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A construção da AGU e a história da orientação jurídica e da representação judicial do Estado brasileiro

Agenda 05/11/2012 às 16:20

O nascimento da AGU é acontecimento recente na história republicana do Brasil, tendo a instituição surgido em 1993, muito embora sua idealização date da promulgação da Constituição de 1988.

O nascimento da AGU é acontecimento recente na história republicana do Brasil, tendo a instituição apenas 19 (dezenove) anos de existência, muito embora sua idealização (previsão constitucional) date da promulgação da Constituição de 1988[1], ou seja, há 24 anos.

Todavia, antes do surgimento da AGU, havia sim orientação jurídica e defesa judicial da União, ainda que de modo precário (ao menos para os padrões e necessidades atuais). Significa dizer que a União não estava de todo indefesa ou sem orientação/assessoramento, em que pese os modelos adotados pelas ordens constitucionais que precederam a atual fossem deficitários.

No Brasil colonial, como não havia divisão entre as funções executiva e judicial, a atividade de defesa do Rei e de sua Coroa era realizada por “procuradores” que também exerciam a função de “juízes da Coroa” [2]. Segundo Jefferson Carús Guedes “A marca deste longo período de implantação da burocracia portuguesa no Brasil é a conexão da função judicial à de defesa do Estado, vez que os Procuradores são sempre membros do mesmo poder que aquele dos juízes, no caso das Relações.”[3] Ditas Relações, expõe Guedes (2009, p. 337), “eram órgãos colegiados judiciais e administrativos competentes para exame e reexame das questões conflitivas.”

Com a Constituição Imperial de 1824 é que surge a divisão funcional entre os Poderes Executivo e Judiciário (art. 10) e, portanto, uma divisão entre as funções de defesa do Poder Executivo, bem como de acusação criminal, exercidas por um Procurador da Coroa[4], e as funções jurisdicionais próprias do Judiciário[5]. “Ainda nesse Período tem-se o Decreto de 23 de Junho de 1834, que propôs as divisões nas Relações do Império com suas Províncias através de um Procurador da Coroa, Soberania e Fazenda Nacional, cargo que sobreviveu até a Proclamação da República, sob a denominação de Defensor Judicial da Coroa, da Fazenda e dos seus bens e direitos.” (COSTA et al, 2009, p. 9-10).

Com o advento do período Republicano, deparamo-nos com uma nítida “confusão”, utilizando-nos do termo consignado pelo código civil nos seus artigos 381-384, entre as funções de “Procurador da União”, como sendo o órgão que lhe representa judicialmente, e de Ministério Público, situação que permanece inalterada até o advento da Constituição Federal de 1988.

Nesse sentido, como o art. 58, § 2º da Constituição de 1891 dizia que as atribuições do Procurador-Geral da República seriam definidas em lei, o Decreto nº 848, de 11 de outubro de 1890, que lhe é anterior e que fazia às vezes da lei declinada no texto constitucional, expressamente consignara em seu art. 22, “b”, que competia ao referido Procurador Geral da República, que também integrava o Supremo Tribunal Federal, funcionar como representante da União em todos os feitos submetidos à jurisdição do Supremo Tribunal[6].

Relativamente à organização da área consultiva do governo da novel República que se instalara, conferiu-se tal competência, de início, ao Procurador-Geral da República e aos Procuradores da República, com exercício nas seções da Justiça Federal e Estadual, por meio do art. 38, nº 4, alíneas “a” a “g”, da Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894.

Contudo, com a criação da Consultoria-Geral da República, por meio do art. 2º do Decreto 967 de 1903[7], determinou-se que a função consultiva e de representação extrajudicial do Poder Executivo da União ficaria a cargo daquele órgão, situação que somente findará com a criação da AGU[8].

Deste modo, e resumidamente, tem-se que a partir de 1903 e até 1993, ano da efetiva criação da Advocacia-Geral da União, a função consultiva do Poder Executivo seria de competência da Consultoria-Geral da República, sendo que a representação judicial da União ficaria a cargo do Ministério Público, em que pese a instabilidade que tal situação proporcionava[9].

Ocorre que entre os anos de 1967 a 1988 aprofundou-se a crise de identidade do Ministério Público em razão de sua função híbrida[10], ora atuando como custos legis, ora como representante da sociedade e ora como representante judicial da União o que, por conseqüência, impactou de forma negativa na qualidade da defesa judicial do Estado brasileiro.

Assim, foi-se gerando paulatinamente uma corrente contrária a “equivocidade” da posição do Ministério Público: que de um lado se pretendia imparcial, na função de fiscal da legalidade e de outro se via de algum modo atrelado ao Poder Executivo, sem possuir a necessária relação de confiança ao exercício da representação judicial da União[11][12].

Com efeito, a perenidade dessa situação, dentre outras questões como, p. ex., a falta de coordenação quanto à representação judicial e consultoria das entidades integrantes da Administração Federal indireta, fez com que o Ministro Gilmar Mendes cunhasse a expressão “estelionato pela via judicial”[13] (quando do julgamento do MS n. 23.041-5/SC), já que os entes públicos encontravam-se praticamente indefesos, pois para além da crise existencial (funcional) do Ministério Público, este não possuía meios de proporcionar uma representação/defesa robusta à União nos mais diversos e afastados rincões do país.

Nesse contexto histórico, marcado também pelo processo de redemocratização representado pela Constituição Federal de 1988, houve uma quebra de paradigma[14] – para utilizar expressão de Thomas Kuhn – na estrutura organizacional e funcional concebida para a defesa, representação e assessoramento da União. O fato é que, segundo Kuhn, a ciência normal[15] não quer ver seus paradigmas alterados, tanto que isto só ocorre quando esgotadas todas as possibilidades de se responder a um determinado problema por meio da utilização do paradigma previamente estabelecido e aceito pela comunidade científica.

De fato, esta percepção pode sim ser transposta para o caso ora sob análise, eis que desde a independência do Brasil o papel de defesa judicial, e de consultoria e assessoramento (durante interregno menor de tempo), da União ficaram a cargo do Ministério Público: algumas vezes integrando o próprio Poder Judiciário, outras o Poder Executivo, mas invariavelmente ao Ministério Público; muito embora alterações relevantes tenham ocorrido nessa caminhada, como foi com a retirada da competência consultiva e de assessoramento do Ministério Público, a partir da criação da Consultoria-Geral da República, órgão integrante do Poder Executivo.

Contudo, só com a Constituição de 1988 é que o paradigma de mais de mais de um século foi efetivamente superado, eis que não mais suficiente para atender às necessidades da União no que dizia respeito à sua representação judicial e sua consultoria e assessoramento jurídicos. A criação da Advocacia-Geral da União e a sua catalogação como Função Essencial à Justiça, fora, portanto, da estrutura funcional do Poder Executivo, constitui uma verdadeira revolução[16], senão científica, ao menos política no modelo de separação ou divisão funcional do Poder estatal.

Pode-se dizer, assim, tal qual apontado por Guedes (2009, 354-355), que a Constituição de 1988 foi o grande marco na reestruturação das carreiras jurídicas federais, especialmente às relacionadas à Advocacia Pública, eis que em seu artigo 131 apartou em definitivo a função de defesa judicial da União das competências antes atribuídas ao Ministério Público[17], destinando-a à Advocacia-Geral da União[18], bem como agregou, nesse mesmo órgão, a função de consultoria e assessoramento do Poder Executivo, que em 1903 havia sido atribuída à Consultoria-Geral da República.

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Nesta senda, por derradeiro, é certo que o advogado público e o promotor de justiça têm origem comum, devendo, em razão dessa mesma origem, observar e garantir o respeito à Constituição e à lei, como razão primaz de sua existência, tal qual sustentando por Carlos Figueiredo Mourão[19], devendo, portanto, serem dignos da mesma respeitabilidade e dignidade institucional, notadamente no que se refere às suas prerrogativas para o exercício dos seus respectivos misteres constitucionais.


Referências

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1#content>.

______. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/legislacao/legislacao-historica/constituicoes-anteriores-1#content>.

______. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htmt>.

COSTA, Alexandre Bernardino; SILVA, Adriana Monteiro da; SILVA, Beatriz Cruz da et al. Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos da AGU. Coordenação Jefferson Carús Guedes e Mauro Luciano Hauschild, Brasília: UNIP: UNAFE, 2009.

GUEDES, Jefferson Carús. Anotações sobre a história dos cargos e carreiras da Procuradoria e da Advocacia Pública no Brasil: começo e meio de uma longa construção. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. tradução Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2009.

MOURÃO, Carlos Figueiredo. A advocacia pública como instituição de controle interno da Administração. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. O Ministério Público. A Constituição Brasileira 1988: interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

ROSAS, Roberto. A Advocacia-Geral da União. A Constituição Brasileira 1988: interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.

VALENTE, Maria Jovita Wolney. Histórico e evolução da Advocacia-Geral da União. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009.


Notas

[1] Constituição Federal de 1988 – “Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.”

[2] COSTA, Alexandre Bernardino; SILVA, Adriana Monteiro da; SILVA, Beatriz Cruz da et al. Nos limites da história: a construção da Advocacia-Geral da União: livro comemorativo aos 15 anos da AGU. Coordenação Jefferson Carús Guedes e Mauro Luciano Hauschild, Brasília: UNIP: UNAFE, 2009, p. 8.

[3] GUEDES, Jefferson Carús. Anotações sobre a história dos cargos e carreiras da Procuradoria e da Advocacia Pública no Brasil: começo e meio de uma longa construção. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 336-337.

[4] “Art. 48. No Juizo dos crimes, cuja accusação não pertence á Camara dos Deputados, accusará o Procurador da Corôa, e Soberania Nacional.”

[5] Guedes (2009, p. 347) afirma que “A marca significativa mais importante desse período é a separação da função de Advocacia ou Procuradoria do Estado daquelas de Juízes e Desembargadores, embora, em alguns ligeiros períodos republicanos, o próprio Ministério Público da União se situasse no Judiciário ou no Executivo (...)”

[6] Posteriormente, a Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, em seu artigo 28 assim dispôs:

“O Procurador da Republica auxiliado pelos adjuntos, ajudantes e solicitadores, em sua respectiva secção, representa os interesses e direitos da União, quer no juizo seccional e no jury federal, em todas as causas da sua privativa competencia, quer perante as justiças locaes, no que interessar á Fazenda Nacional e á guarda e conservação daquelles direitos e interesses.” Disponível em http://www.camara.gov.br/Internet/InfDoc/novoconteudo/Legislacao/Republica/Leis1894_vI%20e%20II/pdf4.pdf

[7] “Art. 2º É criado o logar de consultor geral da República, como vencimento annual de quinze contos de réis, sendo dous terços de ordenado e um terço de gratificação.

§ 1º Ao consultor geral da República incumbe consultar ás Secretarias de Estado, nos mesmos casos em que o fazia o procurador geral da República.”  

[8] “Com redação quase idêntica à da Lei nº 221/1894, vinham especificadas as matérias nas quais deveria ser ouvido o Consultor Geral, especialmente as extradições, expulsão de estrangeiros, execução de sentenças estrangeiras, alienação, aforamento, locação e arrendamento de bens nacionais, aposentadorias, reformas, jubilações, pensões e montepios de funcionários federais, matérias típicas de atividade consultiva. Desse modo, isolava-se por completo a atividade consultiva da atividade judicial, que entre 1894 e 1903 haviam ficado sob encargo do Procurador-Geral da República, e assim permaneceria até 1993, quando da organização da Advocacia-Geral da União.” (GUEDES, 2009, p. 349)

[9] “Na Constituição de 1934, o Ministério Público da União manteve sua posição constitucional, inserido no capítulo ‘Dos Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais’, sob a chefia do Procurador-Geral da República, cuja prerrogativa era propor a ação de inconstitucionalidade interventiva e a representação judicial da União, mantida durante toda a existência da Justiça Federal.

Com a extinção da Justiça Federal pela Constituição de 1937, reduziu-se a atividade de representação judicial do Ministério Público Federal, uma vez que a competência para conhecer das causas da União foi deslocada para a Justiça dos Estados e a representação judicial na cobrança da dívida ativa foi delegada ao Ministério Público dos Estados. Preservou-e, com isso, a competência do Procurador-Geral da República para atuar na instância revisora no Supremo Tribunal Federal, pois, nas causas em que a União fizesse parte, o recurso era cabível diretamente para este tribunal.

Nas décadas de 30 e 40, as atividades estatais foram ampliadas por meio das autarquias federais compostas com corpos jurídicos autônomos, com participação de assistentes, advogados, procuradores, tendo estes dupla função de representação judicial e extrajudicial e atendimento consultivo.

Com a Constituição de 1946, foi criado o Tribunal Federal de Recursos, para conhecer as causas de interesse da União, em segundo grau de jurisdição e julgadas em primeiro grau pela Justiça dos Estados membros. O Ministério Público Federal manteve a representação no novo Tribunal, cabendo ao Procurador-Geral da República a atuação no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, essa representação judicial podia ser delegada ao Ministério Público Estadual para atuação na Justiça respectiva de cada Estado.

Assim, a Consultoria Geral da República preservou a representação extrajudicial e manteve a atividade de consultoria da União e, paulatinamente, foram sendo criadas novas Consultorias Jurídicas nos Ministérios, permitindo a CGR atendesse direta e exclusivamente o Presidente da República. (...)

Com a Constituição de 1967, o Ministério Público da União passou a integrar o capítulo destinado ao Poder Judiciário, posição alterada pela Emenda Constituição nº 1, de 1969, que o situa no capítulo destinado ao Poder Executivo. Com a recriação da Justiça Federal, o Ministério Público Federal recuperou a representação judicial da União na primeira instância dessa Justiça, que experimentou desde então expressiva expansão. A Consultoria Geral da República, nesse período, manteve-se ligada exclusivamente ao Poder Executivo.

Todas essas mudanças denotam grande instabilidade nas funções de representação judicial da União, tendo na administração direta ora a atividade de Procuradores da República, ora de Promotores de Justiça dos Estados, associada a criação, extinção e recriação da Justiça Federal.” (COSTA et al., 2009, p. 11-12)

[10] O Ministro Roberto Rosas, em palestra sobre a Advocacia-Geral da União, transformada em texto escrito, comentou, verbis: “Os senhores que militam na área federal, nos Estados, na Justiça Federal, ou têm algum contato com o Ministério Público Federal, devem ter sentido ao longo do tempo que sempre houve uma discussão a respeito da função híbrida do Procurador da República, sendo ao mesmo tempo procurador do Ministério Público e advogado da União, nas autarquias, nas empresas públicas federais.

Então, havia essa crítica e não se sabia o limite entre a função do Ministério Público e a função do advogado da União ou da autarquia, de uma empresa pública federal. Então, essa discussão é longa, é antiga e na prática se verificava intensamente isso: Não se sabia quando a União falava como advogado, o procurador da República estava advogando, apelando e funcionando como Ministério Público, principalmente no Mandado de Segurança, onde ele é o fiscal da lei e, na verdade, ele funcionava muitas vezes como o advogado da autoridade. Isso foi uma reivindicação, uma discussão, (...). Mas o certo é que saiu essa separação entre Procuradoria da República, Ministério Público Federal, e a Advocacia da União, advogado mesmo da União.” (ROSAS, Roberto. A Advocacia-Geral da União. A Constituição Brasileira 1988: interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 276-277)

[11] “Essa desvinculação do Procurador-Geral da República, da relação de confiança com o Poder Executivo traduzida desde a Primeira Constituição Republicana, pela demissibilidade ad nutum foi a pá de cal, a meu ver, numa longa discussão sobre o destino do Ministério Público Federal na questão da chamada ‘Dúplice Função.’ Desde a sua criação, que é a rigor antes, salvo engano meu, da Primeira Constituição da República, por um decreto de Campos Sales, Ministro da Justiça, desde a sua criação, o Ministério Público Federal exerceu uma Dúplice Função. Exerceu as clássicas funções de defensor da Ordem Jurídica, de agente do processo penal, de fiscal da aplicação da lei em processos entre terceiros, mas as exerceu cumulativamente com a Representação Judicial da União, ou a Advocacia do Estado.

(...)

Aos poucos, foi-se gerando uma longa corrente contrária a essa equivocidade da posição do Ministério Público que se, de um lado, queria imparcial, independente, desvinculado e, de outro, se punha como representante judicial das entidades de Direito Público, envolvendo uma necessária, uma inevitável, relação de confiança com o Executivo, com o responsável pela administração da coisa pública.

Nas discussões pré-constituintes esse foi o tema talvez mais discutido, que mais apaixonou os meus companheiros de trabalho Procuradores da República, em todo o País.

(...)

É que qualquer proposição de um estatuto de independência do Procurador Geral em relação ao Executivo levaria consigo a impossibilidade da manutenção dessa dupla função. Na medida em que, exatamente por ser responsável político pela administração pública e pelo patrimônio público, ao Chefe do Poder Executivo não se podia jamais negar uma relação de estrita confiança com quem fosse o chefe da Advocacia da União. Por isso, como se fez na Constituição Italiana, na medida em que se aproximava o estatuto do Ministério Público do estatuto da Magistratura e, consequentemente, um estatuto de independência, tornou-se inevitável, como se tornara na Itália, na Constituição de 1947, a criação também, no Plano Federal, o que, aliás, ocorrera em todos os status da Advocacia do Estado, da avocatura di stato com o nome de Advocacia-Geral da União.” (PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. O Ministério Público. A Constituição Brasileira 1988: interpretações. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 265-266)

[12] “A discussão acerca da criação da Advocacia-Geral da União passou por diversas fases durantes o processo legislativo e foi articulada em três premissas principais: a primeira, de que o Ministério Público não poderia ser o órgão encarregado da defesa da União em juízo, uma vez que não se vislumbrava, na conceituação do Ministério Público, a possibilidade de inclusão desta atribuição, que não lhe pertencia; a segunda, a de que os interesses da União eram quase sempre interesses do Poder Executivo e que, às vezes, eram conflitantes com os interesses da sociedade, e os interesses desta deveriam ser defendidos pelo Ministério Público e a terceira premissa, de que o chefe do Ministério Público, ao exercer mandato da União, deveria ser da confiança da Presidente da República, o que retirava da instituição a indispensável independência para o exercício das atribuições.” (COSTA et al., 2009, p. 23)

[13]“Não foi por acaso que, neste campo [refere-se às ações contra a União, suas autarquias e fundações], sucederam-se escândalos com a condenação do Poder Público a somas absurdas. Esta foi a seara de atuação grandemente extensa daquilo que eu tenho chamado de ‘ESTELIONATO PELA VIA JUDICIAL’. Propunham-se ações contra entes indefesos. Impunham-se cálculos que jamais seriam conferidos. É por isso que alguns segmentos da advocacia envolvidos com crimes sérios, muito semelhantes àqueles noticiados nessa chamada operação Anaconda, passaram a atuar na advocacia contra o Poder Público, especialmente contra as autarquias e fundações. Especialmente em Brasília, esses casos parecem ter produzido sócios ocultos. É que o Advogado do interior apostava na capacidade que algum colega mais conhecido pudesse exercer no âmbito dos tribunais superiores. É famoso um caso de transferência de crédito do Sindicato dos Servidores da FUNASA-RN a um grande escritório de advocacia, com 80% de deságio. São expressivos os casos de decisões contrárias à jurisprudência desta Corte, que somente foram revertidas graças à atuação da Advocacia-Geral da União.”.

[14] Thomas Kuhn (2009, p. 13), verificando o processo evolutivo revolucionário das chamadas hard sciences, considera “‘paradigmas’ as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência.” E mais a frente pontua que “Para ser aceita como paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isso nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada.” (2009, p. 38) Obviamente não é esse o sentido que se pretende conferir ao termo empregado no texto desta pesquisa, todavia não se pode deixar de traçar um paralelo, ainda que metafórico, acerca das mudanças implementadas no modelo de representação e defesa judicial da União na história brasileira com as lições sobre a estrutura das revoluções científicas declinada por Kuhn em sua obra.

[15] A ciência normal, segundo definição de Kuhn (2009, p. 44-45), é aquela que se preocupa menos com novas descobertas que com simples “operações de acabamento”. O objetivo da ciência normal parece ser uma tentativa de forçar a natureza a se encaixar dentro dos limites fornecidos pelo paradigma anteriormente tido por aceito.

[16] Em interessante passagem, Kuhn (2009, p. 125-126) nos explica o porquê da utilização do paralelismo entre o termo “revolução”, próprio dos movimentos sociais e políticos, vinculado a uma superação de paradigma científico, in litteris: “Por que chamar de revolução uma mudança de paradigma? Face às grandes e essenciais diferenças que separam o desenvolvimento político do científico, que paralelismo poderá justificar a metáfora que encontra revoluções em ambos?

A esta altura um dos aspectos do paralelismo já deve ser visível. As revoluções políticas iniciam-se com um sentimento crescente, com freqüência restrito a um segmento da comunidade política, de que as instituições existentes deixaram de responder adequadamente aos problemas postos por um meio que ajudaram em parte a criar. De forma muito semelhante, as revoluções científicas iniciam-se com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma. Tanto no desenvolvimento político como no científico, o sentimento de funcionamento defeituoso, que pode levar à crise, é um pré-requisito para a revolução.”

[17] Além dos artigos 131(anteriormente transcrito) e 132 (“Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.”), a Constituição Federal em seu art. 129, IX assevera expressamente ser vedado aos membros do Ministério Público “a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”, o que tão somente corrobora com a dicção dos artigos 131 e 132 da Lei Fundamental, que reservam tais funções à Advocacia Pública de Estado.

[18] “A Advocacia-Geral da União nasceu da necessidade de organizar em instituição única a representação judicial e extrajudicial da União e as atividades de consultoria e assessoramento jurídicos do Poder Executivo, propiciando ao Ministério Público o pleno exercício de sua função essencial de ‘defesa da ordem jurídica – essencial à Justiça –, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis’, desvencilhando-o da representação judicial da União, por vezes incompatível com os seus outros misteres.” (VALENTE, 2009, 364)

[19] “Assim, o advogado público e o promotor de justiça têm uma origem comum, posto que nasceram de uma mesma célula, e, assim, têm em sua razão de existir a mesma vertente, ou seja, observar e garantir o respeito à lei. A Advocacia Pública, por sua vez, tem como peculiaridade ser institucionalmente garantidora da observância prévia e interna das normas, por parte da Administração Pública. (MOURÃO, Carlos Figueiredo. A advocacia pública como instituição de controle interno da Administração. In: GUEDES, Jefferson Carús; SOUZA, Luciane Moessa de (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.131.)

Sobre o autor
Filipo Bruno Silva Amorim

Procurador Federal, atualmente exercendo o cargo de Vice-Diretor da Escola da Advocacia-Geral da União. Bacharel em Direito pela UFRN. Especialista em Direito Constitucional pela UNISUL. Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Filipo Bruno Silva. A construção da AGU e a história da orientação jurídica e da representação judicial do Estado brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3414, 5 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22950. Acesso em: 27 dez. 2024.

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