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O tratamento jurídico-penal conferido aos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro

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Agenda 31/03/2013 às 14:51

O tratamento jurídico conferido aos índios, sobretudo penal, não pode ignorar as diversidades culturais, equiparando-os indistintamente aos “civilizados” e presumindo a culpabilidade, mas depende de uma análise contextualizada e casuística, em respeito às peculiaridades, constitucionalmente protegidas, de cada povo e de cada indivíduo da tribo.

Resumo: O presente trabalho, sem a pretensão de esgotar a temática, trata de estudo mais detalhado sobre o tratamento jurídico-penal conferido aos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro, analisando-o sob a ótica da proteção nacional e internacional à diversidade e às manifestações culturais preconizada pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação internacional incorporada.

Palavras-chave: Indígenas. Tratamento Jurídico-Penal. Estatuto do Índio. Exame criminológico.

Sumário: 1. Introdução. 2. A Evolução da Proteção Conferida aos Indígenas. 3. O Tratamento Jurídico-Penal. 3.1 Critério adotado para a culpabilidade e atenuante. 3.2 O Exame Antropológico nos Processos Criminais. 3.3 Regime diferenciado de cumprimento de pena. 3.4. Projeto de Lei nº 2057/91. 4. Conclusão.


1. Introdução

A origem do termo “índio” remonta, na verdade, ao desembarque dos europeus na América, os quais, consoante as pesquisas históricas, pensavam ter chegado às Índias, atribuindo esse gentílico a seus habitantes.

Os índios são, conforme conceituação de Darcy Ribeiro:

“(...) aquela parcela da população brasileira que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Ou, ainda mais amplamente: índio é todo o indivíduo reconhecido como membro por uma comunidade pré-colombiana que se identifica etnicamente diversa da nacional e é considerada indígena pela população brasileira com quem está em contato”.[1]

Tal conceito é consentâneo com a definição adotada pela Lei 6.001/1973, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, em seu artigo 3º, verbis:

Art. 3º Para os efeitos dessa lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas:

I – Índio ou Silvícola – É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional.

II – Comunidade Indígena ou Grupo Tribal – É um conjunto de famílias ou comunidades índias, quer vivendo em estado completo de isolamento em relação aos outros setores da comunhão nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem contudo estarem nele integrados.

Desse modo, considerando os textos supramencionados, tem-se que o critério da auto-identificação é o critério base para se determinar a etnia indígena. Associado a este, há também o critério do reconhecimento do indígena por parte do seu povo, ou seja, além de se auto-reconhecer, é preciso que ele seja aceito como membro pelos demais integrantes.

Embora correto pareça o emprego do termo “indígena” – literalmente significando aquele que é originário do lugar - a nomenclatura “índio” é utilizada na legislação vigente e no cotidiano popular, ratificando um generalismo exacerbado, porquanto se ignoram a heterogeneidade dos povos, suas diferenças lingüísticas e culturais.

De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio - FUNAI[2], vivem hoje no Brasil cerca de 460 mil índios, os quais se dividem em 215 sociedades indígenas, sendo mais de 55 grupos de índios isolados, sobre os quais ainda não há informações objetivas. Decorrente disso, cerca de 180 línguas são faladas pelos membros destas sociedades, as quais pertencem a mais de 30 famílias lingüísticas diferentes.

Para a FUNAI, a língua se apresenta como o meio básico de organização da experiência e do conhecimento humanos, pois quando se fala em língua, se fala em cultura e história de um povo. Costuma-se observar, assim, inicialmente, o menor ou o maior grau de integração de um grupo indígena à sociedade brasileira segundo menor ou maior seja o domínio do português pelos seus membros.

Cite-se o exemplo da tribo Cinta-Larga no Estado de Rondônia, que, apesar de conservar alguns de seus costumes originários, como por exemplo, os rituais de cura e a poligamia, suas lideranças e boa parte dos indígenas já se encontram acostumados a todos os aspectos da vida na sociedade moderna, com residência fora da aldeia e plena fluência na língua nacional, em virtude do aculturamento forçado que a situação do garimpo ilegal de diamantes, bem como da extração de madeira nas áreas das reservas gerou.

Não obstante, ainda que o decorrer dos anos e o compartilhamento de informações com os “brancos” tenham propiciado um maior conhecimento das normas na vida fora da aldeia, é inegável a permanência de uma situação de hipossuficiência, alimentada, sobretudo, por comportamentos discriminatórios que partem da sociedade em geral.

Observando os aspectos culturais dos indígenas, Guilherme Madi Rezende:

“Também as relações intrafamiliares dos povos indígenas são bastante diferentes das da sociedade não indígena. Inúmeros relatos dão conta de que a monogamia não é o regime familiar adotado em grande parte dos casos. Mesmo quando este é o regime adotado não há, ou há poucos, empecilhos a separações e novos casamentos. A criação dos filhos em muitos casos não é tarefa exclusiva dos pais, mas de todo o povo.

A relação dos povos indígenas com o sobrenatural, com os mitos e tabus, os seus rituais, seu modo de vestir, de se pintar, de se alimentar, de curar as doenças, são marcantemente diferentes das sociedades não indígenas e denotam uma outra forma de compreender o mundo”.[3]

Pode-se dizer, de início, que os indígenas possuem traços que os distinguem entre si, pois, como visto, cada povo é uma cultura, e também diversas características que os distinguem da sociedade não-índígena.

Nos dias de hoje, verifica-se, como se verá adiante, o abandono da política, outrora adotada, de integração forçada dos indígenas à comunhão nacional, passando-se à preservação e à promoção das diferenças, culturas e práticas tradicionais.

Nessa esteira, como se pretende demonstrar neste trabalho, o tratamento jurídico conferido a eles, sobretudo o tratamento jurídico-penal, não pode simplesmente ignorar as diversidades culturais, equiparando-os indistintamente aos “civilizados” e presumindo a culpabilidade, mas depende de uma análise contextualizada e casuística, em respeito às peculiaridades, constitucionalmente protegidas, de cada povo e de cada indivíduo da tribo.


2. A Evolução da Proteção Conferida aos Indígenas

De início, cabe esclarecer que todas as Constituições brasileiras anteriores à atual, apesar de não exemplificarem os direitos indígenas, regulando-os em artigos esparsos, se encaminharam na esteira do pensamento integracionista, visando à paulatina adesão dos índios à comunhão nacional.

Na legislação infraconstitucional, o Código Civil de 1916 considerava o indígena como relativamente incapaz, dispondo artigo 6º, parágrafo único, que “os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em lei e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país”.

Do mesmo modo, publicada sob a égide da Constituição de 1969, a Lei 6.001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio, já em seu artigo 1º demonstra a política adotada:

Art. 1º Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional.

Mais adiante, em seu artigo 4º, prevê a divisão dos índios em isolados, em vias de integração e integrados, nos seguintes termos:

Art. 4º Os índios são considerados:

I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;

II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;

III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.

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Assim, de acordo com o princípio integracionista, os índios, obrigatoriamente, partiriam de um estado primitivo, porquanto estariam em um estágio menos adiantado na comunidade nacional, para um processo de evolução, cabendo ao Estado assegurar sua integração total à sociedade não-indígena para possibilitar-lhes o desenvolvimento.

Como bem explica Edilson Vitorelli Diniz Lima:

“Na ótica do princípio integracionista, a cultura nacional deve ser obrigatoriamente homogênea, não devendo coexistir no território brasileiro diferentes organizações sociais, culturais, tradições e línguas, e o meio para alcançar este ideal é a assimilação “harmoniosa” dos povos indígenas (“minorias menos desenvolvidas”) à cultura nacional (sociedade não-índia)”[4]

Mudando de paradigma, a Constituição Federal de 1988 dedica capítulo inteiro às disposições sobre os índios e populações indígenas, estabelecendo no artigo 231, norma base dos direitos indígenas, o seguinte:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Nas palavras de Luiz Felipe Bruno Lobo, com a promulgação da Magna Carta de 1988, o direito consuetudinário indígena viu-se reconhecido em sua plenitude, porque, como elemento integrante da cultura e da organização social das comunidades tribais, é parte indispensável, está protegido e garantida sua aplicação.[5]

Na seara internacional, o Brasil ratificou, em 2002, por meio do Decreto Legislativo nº 143, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais, a qual, entre outras normas, dispõe, em seu art. 8º, que “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário”.

Semelhantemente, em 2006 foi aprovada a Declaração das Nações Unidas Sobre os Direitos dos Povos Indígenas, reconhecendo, no artigo 9º, que “os povos e indivíduos indígenas têm o direito de pertencerem a uma comunidade ou nação indígena, em conformidade com as tradições e costumes da comunidade ou nação em questão e que nenhum tipo de discriminação poderá resultar do exercício desse direito”.

Sobre a Convenção 169, Dalmo de Abreu Dallari discorre:

“Um ponto inovador, de profunda significação foi o reconhecimento dos elementos culturais como essenciais na identificação do índio, na preservação de sua dignidade e até mesmo na garantia de sua sobrevivência. Ficou muito claro, na Convenção 169, que o índio, como ser humano, deve ter os mesmos direitos conferidos e assegurados a todos os demais indivíduos, sem qualquer discriminação. Foi enfatizada, também, a necessidade de proteger de modo especial os direitos dos índios e de suas comunidades, sem que para receber essa proteção o índio seja obrigado a abrir mão de direitos ou a se colocar como pessoa de qualidade inferior. A rigor pode-se dizer que essa nova Convenção não criou direitos novos, mas sem dúvida tornou mais precisos os direitos anteriormente reconhecidos e foi mais minuciosa quanto à obrigações dos Estados em relação aos índios. Não há impropriedade em afirmar que a Convenção nº 169 representa para a Convenção nº 107 o mesmo que os Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, representam para a Declaração Universal de Direitos aprovada pela ONU em 1966. Não há mudança essencial, mas o novo tratamento dado aos direitos e suas garantias significa um passo importante no sentido da modernização e da efetividade." [6]

Cumpre ressaltar que a mudança de paradigma constitucional reflete-se também nas práticas adotadas pelo órgão tutelar dos indígenas, qual seja, a Fundação Nacional do Índio, instituída pela Lei 5.371/67, no tocante aos índios isolados. Abandona-se a necessidade do contato, para a vigilância e fiscalização ostensivas, que contam, inclusive, com o auxilio dos indígenas já contatados, com o escopo de preservar as manifestações culturais genuínas.

Observa-se, pois bem, diferença significativa entre a conduta do legislador anterior à Constituição Federal e do constituinte da atual Carta Magna, justamente porque não mais impera a integração progressiva preconizada pelo vetusto Estatuto do Índio, que se remete à ideia de inferioridade étnica. Simplesmente propaga-se o respeito, a tolerância e o fomento a uma maneira de viver própria – e ao mesmo tempo diversa em cada grupo tribal - ainda que para isso não haja qualquer ingerência na organização social da tribo, mantendo os indígenas afastados da sociedade envolvente, como ocorre no caso dos índios isolados.


3. O Tratamento Jurídico-Penal

Em que pese a nova ordem constitucional adotada, o tratamento jurídico-penal conferido aos índios continua seguindo o anacrônico Estatuto do Índio. Cumpre analisar algumas importantes disposições do Estatuto que singularizam a aplicação do direito penal ao agente indígena.

3.1 Critério adotado para a culpabilidade e atenuante

No Estatuto do Índio a questão da culpabilidade é resumida ao critério da inimputabilidade, à luz da divisão já ultrapassada entre índios isolados, integrados e em vias de integração.

De acordo com o artigo 56, do referido estatuto, “nos casos de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola”.

Assim, pode-se ter em conclusão que são inimputáveis os índios isolados, imputáveis os integrados, e a depender de exame – o exame antropológico - ficará a culpabilidade dos índios em via de integração, os quais, na maioria dos casos, apresentam-se como semi-imputáveis.

A redução da pena trazida pela Lei 6.001/73, então, seria aplicada, a depender do grau de integração do indígena, subsidiariamente à diminuição presente na hipótese de culpabilidade reduzida, trazida pelo artigo 26, parágrafo único, do Código Penal:

Art. 26. (...)

Parágrafo único. A pena pode ser reduzida de um terço a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Há vozes na doutrina que defendem a obrigatoriedade da aplicação da atenuante trazida pelo Estatuto do Índio nos casos dos índios que cometem crimes, sendo a questão do grau de integração, que seria, na verdade, uma maior ou menor compreensão da cultura circundante, considerada apenas para graduar a atenuante e não para servir como argumento para deixar de aplicá-la.[7]

No tocante à culpabilidade, expoente da doutrina atual, Guilherme de Souza Nucci cita o exemplo dos indígenas para ilustrar hipóteses de semi-imputabilidade:

“O desenvolvimento mental incompleto ou retardado consiste numa limitada capacidade de compreensão do ilícito ou da falta de condições de se autodeterminar, conforme o precário entendimento, tendo em vista ainda não ter o agente atingido a sua maturidade intelectual e física, seja por conta da idade, seja porque apresenta alguma característica particular, como o silvícola não civilizado ou o surdo sem capacidade de comunicação”.[8]

Do mesmo modo, a jurisprudência tem encaminhado a questão da culpabilidade dos índios à discussão sobre a imputabilidade, consoante seu desenvolvimento mental. Veja-se decisão da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

CRIMINAL. HC. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PORTE ILEGAL DE ARMA. ÍNDIO. NULIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. FALTA DE PERÍCIA ANTROPOLÓGICA. DISPENSABILIDADE. RÉU INDÍGENA INTEGRADO À SOCIEDADE. PLEITO DE CONCESSÃO DO REGIME DE SEMILIBERDADE. ART. 56, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI N.º 6.001/73. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO POR CRIME HEDIONDO. ORDEM DENEGADA.

Hipótese em que o paciente, índio Guajajara, foi condenado, juntamente com outros três co-réus, pela prática de tráfico ilícito de entorpecentes, em associação, e porte ilegal de arma de fogo, pois mantinha plantio de maconha na reserva indígena Piçarra Preta, do qual era morador.II. Não é indispensável a realização de perícia antropológica, se evidenciado que o paciente, não obstante ser índio, está integrado à sociedade e aos costumes da civilização.

III. Se os elementos dos autos são suficientes para afastar quaisquer dúvidas a respeito da inimputabilidade do paciente, tais como a fluência na língua portuguesa, certo grau de escolaridade, habilidade para conduzir motocicleta e desenvoltura para a prática criminosa, como a participação em reuniões de traficantes, não há que se falar em cerceamento de defesa decorrente da falta de laudo antropológico.

IV. Precedentes do STJ e do STF.

V. Para a aplicação do art. 56, parágrafo único, da Lei n.º 6.001/76, o qual se destina à proteção dos silvícolas, é necessária a verificação do grau de integração do índio à comunhão nacional.

VI. Evidenciado, no caso dos autos, que paciente encontra-se integrado à sociedade, não há que se falar na concessão do regime especial de semiliberdade previsto no Estatuto do Índio, o qual é inaplicável, inclusive, aos condenados pela prática de crime hediondo ou equiparado, como ocorrido in casu. Precedentes.

VII. Ordem denegada.[9]

Diante do que se observa na prática jurídica, há de se ressaltar que a mudança na legislação indigenista ainda não rompeu totalmente com o chamado paradigma integracionista, nem modificou por completo a mentalidade dos operadores do Direito, que terminam por utilizar imoderadamente o critério da integração, devendo esta ocorrer para os índios, segundo crítica de Carlos Frederico Marés de Souza Filho “num futuro próximo, quando encontrarem a alegria de viver na pacífica, doce, justa e humana sociedade dos civilizados, e então o direito penal ser-lhes-á aplicado em plenitude”.[10]

3.2 O Exame Antropológico nos Processos Criminais

Um instrumento importante para a individualização da pena do agente indígena é o exame antropológico. Atualmente esta prova pericial é realizada nos moldes das políticas adotadas pelas Cartas anteriores, para se verificar a identidade étnica e se auferir o grau de integração e assimilação do agente aos costumes da sociedade, o que pode interferir em sua capacidade genérica de querer e agir.

Assim, dependendo do laudo, o indígena pode ser considerado imputável, semi-imputável ou inimputável. Se for considerado imputável, o Estatuto do Índio, ainda assim, determina a atenuação da pena com fulcro em seu artigo 56. 

De acordo com entendimento jurisprudencial dominante, o exame pode ser dispensado pelo juiz se os elementos constantes nos autos - fluência na língua portuguesa, alfabetização, juntamente com outros elementos - bastarem para demonstrar que o indígena interage plena e autonomamente com os “brancos”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal coaduna com esse posicionamento:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CRIMES DE TRÁFICO DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO E PORTE ILEGAL DE ARMA PRATICADOS POR ÍNDIO. LAUDO ANTROPOLÓGICO. DESNECESSIDADE. ATENUAÇÃO DA PENA E REGIME DE SEMILIBERDADE.

1.      Índio condenado pelos crimes de tráfico de entorpecentes, associação para o tráfico e porte ilegal de arma de fogo. É dispensável o exame antropológico destinado a aferir o grau de integração do paciente na sociedade se o Juiz afirma sua imputabilidade plena com fundamento na avaliação do grau de escolaridade, da fluência na língua portuguesa e do nível de liderança exercida na quadrilha, entre outros elementos de convicção. Precedente.

2.      Atenuação da pena (artigo 56 do Estatuto do Índio). Pretensão atendida na sentença. Prejudicialidade.

3.      Regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do artigo 56 da Lei n. 6.001/73. Direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena.

Ordem concedida, em parte.[11]

Diante da mudança dos valores da sociedade contemporânea levada a efeito pela nova diretriz constitucional, o exame antropológico não pode mais inquirir a imputabilidade do indígena e sim deverá verificar se estão presentes os demais elementos da culpabilidade, capazes de gerar a reprovação sobre o agente em razão do ilícito praticado, quais sejam, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.

Ilustrativamente, cumpre apontar laudo antropológico elaborado no interesse da Ação Penal Pública nº 000.5381-95.2008.4.03.6108, consoante quesitos elaborados pelos Procuradores da República do Ministério Público Federal no município de Bauru, com o escopo de verificar a presença dos dois elementos mencionados supra: 

QUESITO 1 - SE A AÇÃO DELES [ANILDO LULU E PAULO ROBERTO SEBASTIÃO] CONDIZIA COM OS VALORES E OS COSTUMES DA TRIBO.

QUESITO 2 - SE [ANILDO LULU E PAULO ROBERTO SEBASTIÃO] TINHAM COMPREENSÃO DO IDIOMA OFICIAL, USOS E COSTUMES DA SOCIEDADE PREDOMINANTE.

QUESITO 3 - SE NA DATA DOS FATOS [ANILDO LULU E PAULO ROBERTO SEBASTIÃO] TINHAM CONDIÇÕES DE COMPREENDER O CARÁTER ILÍCITO DA CONDUTA.

QUESITO 4 - SE ERA RAZOÁVEL EXIGIR-LHES [DE ANILDO LULU E PAULO ROBERTO SEBASTIÃO] UM COMPORTAMENTO DIFERENTE, ANTE SEUS CONDICIONAMENTOS CULTURAIS.

QUESITO 5 - SE HOJE [ANILDO LULU E PAULO ROBERTO SEBASTIÃO] POSSUEM CONDIÇÕES DE COMPREENDER O CARÁTER ILÍCITO DA AÇÃO E DE DETERMINAR-SE CONFORME ESSE ENTENDIMENTO.[12]

Destarte, o exame antropológico, apesar de não obrigatório, conforme entendimento predominante nos tribunais, é um meio indispensável à promoção do princípio da igualdade material e à averiguação da hipossuficiência dos silvícolas e deve ser realizado sempre não exista completa certeza da culpabilidade do agente indígena.

Em verdade, a obrigatoriedade do laudo antropológico se impõe, pois, como bem explica Edilson Vitorelli:

“(...) cada caso concreto deveria ser analisado à luz da história, costume, língua e tradições da respectiva etnia, em atenção à norma constitucional que garante aos índios ´sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições...´, pelo que a ausência de laudo antropológico imporia a nulidade absoluta ao processo penal”[13]

Assim, aspectos externos como grau de escolaridade, título de eleitor, entendimento do idioma oficial, etc, seriam métodos que privilegiam a verdade formal em detrimento da vontade real, incapazes de auferir, com plenitude, as peculiaridades das diversas etnias.[14]

Por fim, deve se ter em mente que o exame antropológico não pode, como tem sido até hoje, ser tratado como sucedâneo de exame de insanidade de mental, porquanto não é feito por médicos da área de saúde e tampouco busca encontrar alguma doença mental que torne o indígena incapaz de compreensão e ação, mas algum elemento étnico, histórico ou cultural que impeça seu comportamento consoante os ditames da sociedade, seja por desconhecimento, seja por obediência às tradições.

3.3 Regime diferenciado de cumprimento de pena

O parágrafo único do artigo 56, do Estatuto do Índio, traz regras relativas ao cumprimento da pena, estabelecendo que “As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado”.

Cumpre esclarecer que não pode ser dada ao referido dispositivo a interpretação segundo a qual o cumprimento da pena deve se dar dentro dos estabelecimentos do órgão indigenista, o qual não é substitutivo de recinto prisional, mas que o regime de semiliberdade seria cumprido na comunidade mais próxima à FUNAI, como modo de preservar, mesmo no cumprimento da pena, o estilo de vida e as manifestações culturais indígenas.

Trata-se de aplicar a previsão da Convenção 169 da OIT sobre a individualização da pena, a qual prevê em seu artigo 10 que: “No processo de impor sanções penais previstas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração” e “Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento”.

Ainda há dúvidas sobre a aplicação do referido dispositivo. O Supremo Tribunal Federal, no HC 85.198-3 entendeu que “o regime de semiliberdade previsto no parágrafo único do art. 56 da Lei 6.001/73. Direito conferido pela simples condição de se tratar de indígena”.[15]

O regime de semiliberdade ainda vem sendo aplicado pelos tribunais pátrios a depender do grau de integração do indígena e, por vezes, de acordo com o delito praticado. Ilustrativamente, o recente julgado:

PENAL – HABEAS CORPUS – LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE – PACIENTE QUE É ÍNDIO JÁ INTEGRADO À SOCIEDADE – POSSUI TÍTULO DE ELEITOR – INAPLICABILIDADE DO ESTATUTO DO ÍNDIO – IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO DA PENA NO REGIME DE SEMILIBERDADE – ANÁLISE DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS EM QUE FOI ACENTUADA A CENSURABILIDADE DA CONDUTA – REGIME INICIALMENTE FECHADO DEVIDAMENTE JUSTIFICADO – ORDEM DENEGADA. 1. O Estatuto do Índio só é aplicável ao indígena que ainda não se encontra integrado à comunhão e cultura nacional. 2. O indígena que está em pleno gozo de seus direitos civis, inclusive possuindo título de eleitor, está devidamente integrado à sociedade brasileira, logo, está sujeito às mesmas leis que são impostas aos demais cidadãos nascidos no Brasil. 3. O regime desemiliberdade não é aplicável ao indígena integrado à cultura brasileira. 4. O estabelecimento do regime inicial de cumprimento da pena deve observar não só o quantitativo da pena, porém a análise de todas as circunstâncias judiciais, considerada, ainda, eventual reincidência. 5. Se foi feito contra a conduta do réu rigorosa censurabilidade, justificado está o regime inicialmente fechado, necessário para reprovação do crime e ressocialização do apenado. 6. Ordem denegada.[16]

Em verdade, este tipo de regime deve ser aplicado sempre que haja necessidade de se manter o agente indígena em contato com a sua cultura, excepcionados os casos de indígenas residentes na cidade.

3.4. Projeto de Lei nº 2057/91

Cumpre destacar que está em tramitação na Câmara dos Deputados, desde o ano de 1991, o Projeto de Lei 2.057, de autoria do deputado Aloizio Mercadante, que dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas.

No referido projeto, que tem por escopo substituir o Estatuto do Índio, observa-se a mudança na política sobre os direitos indígenas, porquanto já em seus primeiros dispositivos demonstra-se uma preocupação com a manutenção da organização própria da sociedade indígena.

Cite-se como exemplo, o artigo 6º, o qual, em sua redação original, estabelece que “as relações internas a uma sociedade indígena serão reguladas por seus usos, costumes e tradições”.

Ademais, o artigo seguinte promove o abandono do paradigma da integração, dispondo no caput que “constatada a existência dos índios isolados, o Poder Público Federal promoverá a interdição da área para garantir a integridade física e cultural da sociedade indígena, garantido o direito de permanecerem como tais” e no parágrafo único que “incorrerá em crime de responsabilidade a autoridade pública que promover ou autorizar o contato forçado”.

No tocante ao tratamento jurídico-penal do índio, o Estatuto das Sociedades Indígenas deu grande avanço, ao adotar expressamente o critério do erro de proibição e não mais o da inimputabilidade para a definição da culpabilidade dos indígenas. Assim, de acordo com o artigo 90:

Art. 90 – Nos processos criminais contra índios, o juiz ordenará a realização de perícia antropológica, que determinará o grau de consciência da ilicitude do ato praticado, para efeito da aplicação do disposto no Artigo 21 do Código Penal.

A justificativa do projeto esclarece a intenção do legislador, verbis:

“O projeto estabelece garantias que visam substituir o regime tutelar contido no antigo Estatuto do Índio. No decorrer de sua equivocada aplicação pelo órgão indigenista, a tutela deixou de ser um mecanismo de proteção para se transformar em um instrumento de opressão às sociedades. A nova concepção constitucional supera totalmente o entendimento de que os índios são relativamente incapazes para a realização de atos da vida civil. No entanto, face à reconhecida diversidade cultural, exige que seja dada proteção especial aos seus direitos, sem que esta proteção implique limitações à sua livre manifestação de vontade e exercício de seus direitos”.[17]

Diversos substitutivos foram apresentados à redação original do Projeto de Lei nº 2.057/1991. O relator do projeto, o deputado Luciano Pizzatto, ofereceu parecer favorável, entendendo pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa e no mérito, pela aprovação com substitutivos. No parecer expõe sobre a nova ordem constitucional vigente, nos seguintes termos:

“A Constituição de 1988 suprimiu o caráter integracionista da legislação e, por conseqüência, da própria política indigenista oficial, antecipando-se à evolução de conceitos consubstanciada, quase um ano depois, na nova Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Povos Indígenas e Tribais dos Países Independentes. O objetivo de incorporar os índios cedeu lugar ao de garantir o respeito por suas formas culturais próprias, entendendo-se e assumindo que a diversidade cultural protagonizada pelas sociedades indígenas é um dos patrimônios mais significativos legados ao país”.[18]

Felizmente, no que concerne às normas penais que tratam da falta de consciência da ilicitude, o substitutivo adotado pela comissão elaboradora manteve a redação original do dispositivo, esclarecendo ainda mais a adoção da excludente de culpabilidade do erro de proibição culturalmente condicionado, em substituição ao critério da imputabilidade, ao estabelecer, no artigo 152, que “não há crime se o agente indígena pratica o fato sem consciência do caráter delituoso de sua conduta, em razão dos valores culturais de seu povo”.

O Estatuto das Sociedades Indígenas caminha em passos lentos. Contudo, lograda a aprovação no Congresso Nacional passar-se-á de um tratamento que parte do pressuposto da inferioridade do indígena para o completo respeito à diversidade cultural.

Sobre a autora
Marcela Baudel de Castro

Procuradora Federal. Pós-graduada em Ciências Penais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Marcela Baudel. O tratamento jurídico-penal conferido aos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3560, 31 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24072. Acesso em: 27 dez. 2024.

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