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Elementos fundamentais do constitucionalismo

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Agenda 30/06/2013 às 14:58

O mote do neoconstitucionalismo é a preservação, garantia e promoção dos direitos fundamentais, que encontram a sua origem no jusnaturalismo e passam a condicionar a aplicação e a criação do direito, moralizando-o.

Resumo: O presente artigo tem por tema a análise do movimento constitucional, visando compreender o neoconstitucionalismo. Para tanto, foram analisados os aspectos fundamentais de suas duas fases: o constitucionalismo antigo e o moderno. O trabalho foi estruturado em dois capítulos. O primeiro, voltado para a análise do constitucionalismo antigo, cujo objetivo é a limitação da atuação do poder estatal, consagrando o princípio da liberdade. Para tanto, o seu instrumental — o texto constitucional — organizou o Estado e o submeteu ao império da lei, único meio capaz de prescrever direitos aos indivíduos. À tal sistema deu-se o nome de Estado de Direito, fundamentado no positivismo jurídico. Nesse sistema, não se levou em consideração o conteúdo da lei, mas sim a forma pela qual foi posta no ordenamento jurídico. Dessa constatação, depreendeu-se que o texto constitucional tem mera função orgânica e que a lei pode cometer arbitrariedades inqualificáveis. Daí, porque, concluiu-se que tal modelo de atuação política é falho. No segundo capítulo analisou-se o neoconstitucionalismo, entendendo-o como uma nova maneira de se interpretar o Direito, através de elementos éticos. Esse movimento, fundado no pós-positivismo jurídico, teve como preocupação a preservação e garantia dos direitos fundamentais, visando evitar que o indivíduo se torne objeto do arbítrio legal. Esse ideário passou a viger após a Segunda Guerra Mundial, quando foi estabelecido um novo modelo de atuação política: o Estado Democrático de Direito. Nesse sistema, o texto constitucional passa a ter, também, função garantidora dos direitos nela expressos, cabendo ao Poder Judiciário concretizá-los.

Palavras-chave: Constitucionalismo. Estado de Direito. Neoconstitucionalismo. Estado Democrático de Direito.

Sumário: Introdução. 1. Aspectos do constitucionalismo. 1.1. Conceito de constitucionalismo. 1.2. Contexto histórico do constitucionalismo. 1.3. Contexto filosófico do constitucionalismo. 1.4. O Estado de Direito. 1.5. O positivismo jurídico. 1.6. O Direito Constitucional no Estado de Direito. 1.6.1. Programas constitucionais. 1.6.2. Indiscutibilidade quanto à legitimidade das leis. 1.7. A ruptura do Estado de Direito. 2. Aspectos do neoconstitucionalismo. 2.1. A nova função da Constituição. 2.1.1. A teoria do garantismo jurídico. 2.2. O pós-positivismo jurídico. 2.3. As características do Texto Constitucional. 2.4. A nova interpretação da Constituição. 2.5. As características do neoconstitucionalismo. 2.5.1. Supremacia do Texto Constitucional. 2.5.2. Garantia, promoção e preservação dos direitos humanos ou fundamentais. 2.5.3. Força normativa dos princípios constitucionais e a técnica da ponderação. 2.5.4. A constitucionalização do Direito. 2.5.5. Ampliação da jurisdição constitucional. 2.6. As acepções do neoconstitucionalismo. Notas conclusivas. Referências bibliográficas.


Introdução

O presente arrazoado tem por escopo a análise dos elementos essenciais do movimento constitucional, segundo as suas fases mais significativas: o constitucionalismo antigo (do século XVII até a Segunda Guerra Mundial) e o moderno (do segundo pós-guerra até os dias atuais).

Nesse contexto, o exame a ser feito levará em conta as correntes jusfilosóficas do positivismo e do pós-positivismo. Tais doutrinas, respectivamente, fornecem os fundamentos do Estado de Direito e do Estado Democrático de Direito, modelos políticos regidos, respectivamente, pelo velho e pelo novo constitucionalismo.

O trabalho a ser desenvolvido é fruto da má compreensão que se tem do neoconstitucionalismo, doutrina jurídica que empreendeu grande mudança no ordenamento jurídica ocidental, tendo em vista a sua finalidade, qual seja: a garantia, preservação e promoção dos direitos humanos e fundamentais.

Referida má compreensão advém da seguinte situação: ao analisar a realidade brasileira, verifica-se que pretextando a garantia, a promoção e a preservação dos direitos humanos muitas decisões judiciais têm extrapolado os limites institucionais do Poder Judiciário, o que por certo não se coaduna com os preceitos contidos na Constituição Federal de 1988.

Essa situação promove o pernicioso fenômeno da judicialização da política, que promove insegurança jurídica e abala o sistema democrático.

Tendo em vista o problema apontado, o trabalho objetivará estabelecer no que consiste o Direito Constitucional nos dias de hoje, buscando ajudar na sua compreensão para formar uma cultura jurídica focada nos ditames da Lei Maior para assim preservar a segurança jurídica.

Em razão de o trabalho abordar as bases teóricas do constitucionalismo, evidenciando as suas ideias essenciais, usar-se-á, fundamentalmente, o método dialético de pesquisa. Com isso, o trabalho expressará a opinião assente da doutrina sobre os diversos tópicos que permeiam o tema.

Utilizar-se-á também, porém em reduzida medida, os métodos dedutivo e indutivo de pesquisa.

Evidentemente que o conhecimento é ilimitado, porém para cumprir com a delimitação do tema (análise dos fundamentos do constitucionalismo), promovemos um corte metodológico segundo o qual não serão abordados os seguintes temas: neojusnaturalismo, neopositivismo, jurisprudencialismo e a questão da judicialização da política.

Para cumprir o seu intento, o trabalho será estruturado em dois capítulos. No primeiro serão tecidas considerações sobre o velho direito constitucional (constitucionalismo estrito senso) e no segundo abordaremos os aspectos do novo direito constitucionalismo (movimento neoconstitucional).

Tal estruturação tem sua razão de ser na seguinte necessidade: para se compreender o neoconstitucionalismo é preciso, antes, entender o seu antecedente — o constitucionalismo (sentido estrito).


1. ASPECTOS DO CONSTITUCIONALISMO

1.1 Conceito de constitucionalismo

Conforme a exposição feita em notas introdutórias, não é possível entender o movimento neoconstitucional sem entender o seu antecedente – o constitucionalismo, que na lúcida definição de Reinhart Koselleck (2006, p. 103) tem como base a ideia “de agrupamento e de dinâmica para ordenar e mobilizar as massas estruturalmente desarticuladas.”

Por esse ponto de vista, o constitucionalismo clássico nada mais é do que a doutrina jurídica que busca organizar o Estado, que antes era desorganizado, no sentido de que não havia instituições públicas, pois tudo ficava restrito nas mãos do monarca, detentor, portanto, de poderes políticos absolutos, o que lhe dava a possibilidade de mandar e desmandar da maneira como lhe aprouvesse, causando, em inúmeras situações, iniqüidades inqualificáveis.

O movimento constitucional surge como reação a esse poder político desmedido (conforme veremos no próximo item) e pela necessidade de estabelecer instituições estatais que legitimassem o poder político, daí o dizer de Miguel Artola (2005, p. 6), para quem o constitucionalismo “hace referencia a la totalidad del sistema político, que incluye normas y prácticas políticas”.

Nessa fase do movimento, os constitucionalistas queriam, apenas, organizar o Estado, determinando a forma política como o poder seria exercido, e assim impondo limites à atuação do soberano. O que queriam, portanto, era estabelecer uma ordem política (parâmetros de atuação) e um governo legalizado, com poderes limitados (MATTEUCCI, 1998, p. 23). Essa organização compreendia o estabelecimento da soberania do Estado, a forma de exercício do governo, a instituição da Justiça, com suas regras (nasce aqui o devido processo legal), a forma de tributar e outras tantas questões burocráticas.

Porém, esse conceito fora formulado baseado na intenção, única, de impor barreiras à atuação política do soberano, o que não garantia nenhum benefício específico ao indivíduo. Tal só ocorreu com a evolução do pensamento constitucional, que passou a defender a idéia de que era necessário, também, estabelecer garantias para que o indivíduo não sofresse as arbitrariedades do governo. É nesse ponto que se começa a discussão sobre os direitos individuais.

Essa visão foi adotada sob o fundamento de que o poder não emanava do soberano, mas sim do povo e essa concepção tornou-se a tônica do constitucionalismo após as revoluções inglesa, norte-americana e francesa (revoluções liberais-burguesas), pois a imposição de uma constituição (instrumento do ideário acima referido) passou a ser vista não com um ato de governo, mas sim do povo. É o que ensinava o revolucionário Thomas Paine (McILWAIN, 1992, p. 15-16): “una constitución no es el acto de ningún gobierno sino del pueblo estableciendo su gobierno,de modo que gobierno sin constitución es poder sin derecho”.

O constitucionalismo, portanto, a partir da segunda metade do século XVIII sai de sua concepção remota – apenas meio de limitação do poder – para contemplar, também, os direitos e garantias individuais, de modo que os textos constitucionais levassem em conta dois aspectos: o limite do poder e a garantia individual.

Nesse sentido é o que nos mostra a lição de Maurizio Fioravanti (2001, p. 103): “Las revoluciones del fin del siglo XVIII, primero la americana y después la francesa, representan en este sentido un momento decisivo en la historia del constitucionalismo, porque sitúan en primer plano un nuevo concepto y una nueva práctica que están destinados a poner en discusión la oposición entre la tradición constitucionalista y la soberanía popular.”

Como base nisso, referido autor (2001, p. 85) fez o seguinte conceito de constitucionalismo: “El constitucionalismo es concebido como el conjunto de doctrinas que aproximadamente a partir de la mitad Del siglo XVII se han dedicado a recuperar em el horizonte de la constitución de los modernos el aspecto del limite y de la garantia.”

Diante da imperiosa necessidade de organizar burocraticamente o Estado e de promover certas garantias individuais consideradas fundamentais (a liberdade, em especial, buscando evitar que o povo seja mero joguete nas mãos do governo) surgiu o que se entende por constitucionalismo, que, a nosso ver, tem como definição definitiva a seguinte, que é trazida por Matteucci (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO; 1986, p. 247-248): “É a técnica da liberdade, isto é, a técnica jurídica pela qual é assegurado aos cidadãos o exercício dos seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, coloca o Estado em condições de não os poder violar. Se as técnicas variam de acordo com a época e as tradições de cada país, o ideal das liberdades do cidadão continua sendo sempre o fim último: é em função deste que se preordenam e organizam as técnicas.”

Evidente que para se chegar a esse conceito e para que ele fosse integralmente aceito houve um extenso processo de realização da tese que durou mais de 250 anos e se considerarmos o seu processo de desenvolvimento, a conta sobe para 320 anos (referida conta é feita com base no período compreendido entre a  Revolução Inglesa e o segundo pós-guerra)

Então, além de conceituar é preciso verificar em qual contexto histórico e filosófico se deu o constitucionalismo.

1.2 Contexto histórico do constitucionalismo

Para a compreensão desse contexto histórico tomaremos como marco o movimento constitucional inglês que surgiu no século XVII, precisamente em 1688, quando se deu a Revolução Gloriosa, que foi a etapa final de uma série de revoluções porque passou a Inglaterra naquele século.

Esse período, historicamente conhecido como Revolução Inglesa, compreende a Guerra Civil Inglesa (1642-1648), a República de Cromwell (1649-1658), a Restauração Monárquica (1660-1688) e a Revolução Gloriosa (1688-1689).

Nesse aspecto, a História nos mostra, cabalmente, a transição do absolutismo para os regimes constitucionais e isso começou a ocorrer na Inglaterra do século XVII, conforme nos explica Gilberto Cotrim (1996, p. 237): “No século XVII, a Inglaterra foi revolvida por grandes turbulências políticas, econômicas e sociais. Trata-se da Revolução Inglesa, um período de 50 anos de lutas, que representou o embate das velhas estruturas feudais com as novas forças do capitalismo em expansão. Ao final, essa primeira revolução burguesa da Europa pôs fim ao Estado absolutista.”

 Nessa época a organização social inglesa estava divida em três grupos. No norte e no oeste predominava a nobreza tradicional, apegada aos seus direitos feudais, cujo interesse, portanto, era manter o sistema de exploração do indivíduo em seu favor. O sul e o leste eram dominados pelos gentry, formada por burgueses e pequenos nobres que detinham grandes extensões agrárias e que, consoante os moldes capitalistas, viviam de explorar essas terras. Nos centros urbanos estavam a burguesia financeira e a burguesia comercial, as quais, juntamente com os gentry, queriam romper de uma vez por todas com o sistema feudal, que, por sua vez, impedia o progresso de seus interesses econômicos, que eram voltados ao capitalismo.

Politicamente, a Inglaterra era regida por um sistema absolutista, que vigorava inconteste desde o século XVI. Já no século seguinte, com o fim do sistema feudal e o surgimento dos interesses econômicos dos grandes posseiros de terras que dominavam o parlamento, o poder real começou a sofrer oposição. Enquanto a dinastia Stuart pretendia fortalecer o seu poder absoluto, procurando reconhecê-lo em termos jurídicos, o parlamento defendia limitações ao poder da realeza. O pano de fundo dessa contenda política era a defesa dos interesses desses primeiros capitalistas.

Buscando preservar e fortalecer seu poder, a monarquia passou a usar na religião anglicana os rituais litúrgicos do catolicismo. Com isso, pretendia trazer à cena política a vetusta aristocracia partidária do feudalismo para revitalizar o poder absoluto do rei.

 É o que nos mostra Gilberto Cotrim (1996, p. 240): “Para preservar seus poderes, a monarquia inglesa utilizou-se da política religiosa, passando a valorizar, no anglicanismo, a forma litúrgica católica (por meio de uma legislação rigorosa), em vez do conteúdo calvinista puritano. Promovendo essa valorização do rito católico em detrimento do conteúdo protestante, a monarquia buscava apoio na aristocracia tradicional católica.”

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Em resposta a essa atividade do rei, o parlamento em 1628 aprovou o projeto de sir John Coke, instituindo a Petition of Rights, importante documento que é o primeiro representativo do movimento constitucional, porque a sua formatação estava voltada para a única finalidade de reduzir o poder do rei e garantir direitos individuais, conforme assevera Matteucci (1998, p. 108): “Toda la construcción jurídica se encuentra dominada por una única finalidad: controlar al poder ejecutivo, impedir el poder arbitrario de la representación, con el objetivo de garantizar los derechos de los ciudadanos.”

Referido documento previa que o rei não poderia criar tributos, convocar o exército e prender pessoas sem o consentimento do parlamento. Isso, evidentemente, reduzia a atuação do soberano, que se via obrigado a dividir o poder com o parlamento, que agiria como um fiscal dos atos de governo. Essa idéia, que hoje conhecemos como sistema de freios e contrapesos, está presente em todas as constituições de cunho democrático, razão pela qual considera-se tal documento como um dos mais famosos textos constitucionais de que se tem notícia, haja vista que ele rompeu com tradições antiguíssimas e estabeleceu um novo conceito de governança que o mundo livre segue até hoje – a participação e a fiscalização independente do parlamento.

Não contente com a atuação do parlamento, o rei Charles I o dissolveu, mergulhando a Inglaterra numa série de revoltas iniciada pela Revolução Puritana, organizada pelos membros do parlamento como reação ao seu fechamento.

Nesse período, o seio social inglês foi dividido em dois. Os favoráveis e os contrários ao poder absoluto do rei. Os partidários do rei eram a aristocracia tradicional, o clero e a burguesia financeira, que viviam das benesses da nobreza. Em oposição estavam os gentry e a burguesia mercantilista, pelos quais lutavam as tropas formadas pelo extinto parlamento, que tinha como comandante Oliver Cromwell, que não ambicionava limitar o poder do rei, mas sim extingui-lo, criando uma república.

Finda a guerra civil, o grupo dos parlamentares vencem a disputa, condenam Charles I à morte, sendo decapitado em 30 de janeiro de 1649. Instauram a república, tendo como líder Oliver Cromwell, que, por sua vez, promove um golpe, dissolvendo o parlamento para instalar uma ditadura vitalícia e hereditária, que sucumbe com sua morte em 1658, haja vista que seu filho, Richard, dura menos de um ano no poder.

Um novo parlamento, eleito em 1660, decide restaurar a monarquia dos Stuarts convidando Charles II para assumir o trono, porém exigem dele respeito ao parlamento. Esse período, conhecido como Restauração da Monarquia durou 28 anos e compreendeu os reinados de Charles II (1660-1685) e de seu irmão James II (1685-1688), que tinha um perfil bem mais autoritário, fazendo com que aflorasse o descontentamento da burguesia.

O parlamento, novamente formado pelos burgueses, temendo a volta do absolutismo, oferece a coroa para Guilherme de Orange, príncipe holandês e cunhado do rei inglês James II, sob a condição de que ele respeitasse suas determinações.

Contra esse golpe, James II agiu violentamente, deflagrando o que seria conhecido como Revolução Gloriosa, da qual saíram vitoriosos o príncipe holandês e sua mulher Mary Stuart, que assinaram, em 1689, a famosíssima Declaração de Direitos (Bill of Rights).

Referida declaração tornou-se um marco no direito constitucional, porque ela previa tanto a limitação do poder do rei, quanto direitos individuais, haja vista que a instauração de tributos ficava condicionada à deliberação do parlamento, garantia-se a liberdade de imprensa e o livre exercício de Justiça Pública (regra do devido processo legal), que extinguia todo o poder absoluto do rei, pois ele também ficava submetido à lei, como qualquer cidadão.

Nesse sentido é o que explica Gilberto Cotrim (1996, p. 242): “No plano político, a Revolução Gloriosa marcou o fim do absolutismo na Inglaterra. O poder do rei passou a ser limitado pelo parlamento, e a monarquia adquiriu um caráter constitucional.”

Isso tudo demonstra três situações: primeira, o movimento constitucional moderno, tal qual o conhecemos, não começou com a Revolução Francesa, nem com a norte-americana como muitos sustentam. Nesse sentido, temos a lição de José Jobson de Arruda (1988, p. 89): “A Revolução Inglesa foi a primeira revolução burguesa da Europa Ocidental. Antecipou em 150 anos a Revolução Francesa. Representou o fim do Estado absolutista.”

Segunda, prova-se, cabalmente, que Canotilho tem razão ao dizer que não existe um constitucionalismo, mas sim movimentos constitucionais, cada qual à sua maneira, porque os movimentos constitucionais norte-americano e francês não se vinculam à monarquia, mas sim à república.

Terceira, todo movimento constitucional genuíno consagra o respeito às leis em oposição ao absolutismo. Nesse sentido é a magistral lição de Norberto Bobbio  (BOVERO; 2000, p. 249):“A história da doutrina do primado do governo das leis conclui-se e completa-se, ainda que através de duas rupturas revolucionárias,a primeira no século XVII na Inglaterra, a segunda no século XVIII na França, com o moderno constitucionalismo, através do qual também o poder dos governantes é regulado, como aquele dos cidadãos, pelo direito natural, ou então por pactos, como o pactum subiectionis, formalmente entre iguais, mas substancialmente entre desiguais, através da promulgação de constituições escritas dotadas de força de leis fundamentais e garantidas também por órgãos delegados que tem sua observância controlada pelo poder legislativo.”

O presente estudo não abordará as revoluções francesa e norte-americana, não por as considerar irrelevantes ao movimento constitucional, mas sim porque nosso propósito foi o de demonstrar que quem primeiro promoveu o constitucionalismo foram os ingleses.

No próximo tópico, passaremos a tratar do contexto filosófico do movimento constitucional. Tudo o que lá for tratado deve ser aplicado aos movimentos constitucionais inglês, norte-americano e francês.

1.3 Contexto filosófico do constitucionalismo

A nosso ver, a gênese do movimento constitucional está circunscrita nos estudos sobre o Direito Natural, cujo ideário influenciou em todos os aspectos as Revoluções Inglesa, Francesa e Americana, que, como bem sabemos, deram início ao entendimento moderno de Direito Constitucional, tal qual o conhecemos hoje, isto é, um sistema que coíbe a atuação desmedida do príncipe pelo reconhecimento da existência de certos direitos individuais inatos à condição humana.

Tendo essa ideia em vista, na formulação de um conceito do que vem a ser o direito natural, toda a doutrina diz, num primeiro passo, que ele é o direito que emana da própria natureza, independentemente da vontade humana e, portanto, anterior e superior ao direito posto pelo Estado, isto é, pelos homens.

É nesse sentido o entendimento de Vicente Ferrer Neto Paiva (1850, p. 1): “Todos os que têm escripto sobre Philosophia do Direito, não obstante a diversidade das noções, que deram, de Direito Natural, concordam que elle é anterior a todas as leis estabelecidas pelos homens, e d`estas independente; e a pezar da variedade de seus systemas recorrem mais ou menos á natureza humana para fundamentarem a sua doutrina.”

Já em um segundo momento, a doutrina começa a verificar que o Direito Natural está ligado à liberdade individual, porque o homem é um ser que nasce livre e, portanto, não pode ser submetido a tratamento que avilte essa qualidade. Outro reflexo do direito natural está ligado ao entendimento de que todos os homens são iguais. Daí porque Celso Lafer (1988, p. 24) reconhece nele o direito de resistência “com base na idéia de uma reciprocidade de direitos e deveres na interação entre governantes e governados.” Não havendo essa reciprocidade dá-se ensejo ao direito de revolução, como de fato foi muito bem exercido nas três oportunidades apontadas.

A origem dessas idéias é bastante antiga. Sabe-se que os antigos gregos e romanos já tratavam especificamente da igualdade dos homens no plano político. Abordaram esses conceitos, por exemplo, Aristóteles, Cícero e Sêneca, conforme ensinamento dos Carlyle (1903, p. 8-9): “There is no change in political theory so startling in its completeness as the change from the theory of Aristotle to the later philosophical view represented by Cicero and Seneca. We think that this cannot be better exemplified than with regard to the theory of the equality of human nature.”

Nesse sentido, McIlwain lembra que a maior contribuição dos estóicos para o pensamento político foi a formulação do conceito de igualdade entre os homens (1968, p. 114-115) e isso se deu antes da era cristã, o que nos faz perceber que em tempos imemoriais já havia gente preocupada em garantir direitos mínimos aos indivíduos.

Ocorre, porém, que dadas as contingências políticas das eras antiga e média os conceitos sobre direito natural elaborados pelos gregos e romanos não passaram de meras questões filosóficas, cujo único efeito foi o de influenciar as futuras gerações de pensadores políticos.

Por muito tempo o assunto ficou adormecido, mesmo porque o clero proibia a leitura dos estudos dos autores clássicos. O tema só voltou à tona na idade moderna, quando, em 1625, Hugo Grotius publicou o famoso De Jure Belli et Pacis, que trazia a clássica divisão do Direito entre natural e positivo e buscava, com isso, justificar a existência do Estado que, segundo sua visão, era uma sociedade perfeita de homens livres que tem por finalidade a regulamentação do direito e a consecução do bem-estar coletivo. (MALUF; 1995, p. 65).

Outro importante teórico do jusnaturalismo foi Emmanuel Kant, para quem a liberdade individual deveria ser limitada em prol do Estado civilmente instituído. Sua máxima, nesse particular, era “conduze-te de modo tal que a tua liberdade possa coexistir com a liberdade de todos e de cada um.” (COELHO; 2003, p. 221).

Analisando a obra do pensador, Sahid Maluf (1995, p. 66) diz o seguinte: “conclui Kant que, ao saírem do estado de natureza para o de associação, submeteram-se os homens a uma limitação externa, livre e publicamente acordada, surgindo, assim, a autoridade civil, o Estado.” 

John Locke (2003, p. 23) foi outro expoente do jusnaturalismo, estabelecendo com seus estudos o liberalismo na Inglaterra. Segundo seu entendimento os homens, por uma questão natural são absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e de suas pessoas como bem entenderem, dentro dos limites do direito natural, sem pedir a autorização de nenhum outro homem nem depender de sua vontade.

As ideias desse filósofo buscavam evitar os desmandos da monarquia absolutista, que não enxergava o indivíduo como detentor de direitos, salvo quando assim o monarca quisesse, gerando com isso uma situação de completa insegurança, porque o soberano propunha e dispunha como bem entendesse, até mesmo acerca da vida dos súditos.

Então, Locke propôs um novo modelo de sociedade, na qual o Estado não mais ficaria em uma posição verticalizada em relação ao indivíduo, mas sim numa posição horizontalizada, sendo que cada qual teria direitos e deveres recíprocos, conforme as regras do contrato social.

 Nesse sentido vem a calhar o comentário de Sahid Maluf (1995, p. 68-69) sobre o trabalho de Locke: “Em sua obra Ensaio sobre o governo civil (1690), em que faz a justificação doutrinária da revolução inglesa de 1688, desenvolve os seguintes princípios: o homem não delegou ao Estado senão os poderes de regulamentação das relações externas da vida social, pois reservou para si uma parte de direitos que são indelegáveis. As liberdades fundamentais, o direito à vida, como todos os direitos inerentes à personalidade humana, são anteriores e superiores ao Estado.”

Diante disso, pode-se verificar que a doutrina do Direito Natural foi desenvolvida com a estrita finalidade de limitar o poder estatal e essa é a qualidade essencial do constitucionalismo, que ao depois procurou garantir aos indivíduos a proteção de certos direitos indeléveis, tais como vida, liberdade, igualdade e, na visão de Locke, propriedade.

Conforme visto alhures, isso estabelece as premissas do que hoje se entende por constitucionalismo, que embasa o Estado de Direito.

1.4 O Estado de Direito

As revoluções liberais-burguesas ocorridas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França trouxeram para o sistema político um novo conceito: o Estado de Direito, que tem como linha mestra a submissão de todos perante a lei, representando a limitação do poder político.

Essa limitação ocorreu através do movimento constitucional, cujas manifestações iniciais foram diferentes em cada sede revolucionária. Os Estados Unidos, ao proclamarem a independência da Inglaterra, tomaram como modelo de Estado de Direito uma república presidencialista estabelecida sob uma constituição editada em 1787. A França, por seu turno, também estabeleceu uma república, porém não presidencialista, e a fincou sob a égide de uma constituição editada em 1791.

Já a Inglaterra adotou um modelo diferente, porque optou por ser uma monarquia parlamentarista estabelecida em um constitucionalismo representado, principalmente, por dois documentos: Petition of Rights e o Bill of Rights.

Assim, a idéia do Estado de Direito está intimamente relacionada com a idéia de constitucionalismo, cuja qualidade essencial implica, no dizer de Charles Howard McIlwain (1998, p. 37): “uma limitación jurídica del gobierno; es la antítesis del gobierno arbitrario; es lo contrario del gobierno despótico, del gobierno del capricho en vez del derecho.”

Junto com a limitação do poder governamental, ocorre a garantia dos direitos fundamentais, que nada mais é do que simples expressão positivada dos direitos naturais. Tais direitos previstos nesse período imediatamente posterior às revoluções são aqueles que a doutrina convencionou classificar de primeira geração ou dimensão, ligados ao valor da liberdade.

Explicando melhor essa ocorrência temos a exposição de Ingo Sarlet (2006, p. 55-56): “Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressaltado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burgês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder. São, por este motivo, apresentados como direitos de cunho ‘negativo’, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes. [...] Assumem particular relevo no rol desses direitos, especialmente pela sua notória inspiração jusnaturalista, os direitos à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei. São, posteriormente, complementados por um leque de liberdades, incluindo as assim denominadas liberdades de expressão coletiva (liberdades de expressão, impressa, manifestação, reunião, associação, etc.) e pelos direitos de participação política, tais como o direito de voto e a capacidade eleitoral passiva, revelando, de tal sorte, a íntima correlação entre os direitos fundamentais e a democracia.”

 Outra importante conseqüência introduzida pelo Estado de Direito foi o uso proliferado de normas jurídicas escritas, com a evidente finalidade de regular a atuação do governo e de prescrever direitos. É nesse ponto que surge a constituição norte-americana, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens e a primeira constituição francesa, que também é reflexo do pensamento positivista, cuja base ontológica é a supremacia das leis em relação a tudo e a todos.

Daí porque o Estado de Direito ser também conhecido como o Estado do governo das leis e isso foi introduzido nas constituições sob a idéia de responsabilidade política e jurídica dos governos, tentando coibir, dessa maneira, o abuso do poder, pois se findam as diferenças entre governantes e governados.

Explica melhor esse fenômeno o entendimento de Norberto Bobbio (BOVERO; 2000, p. 256-257): “A constitucionalização das medidas contra o abuso do poder realizou-se através dos dois institutos típicos da separação dos poderes e da subordinação de todos ao poder estatal – no limite também do poder dos próprios órgãos legislativos – ao direito (o chamado ‘constitucionalismo’). Por separação dos poderes entendo, em sentido lato, não apenas a separação vertical das principais funções do Estado entre os órgãos no vértice da administração estatal, mas também a separação horizontal entre órgãos centrais e órgãos periféricos nas várias formas de autogoverno que vão da descentralização político-administrativa ao federalismo. O segundo processo foi aquele que deu lugar à figura, verdadeiramente dominante em todas as teorias políticas do século passado, do Estado de direito, isto é, do Estado no qual cada poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam a sua competência e orientam, ainda que, freqüentemente, com uma certa margem de discricionariedade, suas decisões. Ele corresponde àquele processo de transformação do poder tradicional fundado sobre relações pessoais e patrimoniais em um poder legal e racional, essencialmente impessoal.”

Desse panorama, verifica-se que as características do Estado de Direito são: governo limitado por leis estruturadoras do Estado, tripartição dos poderes e a previsão de direitos e garantias individuais. Surgem, assim, conceitos como liberdade e igualdade, garantidas pelas luzes da lei.

Daí o porquê Luigi Ferrajoli (CARBONELL; 2005, p. 16) entende que o Estado de Direito nasce com a afirmação do princípio da legalidade: “El Estado de Derecho moderno nace, con la forma del Estado legislativo de Derecho, en el momento en que esta instancia alcanza realización histórica, precisamente, con la afirmación del principio de legalidad como criterio exclusivo de identificación del Derecho válido y antes aún existente, con independencia de su valoración como justo. Gracias a este principio y a lãs codificaciones que son su actuación, una norma jurídica es válida no por ser justa, sino exclusivamente por haber sido «puesta» por una autoridad dotada de competencia normativa.”

Esse conceito complexo redundou no positivismo jurídico, doutrina através da qual o Direito, a idéia de certo ou errado e, mais profundamente, a idéia de Justiça ficam concentrados na lei, conforme veremos no próximo tópico.

1.5  O positivismo jurídico

O mundo que surgiu após as revoluções liberais burguesas clamava por segurança jurídica, que não havia nos tempos absolutistas. Os indivíduos exigiam a instituição de um sistema que garantisse direitos e prescrevesse deveres a fim de evitar que o Estado influenciasse de surpresa na vida das pessoas.

Conforme visto no tópico anterior, convencionou-se chamar esse sistema de Estado de Direito, cujo fundamento filosófico é, também, o positivismo jurídico, doutrina que entende ser Direito somente aquilo que é externado pelo Estado mediante lei. O Direito, segundo sua concepção mais elementar, é produto da atividade humana, não mais uma imposição divinal, que fundamentou o Estado Absolutista. 

Diante disso, verifica-se que no positivismo pós-revolucionário o Estado detém o monopólio da atividade legiferante, que é exercida, exclusivamente, pelo Poder Legislativo. Desse modo, o conceito de Direito se circunscreve, unicamente, à lei ? princípio da legalidade, configurando-se, portanto, não num ato de sabedoria divina, mas unicamente num ato de soberania, isto é de Poder.

Nesse sentido, é o ensinamento de Celso Lafer (1988, p. 39): “A identificação entre Direito e Poder, derivada da positivação, está na raiz da construção do Estado Moderno e é a base da afirmação de Hobbes: “It is no wisdow, but authority that makes a Law”, pois “A Law is the command of him, or them that have the Sovereign Power [...]”

Daí não existir, nessa linha de pensamento, relação entre Direito, moral e justiça. Na visão positivista, moral e justiça são conceitos abertos, mutáveis e sem força para se sobrepor à vontade estatal expressa na lei. Isso faz com que a interpretação jurídica seja objetiva e axiologicamente neutra, compreendendo apenas juízos de validade e não juízos de valor.

É o que preconiza Bobbio (1995, p. 131): “segundo o Positivismo Jurídico, a afirmação de validade de uma norma jurídica não implica também na afirmação de seu valor.”

Portanto, segundo essa posição científica, ao intérprete do Direito resta apenas um exercício de subsunção. Nesse sentido é esclarecedor o ensinamento de Gustavo Zagrebelsky (2005, p. 33), segundo quem: “La concepción del derecho propia del Estado de Derecho, del principio de legalidad y Del concepto de ley del que hemos hablado era el «positivismo jurídico» como ciencia de la legislación positiva. La idea expresada por esta fórmula presupone una situación históricoconcreta: la concentración e la producción jurídica en una sola instancia constitucional, La instancia legislativa. Su significado supone una reducción de todo lo que pertenece al mundo del derecho – esto es, los derechos y la justicia – a lo dispuesto por la ley. Esta simplificación lleva a concebir la actividad de los juristas como un mero servicio a la ley, si no incluso como su simple exégesis, es decir, conduce a la pura y simple búsqueda de la voluntad del legislador”.

Vê-se, pois, que o perfil do positivismo jurídico é fortemente influenciado pelo pensamento de Augusto Comte, que evitando lucubrações metafísicas, concentra-se, somente, na realidade fática, pois esta pode ser provada por procedimentos empíricos.

“Nos moldes propostos por Comte, a filosofia positivista busca aplicar diretamente à sociedade o método próprio das ciências naturais, pois este é tido como o  único capaz de resolver os problemas humanos, individuais e sociais. A ciência acaba por se tornar o único fundamento através do qual os indivíduos podem viver e conviver bem, ou seja, podem se realizar plenamente de forma individual e social.”  (MOREIRA; BELCHIOR; PEIXTO; 2008, p. 4007).

Desse modo, podemos afirmar que o positivismo jurídico é fruto da onda racionalista desenvolvida sistematicamente a partir do Iluminismo, movimento que procurou atribuir foros científicos a toda forma de pensar.

Baseado nessa premissa é que a compreensão do Direito deve ser racional e objetiva, excluindo-se qualquer subjetivismo, responsável por insegurança. Desse modo, o operador do Direito, ao aplicar a lei, deve ater-se às suas estritas palavras, não lhe sendo permitido realizar juízos axiológicos, que era confundido com subjetivismo, expressão máxima do arbítrio.

Nessa quadra histórica, portanto, a segurança jurídica perseguida pelas revoluções liberais burguesas só seria alcançada com o absoluto respeito à lei, único preceito coercitivo.

Analisando essas premissas, Luís Roberto Barroso (QUARESMA; et alii; 2006, p. 46-47) estabelece as características do positivismo jurídico: aproximação plena de Direito e norma; estabilidade do Direito; completude do ordenamento jurídico (inexistência de lacunas); formalismo (a validade da norma não advém de seu conteúdo, mas unicamente do seu procedimento de facção).

 Tais características são reduções de quatro teorias: teoria coativa do Direito; teoria imperativista do Direito; teoria do ordenamento jurídico e teoria da obediência.

Pela teoria coativa, o Direito é visto como meio regulador do comportamento social. O Estado, mediante procedimento legiferante, irá elaborar normas de condutas, que devem ser observadas por todos. Por essa teoria não se analisa o conteúdo das normas, mas tão somente o seu processo de criação. Disso advém o caráter formal da doutrina positivista.

Sobre essa teoria temos a percuciente observação de Norberto Bobbio (1995, p. 145): “Com referência ao conteúdo das normas jurídicas, é possível fazer uma única afirmação: o direito pode disciplinar todas as condutas humanas possíveis, isto é, todos os comportamentos que não são nem necessários, nem impossíveis; e isto precisamente porque o direito é uma técnica social, que serve para influir na conduta humana. Ora, uma norma que ordene um comportamento necessário ou proíba um comportamento impossível seria supérflua e uma norma que ordene um comportamento impossível ou proíba um comportamento necessário seria vã. Este modo de definir o direito pode ser chamado de formalismo jurídico; a concepção formal do direito define portanto o direito exclusivamente em função da sua estrutura formal, prescindindo completamente do seu conteúdo – isto é, considera somente como o direito se produz e não o que ele estabelece.”

No que concerne à teoria imperativista temos que o Estado é a única fonte do Direito, que é instrumentalizado pela lei, que dirigida aos cidadãos, como reguladora do corpo social, e ao juiz, na forma de imperativo hipotético e vinculante, pois ele, ao aplicar o Direito, terá de fazê-lo segundo os ditames da lei.

Isso reforça a concepção de que na teoria positivista os conceitos de Direito e Estado se confundem num só significado. Nesse sentido é o entendimento de Bobbio (1995, p. 181): “A teoria imperativista da norma jurídica está estreitamente vinculada à concepção legalistaestatal do direito (isto é, com a concepção que considera o Estado como única fonte do direito e determina a lei como única expressão do poder normativo do Estado): basta, realmente, abandonarmos a perspectiva legalista-estatal para que esta teoria não exista mais.” 

Pela teoria do ordenamento jurídico, o Estado promove um conjunto intenso de normas com a pretensão de regular todos os atos da sociedade. Dessa maneira, a norma é apenas partícula de um conjunto, razão pela qual ela deve ser considerada em si e perante o conjunto a que pertence.

Essa teoria, conforme explica Bobbio (1995, p. 200-229), está consubstanciada em três conceitos: unidade, coerência e completitude.

Unidade significa dizer que só existe uma fonte do Direito, que é o Estado. Por coerência significa dizer que no ordenamento jurídico não podem existir normas conflitantes. Se houver alguma antinomia está será aparente, porque apenas uma ou outra norma será válida (1995, p. 200).

Por completude do ordenamento jurídico deve-se entender que o Direito cobre todas as hipóteses de controvérsias sociais. Não existem, portanto, efetivas lacunas no ordenamento jurídico, de modo que não é dado ao juiz criar normas, nem poderá recusar-se a julgar uma determinada questão alegando ausência de norma (1995, p. 208).

Há, por fim, a teoria da obediência, que traz a seguinte idéia: a lei, se válida, deve ser obedecida integral e incondicionalmente (1995, p. 225).

Tais teorias trazem como conseqüência a mecanização da interpretação do Direito, que se dá por simples exercício de subsunção, afinal, conforme já aludimos neste tópico, o Direito é visto como fato e não como valor.

Nesse sentido, convém trazer à luz o entendimento de Norberto Bobbio  (1995, p. 136): “O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social.”

No próximo tópico trataremos do direito constitucional à luz do positivismo jurídico.

1.6  O Direito Constitucional no Estado de Direito

O positivismo jurídico foi o substrato do Estado de Direito, que é instaurado a partir de um constitucionalismo embasado numa ordem hierárquica, ficando a Constituição no topo da pirâmide normativa para servir de fundamento às leis, conforme explicitado por Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, texto em que o autor preconiza o estabelecimento do ordenamento jurídico segundo uma ordem escalonada.

Nessa contextura, verifica-se que o único papel do texto constitucional é o de organizar as estruturas e poderes do Estado, surgindo daí o fundamento de validade das normas infraconstitucionais, pois a constituição indica qual o órgão e o modo pelo qual aquelas normas serão criadas, bem como o de limitar a ingerência estatal na vida dos indivíduos, o que se dá com o reconhecimento de certos direitos ditos fundamentais.

Ocorre que as normas, com exceção das disposições orgânicas, trazidas pela Constituição não são dotadas de eficácia direta, porque é da essência do Estado de Direito que os direitos sejam prescritos em leis. Esse modelo tem, portanto, duas conseqüências: a instituição de programas e a indiscutibilidade quanto à legitimidade das leis.

Tal assertiva se torna evidente quando tomamos como exemplo a Constituição de Weimar, que imbuída pelo positivismo jurídico, prescrevia diversos direitos, porém admitia que o presidente do Reich neles influíssem e que o Reichstag pudesse deliberar por sua restrição ou supressão, o que de fato ocorreu quando da edição das Leis de Nuremberg, aprovadas pelo parlamento por iniciativa do chanceler do Reich, Adolf Hitler (Nesse ponto, a análise que se faz da Constituição de Weimar é meramente formal, tendo em vista que seus termos só foram revistos após 1945).

1.6.1 Programas constitucionais

Em boa síntese, podemos definir programas como sendo as diretrizes que o texto constitucional prescreve ao Estado, sendo efetivados por disposição legal ? são direitos ainda não efetivados. Como no Estado de Direito quase tudo depende de lei, verifica-se que a grande maioria dos direitos que a Constituição prevê são ineficazes (ao menos formalmente) e, os que tem plena eficácia podem ser restringidos pela vontade legal, se não encontrarem proibição por cláusula pétrea.

 Por estas razões, é de se entender que de nada adianta uma Constituição prever inúmeros direitos se os seus titulares não podem exercê-los em virtude da inexistência de leis que lhes dê regulamentação ou efetivação.

Nesse passo, analisando o Texto Constitucional de 1988, podemos citar um exemplo: o inciso VII do artigo 37 prevê o direito de greve, que mesmo sendo um dos mais importantes na relação de trabalho, nunca pode ser exercido no âmbito da Administração Pública por falta de lei integradora, o que é um grande absurdo, mas isso é tema a ser tratado no próximo capítulo.

Nessa contextura, se percebe que em matéria de direitos a Constituição os dá com uma mão, mas os tira com a outra. Sem lei, a maioria de suas disposições são letras mortas, pois sua viabilização depende da conjuntura política, que nem sempre reflete os anseios do povo.

1.6.2 Indiscutibilidade quanto à legitimidade das leis

No constitucionalismo do Estado de Direito não se discute a legitimidade das leis. Desse modo, pouco importa se uma lei é boa ou ruim; se traz preceito justo ou injusto; se implementa direito ou se o restringe.

Nesse sistema o que importa é se a lei foi criada segundo o rito que lhe foi previsto, daí o dizer de Herbert Hart (2005, p. 116), para quem a validade de uma regra jurídica se dá pelo simples fato de ela existir, devendo ser aplicada sem que seja metafisicamente interpretada, pois, em isso ocorrendo, o intérprete irá atribuir à norma uma propriedade não detectável por meios empíricos.

Desse modo, o conteúdo de uma norma nada significa para a sua validade. Uma coisa está dissociada da outra, pois, conforme leciona Hans Kelsen (2006, p. 242), o elemento fundamental do positivismo jurídico reside no fato de não se poder recusar validade a uma norma em razão de seu conteúdo: “uma norma é válida não porque tem um certo conteúdo, mas sim porque foi formalmente criada de acordo com as normas previstas no ordenamento.” (LAFER; 1988, p. 53).

A Constituição, portanto, nesse sistema não tem grande importância no que se refere ao conteúdo das normas, porque a lei é que ocupa o lugar de primazia, visto que os direitos e deveres decorrem dela a partir do processo legislativo, cabendo ao Executivo e ao Judiciário aplicá-la sem detença, pouco importando os seus efeitos.

É por causa desse efeito que Canotilho (1999, p. 95-96), fazendo referência às lições de Raymond Carré de Malberg, entende que, nesse sistema, não há supremacia constitucional, porque neutralizada pela lei, que não comportava inquirições de valor, razão pela qual ao Poder Judiciário tocava, unicamente, saber se a lei havia passado pelo procedimento legiferante prescrito no Texto Fundante. Como já dissemos, sendo legítima do ponto de vista constitucional, a sentença é mera aplicação automática da lei.

Estudando esse fenômeno, Ronald Dworkin (2002, p. 41) diz que o sistema positivista é formado unicamente por regras, que respeitam o processo de aplicação binário do tudo ou nada. Ou seja, ou a norma é válida ou inválida ou aplicável ou não ao caso concreto.

O sistema binário, portanto, limita a hermenêutica jurídica a meros critérios gerais de subsunção da lei ao caso concreto — procedimento silogístico. Essa situação representa a tônica do pensamento liberal clássico, em que as normas, sejam legais ou constitucionais, buscavam regular a mínima intervenção nas liberdades individuais. Daí dizer que o Estado, nesse período, era absenteísta, pois tal concepção, segundo pensavam os teóricos, trazia a almejada segurança jurídica, haja vista que restringia muito a atuação estatal na vida individual.

Isso explica, portanto, os paradigmas positivistas da avaloração do Direito e da preeminência da lei, conforme se denota do entendimento de Tércio Sampaio Ferraz Júnior (2003, p. 232): “Nos regimes constitucionais, com base na Constituição, são elaboradas leis, que, no quadro geral da legislação como fonte, são de especial importância. As próprias Constituições costumam garantir-lhes uma proeminência na forma de um princípio: ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”

Assim, como bem ensina Bobbio (1995, p. 135), a interpretação jurídica no sistema positivista, é objetiva e axiologicamente neutra, compreendendo apenas juízos de validade e não juízos de valor moral. O seu processo é puramente mecânico, razão pela qual a interpretação tanto da lei quanto da Constituição são feitas de forma igual, isto é, limitadas aos cânones da interpretação jurídica tradicional (BARROSO; BARCELLOS; 2003), não havendo, por conseguinte, em que se falar da supremacia integral do texto constitucional, pois isso só ocorre com relação às normas orgânicas.

Não distinguindo a lei da norma constitucional, que por natureza deve ater-se aos direitos humanos ou fundamentais, o positivismo, em nome da lei, acaba subjugando o homem. Exemplo típico disso ocorreu na Europa com o nazi-facismo e, mais recentemente, na África do Sul, país em que a segregação racial era considerada válida, porquanto expressa em lei.

Em suma, esse é o efeito que se verifica quando do culto formal da lei, caracterizado pelo desprezo ao caráter axiológico dos fenômenos sociais e dos postulados éticos e morais.

Nessa contextura, é pertinente a crítica de Luigi Ferrajoli, que vê na distinção entre Direito e Moral propiciada pelo positivismo, a forma apta para justificar o poder ilimitado do Estado (FERRAJOLI; 2002, p. 178-179).

É esse o ponto em que se funda a ruptura do Estado de Direito, que passamos a ver em seguida.

1.7  A ruptura do Estado de Direito

Diante do que foi visto até o momento, podemos qualificar o Estado de Direito como uma construção humana que assentou um novo paradigma político, que rompeu com a estrutura do Estado Absolutista, cujo mote é a autoridade irrestrita do “príncipe”.

A arbitrariedade foi rompida, naturalmente, pela revolução e em seguida instituiu-se a concepção política de submissão à lei, que se aplicava, inclusive, ao “soberano”, de modo que sua ação ficou mais restrita, posto que tinha de guardar respeito aos parâmetros legais — princípio da legalidade e consequente limitação do poder político.

Disso, pode-se concluir que o Estado de Direito tinha como finalidade a garantia da segurança jurídica, porém tal desiderato não foi alcançado, posto que, se antes o príncipe era a figura opressora, agora a lei passou a oprimir e tal só foi possível porque, nesse sistema, não havia a preocupação com o conteúdo da norma. Logo, se esta dispusesse a supressão de determinado grupo humano sob o pretexto de nocividade, tal preceito deveria ser acatado, sob pena de violação à ordem legal.

Tal foi o que ocorreu, por exemplo, com o regime instituído, na Alemanha, pelo Partido Nacional Socialista, que combateu dura e cruelmente minorias, notadamente os judeus, sob o manto da legalidade.

Dita situação só foi possível, porque, como já vislumbrado, a lei era analisada, puramente, segundo seu aspecto formal, nada valendo a análise de seu conteúdo, que poderia ser axiologicamente bom ou ruim.

Isso propiciou a perseguição nazista, que não era revolucionária, mas legal, pois tudo quanto ocorreu naquele regime estava lastreada na legislação.

Lembremos-nos das Leis de Nuremberg de 15 de setembro de 1935, conjunto normativo composto de três documentos: a Lei de Cidadania do Reich, a Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemãs e o Primeiro Regulamento para a Lei de Cidadania do Reich (MILMAN; 2004, p. 1).

Por esse conjunto normativo, as minorias indesejadas pelo regime (principalmente os judeus) foram postos em condição sub-humana, pois as pessoas que nelas estavam inseridas passaram a ser tidas como apátridas, logo não poderiam gozar os direitos atribuídos aos nacionais alemães puros, razão pela qual ficaram desprovidos de qualquer proteção jurídica o que culminou na barbárie do holocausto, que contabilizou cerca de seis milhões de vítimas fatais.

Como se vê, tal fato histórico nos dá os melhores argumentos para vislumbrarmos a ineficiência do positivismo jurídico, que não conseguiu romper as barreiras da arbitrariedade.  Ao contrário, as acentuou, especialmente sob os regimes legais do nazi-facismo, que puseram a maquinaria jurídica a serviço de seus propósitos.

Nesse sentido nos fala Luís Roberto Barroso  (2006, p. 140): “Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade.”

Com a derrocada do Estado de Direito ao fim da Segunda Guerra Mundial houve a necessidade do estabelecimento de uma nova estrutura político-jurídica, que amparada numa nova concepção do Direito pudesse, efetivamente, conter o arbítrio.

É nesse contexto que surge o Estado Democrático de Direito e o movimento neoconstitucional, que passamos a analisar no próximo capítulo.

Sobre o autor
Emílio Gutierrez Sobrinho

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Rio Preto-UNIRP; Especializando em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus; Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUTIERREZ SOBRINHO, Emílio. Elementos fundamentais do constitucionalismo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3651, 30 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24816. Acesso em: 12 nov. 2024.

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