4 - FORÇA VINCULANTE DOS NORMATIVOS DO CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL.
Primeiramente viu-se que há no Brasil um Sistema Financeiro regido pelas disposições da Lei nº 4.595/64. Esta Lei criou o Conselho Monetário Nacional, o Banco Central do Brasil e vincula todas as instituições financeiras aos seus normativos e disposições, aplicando a teoria neoliberal de gestão estatal.
Depois, foi visto que em virtude de uma especial atenção ao setor agrícola do país, e a importância de seu fortalecimento para a economia nacional e desenvolvimento social, foi institucionalizado do Sistema Nacional de Crédito Rural, através da Lei nº 4.829/65.
Essa Lei, portanto, é especial, específica para as relações agrícolas e igualmente vinculantes às instituições creditícias para o setor rural e os mutuários de recursos que, embora disponibilizados por tais instituições, são verbas de caráter público.
Com isso conclui-se que entre as relações de tomadores de recursos rurais e mutuantes, a Lei que deve reger tais pactos é a Lei nº 4.829/65, visto seu caráter especial e posterior a Lei nº 4.595/64. E dentro desta Lei, há clara e expressa disposição que será o Conselho Monetário Nacional que disciplinará o crédito rural no país.
Tal disposição mostra o caráter cogente das normas do CMN que disciplinam o crédito rural, que por sua vez foram compiladas no Manual de Crédito Rural, este editado pelo BACEN, órgão que recebeu da mesma Lei nº 4.829/65 a incumbência de fiscalizar, dirigir e coordenar o cumprimento das deliberações do CMN a respeito do crédito rural.
Também foi visto que os valores destinados ao financiamento rural possuem caráter público, fomentista, muito embora o mutuante seja instituição de natureza particular. Assim, as normas operativas do CMN são as próprias normas estatais, reguladoras e disciplinadoras da matéria.
Por essas e outras se concluem que os normativos do Conselho Monetário Nacional, sobretudo em relação ao crédito rural, possuem natureza cogente, normativa, devendo ser aplicadas em todos os casos que se enquadrem.
O Sistema Nacional de Crédito Rural é sistema único, que vincula produtores rurais e suas cooperativas, instituições financiadoras e o próprio Estado, que possui como prerrogativa o fomento do setor agropecuário. Vale lembrar o art. 1º da norma em questão:
Art. 1º - O crédito rural, sistematizado nos termos desta Lei, será distribuído e aplicado de acordo com a política de desenvolvimento da produção rural do País e tendo em vista o bem-estar do povo.
Deste modo, não são as instituições financeiras que determinam as normas contratuais, nem sobre elas há a livre estipulação de vontades e prerrogativas inerentes aos demais contratos de crédito. Mas do que isso, as normas do CMN podem ser vistas como a própria viabilização da Política Agrícola estatal, sendo, portanto, de aplicação compulsória pelas partes.
O financiamento e crédito rural não são instrumentos criados para se buscar a maior rentabilidade das partes, mas sim em fortalecer a agricultura brasileira como um todo, e, conseqüentemente a própria sociedade. Esse é o princípio aplicável quando da análise dos contratos. Além disso, o crédito rural e suas normas e resoluções visam à busca dos princípios constitucionais da busca do pleno emprego, da função social da propriedade e da ordem social, uma vez que nenhum país se desenvolve sem o adequado abastecimento alimentar, que somente se faz através de uma política forte e estrutural para o setor agrícola, setor este que não depende apenas do mercado e da habilidade do empresário, mas muito mais de fatores naturais, que fogem ao controle dos técnicos rurais, tais como chuvas e sol no momento certo, a não ocorrência de geadas, pragas, ou outro fatores adversos, sendo considerado como verdadeiras “empresas ao céu aberto”.
Desta forma, as normas que o CMN, órgão isento e conhecedor das conjecturas políticas, setoriais e financeiras, estabelece a partir de estudos e de pareceres de especialistas no assunto, devem sempre prevalecer sobre interesses de qualquer uma das partes, ainda que contratos desta natureza estabeleçam o contrário.
Sobre o tema, o magistério de Lutero de Paiva Pereira[8]:
A alteração do calendário de pagamento do financiamento rural é preceito oriundo do Conselho Monetário Nacional, ou seja, do Estado, já que este, a teor do tratado do Capítulo 2 supra, tem não só o interesse mas o dever de proteger a atividade agrícola do País.
(...)
O direito do mutuário de alterar o cronograma de pagamento do mútuo deve ser visto sob a seguinte ótica:
- que o crédito rural, dentre outros objetivos, se propõe a fortalecer economicamente so seu tomador – art. 3º, inc. III da Lei 4.829/65;
- que a propriedade rural, a teor do que dispõe o art. 186, inc. IV, da Constituição Federal tem função social a cumprir, o que inclui uma exploração que favoreça o bem-estar do proprietário.
- que a agricultura, como atividade econômica, inc. III do art. 2º da Lei Agrícola – Lei 8.171/91 – deve proporcionar rentabilidade compatível com a de outros setores da economia aos que a ela se dediquem e,
- que o adequado abastecimento alimentar do País, inc. IV, do art. 2º da Lei 8.171/91, é condição básica para garantir a tranqüilidade social e a ordem pública.
Da somatória de todas estas vertentes que envolvem a atividade agrícola é que o direito do produtor rural, relativamente à modificação do cronograma de pagamento, deve ser tutelado.
Desta forma, conclui-se que a norma estabelecida no Manual de Crédito Rural, item 2.6.9, que estabelece a modificação do cronograma de pagamento sempre que ocorrerem algumas das situações previstas em suas alíneas, é de aplicação compulsória às instituições financeiras.
O egrégio TJPR já se pronunciou sobre o tema, reconhecendo o direito do produtor rural em modificar o cronograma de pagamento, desde que preenchidos os requisitos exigidos para tanto.
Pode-se dizer que o leading case da questão foi colocado em discussão no ano de 1998, onde o Des. Cunha Ribas em extenso estudo sobre o tema proferiu o voto no sentindo de permitir a alteração do cronograma de pagamento, em acórdão assim ementado:
CRÉDITO RURAL - APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO - PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DE CRONOGRAMA DE PAGAMENTO DE DÉBITO DECORRENTE DE CRÉDITO AGRÍCOLA, EXTIRPAÇÃO DA TR COMO INDEXADOR DE CORREÇÃO MONETÁRIA E SUA SUBSTITUIÇÃO PELA VARIAÇÃO DE PREÇOS MÍNIMOS, COMISSÃO DE PERMANÊNCIA POR IMPONTUALIDADE E COBRANÇA DE IOF - PROVIMENTO PARCIAL - INTELIGÊNCIA DO ART. 187, INC. I E II DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS LEIS NºS. 4.829/65, 8.171/91; 8.427/92; 8.880/94; 9.138/95; DECRETOS-LEIS Nº 79/66 E 167/67 - RECURSO DO AUTOR PROVIDO EM PARTE - RECURSO DO RÉU PREJUDICADO. A legislação que traça a política agrícola nacional constitui direito especial e de ordem pública, sobrepondo-se às normas gerais de direito e de crédito, o que consoa com o disposto na Constituição Federal, impondo-se, pois, sua aplicação. Nesse cariz, o cronograma de pagamento do crédito rural fica sujeito a alterações, quando circunstâncias alheias à vontade do devedor dificultar ou impedir o cumprimento dos mútuos nos prazos contratados. Nesse sentido e também em face da lei nº 9.138/95, vem decidindo o e. S.T.J, que: "DIREITO ECONÔMICO. DÍVIDA AGRÁRIA. SECURITIZAÇÃO. LEI 9.138/95. ALONGAMENTO DA DÍVIDA. DIREITO SUBJETIVO DO DEVEDOR. CONSEQÜENTE INEXIGIBILIDADE DO TÍTULO EXECUTIVO. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO", REsp. nº 166.592-MG, julgado em 07.05.98. Mesmo sentido REsps. nºs. 154.025-MG de 10.02.98 e 156.015-MG, de 10.03.98. A atualização monetária, far-se-á pela variação do preço mínimo do produto, conforme a legislação especial, afastando-se a TR também por ser imprestável para tal fim e por se constituir em cláusula abusiva. É vedada a estipulação de cláusula de Comissão de Permanência por eventual inadimplemento, devendo o encargo da mora ser atendido pelo disposto no parágrafo único do art. 5º do DL. 167/67, conforme, em verdade, tem proclamado o E. S.T.J. (REsp. nº 28.907-9-RS, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo) "...os juros moratórios, limitados, em se tratando de crédito rural, a 1% ao ano, distinguem-se dos juros remuneratórios. Aqueles são forma de sanção pelo não pagamento no termo devido. Estes, por seu turno, como fator de mera remuneração do capital mutuado, mostram-se invariáveis em função de eventual inadimplência ou impontualidade. Cláusula que disponha em sentido contrário, prevendo referida variação, é cláusula que visa burlar a disciplina legal, fazendo incidir, sob as vestes de juros remuneratórios, autênticos juros moratórios em níveis superiores aos permitidos." A incidência do IOF, ainda que discutível, não encontra vedação legislativa. (TAPR - Primeira C.Cível (extinto TA) - AC 101678-4 - Peabiru - Rel.: Cunha Ribas - Unânime - J. 17.11.1998)
Após, a jurisprudência do TJPR se consolidou sobre o tema, como se pode ver dos demais acórdãos abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. CRÉDITO RURAL. ALONGAMENTO DA DÍVIDA. INADMISSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE PROVA DOS REQUISITOS LEGAIS. INAPTIDÃO DA PROVA TESTEMUNHAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RAZÕES RECURSAIS QUE NÃO ENFRENTAM OS FUNDAMENTOS DA SENTENÇA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIALETICIDADE. NÃO CONHECIMENTO. RECURSO CONHECIDO EM PARTE E NÃO PROVIDO. 1. Para obter o alongamento da dívida rural, o devedor deve provar que efetuou requerimento administrativo perante a instituição credora, adicionado à prova do preenchimento dos requisitos legais, constantes da legislação específica e das Resoluções e Manual do Crédito Rural, expedidos pelo Banco Central do Brasil BACEN. 2. Não há que se falar em cerceamento de defesa quando os embargantes, intimados para especificação das provas, aduziram pretender a produção apenas da prova testemunhal, a qual não se revela apta a demonstrar os requisitos necessários à concessão do alongamento da dívida. 3. As razões recursais devem rebater, especificamente, os fundamentos da sentença, sob pena de não conhecimento do recurso por ofensa ao princípio da dialeticidade. (TJPR - 14ª C.Cível - AC 591267-6 - Campo Mourão - Rel.: Edgard Fernando Barbosa - Unânime - J. 08.02.2012)
APELAÇÃO CÍVEL DE NR. 807624-4. AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. 1) JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 2) CAPITALIZAÇÃO MENSAL DE JUROS. PREVISÃO CONTRATUAL. POSSIBILIDADE. 3) COMISSÃO DE PERMANÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA. REGULAMENTAÇÃO EM LEI ESPECIAL. 4) EXISTÊNCIA DE MORA. ENCARGOS MORATÓRIOS DEVIDOS. 5) JUROS MORATÓRIOS. ART. 5º DA LEI DE USURA. LIMITAÇÃO EM 1% AO ANO. 6) PRORROGAÇÃO DA DÍVIDA. REJEITADA. EFETIVA INCAPACIDADE DO PAGAMENTO. NÃO COMPROVADA. 7) ÔNUS SUCUMBENCIAL. READEQUAÇÃO. 1. (...) 6. A concessão da prorrogação da dívida deve estar respaldada de prova da efetiva impossibilidade do devedor ao pagamento da dívida, de acordo com o item 2.6.9 do Manual de Crédito Rural. 7. Vencido parcialmente na demanda, impõe-se ao réu o pagamento proporcional dos ônus de sucumbência. APELAÇÃO CONHECIDA E PARCIALMENTE PROVIDA 2 APELAÇÃO CÍVEL NR. 807622-0. MEDIDA CAUTELAR INOMINADA INCIDENTAL DE ABSTENÇÃO DE INSCRIÇÃO E/OU RETIRADA DO NOME DO AUTOR DE ÓRGÃOS DE RESTRIÇÃO DE CRÉDITO. IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. APELAÇÃO CONHECIDA E DESPROVIDA (TJPR - 16ª C.Cível - AC 807624-4 - Londrina - Rel.: Shiroshi Yendo - Unânime - J. 07.12.2011)
AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO ANULATÓRIA PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA - PRORROGAÇÃO DE DÍVIDA DECORRENTE DE CRÉDITO RURAL POSSIBILIDADE PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS. 1. O ajuizamento de ação anulatória questionando acordos judicialmente homologados em ações de execução não tem, por si só, o condão de levar à suspensão de tais processos. 2. Contudo, o deferimento de liminar em sede de ação cautelar, determinando a suspensão da exigibilidade da dívida decorrente do crédito rural constitui causa prejudicial ao prosseguimento da execução, sendo recomendável, nesse caso, a suspensão do processo executivo. 3. O prolongamento da dívida constitui um direito subjetivo do devedor rural e não mera faculdade da instituição financeira (Súmula 298 do STJ), desde que preenchidos os requisitos objetivos elencados no item 2.6.9 do Manual de Crédito Rural editado pelo BACEN, a saber: a) dificuldade de comercialização dos produtos; b) frustração de safras, por fatores adversos; c) eventuais ocorrências prejudiciais ao desenvolvimento das explorações. 4. No caso dos autos, o direito ao alongamento da dívida decorre de quebra de safra ocorrida no ano de 2009, restando preenchidos, outrossim, os requisitos do aludido Manual de Credito Rural. 5. Recurso conhecido e provido. (TJPR - 14ª C.Cível - AI 810946-0 - Campo Mourão - Rel.: Celso Jair Mainardi - Unânime - J. 28.09.2011)
AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. FINAME AGRÍCOLA. FINANCIAMENTO PARA AQUISIÇÃO DE IMPLEMENTOS AGRÍCOLAS. INSURGÊNCIA CONTRA DECISÃO QUE DEFERIU A LIMINAR DE PRORROGAÇÃO COMPULSÓRIA DA DÍVIDA DEVIDO ÀS FRUSTRAÇÕES DE SAFRA E MERCADO. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS EXIGIDOS PELA LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA (ART. 14 DA LEI Nº 4.8129/65 E MANUAL DE CRÉDITO RURAL) E, CONSEQUENTEMENTE, DE VEROSSIMILHANÇA NAS ALEGAÇÕES. LAUDO PRODUZIDO UNILATERALMENTE. RECURSO PROVIDO. 1. Sem a demonstração, ainda que superficialmente, da verossimilhança das alegações, não se concede a tutela antecipada prevista no art. 273 do CPC. 2. Para deferir liminarmente a prorrogação da dívida pleiteada pelo produtor rural, não basta a invocação da disposição do art. 4 da Lei nº 7.843/89, art. 14 da Lei nº 4.829/65 e da cláusula 2.6.9 do Manual de Crédito Rural do Conselho Monetário Nacional. 3. É necessária a demonstração da incapacidade de pagamento da dívida, decorrente da frustração de safra e de redução de receitas. 4. Não basta a afirmativa de que as dificuldades sofridas pelo setor agropecuário são notórias para que se possa deferir o prolongamento dos prazos do financiamento. (TJPR - 17ª C.Cível - AI 766044-8 - Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba - Rel.: Lauri Caetano da Silva - Unânime - J. 18.05.2011)
Portanto, preenchidas e provadas qualquer uma das condições previstas no Manual de Crédito Rural nº 2.6.9, e sendo requerido pelo produtor rural, a prorrogação do vencimento do contrato é medida que se impõe, ainda que ao alvedrio da instituição creditória, visto o caráter cogente e especial dos normativos do Conselho Monetário Nacional.