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Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls

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3 Novo liberalismo: John Rawls

Ao refletir sobre a vida em sociedade, John Rawls identifica que ela é marcada por identidade de interesses. Para ele, “uma sociedade é uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que em suas relações mútuas reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 1971/2002, p. 4). Entretanto, nessa sociedade podem existir conflitos de interesses, pois “para perseguir seus fins cada um prefere uma participação maior a uma menor”. (RAWLS, 1971/2002, p. 5).

A partir da relação entre os conflitos de bem e as identidades de interesse, o pensador elabora sua teoria centrado na construção de princípios que visam dividir vantagens e selar acordos sobre as partes distributivas de forma justa. É possível identificar, desde o princípio de sua obra, que o pensador preocupa-se essencialmente com a prevalência de uma situação socialmente justa, já que

A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições, por mais eficientes e bem organizadas que sejam, devem ser reformadas ou abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não se permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais. A única coisa que nos permite aceitar uma teoria errônea é a falta de uma teoria melhor; de forma análoga, uma injustiça é tolerável somente quando é necessária para evitar uma injustiça ainda maior. Sendo virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça são indisponíveis. (RAWLS, 1971/2002, p. 03).

A partir da concepção de justiça como indispensável para a vida em sociedade, Rawls institui os princípios da justiça social que tornam possível a ordenação social. Esses princípios “fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e definem a distribuição apropriada dos benefícios e encargos da cooperação social” (RAWLS, 1971/2002, p. 5).

Para a elaboração desses princípios, Rawls parte de uma posição hipotética original, e não de uma situação histórica ou cultural primitiva, onde os cidadãos são considerados livres e iguais. Para o autor, “entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes”. (RAWLS, 1971/2002, p. 13).

Nessa posição original, há um procedimento de representação, em que decisões são realizadas através de um acordo que permita oferecer condições justas para todos. Rawls propõe um mecanismo que visa evitar influências na posição original, para que não ocorra distorção nos resultados distributivos.

A idéia da posição original é estabelecer um processo eqüitativo, de modo que quaisquer princípios aceitos sejam justos. O objetivo é usar a noção de justiça procedimental pura como fundamento da teoria. De algum modo, devemos anular os efeitos das contingências especificas que colocam os homens em posições de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias naturais e sociais em seu próprio benefício. Com esse propósito, assume que as partes se situam atrás de um véu de ignorância. Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas considerações gerais. (RAWLS, 1971/2000, p. 146-7).

O “véu da ignorância” constitui-se, portanto, em um estratagema que permite a escolha de instituições justas, “uma vez que ignoraria interesses pessoais ou egoísticos, promovendo assim uma sociedade guiada por uma concepção de justiça apta a ser aceita por todos os membros da mesma” (LOIS, 2001, p. 171). O véu de ignorância é, na concepção rawlsiana, “uma condição essencial de satisfação dessa exigência”. (RAWLS, 1971/2002, p. 149).

Rawls descreve princípios que possam ser usados para definir uma sociedade justa, a partir dessa situação hipotética, quais sejam a liberdade e a eqüidade (subdivide em igualdade e diferença). Esses dois princípios de justiça, sobre os quais ele acredita que “haveria um consenso na posição original” (RAWLS, 1971/2002, p. 64), defendeu – com leves variações de formulação – até seu último livro “Justiça como Eqüidade: uma reformulação”, publicado em 2001.

Seguindo a versão original, o primeiro princípio consiste em “cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos”. (RAWLS, 1971/2002, p. 275). Esse princípio – da liberdade – devido à ordem lexical de sua disposição (regra de prioridade), só pode ser restringido pela própria liberdade. Essa restrição, para o autor, só pode ocorrer em dois casos: “a) uma redução da liberdade deve reforçar o sistema total de liberdades partilhadas por todos, e b) uma liberdade menor deve ser considerada aceitável para aqueles cidadãos com a liberdade menor” (RAWLS, 1971/2002, p. 275).

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 O segundo princípio dispõe que as desigualdades econômicas e sociais devem ser estruturadas de tal modo que (i) primeiro, estejam vinculadas a cargos e funções abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidades, (ii) segundo, redundem no maior benefício aos mais desfavorecidos. Assim, conforme refere Kervegan (1989), no entendimento rawlsiano “não é justo favorecer a redução das desigualdades em detrimento da igualdade de oportunidades, o que seria o caso, por exemplo, se determinadas posições estivessem reservadas ou fossem atribuídas como prioridade a grupos ou indivíduos considerados favorecidos” (p. 36).

A escolha desses princípios (bem como o estabelecimento da prioridade das liberdades básicas) se dá através do método do “equilíbrio reflexivo”, o qual é uma modalidade mais complexa que a mera intuição. Segundo Vita (1993), tal equilíbrio deve ser entendido como “a melhor aproximação possível da verdade na teoria ética, dada as convicções morais refletidas que afirmamos e as concepções de justiça (e argumentos filosóficos para justificá-las) de que dispomos no momento”. O equilíbrio reflexivo, portanto, seria um ponto harmonioso, um produto de um acordo de seres razoáveis.

A escolha desses princípios permite a construção, para Rawls, de uma sociedade bem organizada, já que ela teria como pressuposto básico uma concepção pública de justiça. Portanto, uma sociedade bem ordenada é “aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça”.(RAWLS, 1971/2002, p. 504). Trata-se, dessa forma, “de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmo princípios da justiça, e cujas instituições sociais básicas satisfazem esses princípios, sendo esse fato publicamente reconhecido”. (RAWLS, 1971/2002, p. 504).

Na obra “O Liberalismo Político”, Rawls apresenta algumas modificações em relação a seu primeiro livro publicado “Uma Teoria da Justiça”. Como ele bem apresenta na “Introdução”, escrita em 1992, com estas reformulações ele objetivou eliminar algumas incoerências, as quais dizem respeito à “idéia pouco realista de ‘sociedade bem-ordenada’, tal como aparece em Teoria”. (RAWLS, 1993/2000, p. 24). Essa mudança se refere à adoção da “doutrina filosófica abrangente”:

O liberalismo político pressupõe que, para propósitos políticos, uma pluralidade de doutrinas abrangentes e razoáveis, e ainda assim, incompatíveis, seja o resultado normal do exercício da razão humana dentro da estrutura das instituições livres de um regime democrático constitucional. O liberalismo político pressupõe também que uma doutrina abrangente e razoável não rejeita os princípios fundamentais de um regime democrático. É claro que uma sociedade também pode conter doutrinas abrangentes pouco razoáveis, irracionais, ou até mesmo absurdas. Nesses casos, o problema é administra-las de forma a não permitir que solapem a unidade e a justiça da sociedade. (RAWLS, 1993/2000, p. 24)

Com essa mudança, Rawls (1993/2000) define que seu projeto político consiste em compreender “como é possível existir, ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, embora incompatíveis” (p. 25). Essa situação demonstra a existência de um pluralismo de doutrinas razoáveis, o qual, para o autor, é “característica da cultura de um regime democrático livre” (RAWLS, 1993/2000, p. 25).

Essas diversas doutrinas abrangentes englobam os aspectos da vida humana e constituem a vida diária (background culture). Para Rawls (1993/2000), o liberalismo político não pode limitar quais as doutrinas podem ser consideradas razoáveis, já que “as pessoas razoáveis vêem que os limites do juízo colocam restrições àquilo que pode ser razoavelmente justificado perante os outros e, por isso, endossam alguma forma de liberdade e consciência e autonomia de pensamento.” (p. 105). Assim, não seria razoável utilizar do poder político “para reprimir visões abrangentes que não deixam de ser razoáveis.” (RAWLS, 1993/2000, p. 105)

Lois (2001) refere que as doutrinas abrangentes para o liberalismo rawlsiano, portanto, “seriam o resultado inevitável do funcionamento de instituições livres e do uso pleno da razão” (p. 230). Por isso, “as doutrinas abrangentes ou compreensivas são aquelas de caráter moral, filosófico e religioso que compõem a totalidade da cultura social, distinta da cultura política que subscreve uma determinada crença” (LOIS, 2001, p. 231)

Rawls (1993/2000) considera que essas doutrinas abrangentes dificilmente são compatíveis entre si. Em outros termos, elas geralmente buscam uma sobreposição de uma pela outra, afetando de sobremaneira a estabilidade. Por esse motivo, o autor considera ser impossível às doutrinas abrangentes configurarem como base das instituições sociais, já que para um regime democrático a base da unidade deve sair de outros elementos.

Assim, “as características necessárias para compor tal pauta de estabilidade seriam, segundo o autor, os traços políticos comuns presentes numa sociedade democrática que, por estarem associados a uma tradição democrática, devem ser reconhecidos por todos os seus membros como fundamentais e fundantes” (LOIS, 2001, p. 234). Essa concepção política de Rawls conteria três elementos centrais: o sujeito, que consistiria na estrutura básica da sociedade; a formulação, que se faz através de um ponto de vista livre (freestanding view); e as idéias fundamentais, que estão implícitas na cultura política de uma sociedade democrática.

O pluralismo de doutrinas abrangentes, para o filósofo, condiciona os princípios que devem regular o funcionamento das instituições fundamentais da sociedade, mas, como já se explicitou, Rawls considera ser impossível às doutrinas abrangentes configurarem como base das instituições sociais. Esse condicionamento pelo pluralismo é possível a partir de três condições: a legitimidade do domínio político, a justificação das políticas estatais e a razoabilidade dos cidadãos.

A noção rawlsiana de legitimidade é baseada na visão liberal clássica, pela qual a fonte última da autoridade política reside no consenso público e não coercitivo dos cidadãos sobre os princípios que norteiam uma sociedade democrática, especialmente no que tange à garantia de direitos individuais básicos. A partir da segunda idéia – justificação das políticas estatais – pode-se identificar que Estado deve abster-se de apelar suas decisões com base numa determinada doutrina compreensiva; “qualquer decisão deve ser tomada levando em consideração os pontos fixos que constituem os julgamentos de justiça, formulados na base do consenso normativo que qualquer comunidade política democrática possui” (LOIS, 2001, p. 313).

A terceira idéia – razoabilidade aos cidadãos - importa dois fatores: (i) que eles aceitem a idéia de que a sociedade é um sistema justo de cooperação para benefício mútuo, e (ii) que aceitem os “limites do juízo” (burdens of judgement) para o uso da razão pública na condução do poder político. As pessoas razoáveis devem estar dispostas a buscar critérios para estabelecer princípios de cooperação que todos os membros possam aceitar, através da independência de qualquer concepção particular do mundo.

Os conceitos liberais de legitimidade política, neutralidade de justificação e a concepção de pessoa razoável constituem o cerne do liberalismo político. Através desses elementos, Rawls (1992) considera sua teoria política, e não metafísica[4]. A fim de que uma sociedade democrática e justa adquira estabilidade, não basta que suas instituições funcionem de acordo com princípios justos; é necessário que a cidadania mantenha um compromisso com o bem público. Para que isso ocorra, é necessária uma redução dos conflitos, com vistas a se alcançar um consenso moral que não esteja baseado no equilíbrio precário da barganha política. Tal consenso proporciona os fundamentos políticos mínimos e essenciais para que as pessoas com diferentes concepções de bem possam compartilhar uma mesma associação política.

Rawls (1993/2000) identifica o tratamento da estabilidade em duas fases: a primeira consiste nas motivações que impulsionam os cidadãos a prestar apoio às instituições (psicologia moral da razoabilidade); a segunda investiga as oportunidades que a concepção política de justiça se converta num consenso sobreposto (overlapping consensus) de doutrinas razoáveis. Esta etapa expõe a maneira com que as pessoas razoáveis poderiam subscrever a concepção de justiça a partir de razões intrínsecas das doutrinas que sustentam. A busca dessa justificação interna é fundamental para que as pessoas possam se comprometer seriamente com as instituições.

 A estabilidade e unidade sociais, portanto, são alcançadas a partir de uma assimetria entre a esfera pública (constituída pelos “elementos constitucionais essenciais” e “questões de justiça básica”) e a privada (compostas pelas diversas doutrinas razoáveis). Na primeira, predomina um consenso generalizado dos cidadãos. Isso porque o âmbito público é marcado pelo exercício da política de um ponto de vista da razão normativa imparcial e universal.

Por outro lado, a esfera privada é marcada por uma pluralidade de concepções razoáveis de bem, ainda que muitas delas sejam incompatíveis entre si. As concepções são razoáveis justamente porque são suportadas pelo consenso sobreposto, ou seja, não estão em discordância dos enunciados básicos de justiça. Lois (2001) observa que, para Rawls, o desacordo razoável acerca do bem é uma condição da vida humana, que resulta do livre exercício da razão humana em condição de liberdade. Nessa esfera, o desacordo não é apenas uma possibilidade, mas um fato que está implícito na cultura política pública das sociedades modernas.

Dessa forma, o ideal de sociedade bem-ordenada é completado pelo consenso sobreposto, que torna compatível a idéia de justiça à idéia de bem. As diversas doutrinas razoáveis, embora profundamente divergentes, podem conviver pacificamente porque aceitam os mesmos princípios fundamentais.

Sobre os autores
Daniel Lena Marchiori Neto

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tendo realizado estádio de doutoramento junto ao Colorado College, EUA. Professor de Teoria Geral do Estado e Introdução ao Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense.

Vanessa Wendt Kroth

Graduada em Direito e em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestre em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Analista-Tributária da Receita Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCHIORI NETO, Daniel Lena; KROTH, Vanessa Wendt. Os “liberalismos” e as suas ênfases: a legitimidade em Hobbes e Locke e a justiça em Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3573, 13 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24183. Acesso em: 23 nov. 2024.

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