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Das ações de ressarcimento ao erário: uma análise da tese da imprescritibilidade à luz da jurisprudência do STF

Agenda 14/01/2013 às 09:50

A posição do Supremo Tribunal Federal é amplamente favorável à Administração, pois admite a incidência da tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrentes da prática de ato ilícito, ainda que não se trate de ato de improbidade administrativa.

Resumo: A prescrição é uma construção jurídica que visa à estabilização das relações jurídicas em razão do decurso do tempo. O presente texto aborda a aplicação da tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário segundo o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria.

Palavras-chave: prescrição; ato ilícito; ressarcimento;


O advento da prescrição implica a perda do direito de se exigir judicialmente determinado direito material, ou seja, é a perda do direito de ação, numa visão civilista desse instituto processual, segundo a qual a todo direito corresponde uma ação que o assegura.

Silvio Rodrigues lembra que, no que toca ao fundamento do instituto, a prescrição já foi vista por vários ângulos. Assim, já foi concebida como um castigo imposto ao titular do direito, em razão de sua inércia (dormientibus non succurrit jus). Já foi justificada em razão do decurso do tempo gerar uma presunção absoluta da extinção do direito do credor, pois se uma dívida não é cobrada, é porque foi paga (adimplemento da obrigação) ou foi perdoada, ainda que tacitamente. (RODRIGUES: 2002, p. 326).

Mas a doutrinária majoritária reconhece na prescrição um instituto jurídicocriado em razão da necessidade de se conferir estabilidadeàs relações sociais. De fato, a vida seria insuportável em um ambiente de incertezas, no qual seria necessário que as pessoas comprovassem, indefinidamente, o adimplemento de obrigações, sempre que instadas por supostos credores.

Imagine-se, por exemplo, que uma família resida há mais de 40 anos no único imóvel que possui, adquirido mediante pagamento justo de quem dizia ser proprietário. Agora, transcorridos tantos anos, surge um terceiro reivindicando o terreno, o qual afirma ser de sua propriedade, pois a família teria adquirido o imóvel de quem não era o real proprietário. Não fosse o instituto da prescrição, seria possível, em tese, a retomada do terreno, ainda que passadas várias décadas entre a aquisição e a reivindicação.

É de interesse da sociedade que as situações jurídicas se estabilizem com o decorrer do tempo, sob pena de se permitir que demandas judiciais discutam obrigações contraídas em tempos remotos, inclusive por antigas gerações, no caso de se pretender, por exemplo, cobrar do neto uma dívida contraída pelo avô em sua juventude.

Sílvio Venosa ressalta que há exceções à regra, sendo imprescritíveis as ações de estado de família, como a separação (melhor dizer hoje o divórcio, em razão da revogação do ato normativo que previa aquela situação jurídica) e a investigação de paternidade. Também não se extinguiriam pela prescrição os direitos da personalidade, como a vida, a honra, o nome, a liberdade e a nacionalidade. (VENOSA: 2002, p. 589).

Também são imprescritíveis os bens públicos, pois não podem ser adquiridos por usucapião (prescrição aquisitiva), nos termos do art. 183, § 3º e do art. 191, parágrafo único, ambos da Constituição Federal. E, finalmente, o objeto deste ensaio, a previsão estampada no art. 37, §5º, da CF, que dispõe sobre a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrentes de ato ilícito:

§ 5º - A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.

A matéria nunca recebeu tratamento uniforme na sede doutrinária. Como mencionado, o instituto da prescrição está diretamente relacionado à segurança jurídica e à estabilização das relações sociais, do que decorre a resistência de muitos juristas em aceitar uma tese de imprescritibilidade de ação de ressarcimento. A questão é que o enfoque aqui é outro: migra-se de uma concepção privatista para o âmbito do direito público, onde há diferentes interesses em jogo.Vejamos a lição de alguns dos mais consagrados administrativistas pátrios a respeito do tema.

José dos Santos Carvalho Filho afirma que:

Consequentemente, no que concerne à pretensão ressarcitória (ou indenizatória) do Estado, a Constituição assegura a imprescritibilidade da ação. Assim, não há período máximo (vale dizer: prazo prescricional) para que o Poder Público possa propor a ação de indenização em face de seu agente, com o fito de garantir o ressarcimento pelos prejuízos que o mesmo lhe causou. (CARVALHO FILHO: 2012, p. 580).

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Por sua vez,Hely Lopes Meirelles, sem tecer maiores considerações sobre o tema, afirmou a tese da imprescritibilidade: “mas a ação para o ressarcimento do dano ao erário é imprescritível, por força do art. 37, §5º, da CF.” (MEIRELLES: 2012, p. 563).

Já Celso Antônio Bandeira de Mello, revendo seu próprio posicionamento, não obstante o comando constitucional, assevera que não na há ação de ressarcimento ao erário imprescritível:

Até a 26ª edição deste Curso admitimos que, por força do §5º do art. 37, de acordo com o qual os prazos de prescrição para ilícitos causados ao erário serão estabelecidos por lei, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento, estas últimas seriam imprescritíveis. É certo que aderíamos a tal entendimento com evidente desconforto, por ser óbvio o desacerto de tal solução normativa. (...) Já não aderimos a tal desabrida intelecção.

(...)

Não é crível que a Constituição possa abonar resultados tão radicalmente adversos aos princípios que adota no que concerne ao direito de defesa. Destarte, se a isto se agrega que quando quis estabelecer a imprescritibilidade a Constituição o fez expressamente como no art. 5º, incs. LII e LXIV (crimes de racismo e ação armada contra a ordem constitucional) – e sempre em matéria penal que, bem por isto, não se eterniza, pois não ultrapassa uma vida – ainda mais se robustece a tese adversa à imprescritibilidade. Eis, pois, que reformamos nosso anterior entendimento na matéria. (BANDEIRA DE MELLO: 2010, p. 1.064).

Dada a inserção da disposição em comento na Constituição Federal, indispensável verificar o atual entendimento do seu guardião a respeito do tema. Assim, tem-se que, não obstante a celeuma no âmbito doutrinário, em sede jurisprudencial o c. STF vem reconhecendo a tese da imprescritibilidade das ações que visem o ressarcimento ao erário, em decorrência de ato ilícito:

CONSTITUCIONAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. CONTRATO. SERVIÇOS DE MÃO-DE-OBRA SEM LICITAÇÃO. RESSARCIMENTO DE DANOS AO ERÁRIO. ART. 37, § 5º, DA CF. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. 1. As ações que visam ao ressarcimento do erário são imprescritíveis (artigo 37, parágrafo 5º, in fine, da CF). Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.(AI 712435 AgR, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 13/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-071 DIVULG 11-04-2012 PUBLIC 12-04-2012 RT v. 101, n. 921, 2012, p. 670-674).

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO. PRECEDENTES. 1. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do MS 26.210, da relatoria do ministro Ricardo Lewandowski, decidiu pela imprescritibilidade de ações de ressarcimento de danos ao erário. 2. Agravo regimental desprovido.(RE 578428 AgR, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 13/09/2011, DJe-216 DIVULG 11-11-2011 PUBLIC 14-11-2011 EMENT VOL-02625-02 PP-00177).

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. BOLSISTA DO CNPq. DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE RETORNAR AO PAÍS APÓS TÉRMINO DA CONCESSÃO DE BOLSA PARA ESTUDO NO EXTERIOR. RESSARCIMENTO AO ERÁRIO. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA. I - O beneficiário de bolsa de estudos no exterior patrocinada pelo Poder Público, não pode alegar desconhecimento de obrigação constante no contrato por ele subscrito e nas normas do órgão provedor. II - Precedente: MS 24.519, Rel. Min. Eros Grau. III - Incidência, na espécie, do disposto no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, no tocante à alegada prescrição. IV - Segurança denegada.

(MS 26210, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2008, DJe-192 DIVULG 09-10-2008 PUBLIC 10-10-2008 EMENT VOL-02336-01 PP-00170 RTJ VOL-00207-02 PP-00634 RT v. 98, n. 879, 2009, p. 170-176 RF v. 104, n. 400, 2008, p. 351-358 LEXSTF v. 31, n. 361, 2009, p. 148-159).

Assim, não obstante a dissensão doutrinária, e mesmo jurisprudencial, se for considerada a divergência verificada nos votos dos julgados citados acima, pode-se dizer que a tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrentes de ato ilícito foi admitida pelo colendo Supremo Tribunal Federal.

Tendo em conta o atual contexto em que está inserido o Judiciário nacional, em que a neoinstitucionalização do processo atribuí a juízes e tribunais um menor poder de decisão, eis que devem se perfilhar ao entendimento fixado nas instâncias superiores, pode-se dizer que a tese da imprescritibilidade é admitida pela jurisdição brasileira, com esteio no atual posicionamento do c. STF.

Passa-se à análise acerca de quais espécies de ação de ressarcimento ao erário estão imunesà prescrição. Adianta-se que não é toda e qualquer ação de ressarcimento que atrai a incidência do dispositivo constitucional. Ao contrário, a regra no ordenamento jurídico pátrio é a incidência do instituto da prescrição. Imprescritíveis seriam as ações relacionadas a atos ilícitos praticados em face da Administração.

Assim, não bastasse a clareza do dispositivo constitucional, ao se referir a ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não,­percebe-se que o Supremo contextualizou a questão da imprescritibilidade da ação de ressarcimento num ambienteno qual é exigida a presença da ilicitude. Desse modo, para se aplicar a tese da imprescritibilidade, há que se ter comprovada a prática de algum ato ilícito pelo agente.

Importa investigar no arcabouço normativo e jurisprudencial se tais atos ilícitos, aptos a se enquadrarem na tese da imprescritibilidade, devem estar obrigatoriamente manchados pela mácula da improbidade. É que imediatamente anterior ao §5º do art. 37 da CF, que trata das ações de ressarcimento ao erário e da não incidência da prescrição, encontra-se dispositivo (§ 4º do art. 37 da CF) que cuida das ações de improbidade administrativa. É preciso, portanto, esclarecer se há vinculação entre os parágrafos 4º e 5º do multicitado art. 37. Para tanto, voltemos aos julgados do c. STF sobre a matéria.

No RE 578.428, o Recurso foi interposto em face de Acórdão do TJRS que julgou ação civil pública que tinha por objeto ato de improbidade administrativa. No julgamento do Agravo de Instrumento 712435 estava em pauta irregularidades relacionadas à contratação de mão-de-obra sem licitação, sendo citadas em alguns trechos do voto da eminente Relatora a questão da improbidade. Nesses dois casos, o Supremo vinculou a tese da imprescritibilidade da ação de ressarcimento ao erário à prática de ato ilícito agravado pela qualificação da improbidade administrativa.

Por sua vez, no julgamento do MS 26.210, o Exmo. Min. Cezar Peluso foi mais adiante, ao destacar em seu voto o entendimento segundo o qual o dispositivo constitucional exigiria a ocorrência de ilícitos de natureza criminal que, em tese, quando não permitem um duplo enquadramento nas esferas penal e civil, são mais graves que os atos de improbidade. Segue a transcrição do trecho do voto:

“Noutras palavras, as ações relativas a crimes são prescritíveis, não, porém, as respectivas ações de ressarcimento. Respectivas do quê? Dos crimes, isto é, as ações tendentes a reparar os prejuízos oriundos da prática de crime danoso ao Erário. Este o sentido lógico do adjetivo “respectivos”. Não se trata, portanto, de qualquer ação de ressarcimento, senão apenas das ações de ressarcimento de danos oriundos de ilícitos de caráter criminal. Aí se entende, então, o caráter excepcional da regra da imprescritibilidade. Por quê? Porque é caso do ilícito mais grave na ordem jurídica.”

Todavia, em que pese o RE 578.428 e o AI 712435 versarem sobre fatos que sugerem a prática de ato de improbidade pelo agente, bem como a manifestação do Exmo. Ministro Peluso no julgamento do MS 26.210, voto vencido, diga-se por oportuno, o fato é que o Mandado de Segurança nº 26.210 não tinha objeto relacionado a ato de improbidade administrativa. Havia ato ilícito, mas não a ilicitude necessária e suficiente para classificá-lo como ato de improbidade. Discutia-se, no caso, a situação do bolsista do CNPq, que descumpriu obrigação contratual de retornar ao Brasil ao final do período de estudos cursados no exterior, e que fora custeado com recursos disponibilizados pela entidade pública, tendo como contrapartida o regresso do estudante para aplicação do conhecimento adquirido no estrangeiro em solo pátrio.

Assim, verifica-se que o Supremo não exigiu uma graduação da ilicitude a ponto de caracterização de um ato de improbidade para a aplicação da tese da imprescritibilidade. Não é demais lembrar que condutas ilícitas devem estar abstratamente previstas em lei, e que no exame do enquadramento legal deve-se levar em consideração, entre outros fatores, a existência de dolo ou ao menos de culpa, se admitida essa modalidade.

A questão é polêmica e, portanto, suscetível de sofrer alterações quanto ao entendimento jurisprudencial no médio prazo.

Por ora, pode-se concluir que a posição do Supremo Tribunal Federal é amplamente favorável à Administração, pois admite a incidência da tese da imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário decorrentes da prática de ato ilícito, ainda que não se trate de ato de improbidade administrativa.


Referências:

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2012.

MEIRELLES, Hely Lopes. Atualização de: ALEIXO, Délcio Balestero; FILHO, José Emmanuel Burle. Direito Administrativo Brasileiro. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros: 2010.

RORIGUES, Sílvio. Direito Civil, vol. 1. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, vol. 1. 2ª ed. São Paulo: Atlas: 2002.

Sobre o autor
Rodrigo Matos Roriz

Procurador Federal. Bacharel em Direito e em Ciências Contábeis. Especialista em Direito Público e em Direito Processual Civil. MBA em Gestão Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RORIZ, Rodrigo Matos. Das ações de ressarcimento ao erário: uma análise da tese da imprescritibilidade à luz da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3484, 14 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23442. Acesso em: 22 dez. 2024.

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