2. ASPECTOS DO NEOCONSTITUCIONALISMO
2.1 A nova função da Constituição
No capítulo antecedente verificamos que o papel do Texto Constitucional no Estado de Direito promoveu efetivamente dois efeitos: organizou as estruturas do Estado e o submeteu ao império da lei.
Tal situação, evidentemente, não trouxe qualquer benefício ao indivíduo, porquanto não impediu que ele sofresse gravíssimas violações, haja vista que os comandos legais se sobrepunham a tudo, inclusive ao próprio ser humano, que, não raras vezes, era visto como objeto do Direito e não como seu sujeito.
Assim, após a Segunda Guerra Mundial, emblematicamente associada à autorizada perseguição de minorias, a doutrina jurídica estabeleceu um mecanismo garantista, capaz de impedir que violações como aquelas ocorressem novamente.
Referido mecanismo deu-se com a compreensão e a valorização dos Direitos Fundamentais, que passou a ser tema afeito, em essência, ao Direito Constitucional, posto que aqueles direitos foram prescritos, no segundo pós-guerra, nos textos fundantes dos Estados europeus, notadamente nos casos italiano e alemão.
Desse modo, o conceito de Constituição ultrapassa os limites da organização do Estado, das funções dos poderes e dos direitos e deveres dos cidadãos para atingir outra gama de interesses com vistas a servir a todos os seguimentos da sociedade, ainda que para tanto não exista unidade social. Essa gama de interesses se revela nos direitos e garantias fundamentais.
É nesse exato sentido o entendimento de Luigi Ferrajoli (CARBONELL; 2005, p. 28): “Una Constitución no sirve para representar la voluntad común de un pueblo, sino para garantizar los derechos de todos, incluso frente a la voluntad popular. Su función no es expresar la existencia de un demos, es decir, de una homogeneidad cultural, identidad colectiva o cohesión social, sino, al contraria, la de garantizar, a través de aquellos derechos, la convivência pacífica entre sujetos e intereses diversos y virtualmente en conflicto. El fundamento de su legitimidad, a diferencia de lo que ocurre con las leyes ordinarias y las opciones de gobierno, no reside en el consenso de la mayoría, sino en un valor mucho más importante y previo: la igualdad de todos en la libertades fundamentales y en los derechos sociales, o sea en derechos vitales conferidos a todos, como límites y vínculos, precisamente, frente a las leyes y los actos de gobierno expresados en las contingentes mayorías.”
Portanto, pelo viés do neoconstitucionalismo haverá a ampliação das funções do Texto Constitucional, que se incumbirá de, além de organizar o Estado, prescrever e garantir a aplicação dos direitos fundamentais, que em essência se vinculam aos valores da liberdade e igualdade, razão pela qual podemos entender que são a expressão positivada dos direitos preconizados pelos jusnaturalismo.
Sua função é assegurar a existência pacífica dos diversos seguimentos do corpo social, de modo que um não subjulgue o outro e promover efetivas barreiras à atuação do Estado. Assim, o Texto Constitucional, além de ser fonte formal, passa a ser a fonte material das normas jurídicas, razão pela qual a normas infraconstitucionais tem de guardar respeito ao que ele preconiza.
É nesse ponto que surge a teoria do garantismo jurídico, doutrina que busca dar efetividade e fundamento a essa nova perspectiva da Constituição, conforme passamos a explicar.
2.1.1. A teoria do garantismo jurídico
Referida teoria tem três significados: pelo primeiro, ela representa um modelo normativo de direito pautado por estrita legalidade quanto à restrições a direitos, buscando, com isso, maximizar a liberdade individual; pelo segundo, o garantismo é uma teoria de validade e efetividade das normas; pelo terceiro significado, a teoria designa uma filosofia política que, no dizer de Ferrajoli (2002, p. 685), “requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade”, vale dizer, a legitimação da norma e a sua perda de legitimação dependem, exclusivamente, do aspecto moral (externo) da norma, não levando-se em consideração, portanto, o aspecto interno (aspecto normativo).
O propósito dessa teoria é bastante simples: limitação do poder e, consequente, aumento da liberdade, tendo como vetor o princípio da legalidade, que é o postulado jurídico garantista de direitos e inibidor de arbitrariedades.
A essência da teoria está fincada na distinção entre validade e efetividade das normas e isso ocorre, de acordo com Luigi Ferrajoli (2002, p. 698-699), porque: “[...] ‘direito vigente’ não coincide com ‘direito válido’: é vigente, ainda que inválida, uma norma efetiva que não obtempera todas as normas que regulam a sua produção. Nem coincide, de outra parte, com ‘direito efetivo’: é vigente, ainda que não efetiva, uma norma válida não obtemperada pelas normas às quais regula a produção.”
Nessa linha de pensamento, ao analisar as normas jurídicas sob o enfoque da teoria garantista, Sérgio Cadermatori (1999, p. 79-80) explica que a norma é justa quando responde positivamente a determinado critério de valoração ético-político (tal critério se extrai do Texto Constitucional, notadamente no que concerne ao previsto nos Direitos Fundamentais). Para se viger, basta que a norma não tenha vícios formais, isto é, vício de elaboração, sendo criada pelo órgão competente, segundo as regras do processo legislativo. Considera-se válida a norma cujo conteúdo material não esteja em descompasso com o sistema jurídico. A eficácia, ou efetividade, vincula-se à observância da norma.
Tais distinções são importantes para a garantia dos direitos, pois a norma não é analisada somente pelo aspecto formal (direito vigente), mas também pelo aspecto material, de conteúdo, que está vinculada ao direito efetivo. Esse é o exato ponto diferenciador entre o velho e novo constitucionalismo.
Pelo antigo constitucionalismo, o direito seria válido desde que ele fosse vigente, isto é, desde que fosse criado segundo o rito previsto, pouco importando seu conteúdo. Os conceitos de vigência e validade se confundiam, portanto.
Conforme vimos, isso não conteve a arbitrariedade, fator determinante para a evolução do constitucionalismo, que passou a ter como foco primordial o conteúdo do direito, a fim de efetivamente garantir os direitos fundamentais dos indivíduos.
É a essa análise profunda, de conteúdo, que se propõe a teoria garantista, tendo como esteio os direitos fundamentais, qualificando-os com os atributos da inviolabilidade, inderrogabilidade, indisponbilidade, inalienalibidade e universalidade.
Pelo aspecto garantista, os direitos fundamentais são divididos em dois grupos: direitos fundamentais de liberdade e direitos fundamentais sociais, ou, no dizer de Ferrajoli (2002, p. 733), “direito de e direitos a”.
Os direitos de liberdade são negativos, porquanto correspondem às proibições da atuação estatal. Já os direitos sociais são positivos, pois eles traduzem as obrigações do Estado em relação ao indivíduo, qualquer que seja à sua classe social (atributo da universalidade).
Com isso, percebe-se que o Estado passa a ter, também, função instrumental, pois ele se torna meio para promoção de diversos direitos. O Estado sai, dessa forma, da concepção pura do liberalismo clássico (totalmente absenteísta), para evoluir para uma concepção preocupada em concretizar direitos.
Nesse ponto, é esclarecedor o entendimento de Luigi Ferrajoli (2002, p. 754): “A gestão do poder não como um fim em si mesmo, mas como instrumento de tutela e satisfação dos direitos fundamentais, e de outro a clara consciência das suas margens irredutíveis de ilegitimidade jurídica e política, para a sempre presente diversidade entre dever ser normativo e ser efetivo.”
Da valorização dos textos fundantes, na perspectiva analisada, o Estado de Direito cede lugar a uma nova organização política — Estado Democrático de Direito — que contempla um modelo jurídico no qual a Constituição, à parte de organizar o Estado, disciplina a forma e o conteúdo da produção legislativa, impondo ao legislador, obrigações e proibições, tendo como referência os direitos fundamentais.
Nesses termos, trazemos à luz outra lição de Ferrajoli (CARBONELL; 2005, p. 18): “En el Estado constitucional de Derecho la Constitución no sólo disciplina las formas de producción legislativa sino que impone también a esta prohibiciones y obligaciones de contenido, correlativas unas a los derechos de libertad y las otras a los derechos sociales, cuya violación genera antinomias o lagunas que la ciencia jurídica tiene el deber de constatar para que sean eliminadas o corregidas.”
Em virtude disso, os preceitos constitucionais deixam de ter feição programática, tal qual assinalado no Estado de Direito, passando a ter força vinculante perante todos. Tal fenômeno é muito bem explicado por Peña Freire (1997, p. 59): “El paso del Estado legislativo al constitucional presupone la afirmación del caráter normativo de las constituciones, que pasarán a integrar un plano de juridicidad superior, vinculante e indisponible, en línea de principio, para todos los poderes del Estado. Las normas constitucionales son vinculantes – de modo que queda definitivamente superada la imagen débil de la juridicidad constitucional característica del período liberal – al ser situadas por encima de los poderes del Estado y fuera del campo de acción y pugna política. El constitucionalismo de este siglo no es sino un intento de superar esta debilidad estructural de lo jurídico. La afirmación del carácter jurídico e inmediatamente vinculante de la constitución, su rigidez y la calificación de determinados referentes jurídicos, como son los derechos fundamentales, vinculantess a todo poder, son ejemplos de este proceso.”
Dessas ideias, portanto, podemos verificar que a inovação ocorrida, na teoria jurídica, após o segundo pós-guerra foi a garantia dos direitos fundamentais, que vai além da simples prescrição de tais direitos no texto constitucional, que no paradigma do positivismo jurídico não significava muita coisa pelos motivos já vistos.
Essa visão garantidora é o fim o neoconstitucionalismo e ela se viabiliza pela análise conteúdo da norma, que terá como parâmetro aqueles direitos previstos na Constituição.
É nesse sentido que nos parece residir a explicação de Zagrebelsky (2005, p. 34): “la ley, por primeira vez en la época moderna, viene sometida a uma relácion de adecuación, y por tanto de subordinación, a um estrato más alto de derecho estabelecido por la Constitución.”
Desse inter-relacionamento entre a prescrição e garantia da aplicação dos direitos fundamentais (controle de conteúdo da norma) podemos traçar um conceito de neoconstitucionalismo, acentuando tratar-se de uma nova forma de se interpretar o Direito a partir da valorização dos direitos humanos, cuja expressão máxima está circunscrita nos direitos fundamentais constantes nas Cartas Políticas de cunho democrático.
2.2. O pós-positivismo jurídico
Se o positivismo jurídico deu fundamento filosófico ao Estado de Direito, conforme verificado, o pós-positivismo jurídico se afigura a base sobre a qual repousa o movimento neoconstitucional (BARROSO; 2003, p. 140).
No Estado de Direito, influenciado pelo positivismo jurídico, a norma jurídica era interpretada tal qual posta pelo Estado, de modo que não havia, conforme já ressaltado, qualquer influência ética nesse ato ou nos atos concernentes à atividade legiferante, razão pela qual era possível a existência de lei imoral ou que ferisse o ideal de justiça.
Tal modelo, em virtude das razões sobejamente conhecidas, fracassou e, visando dar solução às sequelas do positivismo jurídico (Estado de Direito) surge o pós-positivismo, que fundamentalmente pretende fazer com a que a ética passe a influenciar o Direito, tanto no que se refere à sua aplicação quanto no que se refere à sua facção. Espera-se, dessa forma, evitar que ideologias espúrias fiquem escondidas pelo manto da legalidade.
Desse modo, podemos agora entender o mote do neoconstitucionalismo e, por conseguinte do pós-positivismo: revestir o direito posto com roupagem ética e tal se extrairá dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos, que passam, agora, a ter papéis efetivos no ordenamento jurídico e não simples papéis secundários como comumente ocorreu (e por vezes ocorre até hoje), notadamente no que se referia aos direitos fundamentais, que quase sempre não eram efetivados em virtude de estarem associados a programas constitucionais.
É nesse ponto que se circunscreve a teoria do garantismo, porquanto, segundo a óptica pós-positivista a lei não poderá deixar de observar os mandamentos morais, que encontram sua expressão positivada nos direitos fundamentais e nos princípios do ordenamento jurídico (notadamente os extraídos do Texto Constitucional), que passam a ser vistos como norma jurídica dotada de aplicabilidade e não mais como simples programas ou como mera diretriz interpretativa.
Pretende-se com isso estruturar o ordenamento jurídico de uma forma que possibilite o pluralismo das opiniões e que ele não se esfacele ou que não haja uma subversão de sua finalidade. Tal se pretende em virtude da necessária formulação dos direitos fundamentais e dos princípios jurídico segundo critérios democráticos, que, além de acolher o princípio majoritário, cuida da proteção de qualquer minoria.
É nesse sentido o entendimento de Gustavo Zagrebelsky (2005, p. 39): “El siglo XX ha sido definido como el del ‘legislador motorizado’ en todos los sectores del ordenamiento jurídico, sin exclusión de ninguno. Como consecuencia, el derecho se há ‘mecanizado’ y ‘tecnificado’. Las Constituciones contemporáneas intentan poner remedio a estos efectos destructivos del orden jurídico mediante la previsión de un derecho más alto, dotado de fuerza obligatoria incluso para el legislador. El objetivo es condicionar y, por tanto, contener, orientándolos, los desarrollos contradictorios de la producción del derecho, generados por la heterogeneidad y ocasionalidad de las presiones sociales que se ejercen sobre el mismo.”
Desse modo, percebe-se que o pós-positivismo dá ao ordenamento jurídico uma formatação cíclica, pois impede qualquer movimentação que contrarie os ditames morais, pois ao trazer para o centro do ordenamento jurídico os princípios e os direitos fundamentais, imprimindo-lhe efetiva normatividade, busca condicionar a aplicação e a facção do Direito, razão pela qual torna-se impossível uma interpretação constitucional eticamente avalorativa (SARMENTO, 2004, p. 78).
Nesse sentido, também temos o entendimento comum de Hugo Garcez Duarte e Leonardo Augusto Marinho Marques (2008, p. 3597): “As teorias pós-positivistas perquirem que a regra não deva ser considerada como inquestionável e superior aos valores que a inspiram. Essas teorias chamam a atenção do aplicador do direito para os fundamentos do direito, ou seja, que as regras devam ser interpretadas à luz do alicerce de todo e qualquer ordenamento, os princípios.”
Não se pode conceber, portanto, direito fundamental ou princípio jurídico que não esteja carregado de valores éticos, pois do contrário não receberiam essa qualificação e nem estariam previstos, expressa ou implicitamente, no Texto Constitucional. Também não se pode conceber norma jurídica infraconstitucional que contrarie tais valores, pois a edição da disposição jurídica fica condicionada àqueles ditames.
Vê-se que o sistema foi concebido para não permitir a supressão dos valores éticos.
É preciso ressaltar, ainda, que no âmbito do pós-positivismo, o jusnaturalismo também exerce influência marcante, posto que, novamente, o conhecimento do Direito Natural (expresso nos direitos fundamentais) serve de base para conter a arbitrariedade, mas com a seguinte diferença de acepção: se no período das revoluções liberais burguesas o Direito Natural era usado para conter a arbitrariedade do príncipe (Estado Absoluto), agora, no período do segundo pós-guerra, ele servirá de base para barrar a “arbitrariedade da lei” (Estado de Direito), visando impedir que o Direito se torne nefasto instrumento de dominação de classe sobre outra, haja vista, que, conforme assinalado, o Direito deve servir a todos.
Assim, é possível asseverar que se o positivismo jurídico buscava barrar a arbitrariedade pessoal do príncipe pelas virtudes do princípio da legalidade, o pós-positivismo jurídico busca barrar a arbitrariedade da lei afirmando que a finalidade do Direito é garantir a justiça, bem maior encarnado nos princípios constitucionais, o que permite uma interpretação moral dos preceitos da Constituição, tornando efetivos e até positivado, desse modo, os valores do direito natural (SARMENTO; 2004, p. 79).
O aplicador do Direito, pela óptica pós-positivista, passa a analisar os valores embutidos no ordenamento jurídico, notadamente os que estão consagrados no Texto Constitucional, para dar solução a um determinado caso concreto, razão pela qual, a interpretação ancorada no procedimento silogístico, amplamente difundido no período positivista, cede lugar para uma interpretação eminentemente axiológica.
Nesse sentido diz a doutrina (DUARTE; MARQUES; 2008, p. 3598): “O aplicador do direito deve analisar o caso concreto à luz dos princípios e da abertura axiológica que este lhe concede. Sua atividade não deve restringir-se a simples subsunção do fato a norma, mas sim, corroborada de todas as nuanças que o fato envolve, refletindo-o humanística, técnica e socialmente, com vistas à prolação judicial justa.”
Todo esse ideário nos permite concluir que o movimento neoconstitucional representa uma verdadeira revolução no pensar jurídico, pois introduz novos elementos que devem ser levados em consideração quando da análise do Direito.
Tais elementos são os fenômenos sociais, que passam a condicionar a aplicação da norma jurídica, indo muito além do simples cientificismo kelseniano, passando a reconhecer os valores comuns de uma comunidade, com vistas a concretizar a justiça, segundo os preceitos constitucionais, que, por sua natureza, devem possuir vocação universalista e, por isso mesmo, imparcial.
Dessa maneira, o Direito, conforme ressaltam Guilherme Assis de Almeida e Martha Ochsenhofer Christmann (2002, p. 17), deve sempre buscar concretizar o ideal de justiça, caso contrário perde o seu sentido e o seu significado, não merecendo, inclusive, ser qualificado como Direito.
O pós-positivismo, da forma como expressamos, busca dar ao Direito uma ampla concepção, pois ele preconiza a influência do Direito Natural no ordenamento jurídico, que tem como ideal maior a justiça, entendida esta em sua ampla concepção, que necessariamente deve abarcar a moral.
A raiz desse entendimento remonta à Marco Túlio Cícero, pois ele já fazia esse raciocínio, conforme visto no seguinte comentário expresso em seu tratado sobre as leis: “Now if nature hath given us law, she hath also given us justice, — for as she has bestowed reason on all, she has equally bestowed the sense of justice on all. And therefore did Socrates deservedly execrate the man who first drew a distinction betwen the law of the nature and the of morals, for he justly conceived that this error in the source of most human vices.” (BARHAM; 1841, p. 48-49)
A lei, no pós-positivismo, está submetida, portanto, a princípios e valores encontrados nos princípios e nos direitos fundamentais, de modo que o texto constitucional, por si, passa a ter grande importância, afinal torna-se instrumento para o reconhecimento da legitimidade do Direito.
Em virtude disso, é possível extrair suas características básicas, que passamos a analisar no próximo tópico.
2.3. As características do Texto Constitucional
Basicamente, sob a óptica do pós-positivismo e, por conseguinte, do neoconstitucionalismo, é possível reconhecer duas características do Texto Constitucional: a rigidez e a forma escrita.
A rigidez das normas constitucionais decorre do que foi exposto no tópico anterior. A Constituição expressa a ideologia do ordenamento jurídico, de modo que a sua rigidez é necessária para garantir que as normas infraconstitucionais respeitem os seus ditames, pois, do contrário, não haveria dificuldade em subverter ou conspurcar o ideal democrático do ordenamento jurídico.
É nesse sentido o entendimento de Nicola Matteucci (1998, p. 25): “Para esta finalidad, para garantizar realmente los derechos, la constitución debe ser rígida e inflexible, en el sentido de que sus normas no pueden ser modificadas ni interpretadas por el poder legislativo ordinario, ya que son superiores jerárquicamente.”
A rigidez, a nosso sentir, decorre de duas causas: a supremacia da Constituição e a indicação, em seu corpo, do núcleo imutável, convencionalmente chamado de cláusulas pétreas.
O Texto Constitucional é supremo porque está, em relação às demais normas no sistema jurídica, em posição hierárquica superior pois, como já visto, ele é a fonte formal e o paradigma de conteúdo do Direito — aqui se insere a principal característica do novo direito constitucional.
Tal supremacia se faz sentir quando analisamos o processo de modificação da Constituição, que é mais complexo do que a modificação das normas infraconstitucionais. Em geral, tal complexidade surge com a restrição da iniciativa à propositura da mudança e à exigência de quórum qualificado para sua aprovação.
A par disso, a rigidez também se faz notar pela existência de núcleo imodificável da Constituição. No caso brasileiro, tal núcleo está previsto no parágrafo 4º do artigo 60 do Magno Texto.
Em geral, as cláusulas pétreas buscam proteger as normas fundamentais do ordenamento jurídico, isto é, as normas que expressam a ideologia do sistema. Na experiência brasileira, temos como cláusulas pétreas a normas atinentes à organização geral do Estado, à universalidade da cidadania e aos direitos e garantias fundamentais.
Assim, o constituinte brasileiro se preocupou em estabelecer o Estado brasileiro segundo uma visão republicana e democrática, entendendo tais qualificações em seu sentido mais amplo, afinal tratam de uma ideologia.
Diante disso tudo, a forma escrita também é outra característica do neoconstitucionalismo, pois se trata de meio garantidor contra a arbitrariedade, haja vista que por tal forma, conforme leciona Giuseppe de Vergotini (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1986, p. 260), possibilita-se à estabilidade e conservação dos valores ideológicos e políticos de interesse da sociedade.
Assim, quanto maior a estabilidade das estruturas do ordenamento jurídico menor será a arbitrariedade.
É preciso ressaltar que tais características não são ínsitas ao movimento neoconstitucional tão somente, porque já eram presentes no constitucionalismo. Apenas a ressaltamos nesse capítulo para explicitar a diferente entre o novo e o velho constitucionalismo: enquanto no antigo, tais características se vinculavam ao culto ao direito positivado, no novo elas visam garantir a efetivação dos direitos.
2.4. A nova interpretação da Constituição
A preocupação do neoconstitucionalismo é com a efetivação dos direitos consagrados no ordenamento jurídico, notadamente os que se encontram dispostos no Magno Texto. Para tanto, desenvolveu-se uma nova forma de se interpretá-los, levando-se em conta todas as cláusulas constitucionais, principalmente os princípios expressos e implícitos, que passam a ter plena normatividade:
É o que diz a doutrina (BARROSO; BARCELLOS; 2003, p. 307): “As normas constitucionais conquistaram o status de normas jurídicas, dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e imediatamente todas as situações que contemplam. Mais do que isso, a Constituição passa a ser a lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas infranconstitucionais.”
Ocorre que a aplicação dos princípios constitucionais não se faz segundo o rito do positivismo jurídico, isto é, segundo um simples caso de subsunção, porquanto o seu âmbito de incidência é muito vasto, podendo contemplar diversas situações.
Por essa razão, para que se dê a sua aplicação, de modo a produzir efeitos constitucionalmente adequados, será necessário a utilização de elementos que surjam do caso concreto posto sob análise.
Tais elementos, como já assentado anteriormente, são os valores suprapositivos que permeiam a questão posta em lide, daí, porque não nos cansamos de repetir que a pós-positivismo busca compreender o Direito os valores morais e sociais.
Nesse sentido, trazemos à lume, novamente, o entendimento de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos (2003, p. 313): “A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos no qual as ideias de justiça e a de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central.”
Sobre esse ponto, Lenio Luiz Streck ressalta a importância do giro linguístico para a nova interpretação constitucional. Isso ocorre, porque tal movimento rompe com a metodologia positivista, que se ancorava, unicamente, num cientificismo exacerbado, segundo o qual a realidade social e os valores éticos não tinham qualquer importância para a compreensão do Direito.
Para entender essa proposição, é preciso fazer uma breve digressão filosófica a fim de assentar alguns conceitos sobre a teoria da linguagem e do giro linguístico à luz do Direito.
Em termos bem simples, a linguagem sempre foi vista como um mero instrumento usado para o sujeito verter o conhecimento que tinha sobre dado objeto posto sob análise. A linguagem, nesse sentido, tinha a função de expressar a ordem objetiva das coisas.
É o que nos ensina Aurora Tomazini de Carvalho (2012, p. 13): “Existia, nessa concepção, uma correspondência entre as ideias e as coisas que eram descritas pela linguagem, de modo que o sujeito matinha uma relação com o mundo anterior a qualquer formação linguística. O conhecimento era reconhecido como a reprodução intelectual do real, sendo a verdade resultado da correspondência entre reprodução e o objeto referido. Uma proposição era verdadeira quando demonstrava a essência de algo, já que a linguagem não passava de um reflexo, uma cópia do mundo.”
Tal paradigma começou a ser contestado, no século XX, quando da eclosão da corrente filosófica conhecida como giro linguístico, que teve como precursor Ludwig Wittgenstein, que estabeleceu os marcos da filosofia da consciência, que preconiza ser a linguagem mais do que simples instrumento de comunicação do conhecimento já existente.
Por essa escola de pensamento, a linguagem passa a ser condição do conhecimento, que deixa ser visto como a relação havida entre sujeito e objeto, mas como a relação havida entre linguagens.
Desse modo, não existe mais um mundo por si próprio, mas sim um mundo havido pela linguagem, que expressa e concebe o objeto. Daí vem a máxima difundida entre os estudiosos do assunto: o sujeito só conhece o mundo quando ele é vertido em linguagem, produto de interpretação.
O conhecimento, portanto, deixa de ser a reprodução do mundo real, passando a ser considerado a constituição para o sujeito que pensou e refletiu sobre ele. Desse modo, não cabem mais verdades absolutas, pois: “Na verdade, o que conhecemos são construções linguísticas (interpretações) que se reportam a outras construções linguísticas (interpretações), todas elas condicionadas ao contexto sociocultural constituído por uma língua. Nesse sentido, o objeto do conhecimento não são as coisas em si, mas as proposições que as descrevem, porque delas decorre a própria existência dos objetos.” (CARVALHO; 2012, p. 15)
É por essa razão, portanto, que se considera a importância da viragem linguística para a nova interpretação do Direito e, por que não dizer, para a derrocada do positivismo jurídico.
Nesse sentido temos o seguinte entendimento: “Sendo assim, em face da absoluta obsolescência do velho positivismo, um novo paradigma filosófico deve orientar as ciências jurídicas, e que deve ser construído a partir da viragem lingüístico-ontológica, pois este giro lingüístico-hermenêutico “proporciona um novo olhar sobre a interpretação e as condições sob as quais ocorre o processo compreensivo”, conforme leciona Lenio Luiz Streck. Não há mais como sustentar posições que proponham regras (método) ou cânones para o processo interpretativo, pois todos estes, como bem demonstrou Gadamer, não passam de argumentos arbitrários sob o predomínio da objetividade ou da subjetividade.” (BATISTA; SALDANHA; 2009, p. 169)
Para arremate: a viragem linguística possibilita a compreensão de que o Direito deve ser influenciado por conceitos éticos e que ele é inseparável da realidade a que está vinculado. Dessa maneira, supera-se o entendimento de que a interpretação do Direito se dá por si próprio (perspectiva epistemológica do positivismo jurídico).
É por essa razão que Lenio Luiz Streck assevera que não mais interpretamos para compreender (tal qual ocorria no positivismo jurídico), mas sim compreendemos para interpretar (tal qual ocorre no pós-positivismo, em que levamos para o Direito toda a carga valorativa que se extrai da experiência social).
2.5. As características do neoconstitucionalismo
Assentadas essas considerações que servem conceituar o movimento neoconstitucional, é possível trazer à lume suas características. Tal abordagem ajudará no perfeito entendimento do assunto.
Eis as características: supremacia do texto constitucional; garantia, promoção e preservação dos direitos humanos/fundamentais; força normativa dos princípios constitucionais; constitucionalização do Direito; ampliação da jurisdição constitucional.
2.5.1. Supremacia do Texto Constitucional
Dizer que o texto constitucional é supremo é dizer que suas disposições ditam a forma de criação e o conteúdo do Direito, de modo que não se pode conceber norma infraconstitucional que contrarie suas disposições. A Constituição é suprema, porque nela estão os valores supremos do ordenamento jurídico (MACHADO; 2005, p. 44).
Essa supremacia traz duas implicações: a primeira é que caberá ao Estado a fiscalização da constitucionalidade das normas, senão tal supremacia restaria fragilizada. No sistema jurídico brasileiro, como bem sabemos, o controle de constitucionalidade das normas é feito por um sistema extremamente complexo, haja vista a permissão para que todos os poderes constituídos o exerça.
A outra questão reside na normatividade de todas as disposições constitucionais, inclusive os princípios, sejam eles expressos ou implícitos. Se a Constituição está, com relação à outras figuras normativas, em posição hierárquica superior não há razão para que suas prescrições não tenham o devido caráter vinculante.
É por isso que se diz que no pós-positivismo jurídico se inaugura a fase da hegemonia axiológica e normativa dos preceitos constitucionais. Nessa fase, portanto, “os princípios jurídicos conquistam a dignidade de normas jurídicas vinculantes, vigentes e eficazes para muito além da atividade integratória do Direito.” (ESPÍNDOLA; 1998, p. 59)
Desse modo, pela supremacia constitucional, busca dar à norma constitucional eficácia plena, pois ela tem a pretensão de ser bastante em si, de modo que é dever de todos efetivá-las (daí o princípio efetividade das normas constitucionais).
Assim, a Constituição perde o seu caráter de fonte indireta de direitos para ser fonte direta.
2.5.2. Garantia, promoção e preservação dos direitos humanos ou fundamentais
De início é preciso esclarecer que estamos tomando como sinônimas as expressões direitos humanos e direitos fundamentais. Assim procedemos porque entendemos que as expressões não guardam diferenças quanto ao seu âmbito de proteção, ou seja, protegem os mesmos bens jurídicos.
Para fins didáticos, esclarecemos que a doutrina, de modo geral, vê diferença: os direitos fundamentais são prescrições jurídicas limitadas no tempo e no espaço, enquanto que os direitos humanos são universais.
Feita essa divagação, cumpre-nos, para melhor entendimento do tema, definir quais são os direitos fundamentais, o que se constitui numa tarefa hercúlea, pois, em geral, eles não tem um conteúdo fixo, conforme anota Edilsom Pereira de Farias (1996, p. 93): “o conteúdo dos direitos fundamentais é, muitas vezes, aberto e variável, apenas revelado no caso concreto e nas relações de direito entre si ou nas relações com outros valores constitucionais.”
Embora com alguma dificuldade, entendemos possível definir quais são os direitos fundamentais. Para tanto, trazemos à luz a classificação evolutiva dos direitos fundamentais ou humanos, que, segundo entendimento pacífico, articulam-se em pelo menos três gerações ou dimensões da seguinte forma: a primeira geração representa as conquistas dos direitos individuais e políticos, consagrando o valor da liberdade. Na segunda geração surgem os direitos sociais, econômicos e culturais, consagrando o valor da igualdade. Na terceira geração há a consagração dos direitos relativos à paz, ao desenvolvimento econômico e ao preservacionismo ambiental, visando a consagrar o valor da solidariedade.
Assim, partindo dessa evolução é possível fazer um rol dos seguintes direitos fundamentais: direito à vida, à liberdade, igualdade, legalidade, proibição da tortura e de tratamento desumano ou degradante, liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de culto e crença religiosa, liberdade de atividade intelectual e artística, direito à proteção da propriedade e inviolabilidade domiciliar, sigilo de comunicações, liberdade de profissão, liberdade de informação, liberdade de locomoção, direito de reunião, direito de associação, direito à herança, direito de petição, direito à inafastabilidade da jurisdição, direito ao devido processo legal, direito à segurança jurídica e respeito, dignidade da pessoa humana, direitos políticos, direitos sociais (saúde, educação).
Em todos os países que respeitam o princípio democrático tais direitos são assegurados. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 abarcou todos eles, expressa ou implicitamente, seja na forma de regras ou na forma de princípios.
Pelos ditames do movimento neoconstitucional, que prima pela supremacia constitucional, tais direitos devem ser preservados, efetivados e promovidos e a forma como isso ocorre é explicada por três teorias, conforme entendimento de Pedro Lenza (2009, p. 673-677).
A primeira é a teoria dos quatro status formulada por Georg Jellinek. Pelo seu entendimento a pessoas fica diante do Estado de quatro maneiras ou status diversos. Existe o status passivo, situação em que o indivíduo tem deveres a cumprir perante o Estado, seja por meio de mandamentos ou por proibições. Contraponde-se a esse temos o status negativo, situação na qual se defere ao indivíduo um espaço de liberdade intangível para atuação estatal. Há o status positivo, em que é conferido ao indivíduo o direito de exigir do Estado certas prestações, consideradas indispensáveis para si. Por fim, existe o status ativo, dimensão em que a pessoa, exercendo os seus direitos políticos, atua diretamente sobre a vontade do Estado.
A segunda teoria que versa sobre o tema é a que diz respeito sobre eficácia horizontal dos direitos fundamentais. É sabido que os direitos fundamentais tem eficácia nas relações havidas entre o indivíduo e o Estado, mas o mesmo se aplica nas relações entre particulares? A moderna doutrina entende que sim, dizendo que a aplicação horizontal dos direitos fundamentais se dá de forma direta ou indireta.
Segundo Pedro Lenza (2009, p. 676), ocorre a eficácia indireta quando: “Os direitos fundamentais são aplicadas de maneira reflexa, tanto em uma dimensão proibitiva e voltada para o legislador, que não poderá editar leis que viole os direitos fundamentais, como ainda, positiva, voltada para o legislador implemente os direitos fundamentais, ponderando quais devem aplicar-se às relações privadas.”
Já a eficácia direta ocorre quando “alguns direitos fundamentais podem ser aplicados às relações privadas sem que haja a necessidade de intermediação legislativa para a sua concretização” (LENZA, 2009, p. 676), como ocorre, v.g,, com o princípio da igualdade, aplicável às relações de trabalho no sentido de impedir a diferenciação entre os empregados de uma mesma empresa por causa de sua raça.
Por fim, temos a teoria da eficácia irradiante, que ligada à dimensão objetiva dos Direitos Fundamentais (dignidade da pessoa humana, a igualdade substantiva e a justiça social) vincula a atuação estatal à observância de seus preceitos, ou seja, a atuação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário não podem contrariar tais ditames.
2.5.3. Força normativa dos princípios constitucionais e a técnica da ponderação
Já dissemos neste trabalho que o mote do movimento neoconstitucional é a efetivação dos direitos fundamentais mesmo sem a existência de lei. Esse efeito só é possível porque se passou a enxergar nos princípios constitucionais verdadeiras normas jurídicas, superando a tradição positivista que não via neles caráter normativo.
Nessa linha de pensamento, podemos entender que os princípios são normas que ordenam a realização de algo dentro, evidentemente, de suas possibilidades jurídicas, isto é, dentro de seu âmbito de incidência.
Assim, é possível, principalmente na esfera de atuação do Poder Judiciário, a resolução de determinada demanda com base em princípios, especialmente, quando o caso versar sobre direitos fundamentais. E tal já foi feito diversas vezes. Apenas para citar um exemplo, temos o Mandado de Injunção 708 do Distrito Federal, em que o Supremo Tribunal Federal determinou a aplicação, para o setor público, da lei de greve do setor privado (Lei 7.783/89), por vislumbrar que a falta de norma não pode inviabilizar o direito de greve, constitucionalmente previsto e que, portanto, visto como norma jurídica a ser aplicada. A Lei 7.783, no presente caso, serviu apenas para conformar o direito posto na Constituição.
Reconhecendo essa possibilidade temos o escólio de Karl Larenz (1997, p. 674), que vê os princípios como “pautas diretivas de normação jurídica que, em virtude de sua própria força de convicção, podem justificar resoluções jurídicas.”
Em virtude dessa força normativa a doutrina ressalta o caráter supremo dos princípios, que decorrendo da Constituição adquirem a qualificação de norma das normas, conforme verificamos no entendimento de Paulo Bonavides (2006, p. 289): “Postos no ponto mais alto da escala normativa, eles mesmos, sendo normas, se tornam, doravante, normas supremas do ordenamento. Servindo de pautas ou critérios por excelência para a avaliação de todos os conteúdos normativos, os princípios, desde sua constitucionalização, que é ao mesmo passo positivação no mais alto grau, recebem como instância valorativa máxima categoria institucional, rodeada do prestígio e da hegemonia que se confere às normas inseridas na Lei das Leis. Com esta relevância adicional, os princípios se convertem igualmente em norma normarum, ou seja, norma das normas.”
Um grande problema que resulta da aplicação de princípios é o fenômeno da colisão, que ocorre quando uma situação fática pode ser regulada por dois princípios oponentes entre si.
Em casos assim, como saber qual princípio a ser aplicado? Evidente que não se pode escolher um em detrimento de outro (exercício de subsunção) afinal, todo e qualquer princípio tem eficácia ainda que confrontado com outro princípio, pois eles estão no mesmo nível hierárquico, de modo que entre eles não há antinomia a ser vencida, tal como ocorre com as regras jurídicas.
Visando essa situação a doutrina apontou como solução a ponderação de interesses, em que um princípio será aplicado em detrimento de outro sem que este se torne inválido (não se trata, portanto de subsunção). Esse exercício de ponderação é feito exclusivamente à luz do caso concreto, razão pela qual se reforça a fundamental importância que o Poder Judiciário tem na concretização dos valores abarcados na Constituição Federal.
É que nos explica Luís Roberto Barroso . (2004, p. 358): “A ponderação consiste, portanto, em uma técnica de decisão jurídica aplicável a casos difíceis, em relação aos quais a subsunção se mostrou insuficiente, especialmente quando uma situação concreta dá ensejo à aplicação de normas de mesma hierarquia que indicam soluções diferenciadas.”
Referida técnica se impõem diante das diferenças que existem que existem entre as regras jurídicos e os princípios. Embora sejam espécies do mesmo gênero (são normas jurídicas), cada qual guarda características muitos específicas.
Analisando a questão, podemos destacar que os princípios, ao contrário das regras, possuem maior grau de abstração e maior dificuldade de aplicação ao caso concreto (pois carecem de regulamentação). Por outro lado, eles possuem finalidade essencial para o ordenamento jurídico, porquanto relacionam-se ao ideal de justiça, razão pela qual determinam toda a compreensão do direito. Já as características das regras jurídicas são inversas às dos princípios.
Em virtude disso, Ronald Dworkin (2002, p. 39) assevera que: “A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que um regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.”
Postas as diferenças, convém esclarecer, preliminarmente, que a ponderação não é um método matemático de aplicação de princípios e nem mesmo se resume a uma escolha casuística do aplicador do direito. A ponderação de interesses é uma técnica desenvolvida pela doutrina, que é dotada de parâmetros que devem ser estritamente observados, sob pena de a atividade jurisdicional descambar para o mal-fadado ativismo judicial, que redunda numa ditadura de juízes.
Tal técnica se mostra, hoje, essencial para a resolução de conflitos de interesses, em especial para a realidade brasileira, cujo sistema jurídico está ancorado numa Constituição extensa, que normatizou uma vasta gama de bens e interesses jurídicos, refletindo o cenário político ao tempo da instalação da Assembleia Constituinte.
Assim, devido a esse pluralismo de idéias sociais que se encontram contidos no Texto Constitucional, é inevitável os conflitos entre os inúmeros princípios constitucionais, que, numa dada situação, podem trazer valores apostos.
É por causa dessa situação que surge a necessidade de se ponderar os diversos interesses, exercício que, no dizer de Daniel Sarmento (2002, p. 99), deve almejar a “maior objetividade e racionalidade possíveis”.
O exercício de ponderação é feito por fases. Ensina Humberto Ávila que a fase inaugural do procedimento é a preparação da ponderação (2004, p. 95), voltada para a identificação do problema, ou seja, o intérprete avaliará os elementos do caso em análise para saber se há conflito entre princípios e, em havendo, o que será objeto da ponderação.
É nessa primeira fase que o operador do direito irá delimitar o espaço de atuação de cada princípio – análise de seus limites imanentes, que não podem ser restringidos – verificando a sobreposição de alcance dos direitos conflitantes. A ponderação, portanto, versará sobre essa sobreposição.
Delimitado o alcance de cada princípio e reconhecido o conflito passamos à segunda fase, em que deve o intérprete analisar cada princípio em consonância com o Texto Constitucional, buscando extrair o peso genérico de cada um deles. Isso deve ocorrer porque, embora a Constituição Federal não tenha estipulado hierarquia entre as suas normas, a depender do caso concreto determinado princípio traz um valor que deve prevalecer sobre outro (SARMENTO, 2002, p. 103).
Encontrado o peso genérico de cada princípio o intérprete, prosseguindo na luta da ponderação, deve determinar o seu peso específico. Com isso, extrai-se da norma o seu valor, o que possibilita reconhecer com que força um princípio irá restringir o outro (SARMENTO, 2002, p. 104).
Há, por fim, a terceira etapa, denominada “reconstrução da ponderação” (ÁVILA, 2004, p. 96.). Essa fase é voltada a concretizar a ponderação com base em juízo de moderação, que funciona como um permissivo para que os princípios colidentes possam coexistir.
Dessa maneira, a restrição da força de um princípio deve ser a menor possível. Referido juízo de moderação é feito à luz do princípio da proporcionalidade, que congrega três juízos: necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
Nesse passo, a ponderação será necessária se não houver outra maneira, menos gravosa, de se resolver o caso. Diz-se adequada se a ponderação constituir-se em meio hábil para se obter a resolução do caso. A ponderação será proporcional se trouxer um benefício maior frente à restrição sofrida por determinado princípio.
Sem a satisfação desses juízos a ponderação de interesses não será meio útil para solucionar o conflito entre princípios. O cumprimento desses juízos é de fundamental importância porque impedem o ativismo judicial e o excesso na atividade jurisdicional, fatores que garantem a integridade da Constituição.
2.5.4. A constitucionalização do Direito
Ao tratarmos do pós-positivismo dissemos que ele deu nova configuração aos sistemas jurídicos de natureza democrática e, assim o fez trazendo para o centro do ordenamento jurídico o Texto Constitucional, que deixou de ser visto como norma organizadora do Estado e mera fonte de preceitos de conteúdo programático.
Essa nova visão permitiu o desenvolvimento do efeito irradiante da Constituição, em razão do qual as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas à luz das disposições constitucionais. Nesse sentido asseveram Canotilho e Vital Moreira (1991, p. 45): “a principal manifestação da preeminência normativa da Constituição consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida à luz dela e passada pelo seu crivo.”
Tal efeito representa a ampliação dos espaços de constitucionalização. Dessa maneira há que se interpretar, por exemplo, o Código Civil sob a óptica de preceitos como dignidade da pessoa humana, função social da propriedade e dos contratos.
E o mesmo se aplica a todos os ramos do Direito, o que significa, em ultima ratio, que o sentido da divisão do Direito entre público e privado sofre severas restrições.
As disposições constitucionais, com isso, ganham efetividade. Despem-se do caráter meramente formal e passam a ter força normativa vinculante, seja em que relação for. Nada obstaculizará a sua incidência, pois a lei não terá uma razão própria, pois sua significação estará atrelada às normas constitucionais.
Para arrematar o raciocínio trazemos a lição de Luís Roberto Barroso (2003, p. 158): “Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação do direito envolve a aplicação direta ou indireta da Lei Maior.”
Diante do que foi visto, podemos concluir que efeito imediato da constitucionalização do Direito é a ampliação da atividade jurisdicional em duas frentes: uma negativa e outra positiva. Na negativa, caberá ao Poder Judiciário o papel mais intenso ao examinar a adequação das disposições infraconstitucionais e no aspecto positivo caberá a ele a concretização das normas constitucionais.
2.5.5. Ampliação da jurisdição constitucional
Deve-se entender por jurisdição constitucional a interpretação e aplicação direta do Texto Constitucional em qualquer questão que demande um provimento judicial. A nosso ver, esse é o sentido da ampliação, pois, conforme conhecimento trivial, o emprego restritivo dessa forma de jurisdição, nos termos de Hans Kelsen, se dá, tão somente, via controle de constitucionalidade. Noutras palavras: dizer que o neoconstitucional amplia a jurisdição constitucional significa dizer que o órgão responsável por ela deverá, também, efetivar os direitos constantes no Texto Constitucional.
No Brasil, atualmente, esta forma de dizer o Direito está em franco crescimento e alguns fatores concorrem para tanto.
O principal contribuinte dessa ampliação é a nova maneira de se interpretar o Direito, afinal, se ele é visto à luz das disposições constitucionais, por óbvio, os decisórios versarão sobre matéria constitucional, o que pode se dar de muitas formas, seja na implementação de direitos ou no exercício do controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado.
Outra influência é decorrente da própria Constituição Federal, que diretamente prescreveu inúmeros direitos. Isso permite que o particular busque o Poder Judiciário para fazer valer tais direitos, ainda que não exista norma infraconstitucional, afinal as disposições constitucionais têm força normativa.
Referida busca por concretização de direitos tende a aumentar significativamente ao longo dos próximos anos, porque com a crescente melhoria nas condições de educação e informação o povo brasileiro, cada vez mais conhecedor de seus direitos, irá procurar o Poder Judiciário, para em nome da Constituição, exigir a efetivação deles.
Tais fenômenos são verificáveis perante os julgados do Supremo Tribunal Federal. Analisando o trabalho da Corte, percebe-se que qualquer demanda, independentemente de seu objeto, versa sobre uma questão constitucional importante, especialmente no que toca à algum direito ainda não implementado.
Nesse ponto cabe uma importante advertência: não se pode confundir a ampliação da jurisdição constitucional com judicialização da política. Embora esse tema mereça um trabalho próprio é preciso tecer, ainda que brevemente, certas considerações.
Judicialização da política é o fenômeno da implementação, pelo Poder Judiciário, de políticas sociais, que por sua natureza são da competência do Poder Legislativo. Ao Poder Judiciário é dado concretizar direitos, já previstos, mas ainda não regulamentados, mas jamais pode inovar no ordenamento jurídico, isto é, ele não pode criar direito ou condicionantes de direitos ainda não previstos.
É nesse sentido o posicionamento de Ricardo Lewandowski, conforme visto nos Recursos Extraordinários de números 567985 e 580963.
Tal advertência tem sempre de ser considerada, pois, do contrário, a atividade jurisdicional torna-se uma contradição em si mesma, já que termina por criar inconstitucionalidades, notadamente a que se refere à violação da separação de poderes, conforme ocorrido em alguns casos decididos pelo Supremo Tribunal Federal nos tempos recentes.
2.6. As acepções do neoconstitucionalismo
Nas primeiras linhas do presente capítulo demos o sentido de neoconstitucionalismo, afirmando tratar-se de uma nova forma de se interpretar o Direito. Tendo isso em vista e diante dos elementos didáticos que apresentamos até esse ponto, é conveniente analisarmos as três acepções do movimento neoconstitucional.
Nessas circunstâncias, o neoconstitucionalismo é, ao mesmo tempo, uma teoria, uma ideologia e um método.
Trata-se de uma teoria porque, em uma análise ampla, contrapõe ao positivismo jurídico, estabelecendo as bases de um novo sistema jurídico, fincado em valores universais, superiores ao próprio Direito, entendido este como criação estatal. Assim, o Direito perde o caráter neutro para se tornar eminentemente axiológico.
É que nos ensina Antonio Manuel Peña Freire (2003, p. 25): “El (neo)constitucionalismo teórico o como teoría del derecho, pretende describir los cambios que la constitucionalización ha supuesto para los conceptos básicos de la teoría del derecho, es decir, cambios en el concepto de derecho, de norma, de jerarquía normativa, de interpretación, etc.”
Em suma, a tese central do neoconstitucionalismo, segundo sua acepção teórica, é a constitucionalização do sistema jurídico, que passará ser totalmente influenciado pela carga de princípios e valores dispostos no texto constitucional.
Com isso, o sistema de regras do positivismo jurídico (aplicável pela técnica da subsunção) cede espaço para a aplicação dos princípios constitucionais, (aplicáveis, também, pela regra de ponderação), que estão, dada à sua natureza, mais em consonância com o interesses da sociedade, de modo que sua aplicação está mais vocacionada à concretização do ideal de justiça.
É nesse sentido o entendimento de Alfonso García Figueroa (CARBONELL; 2005, p. 171): “En su aspecto estructural la constitucionalización del ordenamiento pone de manifesto la insuficiencia del modelo de reglas para dar cuenta del Derecho que presenta estándares normativos como os principios y en su aspecto funcional la ponderación de los principios constitucionales destaca igualmente la insuficiencia de la subsunción para dar cuenta de la aplicación del Derecho.”
O neoconstitucionalismo também é uma ideologia, pois sua preocupação principal é garantia, promoção e a preservação dos direitos fundamentais, sendo a limitação do poder estatal mera consequência lógica. Exatamente o oposto do Estado de Direito organizado segundo a cartilha do positivismo jurídico.
Isso conduz ao processo de constitucionalização do Direito, que condiciona a atividade política, pois tudo se submete àquela preocupação externada.
Tendo isso vem vista, Luís Prieto Sanchís (CARBONELL; 2005, p. 157) vê no neoconstitucionalismo ideológico um modelo aperfeiçoado do Estado de Direito, vez que: “El neoconstitucionalismo como modelo de organización jurídico-política quiere representar um perfeccionamiento del Estado de Derecho, dado que si es un postulado de éste el sometimiento de todo poder al Derecho, el tipo de Constitución que hemos examinado pretende que ese sometimiento alcance también al legislador. Bien es cierto que, a cambio, el neoconstitucionalismo implica también una apertura al judicialismo, al menos desde la perspectiva europea, de modo que si lo que gana el Estado de Derecho por un lado no lo quiere perder por el otro, esta fórmula política reclama entre otras cosas una depurada teoría de la argumentación capaz de garantizar la racionalidad y de suscitar el consenso en torno a lãs decisiones judiciales; y, a mi juicio, la ponderación rectamente entendida tiene ese sentido.”
Por fim, o neoconstitucionalismo é um método, posto que aproxima a Moral do Direito. Tal aproximação é exercida pelos princípios constitucionais, especialmente os versam sobre os direitos fundamentais. Assim, a interpretação nessa nova metodológica faz extensa investigação valorativas dos elementos fáticos, jurídicos e sociais.
Nesse sentido, trazemos à luz o entendimento de Paolo Comanducci (CARBONELL; 2005, p. 87): “El neoconstitucionalismo metodológico sostiene por el contrario – al menos respecto a situaciones de Derecho constitucionalizado, donde los principios constitucionales y los derechos fundamentales, constituirían un puente entre Derecho y moral – la tesis de la conexión necesaria, identificativa y/o justificativa, entre Derecho y moral.”
Alfonso García Figueroa justifica essa aproximação, pois o Direito apresenta virtudes morais e a moral apresenta virtudes jurídicas (CARBONELL; 2005, p. 160).