Resumo: O presente artigo se propõe a analisar o que se entende por abandono afetivo e a forma como se comporta a doutrina e a jurisprudência quanto à sanção que deve ser aplicada aos pais em caso de inobservância dos deveres jurídicos decorrentes do poder familiar. A conclusão a que se chega é a de que o abandono afetivo prejudica o desenvolvimento da criança, gerando danos passíveis de reparação, conforme vem entendendo alguns tribunais e grande parte da doutrina, em atenção aos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e da proteção integral da criança e do adolescente. Contudo, assevera-se que é necessária uma análise criteriosa acerca dos requisitos caracterizadores do dano moral, a fim de evitar a banalização do instituto, mas sem consagrar a impunidade dos pais que, de forma irresponsável e injustificada, prejudicam o desenvolvimento sadio da criança.
Palavras-chave: Responsabilidade civil. Dano Moral. Abandono afetivo. Relação paterno-filial.
Sumário: Introdução. 1. Do abandono afetivo na filiação. 2. Da reparação do dano moral nos casos de abandono afetivo na filiação. 3. Das divergências doutrinárias. 4. Da análise jurisprudencial acerca do tema. Conclusão.
INTRODUÇÃO.
A questão do abandono afetivo na filiação impõe a discussão acerca da possibilidade ou não da reparação do dano moral causado ao filho menor, em razão da atitude omissiva do pai no cumprimento dos encargos decorrentes do poder familiar.
Sob essa perspectiva, as opiniões divergem em duas posições contrapostas: aqueles que defendem que a questão do abandono afetivo na filiação encontra solução dentro do próprio direito de família, com a destituição do poder familiar, e aqueles que começam a se manifestar favoravelmente às reparações pecuniárias, uma vez comprovada a existência do dano moral.
Convém ressaltar, por oportuno, que as demandas propostas no judiciário, até o presente momento, dizem respeito ao abandono afetivo provocado pelo pai em relação ao seu filho. Contudo, nada impede que a mãe seja a responsável pelo abandono afetivo do filho, caso em que se aplicariam as mesmas regras atinentes à reparação civil do dano moral provocado pelo descumprimento de dever jurídico.
Ademais, merece destaque que o estudo em tela enfatiza os casos de abandono afetivo em que entre pai e filho já haviam laços afetivos, rompidos pelo fenômeno da recomposição de famílias. Isso porque,
“é induvidoso que a negativa de convivência familiar importa nos ilícitos ora descritos que se tornam mais graves quando o agressor é o genitor que, embora reconhecidamente recebeu a prole, a ela não desfere o amparo afetivo, a assistência moral e psíquica, atingindo, por consequência, sua honra, a dignidade, a moral e a reputação social, enfim, atributos ligados à personalidade deste ofendido.” [1]
Tecidas essas considerações, o estudo passa à definição do que vem a ser o abandono afetivo e quais as consequências que esse abandono acarreta ao filho em desenvolvimento, para que, depois, seja possível uma análise prudente e contextualizada acerca das sanções aplicadas aos pais, à luz da doutrina e jurisprudência pátrias.
1. DO ABANDONO AFETIVO NA FILIAÇÃO.
Para se compreender o que vem a ser o abandono afetivo na filiação, deve-se fazer uma abordagem tanto acerca da importância do afeto na estrutura familiar contemporânea, quanto das consequências que a atitude omissiva do pai pode provocar no desenvolvimento da criança e do adolescente.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, a família deixou de ser um fim em si mesmo e passou a ser locus de realização existencial dos seus membros, à medida que o afeto se tornou imprescindível às relações desenvolvidas entre pais e filhos. Neste contexto, percebe-se que o que define a relação paterno-filial não é apenas a origem biológica, mas também, e principalmente, a relação de afeto desenvolvida entre o pai e o filho, uma vez que,
“para a criança, sua simples origem fisiológica não a leva a ter vínculo com seus pais; a figura dos pais, para ela, são aqueles com que ela tem relações de sentimento, aqueles que se entregam ao seu bem, satisfazendo suas necessidades de carinho, alimentação, cuidado e atenção.”[2]
É cediço que a criança em desenvolvimento necessita da convivência familiar, a fim de que possa concluir o estágio de formação da sua personalidade de forma completa e sadia. No entanto, o direito à convivência familiar não se esgota no poder-dever dos pais de manter os filhos em sua guarda e companhia, pois “garantir ao filho a convivência familiar significa respeitar seu direito de personalidade e garantir-lhe a dignidade, na medida em que depende de seus genitores não só materialmente.”[3]
Sob essa perspectiva, depreende-se que a convivência familiar decorre do cuidado, do afeto, da atenção proporcionada pelo pai ao filho, sobretudo nos momentos em que ele se sente mais carente, como em datas comemorativas. Portanto, convivência familiar não implica em coabitação, mas no dever que o pai tem de continuar presente na vida do filho não apenas fisicamente, mas também moralmente. Diante disso, a distância não pode ser utilizada como desculpa para justificar a falta de assistência moral do pai para com o seu filho. Até mesmo porque,
“é de fato simplória a defesa de que a convivência familiar se esgota na garantia da presença física, na coexistência, com ou sem coabitação. A exigência da presença paterna não é apenas física. Soa paradoxal, mas só há visita entre quem não convive, pois quem convive mantém uma relação de intimidade, uma relação verdadeiramente familiar.”[4]
Insta observar que a convivência familiar assegura a integridade física, moral e psicológica da criança, na medida em que permite que o desenvolvimento de sua personalidade se dê de forma saudável, em um ambiente em que é dispensada à criança a atenção de que ela necessita e a orientação que não pode ser negligenciada nesta fase da vida.
É, nesse sentido, o ensinamento de Claudete Carvalho Canezin:
“A figura do pai é responsável pela primeira e necessária ruptura da intimidade mãe-filho e pala introdução do filho no mundo transpessoal dos irmãos, dos parentes e da sociedade. [...] Assim, a falta da figura do pai desestrutura os filhos, tira-lhes o rumo da vida e debita-lhes a vontade de assumir um projeto de vida. Tornam-se pessoas inseguras, infelizes.”[5]
Destarte, percebe-se que o abandono afetivo nada mais é do que a atitude omissiva do pai no cumprimento dos deveres de ordem moral decorrentes do poder familiar, dentre os quais se destacam os deveres de prestar assistência moral, educação, atenção, carinho, afeto e orientação à prole.
Convém ressaltar que o abandono afetivo na filiação não ocorre apenas quando há a ausência física e moral do pai na vida do filho, mas também quando, embora haja coabitação entre eles, o pai não dispensa ao filho a menor forma de afeto e atenção. Isso porque, como já asseverado, a convivência familiar requer a presença moral, muito mais do que a presença física.
O abandono afetivo desponta mais frequentemente no momento de dissolução da sociedade conjugal, nos casos em que tem origem o fenômeno conhecido como recomposição de famílias. Neste contexto, uma vez dissolvida a sociedade conjugal, atribui-se a guarda dos filhos menores a ambos os pais ou, nos casos em que isso não seja possível, a um deles. Com efeito, desde a edição da Lei 11.698/08, passou a ter primazia o instituto da guarda compartilhada, apenas havendo que se falar em guarda unilateral quando o melhor interesse da criança, por uma série de fatores, assim determinar. De toda sorte,
“caso seja possível que os pais separados continuem a compartilhar os cuidados com seus filhos, independentemente de qual seja a residência onde a criança permaneça por mais tempo, a convivência da mesma com ambos os pais está automaticamente garantida.”[6]
Convém salientar que o abandono afetivo é pior do que o abandono material, conforme destaca Claudete Carvalho Canezin, já que, embora a carência financeira possa ser suprida por terceiros interessados, como parentes, amigos, ou até mesmo pelo Estado, através dos programas assistenciais, “o afeto e o carinho negado pelo pai a seu filho não pode ser suprido pelo afeto de terceiros, muito menos pode o Estado suplantar a ausência paterna.”[7]
Por tudo isso, os pais não podem olvidar que, embora a sua relação não tenha prosperado, os vínculos parentais e afetivos com os filhos são permanentes, não podendo ser rompidos pela simples falência da sociedade conjugal, de modo que “quanto à filiação, rompe-se a coexistência ou coabitação, jamais o dever de convivência”.[8]
Nesse sentido, importa trazer à baila lição de Giselda Hironaka:
“A ausência injustificada do pai origina – em situações corriqueiras – evidente dor psíquica e consequente prejuízo à formação da criança, decorrente da falta não só do afeto, mas do cuidado e da proteção (função psicopedagógica) que a presença paterna representa na vida do filho, mormente quando entre eles já se estabeleceu um vínculo de afetividade.”[9]
Por esses motivos, tem-se observado uma crescente procura pelo judiciário, a fim de que sejam resolvidos os casos de abandono afetivo na filiação, oriundos da quebra dos deveres jurídicos decorrentes do exercício do poder familiar.
2. DA REPARAÇÃO DO DANO MORAL NOS CASOS DE ABANDONO AFETIVO NA FILIAÇÃO.
Não mais se discute acerca da possibilidade de indenização do dano moral no ordenamento jurídico pátrio. A discussão, agora, gira em torno da admissibilidade do referido instituto em matéria de abandono afetivo na filiação, o que denota a afetividade como elemento caracterizador da relação paterno-filial contemporânea.
Esses debates inflamados acerca da responsabilidade civil, no âmbito da família, são decorrência do manto de proteção que sempre esteve em volta da estrutura familiar, uma vez que não era permitida a ingerência do Estado nesta matéria. Para Giselda Hironaka, toda alteração de paradigmas, em um primeiro momento, gera efeitos divergentes:
“Ora, toda alteração paradigmática é sempre muito complicada, polêmica e gera efeitos divergentes. Se for certo que o mundo e a vida dos homens estão em transição contínua, também será verdade que a mudança causa sempre uma expectativa que, por um lado, é ser eufórica, mas por outro lado, preocupante. E não poderia ser diferente agora, diante deste assunto – tão delicado quanto difícil – que é a responsabilidade civil por abandono afetivo. Tanto a sociedade quanto a comunidade jurídica propriamente dita tem reagido de maneira dúplice em face do tema em destaque.”[10]
Contudo, considerando que a dignidade da pessoa humana é valor fundamental do ordenamento pátrio, consagrado pela Constituição Federal de 1988, é certo que ela deve ser preservada em qualquer esfera de relacionamento, quer seja no âmbito familiar ou não. Por isso, como pontua Bernardo Castelo Branco,
“havendo violação dos direitos da personalidade, mesmo no âmbito da família, não se pode negar ao ofendido a possibilidade de reparação do dano moral, não atuando esta como fator desagregador daquela instituição, mas de proteção da dignidade dos seus membros.”[11]
A criança e o adolescente, enquanto sujeitos merecedores da tutela jurídica, requerem uma solução positiva do Estado para os casos em que há omissão do pai no cumprimento dos deveres decorrentes do poder familiar. Assim, com fundamento no macroprincípio da dignidade da pessoa humana e amparado no princípio da afetividade, alguns tribunais pátrios têm se manifestado favoravelmente à admissibilidade da reparação civil do dano moral provocado pelo descumprimento do dever de convivência familiar. No entanto, esta questão continua dissente tanto no judiciário quanto na doutrina.
Vale salientar que a solução para esses casos depende da prudência do magistrado, quando interposta a ação de reparação civil, pois
“as responsabilizações por abandono afetivo são matérias recentes e pouco, ou quase nada, se escreveu neste sentido. Nestas situações, o juiz, ao analisar o mérito, na formação do seu convencimento, deverá considerar, dentre outros pressupostos, a capacidade processual do autor da ação, o convívio familiar o qual esta inserido, se seus genitores estão ou estiveram envolvidos em litígios de ordem familiar, quais os motivos que fizeram com que o elo entre os familiares fosse perdido, ou não consentido, a comprovação dos supostos danos sofridos, bem como a configuração de culpa unilaterais ou concorrentes.”[12]
Outrossim, é importante se ter em mente que os requisitos caracterizadores da responsabilidade civil devem estar presentes de forma muito clara. Assim, faz-se imprescindível a comprovação de que o alijamento do filho do convívio familiar foi a causa do dano à sua personalidade e isso apenas se torna possível a partir da realização de laudos psicossociais e perícias técnicas. Por isso, conforme destaca Rui Stoco,
“cada caso deverá merecer detido estudo e atenção redobrada, só reconhecendo o dano moral em caráter excepcional e quando os pressupostos da reparação se apresentarem estreme de dúvida e ictu oculi, através de estudos sociais e laudos técnicos de equipe interdisciplinar.”[13]
Diante disso, o magistrado não pode prescindir da análise de pareceres psicossociais, devendo haver, necessariamente, uma interdisciplinaridade para resolução de tais demandas. Somente assim será possível evitar que a reparação civil do dano moral, nestes casos, seja utilizada como forma de vingança do pai ou da mãe que mantém a guarda da criança contra o “não-guardião”, ou como forma de enriquecimento sem causa, para ser utilizada no sentido de tutelar os interesses das crianças e adolescentes que tiveram o seu desenvolvimento prejudicado.
O foco da questão, portanto, é comprovar o nexo de causalidade entre a conduta omissiva e voluntária do pai e o dano psicológico sofrido pela criança, de modo que, uma vez comprovado que a atitude omissiva do pai resultou em dano para os direitos da personalidade do filho em desenvolvimento, não resta dúvida quanto ao dever de indenizar.
Os danos decorrentes do abandono afetivo são muito bem pontuados por Cláudia Maria da Silva, defensora da reparação civil:
“Trata-se, em suma, da recusa de uma das funções paternas, sem qualquer motivação, que agride e violenta o menor, comprometendo seriamente seu desenvolvimento e sua formação psíquica, afetiva e moral, trazendo-lhe dor imensurável, além de impor-lhe ao vexame, sofrimento, humilhação social, que, ainda, interfere intensamente em seu comportamento, causa-lhe angústia, aflições e desequilíbrio em seu bem-estar. Mesmo sendo menor, já estão tuteladas a honra e moral, posto ser um sujeito de direito e, como tal, não pode existir como cidadão sem uma estrutura familiar na qual não há a assunção do verdadeiro ‘papel de pai’.”[14]
Tudo isso demonstra que não é qualquer atitude omissiva do pai que irá caracterizar a figura do dano moral. Cabe ao magistrado, portanto, na hora de análise da demanda, observar, de forma responsável, se estão presentes ou não os requisitos autorizadores da reparação.
Tecidas essas considerações, passa-se às análises das divergências doutrinárias e jurisprudenciais acerca do tema em estudo.
3. DAS DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS.
O tema referente ao abandono afetivo na filiação e o consequente dever de reparação é novo no ordenamento pátrio, não havendo legislação específica tratando da matéria. Assim, no momento em que os magistrados e tribunais vão julgar as demandas interpostas perante o judiciário, a doutrina passa a ser uma importante fonte de auxílio.
Vale salientar, porém, que não há consenso acerca da sanção a ser aplicada aos pais que, por omissão, descumpriram alguns dos deveres decorrentes do poder familiar. Diante disso, há duas correntes que merecem destaque.
A primeira entende que é possível a reparação civil, utilizando como argumentos o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o princípio implícito da afetividade, bem como o princípio da proteção integral da criança e do adolescente. Por outro lado, a segunda corrente entende não ser possível a reparação pecuniária nos casos de abandono afetivo, sob pena de se quantificar o amor, sem se esquecer do fato de que ninguém pode ser obrigado a amar.
Pelo apanhado da doutrina, verifica-se que Maria Berenice Dias, Paulo Lôbo, Giselda Hironaka, Bernardo Castelo Branco, Rui Stoco, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Cláudia da Silva e Claudete Carvalho Canezin se posicionam favoravelmente à reparação civil do dano moral decorrente do abandono afetivo na filiação.
Para Maria Berenice Dias, “comprovado que a falta de convívio pode gerar danos, a ponto de comprometer o desenvolvimento pleno e saudável do filho, a omissão do pai gera dano afetivo susceptível de ser indenizado”.[15]
No mesmo sentido, tem-se o ensinamento de Rui Stoco:
“[...] o que se põe em relevo e exsurge como causa de responsabilização por dano moral é o abandono afetivo, decorrente do distanciamento físico e da omissão sentimental, ou seja a negação de carinho, de atenção, de amor e de consideração, através do afastamento, do desinteresse, do desprezo e falta de apoio e, às vezes, da completa ausência de relacionamento entre pai (ou mãe) e filho.”[16]
Assim, percebe-se que, para os autores acima citados, deve haver indenização do dano moral provocado pela conduta omissiva do pai em cumprir o dever de convivência familiar, tendo em vista que o descumprimento deste dever impossibilita o desenvolvimento intelectual, emocional e social da criança. A conduta omissiva do pai, portanto, atenta contra a dignidade da criança e causa-lhe transtornos irreversíveis, sendo caracterizado como ato ilícito gerador do dever de indenizar.
Compartilha desse entendimento Bernardo Castelo Branco:
“A conduta omissiva dos pais no tocante à formação moral dos filhos, permitindo-lhes o livre acesso a ambientes nocivos ao seu desenvolvimento, ao contato com jogos, álcool e drogas, entre outros fatores deturpadores da personalidade, constitui, portanto, a adoção de comportamento ilícito, uma vez que viola um dever juridicamente imposto aos titulares do poder familiar.” [17]
Convém ressaltar que o que enseja reparação é o descumprimento do dever jurídico de conviver com o filho e não a falta de afeto de per si. É, neste sentido, a lição de Wlademir Paes de Lira, ao dispor que
“o dever dos pais em conviver com os filhos não está relacionado, apenas, com as questões afetivas, embora estas sejam extremamente importantes nas definições acerca da convivência. Tal dever está também relacionado com a paternidade/maternidade responsáveis, previstas no art. 226 da CF, assim como, está por que não acrescentar, ao direito fundamental da criança e do adolescente.”[18]
Para a corrente que segue entendendo pela impossibilidade da reparação civil, ressalta-se o argumento de que a reparação pecuniária do abandono afetivo provocaria uma monetarização do amor. Esse é o pensamento de Lizete Schuh, ao relatar que “[...] a simples indenização poderá representar um caráter meramente punitivo, reafirmando, cada vez mais, o quadro de mercantilização nas relações familiares.”[19] No entanto, defende-se que a indenização, nestes casos, tem o intuito pedagógico, e não somente punitivo, à medida que também visa inibir futuras omissões dos pais em relação aos seus filhos.
Ainda em sentido contrário à tese da reparação pecuniária, há os que argumentam que a infração dos encargos decorrentes do poder familiar encontra sanção prevista dentro do próprio direito de família, qual seja, a destituição do poder familiar. Adepto deste argumento é Renan Kfuri Lopes: “Filio-me ao entendimento que a violação aos deveres familiares gera apenas as sanções no âmbito do direito de família, refletindo, evidentemente, no íntimo afetivo e psicológico da relação [...]”.[20]
Sob essa ótica, também se posiciona Danielle Alheiros Diniz:
“O descumprimento desse dever de convivência familiar deve ser analisado somente na seara do direito de família, sendo o caso para perda do poder familiar. Esse entendimento defende o melhor interesse da criança, pois um pai ou uma mãe que não convive com o filho não merece ter sobre ele qualquer tipo de direito.”[21]
Outra tese defendida pelos opositores da reparação do dano moral decorrente do abandono afetivo é a de que ninguém pode obrigar um pai a amar um filho, sendo este o cerne da questão. Nestes termos, para Lizete Schuh:
“É dificultoso cogitar-se a possibilidade de determinada pessoa postular amor em juízo, visto que a capacidade de dar e de receber carinho faz parte do íntimo do ser humano, necessitando apenas de oportunidades para que aflore um sentimento que já lhe faz parte, não podendo o amor, em que pese tais conceitos, sofrer alterações histórico-culturais, ser criado ou concedido pelo Poder Judiciário.”[22]
Não obstante, em defesa da corrente doutrinária que admite a reparação pecuniária, se põe Giselda Hironaka, rebatendo o argumento acima referido:
“[...] é certo que não se pode obrigar ninguém ao cumprimento do direito ao afeto, mas é verdade também que, se esse direito for maculado – desde que sejam respeitados certos pressupostos essenciais – seu titular pode sofrer as consequências do abandono afetivo e, por isso, poderá vir a lamentar-se em juízo, desde que a ausência ou omissão paternas tenham-lhe causado repercussões prejudiciais, ou negativas, em sua esfera pessoal – material e psicológica – repercussões estas que passam a ser consideradas, hoje em dia, como juridicamente relevantes.”[23]
Nesse sentido, asseverara-se, mais uma vez, que a indenização se afigura possível em razão do descumprimento do dever de convivência familiar, direito fundamental da criança e do adolescente. Corrobora esse entendimento Priscilla Menezes da Silva:
“O que se deveria tutelar com a teoria do abandono afetivo é o dever legal de convivência. Não se trata aqui da convivência diária, física, já que muitos pais se separaram ou nem chegam a viver juntos, mas da efetiva participação na vida dos filhos, a fim de realmente exercer o dever legal do poder familiar.”[24]
Vale salientar que Catarina Almeida de Oliveira, levando em consideração que o princípio da afetividade envolve a ideia de solidariedade familiar, não se confundindo, portanto, com o sentimento de afeto existente entre pai e filho, destacou que a lei pode sim obrigar os indivíduos a amarem seus filhos, mas claro que de forma objetiva. Para ela, portanto,
“ao confundir a afetividade que pode ser realizada, independentemente do sentimento que se tenha, com aquelas outras expressões do amor (...), corre-se o risco de afastar da proteção do Judiciário, situações que tenham esse princípio como cerne, como por exemplo, o abandono afetivo, o que justificaria o argumento contrário de que a lei não pode obrigar ninguém a amar. Pode sim. Objetivamente.”[25]
Ainda para os opositores da indenização nos casos de abandono afetivo, a propositura de ação de reparação civil afetaria ainda mais a relação paterno-filial, prejudicando a convivência familiar. Por isso é que os próprios adeptos da responsabilização civil nos casos de abandono afetivo destacam que esta análise deve ser feita de forma prudente e contextualizada, a fim de evitar a quebra do vínculo afetivo, por ventura, ainda existente entre pai e filho. Neste sentido, assevera Bernardo Castelo Branco:
“[...] a particularidade que cerca a relação paterno-filial, eis que fundada essencialmente na afetividade entre os sujeitos que dela participam, não permite a aplicação integral dos princípios que regem a responsabilidade civil. Logo, mesmo no campo específico do dano moral, cabe aferir em que medida o comportamento adotado foi capaz de romper os eventuais laços de afeto entre pais e filhos, uma vez que a admissibilidade da reparação não pode servir de estopim a provocar a desagregação da família ou o desfazimento dos vínculos que devem existir entre os sujeitos daquela relação.” [26]
Importa destacar, por oportuno, que outras controvérsias surgem, até mesmo dentro dos adeptos da teoria da responsabilização civil nos casos de abandono afetivo, a exemplo do tipo de caráter que seria assumido pela indenização. Para alguns autores, como Giselda Hironaka[27], o verdadeiro objetivo da indenização seria impedir futuras negligências no campo afetivo, de maneira que a ela teria caráter educativo e pedagógico. Contudo, para os pais que praticaram a conduta ilícita, a indenização não deixa de ter caráter punitivo e dissuasório, conforme entende Cláudia Maria da Silva[28]. Há, ainda, aqueles que defendem o caráter compensatório da indenização, a exemplo de Claudete Carvalho Canezin[29] e os de pensamento mais moderado, como Maria Isabel Pereira da Costa[30], que defendem que o valor decorrente da indenização deve ser utilizado para o pagamento de tratamento psicológico do filho, tendo em vista as péssimas condições deste tratamento na rede pública de saúde e o alto custo das redes não conveniadas.
De toda sorte, pelo estudo realizado, verifica-se que, para grande parte da doutrina, deve haver uma análise responsável e prudente dos requisitos autorizadores da responsabilização civil nos casos de abandono afetivo, para que, uma vez comprovado o nexo de causalidade entre o dano sofrido pelo filho e a atitude omissiva e voluntária do pai no cumprimento do dever de convivência familiar, possa surgir o dever de indenizar. Este é o pensamento de Paulo Lôbo:
“[...] Entendemos que o princípio da paternidade responsável estabelecido no art. 226 da Constituição não se resume ao cumprimento do dever de assistência material. Abrange também a assistência moral, que é dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória.”[31]