina mais pelos efeitos do que pelas causas.

A técnica e a pesquisa processual da atualidade têm, hoje, como meta essencial dar celeridade aos processos judiciais, que fundamentaria uma efetividade da tutela dos direitos. Mas esta efetividade não se restringe ao tempo de duração dos processos. Vai além. Engloba uma camada muito maior de princípios e direitos, não se limitando a técnicas pragmáticas de rápida solução de litígios. A efetividade processual deve ser encarada sob os mais variados ângulos de observação, não se devendo substituir o rigorismo legal por técnicas retóricas de pragmatismo. A efetividade deve ser assegurada, mas não se pode negar os princípios que fundam o Direito.

Parece-nos, então, que algo não se encaixa na atual estrutura do direito, da “ciência” jurídica. O dogmatismo perde espaço à retórica utilitarista num profundo abismo niilista. Como ressuscitar a legitimação científica do direito sem retirar-lhe a efetividade? Eis uma pergunta que ainda circundará por vários anos os centros de pesquisas jurídicas. Nos resta então iniciar a crítica construtiva em busca de, senão respostas, pelo menos novos olhares, novas fontes.

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Sobre o autor
Elder Paes Barreto Bringel

Graduado em Direito e Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Católica de Pernambuco. Oficial de Justiça lotado na CEMANDO de Olinda. Tem experiência em diversas áreas do Direito devido a sua vida profissional versátil, e tem se especializado nas ciências propedêuticas e filosóficas. Graduando em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRINGEL, Elder Paes Barreto. A crise do direito processual e o neoprocessualismo.: Uma alternativa complexa ao poder criador dos magistrados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3359, 11 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22591. Acesso em: 26 abr. 2024.

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