A Lei 12.153 preceitua, no parágrafo único de seu art. 1.º, que os Juizados Especiais Cíveis, Criminais e Fazendários formam o Sistema dos Juizados Especiais. A questão do que seja esse sistema perpassa pela forma de interpretar as leis dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (9.099/1995), dos Juizados Federais (10.259/2001) e dos Juizados Fazendários (12.153/2009), com inegáveis efeitos práticos.
Duas correntes interpretativas surgiram. A primeira, que chamaremos de Teoria Estatutária, tem por expoente Humberto Theodoro Júnior e entende que quando a lei se refere a sistema quer dizer que “os três diplomas normativos [Leis 9.099, 10.259 e 12.153] (...) formam uma unidade institucional, isto é, um só estatuto, qual seja o estatuto legal dos Juizados Especiais brasileiros[1]”.
Assim, sustenta que: “Não havendo, portanto, conflito entre regras explícitas, os dispositivos de qualquer das três leis podem ser aplicados nos procedimentos de qualquer um dos diferentes juizados. Por exemplo: a Lei n.° 9.099, ao disciplinar o procedimento dos Juizados Cíveis não cuidou nem das medidas de urgência, nem do recurso das decisões interlocutórias. As leis subseqüentes relativas aos Juizados da Fazenda Pública, regularam tanto a possibilidade das medidas cautelares e antecipatórias como previram a recorribilidade dos respectivos provimentos. Essa disciplina, portanto, pode ser aplicada também nos Juizados Especiais Cíveis, de modo a preencher as lacunas da Lei n.° 9.099”.
Como efeitos práticos dessa forma de ver o sistema, a decisão que concedesse tutela em Juizado Cível (Lei 9.099) admitiria o recurso do art. 4.º da Lei 12.153. Nessa linha, os complexos pedidos de uniformização de jurisprudência do Juizado Fazendário também se aplicariam aos Juizados Cíveis.
A crítica a essa visão de Sistema de Juizados é que o art. 1.º da Lei 12.153 não criou um Estatuto dos Juizados, no qual haveria uma miscelânea das Leis 9.099, 10.259 e 12.153; algo inclusive não contemplado pelo legislador, sobretudo por envolverem direitos materiais que não se conciliam.
A segunda corrente interpretativa, denominada de Teoria do Microssistema, entende que o legislador, ao falar em Sistema de Juizados, quer apenas estabelecer uma relação de subsidiariedade entre as leis que tratam de Juizados Especiais. Na prática, a intenção foi até mais acanhada, o Deputado Flávio Dino, em seu parecer sobre o projeto de lei, ao incluir a referência a “Sistema dos Juizados Especiais” afirmou que: “Ao art. 1.º do PL acrescentamos a expressão ‘integrantes do Sistema dos Juizados Especiais’ de forma a denotar que os Juizados existentes não restarão secundários na estrutura dos Tribunais[2]”.
Existem vários conceitos para sistema jurídico, para alguns é o conjunto de normas de determinada área do direito, para outros se confunde com o direito natural. No dispositivo em estudo, significa o conjunto de normas, relacionadas entre si e orientadas pelos mesmos princípios: oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, inseridos nas Leis 9.099, 10.259 e 12.153.
Vale dizer, essas leis formam o “conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos[3].”
É da natureza dos sistemas jurídicos a incompletude. Daí a necessidade de leitura conjunta das mencionadas leis para extrair a unidade e coerência do sistema, ou seja, sua racionalidade, sua interpretação sistemática. No Sistema dos Juizados Especiais isso significa que existe relação de subsidiariedade direta entre suas leis, assim:
a) Juizados Especiais da Fazenda Pública: incide, inicialmente, a Lei 12.153 (norma específica) e, no que couber, subsidiariamente, as Leis 9.099 e 10.259 (nessa ordem), normas subsidiárias diretas e, na omissão destas, o Código de Processo Civil, norma subsidiária indireta;
b) Juizados Especiais Federais: incide, inicialmente, a Lei 10.259 (norma específica), em segundo lugar, a Lei 9.099, norma subsidiária direta, e, na omissão desta, o Código de Processo Civil, norma subsidiária indireta;
c) Juizados Especiais Comuns ou não-fazendários: aplica-se a Lei 9.099, norma específica, sem interferência das demais leis (10.259 e 12.153) e subsidiariamente o Código de Processo Civil, norma subsidiária indireta.
A análise dos dispositivos legais, adiante expostos, corrobora essa conclusão de aplicação subsidiária das leis de Juizados Especial e não em mescla de dispositivos:
Lei 9.099 |
Lei 10.259 |
Lei 12.153 |
A Lei 9.099, salvo em seu art. 52 (execução), não contempla a aplicação subsidiária de outras leis. Entretanto, o Código de Processo Civil aplica-se em seus casos omissos por disposição do parágrafo único de seu art. 272: “O procedimento especial e o procedimento sumário regem-se pelas disposições que lhes são próprias, aplicando-se-lhes, subsidiariamente, as disposições gerais do procedimento ordinário” |
Art. 1.° São instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais da Justiça Federal, aos quais se aplica, no que não conflitar com esta Lei, o disposto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. |
Art. 27. Aplica-se subsidiariamente o disposto nas Leis nos 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, 9.099, de 26 de setembro de 1995, e 10.259, de 12 de julho de 2001. |
Vê-se, portanto, que nos Juizados da Fazenda Pública o aplicador da norma não poderá ficar em dúvida quanto à incidência, respectivamente, das Leis 9.099 e 10.259, normas subsidiárias diretas, em hipótese de omissão verificada na Lei 12.153. Vale dizer, não poderá aplicar subsidiariamente o Código de Processo Civil, norma indireta, sem antes examinar de forma exaustiva todos os termos das normas subsidiárias diretas para solucionar questões processuais.
Na prática, isso significa que se aplicam aos Juizados da Fazenda Pública, dentre outras, as seguintes normas da Lei 9.099:
- regras de competência em razão do lugar (Lei 9.099, art. 4.°);
- admissibilidade de decisão por equidade (Lei 9.099, art. 6.°);
- vedação à ação rescisória (Lei 9.099, art. 59);
- mandato verbal ao advogado (Lei 9.099, art. 9.°, § 3.º);
- direito de postular diretamente (jus postulandi) até vinte salários mínimos e não no limite de 60 salários como determina a Lei 10.259;
- admissibilidade de pedido contraposto (Lei 9.099, art. 17, par. único);
- vedação à intervenção de terceiro (Lei 9.099, art. 10);
- princípio da transcendência (Lei 9.099, art. 13, § 3.º);
- admissibilidade de pedido genérico (Lei 9.099, art. 14, § 2.º);
- os requisitos da inicial simplificados (Lei 9.099, art. 14, § 1.º);
- vedação à citação por edital (Lei 9.099, art. 18, § 2.º);
- regras de revelia (Lei 9.099, art. 20);
- dispensa de relatório na sentença (Lei 9.099, art. 38);
- vedação à sentença ilíquida (Lei 9.099, art. 38, par. único);
- efeito devolutivo do recurso, salvo dano irreparável (Lei 9.099, art. 43);
- obrigatoriedade de advogado para recorrer (Lei 9.099, art. 41 § 2.º);
- prazo recursal de dez dias (Lei 9.099, art. 42);
-
- inadmissibilidade de complementação do preparo (Lei 9.099, art. 42, § 1.º);
- prazo recursal de dez dias (Lei 9.099, art. 42);
- prazo para o pedido de uniformização, contemplado no art. 18 da Lei 12.153, é de 10 dias, por aplicação subsdiária do art. 42 , caput, da lei 9099.
Nessa linha, impõe observar que, como dito acima, a subsidiariedade da Lei 9.099 se dá diretamente com o Código de Processo Civil, sem qualquer incidência da Lei 12.153. Vale dizer, a Lei 9099 se aplica subsidiariamente aos Juizados Fazendários, mas a recíproca não é verdadeira.
Assim sendo, não se aplicam aos Juizados Cíveis os seguintes dispositivos, exclusivos dos Juizados Fazendários:
- pedido de uniformização de interpretação de lei (Lei 12.153, art. 18);
- prazo de trinta dias, após a citação, para realizar a audiência de conciliação (Lei 12.153, art. 7.º);
- recorribilidade da decisão que antecipa a tutela (Lei 12.153, art. 4.º);
- competência absoluta (Lei 12.153, art. 2.º, §4.º);
- valor da causa de até sessenta salários mínimos (Lei 12.153, art. 2.º).
A principal consequência dessa forma de interpretação é afastar a incidência, no âmbito da Lei 9.099, do complexo procedimento de uniformização de jurisprudência dos arts. 18 e 19 da Lei 12.153 e que, de certa forma, recria o recurso de divergência e desvirtua a operacionalidade processual do sistema, pautada pelos princípios da celeridade, informalidade, simplicidade, oralidade e economia processual (Lei 9.099, art. 2.º).
Tem mais, esse recurso de divergência da Lei 12.153 (arts. 18 e 19) é de duvidosa constitucionalidade. Primeiro, porque cria competência recursal para o Superior Tribunal de Justiça por lei ordinária, além daquelas fixadas pelo art. 105 da Constituição Federal. Segundo, porque a própria Carta da República, em seu art. 98, I, com o objetivo de assegurar a celeridade, organizou os Juizados Especiais em apenas dois graus de jurisdição (Juizados e Turma Recursal) e o que a Lei dos Juizados Fazendários faz é criar mais dois graus:
1.º grau - Juizado Especial;
2.º grau - Turma Recursal;
3.º grau - Turma Estadual de Uniformização;
4.º grau - Uniformização de Jurisprudência de Turmas de Diferentes Estados pelo STJ.
Adicione-se a isso os outros dois grau de jurisdição, atualmente existente:
5.º grau - Reclamação para o STJ (Ed no RE 571.572, Rel. Min. Ellen Gracie);
6.º grau - Recurso Extraordinário.
Como se percebe, a leitura do que seja Sistema de Juizados Especiais é questão das mais complexas e envolve a sobrevivência daquilo que a Lei 9.099 tem de mais importante, que é a simplicidade e a celeridade.
Diante do exposto, é importante deixar claro que hermenêutica sobre Juizados Especiais – quer seja sobre as citadas leis ou sobre qualquer outro instituto processual –, tem que ser lida pelas lentes dos princípios que informam todo o sistema (Lei 9.099, art. 2.º).
Logo, a interpretação que crie ou amplie mecanismos obstaculizadores da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade deve ser afastada. Como ocorre com essa tentativa de transplantar os piores institutos da Lei 12.153 para os Juizados Cíveis (Lei 9.099), tornando-os disfuncionais e morosos.
Assim, pode-se concluir que o art. 1.º da Lei 12.153, ao falar em Sistema de Juizados Especiais, não criou um Estatuto dos Juizados, no qual haveria uma miscelânea das Leis 9.099, 10.259 e 12.153, sobretudo por que elas envolvem direitos materiais que não se conciliam. A expressão sistema significa apenas que existe relação de subsidiariedade entre essas leis.
BIBLIOGRAFIA
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 14.ª Ed, Rio de Janeiro, 1994.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Os juizados especiais da Fazenda Pública Lei n.º 12.153, de 22.12.2009. Revista Brasileira de Direito Processual, v. 70, p. 13-30, 2010.
Notas
[1] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Os juizados especiais da Fazenda Pública Lei nº 12.153, de 22.12.2009. Revista Brasileira de Direito Processual (Impresso), v. 70, p. 13-30, 2010.
[2] Parecer do Deputado Federal Flávio Dino no Projeto de Lei 7087, 2006. Disponível em https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=EA508F650276DFA732255A8C71C22E82.node2?codteor=523262&filename=Tramitacao-PL+7087/2006 Acesso em 05. nov. 2012.
[3] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 14.ª Ed, Rio de Janeiro, 1994, p. 128.