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O conceito de homem no jovem Marx (1843-1846)

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Agenda 17/02/2013 às 08:15

Estuda-se a identificação marxiana da essência humana em sua tríplice dimensão (prática, social e histórica): o homem (indivíduo) é um ser social.

Resumo: Karl Marx foi um pensador do Século XIX, cujo contexto histórico se encontra influenciado pela Revolução Industrial, em seus primórdios, e pela então recente Revolução Francesa. As fontes principais do pensamento marxiano são a filosofia alemã, o socialismo utópico francês e a economia política inglesa. O pensamento do jovem Marx foi analisado, em seu evolver teórico, desde os Manuscritos de Kreuznach (1843) até A Ideologia Alemã (1846), escrita a quatro mãos com Friedrich Engels. Ao final do percurso pôde-se apreender a identificação marxiana da essência humana em sua tríplice dimensão (prática, social e histórica): o homem (indivíduo) é um ser social. A práxis foi apontada, por sua prioridade ontológica fundamental, como a mediação que suprassume as contradições entre o homem e a natureza, entre a subjetividade e a objetividade, entre o pensamento e a realidade empírica. A essência humana – o trabalho –, na atual sociedade burguesa, encontra-se alienada. A sua reapropriação é vislumbrada na subversão revolucionária da ordem social existente pelo proletariado e na construção de uma sociedade comunista. O pensamento marxiano, a despeito das críticas que lhe foram dirigidas, permanece pertinente e válido neste início de Século XXI.

Palavras-chave: Homem. Emancipação humana. Alienação. Práxis. Trabalho. Capital. Revolução. Comunismo.

Sumário: Introdução; 1. Contexto histórico e fundamentos teóricos do pensamento marxiano; 1.1. Contexto histórico: algumas referências; 1.2. Fundamentos teóricos do pensamento de Karl Marx: as três fontes; 1.2.1. A filosofia alemã: hegelianismo, neo-hegelianismo e materialismo feuerbachiano; 1.2.2. O socialismo utópico francês e a economia política inglesa; 2. A evolução da antropologia filosófica do jovem Marx; 2.1. Formulando a indagação primordial; 2.2. O jovem Marx e sua funda feuerbachiana contra o gigante Hegel; 2.3. A emancipação humana para além da emancipação política: a questão judaica; 2.4. O proletariado como sujeito da revolução social emancipadora; 2.5. A extinção do Estado político numa sociedade socialista; 2.6. O trabalho como mediação e sua dimensão ontológica fundamental: diagnóstico e proposta de transcendência da alienação; 2.7. O humanismo real contra o idealismo especulativo da “Crítica crítica”; 2.8. Superando Hegel e Feuerbach: o materialismo histórico; 2.9. A essência do homem na concepção do jovem Marx; 3. Sobrevivência da concepção antropológica marxiana; 3.1. Críticas ao pensamento marxiano; 3.1.1. Hannah Arendt: o animal laborans de Marx; 3.1.2. Jürgen Habermas: a prioridade ontológica da linguagem; 3.1.3. Jean-Paul Sartre: a liberdade concebida e recriada; 3.2. Karl Marx redivivo; Conclusão; Referências.


Introdução

Quem foi Karl Marx, em que tempo viveu, quais os acontecimentos principais de sua época e quais foram as fontes e influências de seu pensamento? Qual a concepção filosófica de homem no jovem Marx? Ainda mais precisamente: o homem possui uma essência ou natureza? Qual é ela? Trata-se de uma essência fixa e natural? Como o jovem Marx se apodera das ideias de seu tempo para produzir a sua própria filosofia? Quais as contribuições que o conceito marxiano de homem pode trazer para a sua compreensão no tempo histórico e reificante em que vivemos? Estas, entre outras, foram as indagações das quais partimos para a investigação empreendida.

Abandonando a ambiciosa ideia de examinar a teoria marxiana do valor-trabalho – coração de O Capital –, porquanto temporariamente impossível de realizar, no âmbito de uma graduação em filosofia e de nossa parca capacidade intelectual, redirecionamos o nosso projeto de pesquisa, ante a proposta do Prof. Dr. Benedito Donizeti Goulart, para o estudo – mais palatável, mas não menos complexo – do conceito marxiano de homem. Mais que isto, restringimos a nossa investigação às suas obras de juventude (inspirados por Abbagnano). O recorte temporal foi efetuado tendo em vista a perspectiva de investigar a evolução do pensamento juvenil marxiano, desde a primeira investida contra a filosofia hegeliana, com a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em 1843, até A Ideologia Alemã, em 1845-1846, na qual se encontra já bem definida a sua concepção de homem.

Procuramos nos servir das melhores traduções, em especial das editoras Boitempo e Expressão Popular, que tem brilhantemente empreendido o projeto de verter para o português toda a obra marxiana, a partir dos originais em alemão, bem como das mais abalizadas obras dos melhores teóricos marxistas brasileiros e estrangeiros. Utilizamo-nos, outrossim, de alguns pertinentes artigos encontrados na rede mundial de computadores e de dicionários de filosofia e economia.

Antes de iniciar a investigação, consignamos uma rápida análise do contexto histórico do jovem Marx, para identificar os acontecimentos mais marcantes de seu tempo, bem como uma perquirição das fontes teóricas das quais partiu o filósofo e que influenciaram seu pensamento. Esta é a base do primeiro capítulo. Além disso, propusemo-nos a apontar, em toda monografia, tanto quanto possível, os acontecimentos pessoais mais importantes e pertinentes, em cada momento da vida do nosso filósofo, para, outrossim, melhor apreender a sua produção e a pessoa humana do acurado teórico. Por outro lado, também tentamos consignar algumas informações acerca dos mais importantes pensadores com os quais o jovem Marx teve contato.

No segundo capítulo, postas as bases de seu pensamento, empreendemos a análise das principais obras de juventude de Karl Marx, desde 1843, com os Manuscritos de Kreuznach, até 1846, quando se conclui A Ideologia Alemã. No intervalo entre tais obras, elegemos e analisamos as seguintes: A questão judaica (1844), a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução (1844), o artigo Glosas Críticas (1844), os Manuscritos Econômico-filosóficos (1844), A Sagrada Família (1845) e as anotações que se consubstanciaram nas Teses sobre Feuerbach (1845). Iniciamos o capítulo com algumas indagações preambulares e o finalizamos com as respostas que pudemos atingir no decorrer do trajeto. Tentamos, outrossim, registrar as ideias centrais de cada obra, com as polêmicas teóricas decorrentes das matérias mais importantes.

Ao terceiro e último capítulo da monografia foi reservada a análise de algumas críticas e avaliações do pensamento marxiano e verificação de sua possível validade nos tempos hodiernos. As críticas que examinamos, muito panoramicamente, se restringiram àquelas apresentadas por Hannah Arendt, Jürgen Habermas e Jean-Paul Sartre, sendo que o terceiro, propositalmente, foi deixado por último, em razão da maior proximidade entre o seu pensamento e o de Marx. Finalizamos o estudo com a apresentação das conclusões que pudemos vislumbrar.

Estas foram as indagações formuladas, o material e o método utilizados, a estrutura montada, enfim, o começo, o meio e o epílogo do trabalho, através do qual nos apresentamos para o cumprimento das exigências acadêmicas para a aquisição do título de bacharel em Filosofia.


1. Contexto histórico e fundamentos teóricos do pensamento marxiano

1.1. Contexto histórico: algumas referências

Karl Heinrich Marx (1818-1883) é um filósofo do Século XIX. Toda a sua filosofia foi desenvolvida no referido tempo histórico. Destarte, urge contextualizar o seu pensamento para identificar-lhe as motivações e os fundamentos teóricos que serviram de suporte para a edificação de sua filosofia, a fim de orientar a presente pesquisa e evitar que se incorra em graves distorções[1].

Talvez seja possível, grosso modo, resumir o tempo de Marx pela referência a dois acontecimentos históricos, à sua época, relativamente recentes: (i) a Revolução Industrial; e (ii) a Revolução Francesa. Embora a primeira tenha antecedido a segunda, aquela ainda estava se processando, na primeira metade do Século XIX, com a consolidação do capitalismo, que experimentava os seus primórdios, com o desenvolvimento do sistema fabril. Antes disso, houvera um demorado processo de acumulação de riquezas (decorrente do mercantilismo) – em grande parte fomentado pela Reforma Protestante[2] –, que foi imprescindível à eclosão do novo modo de produção (HUBERMAN, 1985).

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Relativamente à Revolução Industrial, importa destacar o desenvolvimento dos motores a vapor, como os do escocês James Watt (1736-1819). As máquinas com propulsão de motores a vapor revolucionaram a indústria e os transportes do início do Século XIX, em especial na Inglaterra. Leo Huberman, apoiado em J. A. Langford, faz referência ao acontecimento: “Em 1800 a ‘importância e utilidade da invenção’ do Sr. Watt se havia tornado tão evidente aos ingleses que ela estava em uso em 30 minas de carvão, 22 minas de cobre, 28 fundições, 17 cervejarias e 8 usinas de algodão” (HUBERMAN, 1985, p. 183). O processo de industrialização, como é cediço, na primeira metade do Século XIX, está em franca expansão. O aumento da produção fabril exterminou o trabalho manufatureiro, desempregando milhares de artesãos. Sem alternativas, estes acorreram às portas das fábricas em busca de emprego. Acerca de tal fato, Huberman apresenta duas indagações: “O que acontecia aos homens que, reduzidos ao estado de fome absoluta, já não podiam lutar contra a máquina, e finalmente iam buscar emprego na fábrica? Quais eram as condições de trabalho nessas primeiras fábricas?” (HUBERMAN, 1985, p. 189). É presumível.

O escritor e político britânico Benjamin Disraeli (1804-1881), em 1845, descreve a divisão social causada na Inglaterra, por ocasião da instalação do sistema fabril: “Duas nações; entre as quais não há intercâmbio nem simpatia; que ignoram os hábitos, ideias e sentimentos uma da outra, como se habitassem zonas diferentes, são alimentadas com comida diferente, têm maneiras diferentes, e não são governadas pelas mesmas leis” (DISRAELI apud HUBERMAN, 1985, p. 188).

O desemprego – urge que se destaque – não tomou de assalto apenas os artesãos, mas principalmente os camponeses que, por sua vez, acabaram por se tornar “mendigos, vagabundos, ladrões” (HUBERMAN, 1985, p. 174). Além do fechamento de terras e elevação dos arrendamentos ocorridos no Século XVI, houve um maciço fechamento de terras no Século XVIII e início do Século XIX (HUBERMAN, 1985, p. 167-182). Nesta segunda oportunidade, os fechamentos foram realizados sob o império da lei: “‘Leis de Fechamento’ baixadas por um governo de latifundiários e para os latifundiários eram a ordem do dia. O trabalhador com terra tornou-se o trabalhador sem terra – pronto, portanto, a ir para a indústria como assalariado” (HUBERMAN, 1985, p. 175).

A Revolução Francesa de 1789, por sua vez, através da qual a vitoriosa classe média francesa (burguesia) conquistou a liberdade de mercado (liberalismo econômico), foi o golpe fatal na velha ordem feudal[3] (HUBERMAN, 1985, p. 164). O feudalismo que acabara de ser desmontado opunha, na França, duas classes privilegiadas (clero e nobreza, respectivamente chamadas de Primeiro Estado e Segundo Estado) a uma classe sem privilégios (o povo, chamado de Terceiro Estado). De uma população de 25 milhões de habitantes, o clero e a nobreza contabilizavam cerca de 130.000 e 140.000 membros, respectivamente; o povo, o restante. O Terceiro Estado (quase 99% da população!), por sua vez, era constituído de uma elite econômica (a burguesia), composta de cerca de 250.000 membros, artesãos (2,5 milhões) e uma grande maioria de camponeses (HUBERMAN, 1985, p. 156).

Dos três emblemas do lema da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – obteve-se êxito apenas no tocante ao primeiro, ainda assim, restrito especialmente à classe que tomou o poder. A burguesia – composta de escritores, doutores, professores, advogados, juízes, mercadores, fabricantes, banqueiros, ou seja, as classes educadas e abastadas –, após a conquista da liberdade de mercado[4] e do poder político, conseguiu estender, através do famoso e influente Código Civil de 1804[5], a sua ideologia[6] por toda a França e por todos os países conquistados por Napoleão Bonaparte – cerca de 1/3 de toda a Europa (HUBERMAN, 1985, p. 156-163).

A nova classe social – a burguesia –, além de deter o poder econômico que fomentou a Revolução Industrial, conseguiu desmontar a estrutura política existente no feudalismo, através da Revolução Francesa, e de garantir-se através da proteção legal da propriedade, com liberdade de mercado: estava montada a base sobre a qual se erigiu a imponente estrutura do modo de produção do capital[7].

Por conseguinte, Karl Marx iniciava a sua vida intelectual em um momento histórico no qual a Europa dividia-se, basicamente, em duas peculiares classes sociais dos primórdios do capitalismo: a dos capitalistas (proprietários dos meios de produção) e o proletariado (a dos trabalhadores assalariados, expropriados dos meios de produção). Na primeira metade do Século XIX, este novo modo de produção – que, na transição do feudalismo, tornava mais perceptível as suas premissas – já denunciava os seus perversos corolários, que foram perspicazmente apreendidos pelo jovem filósofo.

Feito este pequeno excurso histórico do tempo no qual viveu Karl Marx, importa perquirir sobre a base filosófica de seu pensamento. Quais foram as suas influências teóricas e seu ponto de partida?

1.2. Fundamentos teóricos do pensamento de Karl Marx: as três fontes

É deveras conhecida, entre os estudiosos do marxismo, a referência precisa, feita pelo líder da Revolução Russa de 1917, Vladimir Ilitch Lenin (1870-1924), em 1913, acerca das três fontes[8] da filosofia marxiana. Eis o texto (“As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo”): “A doutrina de Marx é onipotente porque é exata. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção, integral do mundo, inconciliável com toda a superstição, com toda a reação, com toda a defesa da opressão burguesa. O marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês” (LENIN, 2011)[9].

Por certo que a filosofia alemã aludida não é unívoca[10]. Tal fonte deve ser desdobrada, ao menos, em três referências obrigatórias: o hegelianismo, o neo-hegelianismo (ou esquerda hegeliana) e o materialismo feuerbachiano. O socialismo francês, outrossim, apresentava variegadas perspectivas teóricas. Por sua vez, a economia política inglesa, mais especialmente, apoiava-se sobre as contribuições de Adam Smith, David Ricardo e James Mill.

As três fontes, portanto, se desdobrariam em cinco[11]. Entretanto, é de se notar que a filosofia alemã, ao menos até o início da década de 1840, girava em torno do pensamento de Hegel, razão pela qual esta primeira fonte, ainda que tripartida, deve ser analisada em conjunto.

1.2.1. A filosofia alemã: Hegel, os jovens hegelianos e o materialismo feuerbachiano

A partir de 1831, por ocasião da morte de Hegel, operou-se uma disputa intelectual acerca do legado filosófico do grande filósofo alemão. Os dois lados das trincheiras são bem descritos por Celso Frederico (2009, p. 19):

De um lado, postava-se a ala conservadora, a direita hegeliana, que enfatizava o sistema de Hegel como uma realidade consumada e, através dele, procurava defender a monarquia prussiana. De outro, formou-se a esquerda hegeliana [também chamada de jovens hegelianos ou neo-hegelianos], grupo heterogêneo onde incluía Marx, Engels, Ruge, Feuerbach, Cieszkówski, Hess, Bauer e outros. A esquerda hegeliana rechaçava o sistema filosófico geral de Hegel e apegava-se ao método dialético deixado pelo filósofo. Do método procurava tirar desdobramentos revolucionários para o combate à monarquia prussiana. A esquerda hegeliana recorria ao caráter negativo da dialética para argumentar que o movimento ininterrupto da Ideia nunca cessa e, portanto, em sua marcha ascendente, superaria o presente, negaria o Estado prussiano monárquico, anunciaria novos tempos. (glosa nossa)

Tal dicotomização da filosofia alemã é, em grande parte, resultante da peculiar situação sócio-histórica da Alemanha, no início da década de 1840. Celso Frederico (2010, p. 8-9) assim resume tal momento:

Marx, como os demais intelectuais de sua geração, estava condenado a conviver com uma realidade social retrógrada: enquanto os demais países da Europa viviam os novos tempos inaugurados pela Revolução Francesa de 1789 e pela modernização capitalista, a Alemanha permanecia estagnada no feudalismo e sofrendo o despotismo de uma monarquia que impunha uma feroz censura à imprensa e proibia o debate político. A burguesia era uma classe frágil, incapaz de realizar a sua revolução, e o proletariado, uma classe incipiente, ensaiava seus primeiros movimentos.

Nesta ambiência histórico-cultural germânica (referida por alguns[12] como “miséria alemã”), era inaceitável, especialmente para os jovens hegelianos[13] (entre eles, Marx), a concepção de Estado de Hegel. Partindo do conceito de vontade, Hegel, em seu Princípios da Filosofia do Direito[14], desenvolve, sucessivamente, os três momentos da vida social (família, sociedade civil e Estado político), para concluir, in fine, que o monarca (na monarquia prussiana de então) seria a materialização da vontade universal tornada consciente e racional[15]. É de se dizer: os jovens hegelianos não aceitaram tal suposta racionalidade da realidade estatal prussiana. Na verdade, combateram-na. O próprio Marx (aos 24 anos!), no período entre 11 de outubro de 1842 e 13 de março de 1843[16], atuou como redator-chefe da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung für Politik, Handel und Gewerbe), veículo midiático através do qual lutou contra as arbitrariedades (entre elas, a censura) da monarquia prussiana (Frederico Guilherme IV).

Buscando superar o conformismo dos Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, Marx escreve os Manuscritos de Kreuznach (ou seja, a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel[17]), durante a sua lua-de-mel (na cidade de Kreuznach)[18], em meados de 1843[19], criticando fortemente o texto hegeliano. Trata-se da primeira[20] investida de Marx, de maneira mais direta, para a superação do idealismo hegeliano. Neste manuscrito denso e de difícil leitura, Marx apresenta-se como defensor da democracia direta. Embora esteja inspirado pela filosofia política rousseauniana (como também pela de Maquiavel), Marx irá contraditar Hegel, em grande parte, através do materialismo antropológico feuerbachiano[21].

Sucedem este primeiro escrito marxiano, Para a Questão Judaica[22] (MARX, 2009) e Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução[23] (MARX, 2010), concluídos entre o final de 1843 (já em Paris) e janeiro de 1844 e publicados nos Anais Franco-Alemães (Deutsch-Französische Jahrbücher) – periódico que teve apenas uma única publicação, em Paris, em fevereiro de 1844. Além de tais textos, importa referir mais outro, no qual Marx apresenta uma crítica a Ruge[24], publicado[25] no periódico Avante! (Vorwärts!): Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”. De Um Prussiano[26]. Estes quatro textos referidos formam o ponto de partida da filosofia do jovem Marx; textos cujas concepções filosóficas, embora não tenham sido totalmente abandonadas, serão superadas pelas reflexões de 1844 (com os Manuscritos de Paris – nome pelo qual também são conhecidos os Manuscritos Econômico-Filosóficos[27]) e de 1845-1846 (com A Sagrada Família, as Teses sobre Feuerbach e A Ideologia Alemã).

Na capital francesa, onde passa a residir[28] com sua esposa Jenny[29], a partir de outubro de 1843, Marx aprofunda os seus conhecimentos acerca do socialismo utópico (passando, inclusive, a ter contato com o movimento operário francês) e da economia política.

1.2.2. O socialismo utópico francês e a economia política inglesa

O período em que Marx esteve domiciliado em Paris – de outubro de 1843 a fevereiro de 1845 – é profícuo. Além de terminar A Questão Judaica e de redigir a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução e as Glosas Críticas, Marx elaborou os famosos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que, segundo Singer (2003, p. 41), “constituía a primeira versão de um projeto que iria ocupá-lo, de uma forma ou de outra, pelo resto de sua vida”. Neste período, outrossim, Marx estabeleceu relação com grandes personalidades da época.

Reale e Antiseri (2005, p. 184) informam que, em Paris, “Marx entrou em contato com Proudhon[30] e Blanc[31], encontrou Heine[32] e Bakunin[33] e, sobretudo, conheceu Friedrich Engels, que seria seu amigo e colaborador por toda a vida”[34]. Na verdade, Marx já havia conhecido Engels bem antes, em novembro de 1842, quando este fez uma visita à redação da Gazeta Renana, em Colônia. Entretanto, como informa Konder (1999, p. 38), Marx “não o recebeu com muita cordialidade, pois desconfiava das ligações de Engels com o grupo comunista de Meyen, em Berlim, e não apreciava o referido grupo”. Depois, já em Paris e à frente dos Anais Franco-Alemães, Marx publicou[35] dois artigos de Engels, sendo que, um deles (“Esboço para uma crítica da economia política”), foi considerado pelo próprio Marx, como um “genial esboço” (FREDERICO, 2009, p. 130)[36].

Engels, à época, apontava para o mesmo caminho que Marx, tendo, inclusive, fornecido subsídios para que este construísse a sua crítica à economia política[37]. O segundo encontro[38] entre os dois, depois daquele na redação da Gazeta Renana, em novembro de 1842, ocorreu nos últimos meses de 1844: “Ao longo dos dez dias da estada de Engels, os dois estabeleceram uma relação imediata e profunda que perduraria pelo resto de suas vidas” (STRATHERN, 2006, p. 24). A influência de Engels no pensamento do jovem Marx de 1844 pode ser notada no próprio texto dos Manuscritos de Paris, com referências expressas ao Esboço para uma crítica da economia política[39]. E, para além deste ano, os dois jovens filósofos produzirão, em conjunto, outras obras de maior fôlego, como A Sagrada Família (1845), A Ideologia Alemã (1845-1846) e a grande obra-prima universal: o Manifesto do Partido Comunista (1848).

Antes do segundo encontro com Engels, Marx aprofundou os seus conhecimentos em economia política. Leu Adam Smith e David Ricardo – de ambos os quais extraiu a teoria do valor-trabalho –, James Mill, Jean-Baptiste Say, Sismondi, Proudhon, Wilhelm Schulz, Constantin Pecqueur, Charles Loudon, Eugène Buret, George Ludwig Wilhelm Funke, Frédéric Skarbek, entre outros. Trata-se apenas do início das pesquisas de economia política marxianas.

Finalmente, é imperioso referir o contato com o movimento socialista operário francês[40], cuja “luta política pela transformação da sociedade impressionou-o profundamente” (KONDER, 1999, p. 27-28). Tanto que na Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução, escrita entre o final de 1843 e janeiro de 1844, em Paris, é possível identificar tal sentimento, ao exaltar a força do operariado, intumescido pelas ideias socialistas (ainda que, embora, em vertentes utópicas): “a teoria se transforma em poder material assim que se apodera das massas” (MARX, 2010b, p. 44) e “O cérebro dessa emancipação é a filosofia, o seu coração é o proletariado” (ibid., p. 56).

Como se vê, o período em que Marx reside em Paris foi muito produtivo, devido ao rico caldeirão cultural da cidade, das amplas possibilidades de estabelecimento de contatos intelectuais, da ambiência social-revolucionária, que, além da universalizante Revolução Francesa (1789), detonaria a Revolução de Julho (1830), a chamada Primavera dos Povos (1848) e a Comuna de Paris (1871) – a primeira experiência histórica de uma revolução operária que, tomando o poder, implantou um governo comunista, malgrado a sua efêmera duração de apenas 72 dias[41].

No entanto, a estadia parisiense foi interrompida em fevereiro de 1845, vez que os principais colaboradores do periódico Avante! (Vorwaerts!) – Heine, Bakunin e Marx – foram expulsos por Guizot, ministro do interior da França, que cedeu às pressões do governo prussiano (Frederico Guilherme IV). Assim, “Marx foi obrigado a sair de Paris e a se instalar com sua família em Bruxelas, onde veio a permanecer até 1848” (KONDER, 1999, p. 49). É em Bruxelas que a filosofia marxiana vai produzir a sua revolução copernicana, superando o idealismo alemão, a esquerda hegeliana e a antropologia feuerbachiana, bem como a economia política burguesa, e firmando-se como a melhor vertente do socialismo (o denominado socialismo científico, em oposição ao socialismo utópico das demais vertentes europeias).

Com A Ideologia Alemã – sua última obra propriamente filosófica (COLLIN, 2008, p. 16) –, escrita a quatro mãos com Engels, Marx conseguiu atingir um patamar de autenticidade em sua filosofia, desgarrando-se do idealismo alemão e do materialismo feuerbachiano, e ter uma inédita compreensão da sociedade capitalista (objeto precípuo de suas investigações) – e do homem, neste contexto histórico (do modo de produção do capital), que é o que nos interessa –, que irá conduzir aos seus desenvolvimentos ulteriores, até o ápice de seu pensamento, com O Capital.

Sobre o autor
Rony Emerson Ayres Aguirra Zanini

Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho. Especialista em Direito Público. Bacharel em Filosofia. Advogado Trabalhista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANINI, Rony Emerson Ayres Aguirra. O conceito de homem no jovem Marx (1843-1846). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3518, 17 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23737. Acesso em: 23 dez. 2024.

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