Destina-se o presente artigo a uma breve análise, sob o prisma justrabalhista, do novo diploma que se destina a regulamentar a atividade das cooperativas de trabalho, bem como a comentar as possibilidades de fraudes e desvirtuamentos do verdadeiro cooperativismo trabalhista.
Introdução
Quando acrescentado o parágrafo único ao artigo 442, da CLT, pela Lei n. 8949/1994, surgiu uma celeuma, durante muito tempo não bem resolvida, sobre o sentido e o alcance da então nova norma.
Celeuma essa que veio gerar a necessidade da edição da nova lei, a de n. 12690, de 19/07/2012, a qual tem o nítido propósito de tentar regulamentar o cooperativismo de trabalho, sobretudo aquele que tem como objeto a prestação de serviços a terceiros.
Observa-se, cristalinamente, a tentativa de “fechar” as eventuais brechas para se evitar o desvirtuamento de tão nobre instituto, que é o verdadeiro cooperativismo, para a funesta intermediação de mão-de-obra para terceiros, ou para mascarar a relação de emprego com o próprio “dono” da “cooperativa”, artifícios, infelizmente, tão utilizados por empregadores que enxergaram no parágrafo único do art. 442, da CLT, a tão sonhada (para eles) derrocada da CLT e de todo o arcabouço jurídico protetor da parte hipossuficiente da relação de emprego.
Se o verdadeiro cooperativismo é, sem dúvida, uma das fórmulas válidas para a inserção do trabalhador na arena socioeconômica capitalista, também é verdade que o emprego, regulado e protegido juridicamente, desponta como o “principal e mais abrangente veículo de afirmação socioeconômica da ampla maioria das pessoas humanas na desigual sociedade capitalista". [1]
Portanto, no âmbito da discussão que aqui se trava, deve-se ter em mente que, a par da necessidade de se fomentar a atividade econômica, pelo estímulo ao cooperativismo ou por outros meios quaisquer, por mais louváveis que sejam, não se há olvidar que a relação de emprego é, e continuará sendo, a forma mais eficaz de distribuição de renda e de afirmação da pessoa do trabalhador na sociedade, posto que aquilo que Mauricio Godinho Delgado chamou de “patamares civilizatórios mínimos”, presentes no arcabouço legal e constitucional de tutela ao trabalhador, confere a este um status de cidadania que, de outra forma, ser-lhe-ia suprimido, tendo em vista a cruel lei do mercado de trabalho para a maioria das atividades em nossa sociedade (desvalorização do trabalho humano, se a oferta de profissionais de um determinado setor econômico for superior à demanda deste mesmo setor).
Dessa forma, afastamos, em nossas observações, qualquer consideração que se apóie na falácia de que o cooperativismo de trabalho constitui uma panacéia para as questões do mercado de trabalho, para a busca do pleno emprego, e para a não menos falaciosa necessidade de redução do custo Brasil (pelo viés da precarização de direitos fundamentais trabalhistas).
É com essas premissas que discutiremos as novas normas trazidas pela lei das cooperativas de trabalho, sob o aspecto justrabalhista, deixando de abordar as questões de índole empresarialista.
A nova Lei das Cooperativas de Trabalho
A nova lei baseia-se em parte na Recomendação n. 193, da OIT, sobre a Promoção de Cooperativas, editada na 90ª. Reunião da Conferência Geral da OIT, em 03 de junho de 2002, portanto, já há mais de uma década.
Da Recomendação, a lei retira a base para o próprio conceito de cooperativa de trabalho. Veja-se o conceito na Recomendação:
“Para os efeitos desta Recomendação, o termo “cooperativa” significa a associação autônoma de pessoas, que se unem voluntariamente para atender a suas necessidades e aspirações comuns, econômicas, sociais e culturais, por meio de empreendimento de propriedade comum e de gestão democrática”. [2]
E na lei:
“Considera-se Cooperativa de Trabalho a sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de suas atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho”. [3]
Dos conceitos, vê-se que se encontram presentes os dois princípios que Delgado considerou essenciais para a configuração do verdadeiro cooperativismo de trabalho, quais sejam, o Princípio da Dupla Qualidade e o da Retribuição Pessoal Diferenciada.
Pelo Princípio da Dupla Qualidade, entende Delgado o fato de que, na verdadeira cooperativa de trabalho, o trabalhador é cooperado e cliente, usufruindo das vantagens de ambas as situações. [4] Com efeito, no real cooperativismo de trabalho, deve haver a efetiva prestação de serviços pela cooperativa diretamente ao associado, e não apenas a terceiros. Isso vale para toda e qualquer espécie de cooperativa (Lei n. 5764/71: art. 4º, caput) e as de trabalho não constituem exceção (Lei n. 12690/12: art. 2º, caput: “...com proveito comum..”).
Portanto, verifica-se que no cooperativismo, o próprio cooperado é um dos beneficiários principais dos serviços prestados pela cooperativa, e de forma alguma, como tanto percebemos nas cooperativas “de fachada”, os trabalhadores constituem mera mão-de-obra barata a ser explorada e intermediada pela “direção” da “cooperativa”.
Lembra-nos o ilustre autor que esse princípio se torna facilmente aparente nas cooperativas de motoristas autônomos de táxi, nas de prestadores autônomos de serviços médicos, bem como naquelas tradicionais cooperativas de produtores autônomos, constituídas por artesãos, artistas, entre outros. [5]
São, enfim, aqueles casos em que a cooperativa existe para prestar serviços a seus próprios associados, que são trabalhadores realmente autônomos, sendo a oferta de serviços a terceiros o instrumento para concretizar seu objetivo precípuo de prestar serviços a seus próprios integrantes. Caso contrário, qual seria a vantagem de se associar em cooperativa e assumir os riscos do negócio?
O Princípio da Retribuição Pessoal Diferenciada é explicado por Delgado como o fato de que o que justifica a própria existência da cooperativa é permitir ao cooperado obter uma retribuição pelo seu trabalho que seja superior àquilo que obteria caso não fosse cooperado.
De fato, deve haver um conjunto de vantagens para o trabalhador que se revele muito superior ao que ele obteria se estivesse prestando serviços sem ser na condição de cooperado. Sem essas vantagens, caem por terra os próprios objetivos do cooperativismo, e são eliminados os fundamentos sociais que justificam o tratamento jurídico mais vantajoso que essas entidades recebem. [6]
Fácil ilustrar o que dizemos, ao observarmos que o taxista autônomo não cooperado vai ter mais dificuldade na obtenção de clientes do que seus colegas organizados em cooperativas, pois estas podem realizar convênios com empresas, organizar serviços de teletáxi, etc. Assim como na obtenção de descontos em lojas de autopeças e oficinas, p. ex. O mesmo se diga no caso de profissionais médicos e dentistas autônomos, os quais, ao se associarem em cooperativas, têm potencializadas suas atividades, podendo auferir maiores rendimentos do que seus colegas não associados.
A jurisprudência vem acolhendo pacificamente esses princípios como essenciais para a caracterização do verdadeiro cooperativismo:
“A norma contida no parágrafo único do artigo 442 da CLT certamente se dirige apenas à relação autêntica de cooperativismo, não podendo ser utilizada em desvirtuamento do instituto ou como subterfúgio dos direitos básicos dos trabalhadores. Ou seja, o referido dispositivo não obsta a caracterização do vinculo empregatício quando presentes os pressupostos do artigo 3° da CLT como tem sido reiteradamente decidido pela jurisprudência de nossos pretórios. Destarte, a declaração de existência de vínculo de emprego requer necessariamente a análise do cumprimento dos requisitos subjetivos e objetivos da prestação de serviços por meio de cooperativa e também da presença dos pressupostos do artigo 3° da CLT.
De acordo com o entendimento de Mauricio Godinho Delgado a norma contida no parágrafo único do artigo 442 da CLT somente incidiria se presentes os princípios básicos do cooperativismo que dizem com a dupla qualidade e a retribuição pessoal diferenciada. Pelo princípio da dupla qualidade, de acordo com o ilustre autor, a pessoa filiada tem de ser ao mesmo tempo em sua cooperativa cooperado e cliente, auferindo as vantagens dessa duplicidade de situações (Curso de Direito do Trabalho 7ª Ed. São Paulo LTr 2008 p. 329). Portanto, para que seja autêntica a relação, a cooperativa tem de prestar serviços ao seu associado como estabelece o inciso I do artigo 6° da Lei n 5.764/71. Para o autor já citado o princípio da retribuição pessoal diferenciada possui o seguinte pressuposto: a cooperativa permite que o cooperado obtenha uma retribuição pessoal em virtude de sua atividade, superior aquilo que obteria caso não estivesse associado. A retribuição pessoal de cada cooperado é necessariamente (ainda que em potencial), superior àquela alcançada caso atuando isoladamente (Introdução ao Direito do Trabalho 2ª edição Editora LTr São Paulo 1999 pág. 270).
Com efeito, o objeto da cooperativa de trabalho deve ser a intermediação de serviços de forma mais barata em proveito de seus sócios, sem o intuito de lucro, já que este reverte em favor de cada associado. É assim imprescindível para a caracterização da legítima cooperativa de trabalho, a prova da dupla qualidade e da retribuição pessoal diferenciada.
No caso em exame, entretanto, não se verifica a presença desses requisitos.”[7]
Infelizmente, o que temos visto, em inúmeras situações, é que os trabalhadores de diversas “pseudocooperativas” trabalham de forma francamente subordinada e com um retorno por sua força de trabalho dispendida muito inferior ao que obteria caso contratado regularmente como empregado de quem o dirige, quer seja a própria cooperativa ou o tomador de seus serviços, dependendo se o caso é de terceirização ou de mera intermediação, como abordaremos à frente.
Então, resta a pergunta: por que, dessa forma, o trabalhador se submete por livre vontade, a essa “pseudocooperativa” que, ao invés de potencializar sua atividade, simplesmente o intermedeia para terceiros, ou diretamente o explora como empregado, sem os direitos historicamente deferidos aos trabalhadores por meio da CLT e de diversas outras leis?
A resposta, para qualquer um que milite na área é simples e direta, podendo ser facilmente repetida por qualquer desses trabalhadores, em uníssono: “A firma só está contratando desse jeito. Tem que levar os documentos lá na “Cooptudo”. Não vai ter hora extra, nem 13º, nem férias, e nem mesmo tempo de casa”.
O novo diploma chama a atenção pelo rol de direitos que tipicamente decorrem da relação de emprego (art. 7º. da nova lei), a exemplo dos adicionais de trabalho noturno, de insalubridade ou periculosidade, repousos semanal e anual remunerados, limites de jornada e piso de “retiradas”, bem como pela previsão de provisionamento de recursos para a quitação dessas verbas trabalhistas, artifício próprio dos OGMOs (órgãos gestores de mão-de-obra) ou dos sindicatos, que realizam uma espécie de intermediação lícita de mão-de-obra, no âmbito das relações de trabalho avulso, para as quais a nossa Constituição Federal expressamente estendeu os direitos tipicamente empregatícios (art. 7º., inciso XXXIV). Ocorre que as cooperativas não podem licitamente se destinar a tal intermediação.
Em um primeiro momento, analisando perfunctoriamente tal rol, antes inexistente, pode surgir a ideia de que houve um significativo incremento na proteção jurídica desses trabalhadores.
Infelizmente, não é o que as experiências vêm demonstrando.
Expliquemo-nos. Ao analisar a então nova lei do estágio[8], lembrávamos que esses direitos correspondem a alguns dos arrolados no art. 7º da nossa Constituição, como direitos fundamentais dos trabalhadores. Alguns autores, valendo-se do fato de que a Constituição, no caput do art. 7º, se refere a trabalhadores, e não a empregados, já defendem, há algum tempo, a extensão desses direitos a trabalhadores não empregados, na esteira de uma “interpretação constitucional evolutiva”. [9]
A previsão de parte desses direitos, agora, aos trabalhadores cooperados, vem, sem dúvida, ao encontro dessa atraente idéia de extensão dos direitos fundamentais do trabalho a toda forma de trabalho humano.
Entretanto, nessa quadra, pertinente se faz a observação de Delgado, lembrando que o alargamento que o legislador tem feito de certo rol de direitos trabalhistas, para fora das fronteiras da relação de emprego, tem se demonstrado como artifícios de desregulamentação ou de flexibilização trabalhistas, ou seja, como antítese ao alargamento dos direitos fundamentais, constituindo, na verdade, um mecanismo destinado à sua pulverização. [10]
De fato, aduz o autor que alguns experimentos legislativos vêm sendo feitos, criando-se situações supostamente novas de contratação trabalhista, com um rol mais restrito de direitos. É o que ocorreu, por exemplo, com os trabalhadores menores, que tinham um salário mínimo inferior ao padrão geral. Ocorre, atualmente, com os aprendizes e com os estagiários, além dos diversos tipos de contrato a termo. Ocorre, ainda, com os empregados de micro e pequenas empresas, cuja legislação reguladora sempre tenta restringir a proteção jurídica. Desta forma, para Delgado, a extensão de direitos fundamentais trabalhistas para trabalho não empregatício, se não manejada prudentemente, poderia agregar força à tendência de desregulamentação e flexibilização da legislação trabalhista. Isso porque essa extensão tenderia à diminuição do rol de tais direitos, em face das diversas especificidades dos vários tipos de trabalhadores. [11]
É o que, agora, mais uma vez, vem ocorrer. A extensão parcial de direitos tipicamente empregatícios aos trabalhadores cooperados não pode servir de brecha a permitir o desvirtuamento do verdadeiro cooperativismo de trabalho. Não pode, agora, o tomador de serviços aduzir que, já que o cooperado tem direito a piso salarial, limitação de jornada, descanso semanal remunerado, férias, adicionais noturno e de insalubridade ou de periculosidade, não tem tanta importância que substitua parte de seus empregados (ou todos) por (falsos) cooperados. É justamente nesse sentido a preocupação do ilustre filósofo e magistrado citado.
Trata-se, em síntese, de “separar o joio do trigo”: estender direitos fundamentais a verdadeiros cooperados é uma situação válida e agora juridicamente protegida; precarizar as relações de trabalho, substituindo pessoal regular por falsos cooperados, posto que reduzidas as diferenças de proteção jurídica, era, e continua sendo com a nova lei, uma forma nefasta de precarização das relações de trabalho, contribuindo para desequilibrar ainda mais a relação capital X trabalho em nosso país, relação essa já tão em desequilíbrio, face ao mercado de trabalho brasileiro, em que, para a maioria absoluta das funções, a oferta de mão-de-obra é extremamente superior à sua respectiva demanda, tornando as contraprestações remuneratórias praticadas em nosso país uma das mais baixas dentre os países com nível de desenvolvimento semelhante ao nosso.
As Fraudes
A maior preocupação, e o principal escopo da regulamentação que ora se comenta, é, sem dúvida, com o desvirtuamento do instituto do verdadeiro cooperativismo de trabalho.
Como dissemos acima, quando da edição do parágrafo único do art. 442 da CLT, em 1994, foi enorme a onda de “pseudocooperativas” de trabalho, com absoluto desvirtuamento de seus princípios basilares, e que se destinavam precipuamente a fornecer serviços ou simplesmente intermediar força de trabalho a terceiros, com o completo afastamento de todo e qualquer direito trabalhista, e, com indisfarçável desfaçatez, arguindo o então novel dispositivo que declarava a inexistência de vínculo de emprego entre os cooperados e a cooperativa, ou entre aqueles e os tomadores de serviço desta. Evidentemente, olvidando que o então novo dispositivo legal tratava das verdadeiras cooperativas e não das fraudulentas, ou seja, todas em que estiverem ausentes pelo menos um de seus princípios basilares, ou em que o trabalhador preencher os requisitos da relação de emprego em face dos tomadores de seus serviços, ou em face da própria cooperativa.
Como dissemos acima, a nova lei se baseou parcialmente na Recomendação n. 193 da OIT, de 2002, sobre a promoção de cooperativas, a qual, em seu item II, 8, b, dispõe que as políticas nacionais deveriam, sobretudo: “assegurar que não se instituam cooperativas, ou sejam usadas, como artifícios para escapar a obrigações trabalhistas ou para mascarar relações de emprego, e combater falsas cooperativas que violam direitos trabalhistas, garantindo a aplicação da legislação trabalhista em todas as empresas;..”[12]
Como visto, o organismo internacional de defesa e de normatização dos direitos trabalhistas básicos já se preocupava com o potencial desvirtuamento do instituto, no âmbito internacional, pelo menos desde 2002.
Tendo em vista a vasta experiência da doutrina, da jurisprudência e da Auditoria Fiscal do Trabalho com relação às fraudes perpetradas pelas falsas cooperativas de trabalho, sobretudo a partir da alteração legislativa de 1994, já tratada, temos que as fraudes se dividem, basicamente, em casos de intermediação ilícita de mão-de-obra para um tomador de serviços, o qual reúne todos os elementos legais para sua configuração como real empregador daqueles trabalhadores, “pseudocooperados”; e em casos de terceirização lícita de determinados serviços prestados pelos trabalhadores, mas com relação de subordinação jurídica destes com a “pseudocooperativa”, ou com a sua direção, geralmente, reduzido grupo que se revela como verdadeiro “proprietário” de uma empresa de serviços terceirizados, que assume a forma de uma cooperativa de trabalho, tão somente para se eximir de toda a vasta proteção jurídica dispensada pelo ordenamento ao trabalho subordinado.
Intermediação de mão-de-obra
A fraude cometida pela falsa cooperativa quando ela se presta apenas a intermediar mão-de-obra constitui a ampla maioria dos casos, mas, por sorte, também são os de mais fácil identificação, seja em uma auditoria do Ministério do Trabalho e Emprego, órgão legalmente investido da competência administrativa de fiscalizar e coibir tais desvios (CF: art. 21, inciso XXIV; CLT: arts. 626 e ss.; Lei n. 12690/2012: art. 17), seja em uma eventual ação judicial, proposta pelos próprios trabalhadores prejudicados, ou pelo Ministério Público ou entidade sindical, como substitutos processuais dos trabalhadores.
Com efeito, vai se dar a mera intermediação de mão-de-obra quando se tratar apenas da colocação de trabalhadores subordinados à disposição de um tomador, o qual reúne os elementos legais que o qualificam como real empregador daqueles trabalhadores, posto que sobre eles exerce seu poder empregatício[13], e os remunera, embora por intermédio da “pseudocooperativa”.
Para a caracterização inafastável de tal situação, é interessante observarmos a presença de um feixe de indícios, proposto por Rodrigo Carelli, que, da mesma forma que aquele existente para a busca da subordinação jurídica na relação de emprego, poderá nos indicar a existência de uma mera intermediação de mão-de-obra, nula de acordo com nosso ordenamento justrabalhista, ou de uma legítima e lícita terceirização. Importante notar que nenhum dos elementos é por si só determinante, devendo haver uma convergência desses elementos para a verificação ou não da fraude. [14]
O autor menciona diversos desses elementos ou indícios, mas eles podem ser reduzidos a somente três que, mais amplamente demonstrariam a existência de mera intermediação de mão-de-obra: gestão do trabalho pela tomadora de serviços, a prevalência do elemento humano no objeto do contrato de prestação de serviços, e a especialização da prestadora de serviços.
A gestão do trabalho, isto é, a determinação do modo, tempo e forma com que o trabalho deve ser realizado, é o elemento mais perfeito para indicar a existência de subordinação jurídica. A constatação da gestão ou organização do trabalho, por parte do tomador de serviços, deixa clara a existência de uma interposição da cooperativa para fuga do vínculo empregatício direto com os trabalhadores.
Também a prevalência do elemento “trabalho humano” na prestação de serviços é forte indicativo de intermediação de mão-de-obra. Deve ser verificado, no caso concreto, se o objeto do contrato se satisfaz com o mero emprego de mão-de-obra, ou se há necessidade de um conhecimento técnico especifico e uma estrutura de apoio operacional, com a utilização de meios materiais próprios para a execução do contrato. Se o objeto do contrato se encerrar na prestação de trabalho pelos cooperativados, provavelmente tratar-se-á de mera intermediação de mão-de-obra.
A especialização da cooperativa contratada naquela área específica objeto do contrato é outro elemento indispensável para a caracterização da verdadeira terceirização. Isso decorre do próprio conceito de terceirização, que se trata da entrega de serviços a empresa especializada que melhor realizaria aquele serviço, concentrando-se a tomadora na sua atividade central.
Entretanto, não basta qualquer tipo de especialização. Como adverte Carelli, a empresa contratada tem que deter um saber-fazer específico, distinto daquele que detém a contratante[15].
Além disso, esse “know-how” deve ser imprescindível para a realização das tarefas terceirizadas. Desta forma, se a especialização da contratada equivale à da contratante, que detém em seus quadros empregados tão ou mais especializados do que aqueles pertencentes ao quadro da contratada, é porque se trata de mera intermediação de mão-de-obra.
Por esse motivo, é que não se pode admitir como lícita, a empresa de terceirização ou cooperativa de trabalho que terceiriza tudo, ou fornece todo tipo de profissional. Essas empresas ou cooperativas, na verdade, não são especializadas em nada, destinando-se apenas a alocar pessoal em outras empresas ou entidades públicas, lucrando com o trabalho alheio. Nada mais são do que meras intermediadoras do trabalho humano, que obtém seu lucro locando pessoas para prestarem serviço a outras tomadoras. Como bem adverte Carelli, as chamadas cooperativas multidisciplinares de trabalho nada mais são do que meras intermediadoras de mão-de-obra, “com o agravante de serem fraudadoras de direitos fundamentais sociais básicos. Falta-lhes o elemento “especialização” indispensável para a caracterização da terceirização legal “[16].
No novo diploma, que rege as cooperativas de trabalho, verifica-se que houve uma ênfase por parte do legislador no que diz com a necessidade da especialização da cooperativa. Com efeito, o art. 4º, inciso II, dispõe que as cooperativas de serviço são constituídas “por sócios para a prestação de serviços especializados a terceiros, sem a presença dos pressupostos da relação de emprego”.
A expressão legal “serviços especializados” é a mesma utilizada pela jurisprudência do TST, a teor de sua Súmula n. 331, item III, quando discrimina os requisitos da terceirização permitida pelo ordenamento jurídico.
Portanto, o objeto social da cooperativa de trabalho não pode ser amplo, sem nenhuma especialidade. Isso só demonstra que ela só se presta à intermediação de mão-de-obra, vedada em nosso ordenamento, com a exceção de poucos casos expressamente previstos em lei, como as figuras extraordinárias do trabalho temporário (Lei n. 6019/74), Órgão Gestor de Mão de Obra – OGMO, no âmbito do trabalho portuário (Lei n. 8630/93), ou dos sindicatos, com relação aos trabalhadores avulsos, e as entidades previstas no art. 430, inciso II, da CLT, como autoriza seu art. 431, no contexto do trabalho dos aprendizes. Trata-se de casos excepcionais de intermediação lícita, que não regulam a prestação ordinária de trabalho, no âmbito da empresa.
Fora desses casos expressamente previstos, a mera intermediação de mão-de-obra constitui figura rechaçada não só pelo nosso sistema jurídico, como reconhece, acertadamente, a Súmula 331 do TST, mas pela própria Organização Internacional do Trabalho, como, por exemplo, no item I, alínea “a”, da Declaração de Filadélfia, em que afirma a OIT que “o trabalho não é uma mercadoria”. Desta forma, o trabalho humano não pode ser intermediado, fora das exceções legalmente autorizadas, pois estaria sendo comercializado como uma mercadoria.
Decorre do que se expôs que a cooperativa de trabalho, em especial a de prestação de serviços a terceiros, deve ter seu objeto social circunscrito à especialização de seus cooperados. Até para que se revele presente a affectio societatis entre eles.
De fato, a affectio societatis, segundo consagrados autores, diz respeito à disposição, que toda pessoa manifesta, ao ingressar em uma sociedade, de lucrar ou suportar prejuízo em decorrência do negócio comum . Esta disposição, este ânimo, “é pressuposto de fato da própria existência da sociedade, posto que, sem ela, não haverá a própria conjugação de esforços indispensável à criação e desenvolvimento de ente coletivo” [17].
Não há a possibilidade de que trabalhadores, cujas especialidades não guardem entre si nenhuma relação, disponham-se a criar e desenvolver uma sociedade cooperativa , suportando todos os riscos de um negócio que não dominam.
Por isso, as chamadas “cooperativas multidisciplinares de serviços”, em regra geral, apenas estão se prestando a intermediar trabalhadores necessários aos negócios de um tomador, que sobre eles exercerá seu poder de empregador.
Nessa quadra, apresenta-se pertinente a aplicação subsidiária do art. 29, par. 1º, da Lei n.5764/71 (permitida pelo art. 1º, da Lei n. 12690/12): “A admissão poderá ser restrita, a critério do órgão normativo específico, às pessoas que exerçam determinada atividade ou profissão, ou estejam vinculadas a determinada entidade”.
Desta forma, tem-se que o art. 4, inciso II, da nova lei, ao tratar dos serviços especializados, que constituem o objeto social da cooperativa de serviços, pressupõe a especialização da cooperativa em uma área especifica de atividade, e que a mesma detenha um saber-fazer (tecnologia/ know-how) específico, que seja imprescindível para a prestação de seus serviços, não sendo admissível que o objeto da sociedade cooperativa abranja atividades que não guardem entre si relação de complementaridade.
E, ainda, que todos os sócios das cooperativas de trabalho previstas no inciso II do art. 4º da Lei 12690/12, inclusive os membros do Conselho de Administração e o(s) coordenador(es) previsto(s) no par. 6º do art. 7º da mesma lei, poderão exercer qualquer atividade da cooperativa, conforme deliberado em Assembléia Geral (art 10, par. 4º), desde que estas atividades sejam congruentes com o objeto social estatuído (art. 10, par. 3º).
Caso ausentes esses requisitos, tratar-se-á de intermediação de mão-de-obra subordinada a terceiros, tornando-se nula de pleno direito a relação cooperativista (art. 9º, CLT) e formando-se o vínculo de emprego com o tomador, posto que presentes os elementos dos arts. 2º e 3º da CLT, além da incidência da sanção prevista no art. 17, par. 1º, da Lei 12690/12, tanto em face da cooperativa fraudulenta quanto dos contratantes.
Exemplos bem recentes na jurisprudência do que ora tratamos são os seguintes acórdãos do TST:
“COOPERATIVA FRAUDULENTA. VÍNCULO DE EMPREGO. O Regional asseverou, com base no conjunto fático-probatório dos autos, que a primeira reclamada, Cooperativa de Autônomos em Limpeza e Serviços Ltda. - Cooeza, foi criada com o fim exclusivo de intermediar mão de obra, em transparente fraude à legislação trabalhista. Desse modo, é imperioso reconhecer que a cooperativa não atendia às finalidades e princípios inerentes ao cooperativismo, devendo ser mantido o reconhecimento do vínculo de emprego entre o reclamante e a reclamada Cooeza. Inviável o reexame da matéria fática por esta Corte, conforme entendimento constante da Súmula nº 126 do TST. Ilesos os artigos 2º, 5º, inciso II, 22, inciso I, e 37, caput, da Constituição Federal, 442, parágrafo único, da CLT e 90 da Lei nº 5.764/71.Recurso de revista não conhecido.”[18]
“RECURSO DE REVISTA. COOPERATIVISMO. DESVIRTUAMENTO. INTERMEDIAÇÃO DE MÃO DE OBRA ASSALARIADA. VÍNCULO DE EMPREGO RECONHECIDO.
O Tribunal Regional, com base no conjunto fático-probatório, concluiu que não foram respeitados os requisitos da atividade sob a forma de cooperativa. Reconheceu o vínculo de emprego por fraude à legislação trabalhista. Portanto, não observados os princípios da autonomia, independência do cooperado e retribuição pessoal diferenciada. A contratação da reclamante, por meio da cooperativa, a qual atuava como mera intermediadora de pessoal para a prestação de serviços a seus tomadores, configura evidente fraude à Consolidação das Leis do Trabalho e nítido desvirtuamento das atividades cooperativas. Logo, a reclamada não pode se valer de preceitos legais próprios do cooperativismo para se eximir da responsabilidade quanto aos direitos trabalhistas. Daí por que não há de se falar em ofensa a nenhum dos dispositivos da legislação inerente à cooperativa. Vale destacar que o art. [442], parágrafo único, da CLT, embora estabeleça não existir vínculo empregatício entre a sociedade cooperativa e seus associados, nem entre esses e os tomadores de serviços daquela, não fixa excludente legal absoluta, mas simples presunção relativa de ausência de vínculo de emprego. Desse modo, é imperioso reconhecer que a cooperativa demandada não atende às finalidades e princípios inerentes ao cooperativismo, devendo ser afastada a simulação perpetrada, mantendo-se o reconhecimento do vínculo de emprego diretamente com ela, tal como decidiu o Regional. Recurso de revista não conhecido.”[19]
Fica claro como a Justiça do Trabalho vem rechaçando tais desvirtuamentos com essas entidades que apenas se prestam à intermediação ilícita de mão-de-obra.
Vejamos agora como se manifesta a fraude, quando a cooperativa realiza uma legítima terceirização de serviços a um tomador, sem pessoalidade ou subordinação direta com o tomador, mas, em verdade, o trabalhador se subordina à direção ou ao presidente da cooperativa, que se revela como verdadeiro empregador daquele contingente de trabalhadores, formalmente contratados como cooperados.